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domingo, 28 de fevereiro de 2016

Céticos x Críticos – A Importância do Ceticismo Grego para a Crítica de Artes



Apêndice 2: O relativo e o absoluto


       Qual a importância do conceito de verdade para o estudo das religiões? Para a postura ora hegemônica, não muito grande. O importante é compreender. Compreender como pensam e como sentem os religiosos. Os graus de veracidade e de coerência de suas crenças e escrituras não teria importância. Os mórmons, por exemplo, fazem afirmações sobre a história da América do Norte que podem ser testadas contra o pano de fundo da arqueologia, mas não é de bom tom fazê-lo. E, portanto, não o fizemos neste trabalho.

       A verdade existe, porém. Às vezes ela é relativa, outras vezes absoluta. É relativo dizer que Moscou fica longe de Londres. Se o parâmetro for Paris, a afirmação é verdadeira. Se o parâmetro for Pequim ou Tóquio, a afirmação é falsa. Mas o marco zero de Londres fica a uma quantidade absoluta e exata de quilômetros, metros, centímetros e milímetros do marco zero de Moscou. Esta distância é uma verdade absoluta.

       O solo de Meca é sagrado para os muçulmanos. Não o é para os adeptos de outras crenças ou descrenças. Ou seja, o solo de Meca é sagrado e não-sagrado ao mesmo tempo. Estamos aqui no reino dos significados atribuídos por sujeitos pensantes, reino relativo por natureza. Por outro lado, certos eventos históricos aconteceram ou não aconteceram em Meca. E isto é absoluto. Meca não fica na Alemanha ou no Japão, mas na Arábia Saudita. E isto também é absoluto.

       O evangelho atribuído a Lucas diz, nos versículos 39 a 43 do capítulo 23, que um dos ladrões crucificados com Jesus o defendia, enquanto o outro ladrão o insultava. Isto é um fato. Não que um dos ladrões defendia Jesus, mas que o evangelho atribuído a Lucas o afirma. Os evangelhos atribuídos a Marcos (15:32) e Mateus (27:44) dizem que ambos os ladrões o insultavam. Isto também é um fato. Não que os dois ladrões insultavam Jesus, mas que os evangelhos atribuídos a Marcos e Mateus assim o afirmam. Temos aqui uma contradição entre evangelhos. Isto é um fato.

       Vivemos, por conseguinte, num mundo de absolutos e relativos. Vivemos também num mundo em que professores relativistas são extremamente absolutistas quanto a suas próprias avaliações. O papel do ensaio a seguir é, pois, lembrar a tais professores que sua avaliação de textos alheios cai no lado relativista do espectro, algo de que se esquecem com muita facilidade. Boa leitura.

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Céticos x Críticos – A Importância do Ceticismo Grego para a Crítica de Artes

                                                      Por Gilson Gondim



Gilson Gondim
       “Difícil encontrar um espetáculo mais inspirado e feliz do que Viagem ao Centro da Terra, de Bia Lessa, em cartaz no Teatro Sesc- Vila Nova. Baseada no livro de Júlio Verne, a peça faz o tempo passar com rapidez; tem o encanto e, se me permitem o termo, o frescor da juventude. É moderna sem ser pretensiosa; é alegre, simpática, concebida e encenada com prazer.”

(Marcelo Coelho, “Viagem ao Centro da Terra ironiza ciência”, Folha de S. Paulo, Ilustrada, 10 de março de 1993)

       “Se não houvesse o resto, Viagem ao Centro da Terra é uma peça chata. Mas tem o resto. Tem a frivolidade de um teatro que anda às cegas, contando umas piadas aqui, construindo um impacto visual ali. Um teatro que anda às cegas, não só um espetáculo. Viagem, como Orlando antes deles, como Cartas Portuguesas, não sabe a que veio e não se importa. Quando acaba é que se descobre que não veio mesmo para coisa alguma.”

(Nelson de Sá, “Um besteirol metido a besta”, Folha de S. Paulo, Mais!, 14 de março de 1993)

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       O exemplo acima é um dentre muitos de críticas opostas das mesmas obras, publicadas na grande imprensa por pessoas igualmente credenciadas para o exercício do texto crítico. O que isto significa?

       Significa, é claro, que os julgamentos estéticos são relativos, vinculados a preferências e estados pessoais os mais variados. Na verdade, não somente os julgamentos estéticos, mas toda percepção. Humana ou de qualquer outro animal. É o que demonstram os argumentos do antigo ceticismo filosófico, cujo expoente mais conhecido foi Pirro, grego nascido cerca de 340 anos antes de Cristo.

       O grande objetivo de Pirro era a tranqüilidade, que ele dizia obter por meio da suspensão do julgamento. Se podem ser produzidos argumentos igualmente válidos e fortes contra e a favor de qualquer tese, pensava ele, por que sofrer com a procura de uma verdade inexistente ou inacessível? O enfoque de Pirro era, portanto, a felicidade pessoal; ele não foi um teórico do conhecimento. Este papel, dentro do ceticismo grego, coube a um de seus sucessores, Enesidemo. O trabalho epistemológico deste – assim como a ética pirrônica – chegou-nos por intermédio de um terceiro filósofo da velha Grécia, Sexto Empírico, que viveu no século II a. C.

       Sexto Empírico não foi um pensador original; foi um sistematizador. Organizou, expôs com clareza e legou à posteridade os conceitos e as teses de seus predecessores céticos, sobretudo Pirro e Enesidemo. Graças a ele, conhecemos hoje os Dez Modos de Oposição, formulados por Enesidemo.

       Definindo o cético pirrônico como alguém capaz de alcançar a tranqüilidade por meio de uma oposição de argumentos, Enesidemo definiu dez Modos gerais de realizar tal oposição:


       1º) As diferenças físicas entre os animais.

       Os cinco sentidos variam muito de uma espécie para outra. A águia e o lince, por exemplo, vêem muito melhor do que o homem, que enxerga melhor que o cachorro, que ouve e fareja muito melhor do que o homem e assim por diante. E não se trata apenas de ver ou ouvir melhor ou pior. Trata-se, também, de percepções diferentes. Da mesma maneira que a configuração de uma imagem depende da forma do espelho, o formato e outras características de um olho moldam a percepção visual, de modo que as formas e cores de uma árvore vistas por um gato serão diferentes daquelas vistas por uma coruja ou um crocodilo. Como poderíamos afirmar que a nossa percepção é a mais válida? Não somos juízes imparciais, uma vez que estamos envolvidos na disputa. Além do mais, não sabemos como um objeto é realmente, sabemos apenas como ele nos aparece aos nossos aparelhos perceptivos.


       2º) As diferenças existentes entre os homens.

       Se um hindu e um grego, dizia Enesidemo, percebessem da mesma maneira os alimentos, teriam as mesmas preferências alimentares. Se a percepção dos objetos fosse igual, as preferências também deveriam sê-lo. Como todo homem é parte deste conflito, nenhum de nós pode ser juiz de tais diferenças.

       3º) As diferenças entre os sentidos de uma mesma espécie animal (e seus limites).

       O quadro, que tem três dimensões para a visão, tem apenas duas para o tato. . O mel, agradável para o paladar, pode ser desagradável à visão, de forma que não se pode afirmar se o mel é, por natureza, atraente ou repulsivo. Para um cego de nascença, uma maçã tem forma, cheiro, gosto e textura, mas não tem cor. Como podemos saber se a maçã não tem alguma outra característica, que os sentidos humanos são incapazes de captar?


       4º) As circunstâncias do homem ao perceber os objetos.

       Um dia de sol terá significados diversos para mim, dependendo de eu estar doente ou saudável, exausto ou descansado, triste ou alegre, etc. Eu nunca percebo num vazio; só posso fazê-lo por meio de alguma circunstância, de algum estado de ânimo. Não posso saber, portanto, como as coisas são nelas mesmas, apenas como elas nos afetam em cada circunstância, em cada estado de ânimo.


       5º) Posições, distâncias e localizações.

       Um navio visto de longe nos aparece pequeno e parado. De perto, torna-se grande e em movimento. Sendo todos os objetos sempre vistos a partir de uma certa posição, com uma certa distância e em algum lugar, eles sempre aparecem de diferentes maneiras. Não havendo um critério neutro para decidir qual a percepção correta, só podemos afirmar como os objetos nos aparecem.


       6º) A mistura dos objetos com o ambiente e com outros objetos.

       As folhas de uma árvore, que nos aparecem verdes sob uma luz como a do sol, tornar-se-ão pretas ou vermelhas sob uma luz de outro tipo. A imagem da árvore dependerá também do tipo de olho que a captar e do tipo de cérebro que processar a informação..


       7º) Os efeitos das variações de quantidades.

       Uma mesma substância pode curar ou matar ou não fazer nenhum efeito, dependendo da quantidade. Ela não tem, portanto, uma natureza fixa, não é essencialmente isto ou aquilo, não tem um valor absoluto.


       8º) Relatividade.

       Este Modo é o mais difícil de explicar. Assim o resume Plínio Smith no livro O que é Ceticismo, p 42-3:

       O oitavo modo é baseado na relatividade. : uma vez que tudo é relativo, devemos suspender o juízo sobre a natureza real dos objetos. Segundo Sexto, todos os sete Modos expostos até aqui mostram a relatividade das percepções: elas são relativas ao animal, ao homem, ao sentido, à situação etc. Mas há um argumento particular que mostra ser tudo relativo: as coisas que existiriam absolutamente diferem das coisas relativas ou não? Se não diferem, é porque também são relativas. E, se diferem, também serão relativas, pois ter uma diferença com alguma coisa é ter uma relação com ela. Se tudo é relativo, não podemos dizer como as coisas são em toda a sua pureza, mas apenas como nos aparecem.


       9º) Os efeitos da raridade ou freqüência dos eventos.

       Explica Plínio Smith (op. cit., p. 43): “O sol é muito mais impressionante do que um cometa, mas, devido à freqüência do primeiro e à raridade do segundo, apenas este último nos causa admiração. Uma desgraça frequente acaba por nos tornar indiferente a ela”.


       10º) A diversidade cultural.

       Após longa enumeração de diferenças – no espaço e no tempo – entre hábitos, costumes, leis, crenças etc., Enesidemo conclui que não dispomos de um critério neutro, absoluto ou seguro para julgar qual dessas maneiras de viver está correta.

       Observe-se que os Modos de Enesidemo referem-se a coisas aparentemente objetivas, relativizando as percepções do próprio mundo físico. O que dizer então dos juízos estéticos, emitidos sobre objetos que não têm a solidez, a concretude de uma árvore?

         No universo das artes a relatividade é tão acentuada que todas as afirmações ameaçam tornar-se impossíveis, impondo-nos a paralisia e o silêncio. Há, porém, uma saída, que tem sido empregada de modo inconsciente ao longo da História: a invenção de mundos sucessivos ou paralelos. O mundo da poesia parnasiana, por exemplo, movia-se por regras que relegaram Augusto dos Anjos à pena da não-existência como poeta. Já o Rei dos Parnasianos, Olavo Bilac, seria por sua vez excomungado pelos arautos do modernismo. O crítico é portanto, na melhor da hipóteses, o porta-voz de um modelo. A validade de seus juízos circunscreve-se, no máximo, às regras do paradigma de que ele se faz porta-voz.

       A relatividade não se restringe a obras específicas. Aplica-se também a autores, a escolas, até mesmo a gêneros ou períodos inteiros. A constituição das percepções críticas da arte como mundos sucessivos ou paralelos é ilustrada com clareza – mesmo não sendo formulada nesses termos – pelo livro O que é arte, de Jorge Coli, publicado pela primeira vez em 1981. Primeiro ele mostra que a crítica de arte não pode ater-se à objetividade do comentário técnico (p. 17):


       O bom conhecimento da perspectiva da anatomia, da aplicação de luz e sombra são técnicas de um mesmo nível do manuseio das tintas, pois são aprendidas segundo regras e podem ser julgadas com um forte grau de objetividade. Mas elas são um meio entre outros para a construção de um quadro e não são, nem podem ser, uma exigência absoluta. Ninguém pensaria em condenar Ingres pelo seu desdém pela anatomia, nem Uccello pela sua perspectiva pouco ortodoxa, nem Botticelli pela ausência de modulado em suas obras. Podemos dizer que certo pintor conhece perfeitamente a anatomia, mas com isso estamos elogiando apenas um aspecto técnico parcial de sua obra.

       Em seguida ressalta a complexidade e a natureza necessariamente arbitrária dos discursos que determinam o estatuto da arte e o valor do objeto artístico (p.17-8):

       [...] São tantos os fatores em jogo e tão diversos, que cada discurso pode tomar seu caminho. Questão de afinidade entre a cultura do crítico e a do artista, de coincidência (ou não) com os problemas tratados, de conhecimento mais ou menos profundo da questão e mil outros elementos que podem entrar em cena para determinar tal ou qual preferência. Dirá um que Wagner é compositor desmedido ou de prolixidade vazia, outro invocará seu gênio harmônico a serviço de uma dramaticidade filosófica, etc.

       Após ressaltar a dificuldade, Coli parece apontar uma saída (p. 18):

       A situação é algo embaraçosa: vimos os fatores exteriores instaurando a arte em nossa cultura, vimos que eles determinam a hierarquia dos objetos artísticos, e nos deparamos com divergências de critérios que nos deixam confusos. Poderíamos tentar uma saída para o impasse buscando uma solução estatística: se não há unanimidade, talvez haja maioria. E, com efeito, pelo menos em certos casos mais notáveis, essa maioria parece manifestar-se com alguma solidez: é raro encontrarmos textos que desqualifiquem Cézanne, por exemplo, Einstein, Shakespeare ou Mozart. Eles existem, sem dúvida, mas um consenso geral valoriza extremamente a obra desses artistas.

       Era, porém, uma falsa saída (p. 18):

       Temos que nos desenganar, no entanto. Não somente porque, quando se trata de obras mais polêmicas, que não conquistaram a institucionalidade do consenso, as polêmicas mantêm-se acerbas, mas também porque esse consenso não é estável, ele evolui na história.

        Para ilustrar seu argumento, Coli (p. 19) lembra que Cézanne, Van Gogh, Gaugin e os impressionistas foram rechaçados pelos críticos de seu tempo, quando havia um conflito entre os critérios estabelecidos e a obra que eles produziam. A este respeito, ele faz um alerta (p. 19):

       [...] Poderíamos pensar que somos hoje mais aptos a perceber o valor deles, que nossa sensibilidade é mais aberta a Van Gogh e a Cézanne que a do público de seu tempo, e teríamos razão. Seria entretanto abusivo acreditar que o nosso juízo de hoje determina o reconhecimento definitivo de Cézanne Van Gogh. A crítica, amanhã, poderá nos mostrar que estávamos enganados, e que o interesse dessa pintura, afinal de contas, não era assim tão grande.

       “Absurdo?”, pergunta o autor, para logo em seguida demonstrar que não (p. 19-20):

       Rafael e Fídias são dois pilares da história da arte. Inúmeras gerações de artista se referiram a eles como mestres. Não obstante, no começo do nosso século [XX] foram assimilados a uma arte convencional, a modelos de escola, a patronos do “academicismo” e viram sua estabilidade de grandes gênios abalada; ao “convencionalismo” que representavam preferiu-se uma arte mais conforme ao espírito de inovação do tempo, um “primitivismo” mais espontâneo: exalta-se, por exemplo, Uccello e a escultura arcaica. Foi preciso esperar um tempo para que, novamente, eles se reerguessem como faróis, embora certamente menos incontestados do que antes.

        Depois de apontar vários exemplos, Jorge Coli fala das reviravoltas por que tem passado a reputação de pintores como Meissonier, Gervex, Puvis de Chavannes, Chaplin e Alma Tademma (p. 20-1):

       A morte de Meissonier, por exemplo, causou luto nacional na França.  Com o tempo, no entanto, a avaliação crítica inverteu-se e esses pintores, que se opunham aos impressionistas como técnica e assunto, deixaram de ser exaltados. A condenação da posteridade chegou a tal ponto que se tornou difícil ver um quadro deles em museus. Estes, quando possuíam algum, escondiam-nos envergonhados nas reservas.  Durante muito tempo, essa pintura foi considerada como o próprio exemplo da não arte, como alguma coisa artisticamente irrecuperável. Ora, há questão de dez ou quinze anos, começou a sua reabilitação triunfal. Hoje descobrimos nela uma técnica admirável, um imaginário surpreendentemente rico, por vezes um erotismo extravagante e desmedido. E, inversamente, começam a despontar análises restritivas a Renoir, a Monet.

       Coli prossegue na sua marcha irresistível, demolindo certezas (p. 21):

       Em certos casos, são setores inteiros da arte que passam por purgatórios do mesmo gênero. As catedrais góticas, que tanto admiramos hoje, a escultura, os vitrais e a pintura da Idade Média, foram execrados pelos homens da Renascença e dos séculos seguintes, até que os românticos e alguns teóricos do século passado [XIX], como Viollet-le-Duc, interessaram-se por eles e demonstraram seu valor. O barroco, o maneirismo, o art nouveau, o neoclassicismo, entre outros grandes movimentos da história da arte, conheceram trajetórias de forte oscilação entre o interesse e o desprezo.

       A conclusão não poderia ser outra (p. 21-2):

       Com estes exemplos, colhidos um pouco ao acaso, já podemos chegar a uma constatação deprimente: a autoridade institucional do discurso competente é forte, mas inconstante e contraditória, e não nos permite segurança no interior do universo das artes.

       O que fazer, então? Recolher-se ao silêncio? Não. Mas nunca perder a consciência da precariedade de tudo o que si disser. E mais: ter como meta a elaboraçao de análises fundamentadas no conceito cético de suspensão do julgamento Vejamos o que Jorge Coli nos diz  (p.37), mesmo sem fazer nenhuma menção ao ceticismo (aqui ou em qualquer outro trecho::

       A compreensão, a suspensão do julgamento denotam o desejo de rigor, próximo da ciência. Será útil examinarmos alguns esforços feitos na história da arte para se conseguir um rigor maior através da idéia de estilo.

       O melhor exemplo que ele nos traz é o do suíço Heinrich Wölfflin (1864-1945), cujo livro Renascença e barroco, publicado em 1888, atacou a visão – predominante desde o final do século anterior – de que o barroco não passava de uma evolução aberrante e decadente da arte da Rnascença. Ele tratou o barroco como uma produção artística nova e total, com seus próprios critérios, formas e intenções, mostrando que a arte dos séculos XVII e XVIII é diferente da arte da Renascença, e deve ser compreendida em si mesma. Em 1915, Wölfflin completou o que começara 27 anos antes, ao lançar – em Princípios fundamentais da história da arte – um modelo de análise minuciosa das constantes formais de cada estilo.

       Sem emitir nenhum juízo de valor em sua comparação, Wölfflin demontrou, entre outras coisas, que num quadro renascentista as figuras têm contornos nítidos, são claramente demarcadas e distintas, umas das outras e da paisagem. Na pintura barroca, as transições são suaves, as figuras se misturam umas com as outras e se fundem com a paisagem, que não tem uma existência autônoma. A arte da Renascença é – digamos assim – federativa: uma combinação de elementos destacáveis. Na arte barroca, cada obra se apresenta como uma totalidade, indivisível. Não são virtudes ou defeitos, mas características, constantes formais. Algo muito mais difícil de construir, muito mais refinado e instrutivo (e muito mais prazeroso para quem tem a consciência cética da relatividade, dos mundos sucessivos ou paralelos) do que arremessar adjetivos ou distribuir estrelinhas.

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       “Gilberto Gil ficou cinco anos sem lançar um disco próprio com canções inéditas. Agora, com o ótimo CD duplo Quanta, cada minuto de espera de seus fãs foi plenamente recompensado. Trata-se de um trabalho especial, em que Gil – o mais antenado de todos os compositores de sua geração – contraria o mito que confere aos baianos o gosto pela preguiça. Durante dois anos ele se debruçou com afinco no que pode ser considerado o mais ambicioso, elaborado e rico projeto de sua carreira de 35 anos. O resultado é um álbum de letras férteis e de acabamento primoroso.”

       (“Disco cabeça”, IstoÉ, 16 de abril de 1997)


       “Gilberto Gil passou cinco anos sem gravar um CD com músicas inéditas, desde o instigante Parabolicamará, de 1992. Isso gerou grande expectativa em relação a seu novo disco, Quanta, já nas lojas. A expectativa foi igual à decepção. Quanta, um álbum duplo, dá a impressão de que o compositor perdeu a mão. A proposta do CD é pretensiosa. Falar sobre as relações entre arte e ciência na cultura universal. Cita-se, entre outros, Vilanova Artigas: ‘Quando a ciência se cala, a arte fala’. Já o resultado musical é pífio. As melodias e os arranjos não estão à altura de Gilberto Gil, que sempre foi um músico criativo. O pior, no entanto, são as letras. Misturam assuntos como umbanda, filosofia oriental e física quântica, numa salada ininteligível.”

       (Celso Masson, “Muita besteira”, Veja, 23 de abril de 1997)


COLI, Jorge. O que é arte. São Paulo: Brasiliense, 1998, 133 p.
SMITH, Plínio. O que é ceticismo. São Paulo: Brasiliense, 1992, 85 p.

* Gilson Gondim é membro da Academia de Livres Pensadores da Paraíba