Por
Claucio Ciarlini Neto
A
história do Brasil é mergulhada em mitos e silêncios. Um destes foi de que não
houve Inquisição no Brasil, devido ao fato de não ter havido um tribunal
atuando em terras brasileiras, porém esta interferiu bastante na vida colonial
durante mais de dois séculos, atingiu as regiões mais distantes e perseguiu
portugueses residentes no País e brasileiros natos, através de seus
visitadores, comissários, bispos, vigários locais e “familiares”. Quem era pego
pelos “olhos e ouvidos” desse tribunal logo era conduzido para Portugal, e lá
recebia sua sentença.
Os
elementos mais visitados foram os cristãos-novos, acusados de praticarem
secretamente rituais judaicos. As investigações abrangiam, também, culpas de
sodomia, bruxaria e blasfêmias contra a Igreja católica, incluindo luteranos e
judaizantes. Os jesuítas, assim como os vigários locais, ajudavam na busca dos
culpados e suspeitos.
No Piauí colonial, vários foram os “pecadores” julgados por essa instituição,
segundo o Pesquisador Luiz Mott em seus achados na Torre do Tombo: “Ao todo,
conseguimos localizar na Torre do Tombo (Lisboa) 23 nomes de moradores do Piauí
denunciados ao Tribunal de Lisboa: 15 por desvios relacionados à fé e 8 por
crimes sexuais, entre estes 7 sacerdotes. Apenas um destes processos mereceu
rápida menção na ainda insuperada Cronologia Histórica do Piauí, de Pereira da
Costa: portanto a presença inquisitorial nestes sertões é um tema ainda
praticamente virgem na historiografia nacional”.
O
primeiro morador do Piauí a ser capturado pela Inquisição foi Dionísio da
Silva, natural da Paraíba. Vinha de uma família de cristãos novos que,
secretamente, realizavam algumas práticas cerimoniais próprias da
religião judaica. Cristão novo era a designação dada em Portugal, Espanha e
Brasil a judeus convertidos ao cristianismo. Luiz Mott, brilhante pesquisador e
antropólogo, em suas abundantes investigações na Torre do Tombo (Lisboa),
encontrou, e catalogou, vários casos de moradores capturados pelo Tribunal
Inquisitorial em muitos estados do Nordeste, dentre eles Pernambuco, Bahia,
Maranhão, Ceará e Piauí, e é Mott que nos relata sobre o ocorrido com a família
de Dionísio, em artigo intitulado “Inquisição no Piauí”:
“Seu
pai, José Nunes, lavrador de mandioca, demonstrava inclusive certa hostilidade
à religião de Cristo, tanto que fora visto desrespeitar uma imagem de Nossa
Senhora agredindo-a com uma faca, repreendia seu filho quando o via rezar o
rosário e costumava dizer ‘que não devia adorar a um Deus que foi açoitado e
morreu’.
Por
tais dizeres e práticas proibidas, quase toda sua família foi presa e sentenciada
pela Inquisição: a partir de 1729 foram presos seu pai, três tios e uma
sobrinha, sendo condenados a abjurar seus erros judaicos e usarem perpetuamente
o sambenito – aquela humilhante capa, tipo um escapulário, identificador dos
condenados pelo Santo Ofício. Foi sua tia Joana do Rêgo quem o denunciou:
naqueles tempos de terror, para salvar a própria pele, filhos denunciavam seus
pais; pais acusavam seus próprios filhos, pois esconder os crimes alheios
implicava penas ainda maiores para os réus”.
Em
meados de 1730, Dionísio fugiu da Paraíba para o Piauí, foi morar na Fazenda
das Éguas, na Ribeira dos Guaribas, distrito da Mocha. Instalou-se como
vaqueiro na propriedade. Depois de onze anos, a Inquisição conseguiu
encontrá-lo, delatado por seu vizinho, assim como sua “covarde tia” havia feito
anos antes com sua família, e o Juiz Ordinário da Mocha, na ocasião, efetuou
sua detenção, cumprindo ordem por determinação inquisitorial.
“Para instrumentalizar o processo, não havendo até então
representantes do Santo Tribunal no Piauí, para lá se dirigiu o Juiz Comissário
Frei João da Purificação, do convento carmelitano do Maranhão, que gastou 41
dias entre viagem e inquirições; despendendo a soma de 40$000 com tal
diligência, o equivalente ao valor de 16 bois, concluindo com a informação de
que ‘todas as testemunhas eram de verdade e crédito, dizendo o mesmo unanimemente”.
Em 23 de janeiro de 1744, Dionísio recebeu sua
punição: “é colocado no “potro” – uma espécie de cama de madeira onde o
réu era amarrado, tendo suas pernas e braços apertados por correias de couro
até provocar insuportáveis dores e hematomas.
Diz o documento que o pobre
Dionísio “no potro gritava por Jesus e a Virgem Nossa Senhora do Rosário”.
Ouviu sua sentença no Auto de Fé de 21 de junho do mesmo ano, sendo condenado a
abjurar seus erros judaicos, a cumprir algumas penitências espirituais, como
rezar salmos, comungar e confessar nas principais festas litúrgicas do ano e
usar o sambenito para sempre. Teve seus bens confiscados”.
No
mesmo ano da prisão de Dionísio, ocorreu mais um caso registrado na Torre do
Tombo sobre um morador do Piauí. Foi na freguesia de Nossa Senhora do
Livramento de Paranaguá, onde um sacerdote abusou de sua autoridade e recebeu a
punição do Santo Oficio, tratou-se de Padre José Aires, 40 anos, natural do
Recife, formado em teologia pela Universidade de Coimbra, que ao constatar uma
série de denúncias de desvios pertencentes à jurisdição inquisitorial, exagerou
no uso de seus poderes, ordenando algumas prisões “em nome do Santo Ofício”,
comportamento severamente punido pois apenas aos Inquisidores era dado o poder
de prender e julgar os que pecavam contra a fé.
Mais
uma vez Mott: “Quem fez a denúncia foi o próprio vigário de Paranaguá, o padre
Francisco Xavier Rosa: disse que o padre visitador chegando à fazenda das
Traíras, a duas léguas da Matriz, exigiu que os fregueses viessem buscá-lo
debaixo do pálio (aquela espécie de guarda-sol utilizado nas procissões solenes
para proteger o Santíssimo Sacramento), e após poucos dias da abertura à
visita, mandou prender e seqüestrar os bens do próprio Vigário Rosa, proibindo
que lhe falassem na prisão e impondo-lhe restrita dieta.
A acusação que pesava contra o Vigário de
Paranaguá era de ter revelado o segredo da confissão. Culpa grave mas que
somente com ordem expressa de Lisboa é que o Comissários ou familiares do Santo
Ofício poderiam efetuar a prisão do faltoso. Ao reclamar ao
Santo Tribunal das arbitrariedades do Padre Visitador, o Vigário Rosa diz ter
sido preso com uma corrente no pescoço e levado a uma cadeia na
vila de Mocha, e dali para São Luiz, achando-se há 13 meses no calabouço.”
Já preso e em Lisboa, Padre José Aires confessou e pediu perdão por seus
desmandos, recebendo como sentença o degredo por três anos para o extremo sul
de Portugal, nos Algarves.
Outro caso
registrado foi o de Joaquim de Santana, sapateiro, natural da
Bahia, que mudou-se para Jaguaribe com medo de ser denunciado, pois havia
casado uma segunda vez, sendo sua primeira mulher ainda viva. O crime de
bigamia era considerado um “pecado horrendo” aos “olhos” da Igreja católica,
pois ia contra os preceitos desta, contra o discurso instituído quanto
religião, pois depois de casados, ou seja, depois de terem recebido as bênçãos
católicas, um casal não poderia se separar, pois dessa forma estariam quebrando
uma ordem imposta pela Igreja.
Porém
um dos casos mais tenebrosos registrados sobre as “Vítimas” da Inquisição no
Piauí Colonial foram as confissões de duas escravas negras, como bem relata
Mott: “Em 1758 registra-se o episódio de feitiçaria mais fantástico da história
do Piauí, quiçá um dos mais espantosos de todo nordeste brasileiro: a confissão
de duas mestiças da Mocha envolvidas com o diabólico ritual do “sabá”, i.e.,
uma reunião de demônios com feiticeiras, muito semelhante ao relatado na Europa
medieval e moderna, mas rarissimamente documentado na América Portuguesa…”.
“Eu,
Joana Pereira de Abreu, mestiça, agora escrava do Capitão Mor José de Abreu
Bacelar, e moradora nestas Cajazeiras, Fazenda do dito meu Senhor, Freguesia de
Nossa Senhora do Livramento, da Vila de Paranaguá… denuncio e me vou a
denunciar a Vossas Excelências Reverendíssimas que haverá oito anos, com pouca
diferença, vivendo eu na Mocha, donde nasci e fui criada na casa do dito
primeiro meu senhor acima dito, já defunto, uma mestiça forra da mesma vila,
chamada Cecília, não estou bem certa no sobrenome, mas cuido que Cecília
Rodrigues, bem conhecida na vila por Cecília e tem uma filha chamada Mariana,
se me fez Mestra ela e também uma minha irmã mestiça, chamada Josefa Linda,
mais velha e que então vivia comigo na mesma casa e depois veio comprada para
estas Cajazeiras dois anos antes de eu vir também comprada pelo dito agora meu
Senhor Capitão Mor.
Estas
foram as duas Mestras que eu tive para tudo o que de mim e delas denunciarei
abaixo, pedindo para mim ao Santo Tribunal compaixão pois já o faço arrependida
e com prometimento de não tornar a semelhantes erros como os que tem sido em
mim… Um mês antes, me contou a dita Mãe Cecília, que o Demônio
tinha torpezas com as mulheres. E que se eu queria falar e ter com ele, ela me
ensinaria. Aceitei eu, como rapariga de nenhuns miolos e por outra parte de
costumes de pouca ou nenhuma boa educação.
Então
me disse ela que eu havia de ir nua à porta da igreja da mesma vila da Mocha,
em que vivíamos, e na qual igreja da vila se conserva sempre o Santíssimo
Sacramento, que ali havia de bater com as partes prepósteras assim nua
umas três vezes na porta da Igreja indo sempre para trás, e havia no
mesmo ponto de chamar por este nome e vocábulo: Tundá, o qual vocábulo
nem eu lhe sei bem decifrar a significação inteira e cabal, mas julgo ser nome
do Demônio. E que dali havia de endireitar nua para umas covas de defuntos que estão
a um lado da vila, a onde chamam o Enforcado, por se ali ter enforcado algumas
vezes alguns delinqüentes. E que ali me havia de aparecer um moleque e que eu
pondo-me na postura de quatro pés, ele me havia de conhecer pela parte
prepóstera…”.
Temendo os castigos da Inquisição, Joana
Pereira de Abreu delatou ao “Santo Oficio”, a também escrava Cecília que,
segundo ela, a teria convencido a fazer parte de um Sabá, ritual de bruxaria em
adoração ao Demônio.
A
partir da primeira Inquisição, a iconografia cristã passou a representar o
“Arcanjo Decaído” não mais como um arcanjo, mas com a aparência de deuses
pagãos, como Pã, um deus dos bosques, dos campos, dos rebanhos e dos pastores
na mitologia grega e Cernunnos, Deus Cornífero, por ser muitas vezes representado
como um homem com chifres adornando a cabeça. Era o Deus da fertilidade, da
abundância e patrono da caça para os povos antigos, às vezes era representado
alimentando animais; também podia mudar de forma e aparecer como cobra, lobo ou
veado.
Tal
fato levou, séculos após, à suposição de que bruxas eram adoradoras do demônio,
o que não faz sentido, uma vez que a figura do demônio faz parte do dogma
cristão, não pertencendo às crenças pagãs e nem existindo personagem de caráter
equivalente ao diabo em qualquer panteão pagão. O uso alternativo do nome
Lúcifer para designar o mal encarnado, na visão cristã, agravou a ignorância a
respeito do culto das bruxas, uma vez que o nome Lúcifer, pela raiz latina,
representa portador/fabricante da luz (Lux Ferre), inescapável semelhança ao
mito grego de Prometeu, que roubou o fogo dos céus para trazê-lo aos homens.
Concluindo
este artigo, foi encontrado por Mott um caso relacionado à suspeita na Fé, fato
que os Regimentos Inquisitoriais rotulavam de proposições heréticas (a
proposição herética encerrava uma parte de verdade, e era perigosa para a fé
porque apresentava essa parcela de verdade como a verdade toda, como por
exemplo, quando se diz que é verdade que Cristo é Deus e homem, mas para a
Igreja é heresia afirmar que Cristo é apenas Deus ou apenas homem).
Mott transcreveu e analisou com maestria esse
episódio ocorrido na Parnaiba do periodo colonial: “Trata-se de um
morador da Vila de São João da Parnaíba, José Francisco Souto Maior, natural de
Pernambuco, acusado de ter proferido as seguintes heresias: “que Deus tinha
obrigação de salvá-lo posto que o criara; que os mártires eram tolos, pois
devemos defender à vida acima de tudo; que homem nenhum do mundo não se deixou
cair no 6º mandamento, e perante o Santíssimo Sacramento dizia: eu vos
adoro se aí estais…”.
Tal
delação traz à data 29 de janeiro de 1802, a única ocorrência de um morador do Piauí
já no século XIX. Como as demais denúncias, também esta ficou arquivada no
Secreto do Tribunal da Inquisição de Lisboa, sem que este Monstro Sagrado
ordenasse qualquer medida punitiva contra o irreverente sertanejo. Já nesta
época, o Santo Ofício estava moribundo, e também no Piauí as novas idéias dos
iluministas da Revolução Francesa tinham seus adeptos e divulgadores”.
No
dia 31 de Março de 1821 foi extinta a Inquisição em Portugal, por uma sessão
das Cortes Gerais da Nação Portuguesa. Um “mundo da razão” pedia passagem e
certos tipos de radicalização da fé não poderiam mais ser bem aceitos, pois
afinal de contas, as revoluções que o capitalismo necessitava, e assim
impulsionava, ocorriam já há décadas e o Brasil acabaria por não ficar de fora,
mesmo que na forma de um Império herdado por um filho de sua antiga metrópole.