Herdamos a maior parte de nossas opiniões. Somos herdeiros de hábitos e
costumes mentais. Nossas crenças, assim como o estilo de nossas roupas,
dependem do local em que nascemos. Somos moldados e formados pelo ambiente que
nos circunda.
O ambiente é um escultor — um pintor.
Se tivéssemos nascido em Constantinopla, a maioria de nós diria: “Não há
qualquer Deus senão Alá, e Maomé é seu profeta”. Se nossos pais vivessem nas
margens do Ganges, seríamos adoradores de Shiva, sequiosos pelo céu de Nirvana.
Por via de regra, os filhos amam seus pais, acreditam no que eles dizem
e orgulham-se muito de dizer que a religião de seus pais lhes é satisfatória.
Em grande parte os indivíduos amam a paz; não gostam de desavenças com
seus vizinhos; gostam de companhia; são sociais; gostam de perseguir seus
objetivos acompanhados; odeiam a solidão.
Os escoceses são calvinistas porque seus pais eram. Os irlandeses são
católicos porque seus pais eram. Os ingleses são episcopais porque seus pais
eram. Os americanos são divididos em centenas de seitas porque seus pais eram.
Esta é uma regra geral, com muitas exceções. Os filhos às vezes são superiores
aos seus pais, modificam suas ideias, seus costumes, e chegam a conclusões
diferentes. Mas normalmente a divergência surge de modo tão gradativo que mal
se percebe, sendo comum insistirem que estão seguindo os passos dos pais.
Historiadores cristãos afirmam que a religião de uma nação algumas vezes
foi repentinamente mudada, e milhões de pagãos foram transformados em cristãos
sob o comando de um rei. Os filósofos não concordam com esses historiadores.
Nomes foram alterados, altares foram destruídos, mas as opiniões, os costumes e
as crenças permaneceram as mesmas. Um pagão, subjugado pela espada de um
cristão, provavelmente mudaria sua posição religiosa; um cristão, com uma
cimitarra em seu pescoço, espontaneamente se tornaria um maometano. Na
realidade, por dentro, ambos continuam sendo exatamente o que eram antes.
A crença não está sujeita à vontade. Os homens pensam como precisam
pensar. Crianças não creem, nem podem crer, exatamente no que lhes foi
ensinado. Elas não são totalmente idênticas aos seus pais. Elas diferem em
temperamento, em experiência, em capacidade, em atmosfera. Apesar
de imperceptível, há uma mudança contínua. Há desenvolvimento, há crescimento
consciente e inconsciente; comparando-se longos períodos de tempo, percebe-se
que o velho foi quase totalmente abandonado, quase totalmente sobreposto pelo
novo. O homem não é capaz de permanecer imutável. A mente não pode ser
ancorada. Se não avançarmos, vamos retroceder. Se não crescermos, vamos
definhar. Se não nos desenvolvermos, vamos atrofiar.
Como a maioria de vocês, fui criado entre pessoas que sabiam — que
estavam convictas. Não tinham motivos para questionar ou investigar. Não tinham
dúvidas. Sabiam-se possuidoras da verdade.
Em suas crenças não havia suposições, não havia talvez. Elas tinham a
revelação de Deus. Conheciam o início de tudo. Sabiam que Deus havia começado a
criação numa segunda, quatro mil e quatro anos antes de Cristo. Sabiam que na
eternidade anterior àquela manhã ele não havia feito nada. Sabiam que ele levou
seis dias para criar a Terra — todas as plantas, todos os animais, toda a vida
e todos os globos que giram no espaço. Sabiam exatamente o que havia feito em
cada dia e quando descansou. Sabiam qual era a origem, a causa do mal, de todos
os crimes, de todas as doenças e da morte.
Conheciam não apenas o começo, mas também o fim. Sabiam que a vida tinha
dois caminhos, um largo e um estreito. Sabiam que o caminho estreito, cheio de
espinhos e urtigas, infestado de víboras, molhado de lágrimas, manchado por pés
sangrentos, conduzia ao céu; e que o caminho largo, plano, ladeado por frutas e
flores, repleto de riso, música e felicidade conduzia diretamente ao inferno.
Sabiam que Deus estava fazendo todo o possível para escolhessem o
caminho estreito, e o Demônio usando todas artimanhas para que escolhessem o
caminho largo.
Sabiam que havia uma batalha perpétua entre os grandes Poderes do bem e
do mal pela posse das almas humanas. Sabiam que, muitos séculos atrás, Deus
deixou seu trono e veio a este pobre mundo na forma de um bebê — que morreu
pelos homens — a fim de salvar uns poucos. Também sabiam que o coração humano
encontrava-se totalmente depravado, que o homem naturalmente amava o mal e
odiava a Deus com toda sua força.
Ao mesmo tempo, sabiam que Deus havia criado o homem à sua imagem e
semelhança, e que estava perfeitamente satisfeito com sua obra. Também sabiam
que o homem havia sido corrompido pelo Demônio, que com embustes e mentiras
enganou o primeiro ser humano. Sabiam que, como consequência disso, Deus
amaldiçoou o homem e a mulher; o homem com o trabalho, a mulher com a
escravidão e a dor, e ambos com a morte; e que também amaldiçoou a própria
Terra com espinhos e abrolhos.
Tinham conhecimento de todas essas coisas sagradas.
Também sabiam tudo que Deus havia feito para purificar e elevar a
humanidade. Sabiam tudo sobre o dilúvio; sabiam que Deus — com exceção de Noé e
sua família — havia afogado todos os seus filhos — tanto os jovens quanto os
velhos, tanto os bebês quanto os patriarcas, tanto os homens quanto as
mulheres, tanto as mães amorosas quando as crianças felizes —, pois sua misericórdia
dura para sempre.
Também sabiam que havia afogado todas as bestas e aves — tudo que
caminha, rasteja ou voa —, pois seu amor se estende por todas as suas
criaturas.
Sabiam que Deus, no intuito de civilizar seus filhos, devorou alguns com
terremotos, destruiu outros com tempestades de fogo, matou alguns com raios,
milhões com fome, com pestilência, e sacrificou inúmeros milhares nos campos de
batalha.
Sabiam que era necessário crer em tais coisas e amar a Deus.
Sabiam que a salvação só poderia vir através da fé e do purificante
sangue de Jesus Cristo.
Todos que duvidassem ou contestassem estariam perdidos. Viver uma vida
moral e honesta — honrar seus contratos, cuidar de sua esposa e filhos,
construir um lar feliz, ser um bom cidadão, um patriota, um homem justo e
reflexivo — era simplesmente um modo respeitável de ser condenado ao inferno.
Deus não recompensava os homens pela sua honestidade, sua generosidade,
sua coragem, mas simplesmente pela sua fé. Sem fé, todas as chamadas virtudes
convertiam-se em pecado.
Todos os homens que praticassem tais virtudes sem fé mereciam
sofrer o suplício eterno.
Todas essas coisas confortantes e racionais eram ensinadas pelos
ministros em seus púlpitos, pelos professores em aulas dominicais e pelos pais em casa. As crianças eram
vítimas — eram atacadas em seus próprios berços, nos braços de suas mães. Os
professores travavam sua guerra contra o sentido natural das crianças, e todos
os livros que liam eram repletos das mesmas verdades impossíveis.
As pobres crianças estavam indefesas. A atmosfera que respiravam estava
saturada de mentiras — mentiras que se tornaram parte delas.
Naqueles dias os ministros dependiam dos cultos salvar as almas e
reformar o mundo.
No inverno, estando a navegação interrompida, o comércio era quase
totalmente suspenso. Não havia ferrovias e os únicos meios de transporte eram
carroças e barcos. Em geral, as estradas eram tão precárias que se dava
preferência aos barcos. Não havia óperas, teatros, nenhum entretenimento senão
festas e bailes. As festas eram consideradas mundanas e os bailes pervertidos.
Para as pessoas boas que estivessem em busca de uma alegria verdadeira e
virtuosa, havia os cultos.
Os sermões eram predominantemente sobre as dores e as agonias do
inferno, sobre a felicidade e o êxtase do céu, sobre a salvação através da fé e
a eficiência da expiação.
As pequenas igrejas onde ocorriam os cultos eram geralmente pequenas,
mal ventiladas e excessivamente quentes. Os sermões emocionais, as canções
tristes, os améns histéricos, a esperança do céu e o medo do inferno fizeram
com que muitos perdessem o pouco de senso crítico que tinham. Tornaram-se
substancialmente insanos. Nestas condições, dirigiam-se ao “banco das
lamentações”, tinham sensações estranhas, rezavam e lamuriavam, e pensavam ter
“renascido”. Então relatavam sua experiência — quão pervertidos eram, quão maus
eram seus pensamentos, seus desejos, e quão bons subitamente tornaram-se.
Costumavam contar a história de uma velha mulher que, ao narrar sua
experiência, disse o seguinte: “Antes de ter me convertido, antes de ter dado
meu coração a Deus, costumava mentir e roubar. Agora, pela graça e pelo sangue
de Jesus Cristo, abandonei aquela vida”.
Obviamente, nem todas as pessoas pensavam da mesma maneira. Alguns eram
zombeteiros, e de vez em quando alguns homens tinham bom-senso suficiente para
rir das ameaças dos padres e troçar do inferno. Alguns falavam de incrédulos
que haviam vivido e morrido em paz.
Quando eu era criança, ouvi-os falar sobre um velho fazendeiro de
Vermont que estava morrendo. O pregador estava ao lado de sua cama, e perguntou
se ele era um cristão, se estava preparado para morrer. O velho respondeu que
não havia preparado-se, que não era cristão — que em toda a sua vida não havia
feito nada senão trabalhar. O pregador respondeu que não poderia lhe dar
qualquer esperança caso não tivesse fé em Cristo — que sem fé sua alma
certamente estaria perdida.
O homem não estava amedrontado, mas perfeitamente calmo. Com uma voz
fraca e quebrantada, disse: “Caro pastor, suponho que o senhor já tenha
conhecido minha fazenda. Eu e minha esposa viemos para cá há mais de cinquenta
anos. Éramos recém-casados. Era tudo uma floresta, e a terra estava coberta de
pedras. Cortei as árvores, queimei os troncos, recolhi as pedras e erigi as
paredes. Minha esposa costurava e tecia, trabalhava o tempo todo. Criamos e
educamos nossos filhos — abdicamos a nós mesmos. Durante todos esses anos minha
esposa nunca teve um vestido ou um chapéu decentes. Eu nunca tive roupa boa.
Vivíamos da comida mais simples. Nossas mãos e nossos corpos deformaram-se pelo
trabalho. Nunca tivemos férias. Amamos um ao outro e os nossos filhos — esse
foi o único luxo que jamais tivemos. Agora estou à beira da morte e o senhor me
pergunta se estou preparado. Caro pastor, não temo o futuro, nem qualquer
terror de outro mundo. Talvez até exista um lugar como o inferno, mas o senhor
nunca me fará acreditar que possa ser ainda pior que Vermont”.
Então contaram sobre um homem que se comparou ao seu cachorro. “Meu
cachorro”, disse ele, “apenas late e brinca. Pode comer o quanto quiser. Nunca
trabalha e nem se preocupa com negócios. Daqui algum tempo ele morrerá, e isso
é tudo. Eu trabalho com toda a minha força, não tenho tempo para brincar, me
deparo com problemas diariamente. Logo morrerei, e então irei para o inferno.
Queria estar no lugar do meu cachorro”.
Bem, enquanto durasse o frio, enquanto houvesse neve, a pregação
continuava, mas quando o inverno terminava, quando o apito dos barcos a vapor
fazia-se ouvir, quando o comércio recomeçava, a maioria dos convertidos
“apostatava”, retornando aos seus antigos costumes. Mas no próximo inverno lá
estavam eles, prontos para serem “convertidos”. Formavam uma espécie de trupe,
representando os mesmos papéis todos invernos, e apostatando em todas
primaveras.
Os ministros que pregavam nestas cerimônias eram sérios. Eram diligentes
e sinceros. Não eram filósofos. Para eles, ciência o sinônimo de uma vaga
ameaça — de um perigoso inimigo. Não sabiam muito, mas acreditavam bastante.
Para eles as chamas do inferno eram reais — podiam avistar a fumaça e as
labaredas. O Demônio não era um mito, era uma pessoa de verdade, um rival de
Deus, um inimigo da humanidade. Pensavam que o importante nesta vida era salvar
a alma — que todos deveriam resistir e desprezar os prazeres dos sentidos,
mantendo os olhos totalmente fitos no portão dourado da Nova Jerusalém.
Eram desbalanceados, emotivos, histéricos, fanáticos, odiosos, amorosos
e insanos. Acreditavam literalmente que a Bíblia era a verdadeira palavra de
Deus — que era um livro sem erros ou contradições. Chamavam suas crueldades de
justiça; seus absurdos de mistérios; seus milagres de fatos; viam suas
passagens idiotas como algo profundamente espiritual. Cuidavam de evidenciar o
pavor, o arrependimento e a agonia dos perdidos e de demonstrar quão facilmente
isso poderia ser evitado, quão acessível era o céu. Diziam a seus ouvintes que
acreditassem, que tivessem fé, que dessem seu coração a Deus e seus pecados a
Cristo, o qual carregaria seus pecados e tornaria suas almas alvas como a neve.
Os ministros realmente acreditavam nisso tudo. Estavam absolutamente
convictos. Em vão o Demônio havia tentado semear dúvida em suas mentes.
Ouvi centenas desses sermões evangélicos — centenas das mais
aterrorizantes e vívidas descrições das torturas infligidas no inferno, da
horrível situação dos que se perderam. Supunha que o que tinha ouvido era
verdade, mas não conseguia acreditar. Eu dizia: “É verdade”, então pensava:
“Mas não pode ser”.
Esses sermões só deixaram fracas impressões em minha mente.
Não estava convencido.
Não tinha o desejo de ser “convertido”, não queria um “novo coração” e
não ansiava nem um pouco por “renascer”.
Mas ouvi um sermão que tocou meu coração, que deixou sua marca como uma
cicatriz em meu cérebro.
Num domingo fui com meu irmão ouvir um pregador batista do livre
arbítrio. Era um homem corpulento, vestido como fazendeiro, mas que era um
orador. Ele conseguia pintar um quadro usando palavras.
Escolheu para seu discurso a parábola do “homem rico e lázaro” (Cf. Lucas 16).
Descreveu o homem rico — seu estilo de vida, os excessos a que se
entregava, sua extravagância, suas noites luxuriosas, seus finos linhos
purpúreos, seus banquetes, seus vinhos e suas belas mulheres.
Então descreveu Lázaro — sua pobreza, sua miséria maltrapilha, seu corpo
consumido pela enfermidade, as cascas e migalhas que devorava, os cachorros
tinham piedade dele. Descreveu sua vida solitária, sem amigos.
Então, mudando o tom de piedade para triunfo, passando das lágrimas à
exultação, da derrota à vitória, descreveu a gloriosa companhia dos anjos, que
com suas asas alvas estendidas carregavam a alma do pobre desprezado para o
Paraíso — para o seio de Abraão.
Em seguida, dando à voz um tom de desprezo e repugnância, falou sobre a
morte do homem rico. Estava em seu palácio, em sua caríssima cama, o ar cheio
de perfume, o quarto cheio de servos e médicos. Todo seu ouro era inútil — não
podia comprar outro suspiro. Então morreu, e quando abriu os olhos estava no
inferno, em tormento.
Então, com uma expressão dramática, colocou sua mão direita na orelha e
sussurrou:
“Escutem! Ouço a voz do homem rico. O que ele diz? Ouçam! ‘Pai Abraão!
Pai Abraão! Rogo para que envie Lázaro, e que ele mergulhe a ponta se seu dedo
na água e refresque minha língua seca, pois estou atormentado pelas chamas’.
Oh, meus irmãos, ele vem fazendo este pedido há mais de dezoito séculos.
E por milhões de anos este lamento ainda ecoará pelo abismo que separa os
salvos dos perdidos. ‘Pai Abraão! Pai Abraão! Rogo para que envie Lázaro, e que
ele mergulhe a ponta se seu dedo na água e refresque minha língua seca, pois
estou atormentado pelas chamas’”.
Pela primeira vez compreendi o dogma da danação eterna e as “boas novas
da bem-aventurança”. Pela primeira vez minha imaginação apreendeu as alturas e
as profundezas do horror cristão.
Então eu disse: “É uma mentira, odeio sua religião. Mas se é verdadeira,
odeio o seu Deus”.
A partir daquele dia não tive mais medo nem dúvidas. Para mim, naquele
dia, as chamas do inferno foram extintas. A partir daquele dia passei a odiar
profundamente quaisquer crenças ortodoxas.
Aquele sermão me fez algum bem.
II
Desde minha infância tenho ouvido leituras e lido eu próprio a Bíblia.
Nas manhãs e noites a Sagrada Escritura era aberta e orações eram proferidas. A
Bíblia foi minha primeira história, os judeus eram o primeiro povo; os eventos
narrados por Moisés, por outros escritores inspirados e aqueles previstos pelos
profetas eram as coisas de suma importância. Em outros livros havia pensamentos
e sonhos dos homens, mas a Bíblia continha as sagradas verdades de Deus.
Contudo, apesar do ambiente, apesar de minha educação, não tinha amor
por Deus. Ele era tão comedido em compaixão, mas tão extravagante em violência,
são sequioso para matar, tão diligente no assassinar, que na realidade o odiava
com todo o meu coração.
A seu comando bebês foram mortos, mulheres violadas e trêmulos cabelos
brancos manchados de sangue.
Este Deus visitou o povo com pestilência — encheu casas e cobriu ruas
com mortos e moribundos —, viu bebês morrerem de fome nos seios secos de mães
pálidas, ouviu os choros, viu as lágrimas, as faces cadavéricas, os olhos sem
percepção, as recém-construídas sepulturas, e ainda assim permaneceu tão
impassível quanto a pestilência.
Este Deus obstruiu chuvas, causou fome — viu toda a ferocidade contida
nos olhos da fome —, viu a disformidade, os lábios pálidos, as mães devorando
seus bebês, e permaneceu tão impetuoso quanto a fome.
Para mim parece impossível a um homem civilizado amar, adorar ou
respeitar o Deus do Velho Testamento. Um indivíduo realmente civilizado deve
tratar tal Deus com repugnância e desprezo.
Mas nos velhos tempos as pessoas boas justificavam as atitudes de Jeová
quanto aos pagãos. Os infelizes que foram assassinados eram idólatras e, assim,
não deviam viver.
De acordo com a Bíblia, Deus nunca se revelou a esses povos, e sabia que
sem uma revelação era impossível que soubessem ser ele o verdadeiro Deus. Então
de quem era a culpa por serem pagãos?
Os cristãos diziam que Deus tinha o direito de destruí-los porque os
criou. Mas então os criou para que, se quando o fez, sabia que se tornariam
alimento do aço de espadas e que teria prazer em vê-los sendo assassinados?
Como último argumento, como desculpa final, os adoradores de Jeová
disseram que todas essas coisas terríveis se sucederam sob o “velho código” de
leis ríspidas, da justiça absoluta, mas que agora, sob um “novo código”, tudo
havia mudado: a espada da justiça foi embainhada e o amor entronado.
No Velho Testamento, diziam, Deus é o juiz, mas, no Novo Testamento, o
juiz é Cristo, o misericordioso.
Em verdade, o Novo Testamento é incalculavelmente pior que o Velho. No
Velho não há a punição eterna. Jeová não tinha prisões nem chamas perpétuas.
Seu ódio cessava com a morte. Sua sede de vingança saciava-se com a morte do
inimigo.
No Novo Testamento a morte não é o fim, mas o começo de uma punição
interminável. No Novo Testamento a maldade de Deus é infinita e sua ânsia por
vingança é eterna.
O Deus ortodoxo, quando em forma humana, disse a seus discípulos que não
resistissem ao mal, que amassem seus inimigos e que, se atingidos numa face,
que oferecessem também a outra (Cf. Mateus 5). Ainda assim, dizem
que este mesmo Deus, com os mesmos lábios amorosos, proferiu estas palavras
monstruosamente diabólicas: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo
eterno, preparado para o Diabo e seus anjos” (Cf. Mateus 25:41).
Essas são as palavras do “amor eterno”.
Nenhum ser humano tem imaginação suficiente para conceber este horror
infinito.
Tudo que a humanidade sofreu com as guerras, com a pobreza, com a
pestilência, com a fome, com o fogo e com o dilúvio, todo o pavor e toda a dor
de todas as doenças e de todas as mortes — tudo isso se reduz a nada quando
posto lado a lado com as agonias que se destinam às almas perdidas.
Este é o consolo da religião cristã. Esta é a justiça de Deus — a
misericórdia de Cristo.
Este dogma aterrorizante, esta mentira infinita: foi isto que me tornou
um implacável inimigo do cristianismo. A verdade é que a crença na danação
eterna tem sido o verdadeiro perseguidor. Fundou a Inquisição, forjou as
correntes e construiu instrumentos de tortura. Obscureceu a vida de muitos
milhões. Tornou o berço tão terrível quanto o caixão. Escravizou nações e
derramou o sangue de incontáveis milhares. Sacrificou os melhores, os mais
sábios, os mais bravos. Subverteu a noção de justiça, derriscou a compaixão dos
corações, transformou homens em demônios e baniu a razão dos cérebros.
Como uma serpente peçonhenta, rasteja, sussurra e se insinua em toda
crença ortodoxa.
Transforma o homem numa eterna vítima e Deus num eterno demônio. É o
horror infinito. Cada igreja em que se ensina esta ideia é uma maldição
pública. Todo pregador que a difunde é um inimigo da humanidade. Em vão se
procuraria uma selvageria mais ignóbil que este dogma cristão. Representa a
maldade, o ódio e a vingança sem fim.
Nada poderia tornar o inferno pior, exceto a presença de seu criador,
Deus.
Enquanto estiver vivo, enquanto estiver respirando, negarei esta mentira
infinita com toda minha força, a odiarei com cada gota de meu sangue.
Nada me da mais prazer que a consciência de que a crença na punição
eterna está se desvanecendo a cada dia, que milhares de ministros se
envergonham dela. Alegra-me saber que os cristãos estão se tornando
compassivos, tão compassivos que as chamas do inferno estão extenuando-se —
enfraquecidas, abafadas pelas cinzas, destinadas a morrer definitivamente em
poucos anos.
Por séculos a cristandade era um manicômio. Papas, cardeais, bispos, padres,
monges e hereges eram todos malucos.
Apenas alguns poucos — quatro ou cinco em um século — tinham o coração e
a mente íntegros. Apenas alguns poucos — apesar do rugido, do estrondo, dos
gritos selvagens — ouviram a voz da razão. Apenas alguns poucos — em meio à
selvagem fúria da ignorância, do medo e do fervor — preservaram a perfeita
calma que a sabedoria proporciona.
Nós temos avançado. Esperamos que, dentro de alguns anos, os cristãos
tornem-se humanos e sensíveis o suficiente para negarem o dogma que preenche
infindáveis anos com sofrimento. Deveriam saber que este dogma é profundamente
incompatível com a sabedoria, com a justiça e com a bondade de seu Deus.
Deveriam saber que a crença no inferno dá ao Espírito Santo — a Pomba —
um bico de abutre e coloca presas de víbora na boca do Filho de Deus.
III
Em minha juventude li livros religiosos — livros sobre Deus, sobre a
expiação, sobre a salvação através da fé e sobre os outros mundos.
Familiarizei-me com os comentaristas — com Adam Clarck, que pensava que a
serpente havia seduzido nossa mãe Eva, que era de fato o pai de Caim.
Ele também acreditava que os animais, enquanto estavam na arca, tiveram
suas naturezas transformadas a ponto de comerem palha juntos e desfrutarem da
companhia uns dos outros — com isso prefigurando o milênio abençoado.
Li Scott, um teólogo nato, que realmente pensava que a história de
Phaetom — sobre os cavalos selvagens cruzando os céus — corroborava a história
de Josué sobre o Sol e a Lua terem parado.
Então li Henry e Macknight, e descobri que Deus amava tanto o mundo que
decidiu amaldiçoar a grande maioria da humanidade.
Li Cruden, que fez a grande Concordância, tornando os milagres tão
modestos e prováveis quando pôde.
Lembro-me de que ele explicou o milagre da alimentação dos judeus
errantes com codornas dizendo que mesmo atualmente um imenso número de codornas
cruza o Mar Vermelho, e que, quando se ocasionalmente se cansavam, pousavam em
navios que afundavam com seu peso.
O fato de que a explicação era tão improvável quanto o milagre não fez
diferença ao devoto Cruden.
Há algum tempo li os Institutos de Calvino, um livro que visa produzir,
em qualquer mente natural, um considerável respeito pelo Demônio.
Li as Evidências de Paley e concluí que a evidência da ingenuidade na
produção do mal, na criação da dor, era no mínimo tão boa quando a evidência
que tende a demonstrar a presença de inteligência na criação do que denominamos
bem.
O argumento do relógio foi o maior esforço de Paley. Um homem encontra
um relógio e, por este por ser tão maravilhoso, ele conclui que teve
necessariamente um criador. Encontrando o criador do relógio, vê que este é
muito mais maravilhoso que o relógio, concluindo então que este também deveria
ter sido criado. Então encontra Deus, o criador do homem, o qual é tão mais
maravilhoso que o homem que não poderia ter tido um criador. Isso é o que os
advogados chamam de desvio de petição.
De acordo com Paley, não pode haver um projeto sem um projetista, mas
pode haver um projetista sem um projeto. A maravilha do relógio sugere um
relojoeiro, a maravilha do relojoeiro sugere um criador, mas a maravilha deste
criador demonstrava que não havia sido criado — que era incausado e eterno.
Tivemos Edwards em A
Vontade, no qual o reverendo autor demonstra que a
necessidade não influi na responsabilidade — e que quando Deus cria um ser
humano, e ao mesmo tempo determina e decreta exatamente o que este fará e será,
o ser humano é responsável, e Deus, em sua justiça e misericórdia, tem o
direito de torturar a alma deste humano eternamente. Mesmo assim Edwards dizia
que amava a Deus.
O fato é que, se você acredita num Deus infinito e também na punição
eterna, então precisa admitir que Edwards e Calvino estavam absolutamente
certos. Admitindo-se as suas premissas, não há como escapar às suas conclusões.
Eles eram infinitamente cruéis, suas premissas infinitamente absurdas, seu Deus
infinitamente mau e sua lógica perfeita.
Ainda assim, tenho bondade e integridade suficientes para dizer que
Calvino e Edwards eram ambos insanos.
Tivemos muita literatura teológica. Havia Jenkyn sobre a Expiação,
que demonstrou a sabedoria de um Deus que inventou um modo através do qual o
sofrimento inocente poderia justificar os culpados. Tentou demonstrar que as
crianças poderiam ser justamente punidas pelos pecados de seus ancestrais e que
homens poderiam, se tivessem fé, ser justamente creditados com as virtudes dos
outros.
Nada poderia ser mais devoto, ortodoxo e idiota. Mas nem toda a nossa
teologia era em
prosa. Tivemos Milton, com sua milícia celestial, com seu
grande e desajeitado Deus, seu orgulhoso e astuto Demônio — suas guerras entre
imortais e todas as sublimes absurdidades que a religião imprimiu na mente de
homens cegos.
A teologia ensinada por Milton era estimada pelo coração dos puritanos.
Foi aceita pela Nova Inglaterra, envenenando as almas e arruinando as vidas de
milhares. Nem o gênio de Shakespeare seria capaz de tornar a teologia de Milton
poética. Na literatura mundial não há qualquer coisa mais completamente absurda
— salvo os “livros sagrados”.
Tivemos Pensamentos Noturnos de Young, e eu supunha que o autor
era um indivíduo excepcionalmente e apaixonadamente devoto ao Senhor. Young
desejava muito ser um bispo, e para tal fim fez campanha eleitoral junto à
esposa do rei. Em outras palavras, ele era um bom e velho hipócrita.
Em Pensamentos Noturnos são raras as linhas genuinamente honestas,
naturais. É pretensão do início ao fim — não queria escrever o que sentia, mas
o que pensava que deveria sentir.
Tivemos Curso do Tempo de Pollock, com seu verme que nunca morre,
suas chamas inexauríveis, suas aflições sem fim, seus demônios maliciosos e seu
Deus perversamente exultante. Este aterrorizante poema deveria ter sido escrito
num manicômio. Nele se encontram todos os gritos, gemidos e guinchos dos
maníacos quando rasgam e despedaçam a carne um dos outros. É tão cruel,
horrendo e infernal quanto o 32o
capítulo de Deuteronômio.
Todos conhecemos o belo hino que se inicia com esta alegre linha:
“Ouve-se das tumbas um som tormentoso”. Nada poderia ser mais apropriado às
crianças. Não há problema em colocar um caixão onde pode ser avistado do berço.
Enquanto uma mãe amamenta seu filho, uma sepultura aberta deve estar aos seus
pés. Isto tende a tornar o bebê sério, reflexivo, religioso e miserável.
Deus odeia o riso e despreza a alegria. Sentir-se livre, desatado,
irresponsável, alegre; esquecer-se do rigor e da morte; inundar-se com a luz do
Sol sem medo da noite; esquecer-se o passado, não criar expectativas quanto ao
futuro, nenhum sonho de Deus, céu ou inferno; embriagar-se do presente; ter
consciência somente do abraço e beijo do ser amado — tudo isto é pecado contra
o Espírito Santo.
Tivemos também os poemas de Cowper. Cowper era sincero, o oposto de
Young. Tinha um olho observador, um coração sensível e um senso artístico.
Simpatizava com todos os sofredores — os encarcerados, os escravizados e os
desterrados. Amava o belo. Não surpreende que a crença na punição eterna tenha
enlouquecido esta amável alma. Não surpreende que as “boas novas” tenham
apagado a grande estrela da Esperança, deixando seu coração despedaçado na
escuridão do desespero.
Tivemos muitos volumes de sermões ortodoxos repletos da ira e do terror
do julgamento final — sermões concebidos por santos selvagens.
Tivemos o livro de Mártires, demonstrando que os cristãos por
muitos séculos imitaram o Deus ao qual adoravam.
Tivemos a história de Waldenses — da reforma da Igreja. Tivemos o
Progresso de Pilgrim, a Chamada de Baxter e a Analogia de
Butler.
Para falar no palavreado ocidental, acho que o Bispo Butler encontrou
mais cobras do que matou — sugeriu mais dificuldades que explicações, mais
dúvidas que respostas.
Minha juventude passou-se em meio a estes livros. Todas as sementes do
cristianismo — da superstição — foram semeadas e cultivadas em minha mente com
grande diligência e esmero.
IV
Todo o tempo estava alheio a quaisquer ciências, desconhecia totalmente
o outro lado — não sabia nada sobre todas as objeções levantadas contra as
Sagradas Escrituras ou contra o perfeito credo Congregacional. Obviamente tinha
ouvido os ministros falarem sobre blasfemadores, infiéis infames e zombeteiros
que riam das coisas sacras. Eles não refutaram seus argumentos, mas
despedaçaram seu caráter e demonstraram através da fúria assertiva que estavam
a serviço do Diabo. Mesmo assim, apesar de tudo que ouvi, apesar de tudo que
li, não conseguia acreditar. Meu coração e minha mente diziam Não.
Por algum tempo abandonei os sonhos, as insanidades, as ilusões, as
desilusões e os pesadelos da teologia. Estudei um pouco de astronomia; examinei
os mapas dos céus; aprendi os nomes de algumas das constelações, de algumas
estrelas; pesquisei algo sobre seus volumes e velocidades com que giravam em
suas órbitas; obtive uma modesta noção dos espaços astronômicos; descobri que
algumas das estrelas conhecidas estavam tão distantes nas profundezas do
espaço, que sua luz, viajando a trezentos mil quilômetros por segundo, levava
vários anos para atingir este pequeno planeta; descobri que, quando comparada
às grandes estrelas, nossa Terra reduzia-se a um simples grão de areia, um
átomo; descobri que a velha crença de que o exército dos céus [estrelas] havia
sido criado em benefício do homem era infinitamente absurda.
Comparei o que realmente se conhecia sobre as estrelas com a narração
conforme o Gênesis. Descobri que o autor do livro inspirado não tinha qualquer
conhecimento de astronomia — que era tão ignorante quanto um selvagem. Alguém
imagina que o autor do Gênesis realmente sabia algo sobre o Sol, sobre seu
tamanho? Que estava familiarizado com Sirius, a estrela do Norte? Que conhecia
algo sobre as constelações tão distantes que sua luz levou dois milhões de anos
para chegar aos nossos olhos?
Se tivesse consciência desses fatos, teria dito que Jeová trabalhou por
quase seis dias para fazer este mundo, mas apenas levou parte da tarde do
quarto dia para fazer o Sol e Lua e todas as estrelas?
Todavia, milhões de pessoas insistem que o escritor do Gênesis estava
inspirado pelo Criador.
Agora, os homens inteligentes que não estão amedrontados, cujos cérebros
não foram paralisados pelo medo, sabem que a sagrada história da criação foi
escrita por um selvagem ignorante. Sabem que a história é incompatível com os
fatos conhecidos e que todas as estrelas que reluzem nos céus atestam que seu
autor era um bárbaro isento de qualquer inspiração.
Admito que o desconhecido autor do Gênesis foi sincero, que escreveu o
que acreditava ser a verdade, que fez o melhor que pôde. Ele não alegou estar
inspirado, não fingiu que a história lhe havia sido contada por Jeová, mas
simplesmente expôs os “fatos” assim como os compreendia.
Após aprender um pouco sobre as estrelas, conclui que este escritor —
este escriba “inspirado” — havia sido iludido por mitos e lendas, e que não
sabia mais sobre a criação que o teólogo médio de meu tempo. Em outras
palavras, não sabia absolutamente coisa alguma.
Permitam-me, aqui, dizer aos ministros que estão me contestando para
virarem suas armas noutra direção. Esses reverendos deveriam atacar os
astrônomos. Deveriam anatematizar e envilecer Kepler, Copérnico, Newton,
Herschel e Laplace, pois estes homens foram os verdadeiros destruidores da
história sagrada. Então, após terem-se livrado deles, podem mover guerra contra
as estrelas e contra o próprio Jeová, por ter fornecido evidências contra a
veracidade de seu livro.
Depois estudei um pouco de geologia. Apenas o suficiente para conhecer
algo sobre as principais descobertas e as conclusões a que se havia chegado.
Aprendi algo sobre a ação do fogo e da água; sobre a formação das ilhas e dos
continentes; sobre as rochas sedimentares e ígneas; sobre as medidas de carvão;
sobre escarpas calcárias; algo sobre recifes de coral; sobre os depósitos
criados por rios, sobre o efeito dos vulcões, das geleiras e de todo o mar
circundante — apenas o suficiente para concluir que as rochas laurencianas(1)
eram milhões de anos mais antigas que a grama sob meus pés; apenas o suficiente
para sentir-me seguro de que este planeta tem feito sua rota ao redor do Sol,
alternando entre dia e noite, por centenas de milhões de anos; apenas o
suficiente para saber que o autor “inspirado” não sabia coisa alguma sobre a
história da Terra; que não entendia qualquer coisa sobre as grandes forças da
natureza — sobre o vento, as ondas e o fogo —, sobre as forças que vêm
destruindo e construindo, que vêm arruinando e criando através de incontáveis
anos.
E me permitam mais uma vez dizer aos ministros que não devem desperdiçar
seu tempo me contestando. Devem contestar os geólogos. Devem negar os fatos
descobertos. Devem arremessar suas maldições contra os oceanos blasfemos e
investir suas cabeças contra as rochas infiéis.
Então estudei um pouco de biologia. Apenas o suficiente para saber
alguma coisa sobre as formas animais; apenas o suficiente para saber que a vida
já existia quando as rochas laurencianas formaram-se; apenas o suficiente para
saber que implementos de pedra — implementos forjados por mãos humanas — haviam
sido encontrados misturados a ossos de animais atualmente instintos, ossos que
haviam sido partidos por estes instrumentos, e que estes animais já haviam
deixado de existir centenas de milhares de anos antes de Adão e Eva terem sido
manufaturados.
Então tive certeza de que o registro “inspirado” era falso, que milhões
de pessoas haviam sido enganadas e que tudo que me ensinaram sobre a origem do
mundo e dos homens era uma inverdade.
Percebi que o Velho Testamento era obra de homens ignorantes; que era
uma mescla de verdades e falsidades, sabedoria e tolice, crueldade e bondade,
filosofia e absurdidade; que continha alguns pensamentos elevados, alguma
poesia, uma boa quantidade de solenidade e trivialidade, algumas orações histéricas,
algumas ternas e algumas pervertidas, algumas previsões malucas, algumas desilusões
e alguns sonhos caóticos.
É evidente que os teólogos combateram os fatos descobertos pelos
geólogos, pelos cientistas, buscando sustentar a veracidade das Sagradas
Escrituras.
Pegaram equivocadamente os ossos de um mastodonte, pensando serem
humanos, e com eles orgulhosamente provaram que “naquele tempo havia
gigantes sobre a terra” (Cf. Gênesis
6:4).
Justificaram a existência dos fósseis dizendo que Deus havia os criado
para testar nossa fé ou que o Demônio havia imitado a obra do Criador.
Contestaram os geólogos dizendo que os “dias” no Gênesis eram longos
períodos de tempo e que, afinal, o dilúvio talvez poderia ter sido um fenômeno
local.
Disseram aos astrônomos que o Sol e Lua foram apenas aparentemente
parados, não literalmente; que a aparência foi produzida pela reflexão e
refração da luz.
Justificaram a escravidão, a poligamia, os roubos e os assassinatos
sancionados no Velho Testamento dizendo que o povo estava tão degradado que
Jeová foi forçado a amoldar-se à sua ignorância e aos seus preconceitos.
O clero tentou de todo modo eludir os fatos, evitar a verdade, para
preservar a crença.
A principio simplesmente negaram os fatos; em seguida os banalizaram;
depois os harmonizaram; e finalmente negaram tê-los negado.
Então mudaram o significado do livro “inspirado” a fim de torná-lo
compatível aos fatos. Primeiro disseram que se os fatos, conforme alegados,
eram verdadeiros, então a Bíblia era falsa e o próprio cristianismo uma
superstição. Posteriormente disseram que os fatos, conforme alegados, eram
verdadeiros, e que estabeleciam acima de quaisquer dúvidas a inspiração da
Bíblia e a origem divina da religião ortodoxa.
Tudo que não puderam driblar, engoliram. Tudo que não puderam engolir,
driblaram.
Desisti do Velho Testamento devido aos seus erros, seus absurdos, sua
ignorância e sua crueldade. Desisti no Novo Testamento porque asseverava a
veracidade do Velho; desisti dele por causa de seus milagres, de suas
contradições; desisti porque Cristo e seus discípulos acreditavam na existência
de demônios — os expulsavam das pessoas e animais, conversavam e faziam acordos
com eles.
Somente isso basta. Sabemos, se é que sabemos alguma coisa, que demônios
não existem, que Cristo nunca os expulsou e que, se fingiu tê-lo feito, era
ignorante, desonesto ou maluco.
Essas histórias sobre demônios demonstram a origem humana e ignorante do
Novo Testamento. Desisti do Novo Testamento porque recompensa a credulidade e
amaldiçoa os homens corajosos e honestos, porque ensina o horror infinito da
dor eterna.
V
Visto que passei minha juventude lendo livros sobre religião — sobre o
“renascer”, sobre a desobediência dos nossos primeiros pais, sobre a expiação,
a salvação através da fé, a perversidade do prazer, as degradantes
consequências do amor, a impossibilidade de se alcançar o céu através da
honestidade e da generosidade —, e tendo me tornado relativamente enfastiado de
pensamentos embotados e confusos, então se pode imaginar minha surpresa, meu
encanto ao ler os poemas de Robert Burns.
Estava familiarizado com escritos de devotos hipócritas, de fanáticos
insensíveis, de puritanos sem coração. Mas aqui estava um homem honesto por
natureza. Conhecia as obras daqueles que consideravam toda a natureza depravada
e viam o amor como a herança e o eterno testemunho do pecado original. Mas aqui
estava um homem que tirava alegria do lodo, que transformava camponesas em deuses
e entronava os homens honestos.
Um indivíduo cuja simpatia, com braços amorosos, abraçava todas as
formas de vida sofredora; que odiava toda espécie de escravidão; que era tão
natural quanto o azul do céu; que possuía um humor tão aprazível quanto um dia
de outono; cuja inteligência era tão afiada quanto a lança de Ituriel(2)
e cujo desprezo era tão devastador quanto o sopro do simum(3). Um homem
que amava este mundo, esta vida, as coisas do dia-a-dia, e que colocava acima
de tudo o êxtase do amor humano.
Li e reli, com arrebatamento, lágrimas e sorrisos, sentindo que por
entre aquelas linhas pulsava um grandioso coração.
Os poetas religiosos, lúgubres, artificiais e espirituais foram
esquecidos ou permaneceram apenas como fragmentos, tênues lembranças dos
horrores de monstruosos sonhos distorcidos.
Finalmente havia encontrado um homem natural, que desprezava o credo
cruel de sua pátria, que era corajoso e sensível o suficiente para dizer:
“Todas as religiões são velhas fábulas; um homem honesto não tem nada a temer,
nem neste mundo, nem em outros”.
Um homem que teve gênio para escrever a Prece de São Willie, um poema
que crucificou o calvinismo e trespassou seu árido coração com a lança do bom
senso, um poema que transformou toda crença ortodoxa em objeto de desprezo e
infinito escárnio.
Burns tinha seus defeitos, suas fragilidades. Era intensamente humano.
Ainda assim, eu preferiria aparecer bêbado na “Cadeira do Julgamento” e dizer
que era o autor de “Homens são homens por isto” que estar perfeitamente
sóbrio e admitir que havia vivido e morrido como um presbiteriano escocês.
Li Cain de Byron, no qual, como em Paraíso Perdido,
o Demônio parece ser o melhor deus — li suas maravilhosas, sublimes e pungentes
linhas; li seu Prisioneiro de Chillon — seu melhor —, um poema que
encheu meu coração de ternura, de piedade e de ódio ferrenho à tirania.
Li Rainha Mab de Shelley, um poema repleto de beleza, coragem,
reflexão, benevolência, lágrimas e desprezo, no qual uma alma corajosa derruba
as paredes da prisão e inunda celas com luz. Li A uma Cotovia, uma chama
alada, apaixonada como sangue, terna como uma lágrima, pura como a luz.
Li Keats, “cujo nome estava escrito em água”; li As vésperas de santa
Inês, uma história contada com uma arte tão espontânea que este pobre mundo
trivial transforma-se num mundo encantado; Ode a uma urna grega, que
preenche a alma com um amor eternamente sequioso, com todo o arrebatamento da
canção imaginada; Ode a um Rouxinol, uma melodia que encerra a memória
da manhã, uma melodia que se desvanece num ocaso entre lágrimas, assaltando os
sentidos com sua perfeição.
Então li Shakespeare, as peças, os sonetos, os poemas — li tudo.
Contemplei um novo céu e uma nova Terra; Shakespeare, que conhecia a mente o
coração do homem — as esperanças e os medos, os amores e os ódios, os vícios e
as virtudes da raça humana —, cuja imaginação leu os registros borrados por
lágrimas, leu as páginas ensanguentadas de todo o passado e viu que o brilho da
esperança e do amor estava ausente; Shakespeare, que sondou cada profundeza —
enquanto estava no mais alto pico, suas asas lançavam suas sombras.
Comparei as peças de Shakespeare com os livros “inspirados” — Romeu e
Julieta com Cântico dos Cânticos, Rei Lear com Jó
e Sonetos com Salmos —, e concluí que Jeová não dominava a arte
da oratória.
Comparei as mulheres de Shakespeare — suas mulheres perfeitas — com as
mulheres da Bíblia. Percebi que Jeová não era um escultor, não era um pintor —
não era artista; carecia do poder que transforma o barro em carne; carecia da
arte, do toque plástico que gera a forma impecável, do sopro que proporciona a
vida livre e alegre, do gênio que dá luz à perfeição.
Os livros sagrados de todo o mundo são porcarias inúteis e pedregulhos
toscos em comparação com o ouro faiscante e as gemas reluzentes de Shakespeare.
VI
Até o momento não havia lido nada contra nossa abençoada religião, salvo
o que tinha encontrado em Burns, Byron e Shelley. Por acaso, acabei lendo
Volney, o qual demonstra que todas religiões foram e são estabelecidas de modo
idêntico: todas tiveram seus Cristos, seus apóstolos, seus milagres e seus
livros sagrados; e então pergunta como se poderia decidir qual delas é a
verdadeira — uma pergunta que ainda aguarda por resposta.
Li Gibbon, o maior dos historiadores, que dominava seus fatos com tanta
maestria quanto César dominava as suas legiões. Aprendi que cristianismo é
apenas outro nome para paganismo — para a antiga religião, despojada de sua
beleza; aprendi que alguns absurdos foram trocados por outros, que alguns
deuses foram mortos, que uma multidão de demônios foi criada e que o inferno
foi aumentado.
E então li A Era da Razão, de Thomas Paine. Permitam-me dizer uma
palavra sobre este sublime homem difamado. Ele veio a este país logo antes da Revolução;
trouxe uma carta de apresentação de Benjamin Franklin, naquela época o maior
dos americanos.
Na Filadélfia, Paine foi contratado como redator da Pennsylvania
Magazine. Sabemos que escreveu pelo menos cinco artigos. O primeiro era
contra a escravidão; o segundo era contra a contenda; o terceiro era sobre o
tratamento de prisioneiros — demonstrando que o objetivo deveria ser
reformá-los, não puni-los nem degradá-los; o quarto era sobre os direitos das
mulheres; o quinto era em favor da formação de entidades voltadas à prevenção
de crueldades contra crianças e animais.
A partir disso pode-se perceber que ele sugeriu as grandes reformas de
nosso século.
A verdade é que este homem trabalhou toda a sua vida pelo bem de seus
semelhantes; moveu mais esforços para fundar a Grande República que qualquer
outro homem sob a nossa bandeira.
Apresentou seus pensamentos sobre religião — sobre as Sagradas
Escrituras, sobre as superstições de seu tempo. Era perfeitamente sincero, e
tudo que disse era bondoso e justo.
A Idade da Razão encheu
de ódio os corações daqueles que amavam seus inimigos; o ocupante de todo
púlpito ortodoxo tornou-se, e ainda é, um ferrenho detrator de Thomas Paine.
Ninguém respondeu — nem irá responder — suas objeções à Bíblia, seus
argumentos contra o dogma da inspiração.
Ele não se insurgiu contra todas as superstições de seu tempo. Apesar de
odiar Jeová, louvava o Deus da Natureza, o criador e preservador de tudo. Mas
nisto estava equivocado, pois, como Watson disse em sua resposta a Paine, o
Deus da Natureza é tão insensível e cruel quanto o Deus da Bíblia.
Todavia, Paine foi um dos pioneiros, um dos titãs, um dos heróis que, de
bom grado, dedicaram suas vidas inteiras, cada ato, cada pensamento, à
civilização e à emancipação da humanidade.
Li Voltaire, o maior homem de seu século, o qual fez mais pela liberdade
de pensamento e de expressão que quaisquer outros seres humanos ou “divinos”.
Voltaire, que despedaçou a máscara da hipocrisia, encontrando por detrás do
sorriso a carantonha do ódio.
Voltaire, que combateu a selvageria da lei, as decisões cruéis de cortes
venais; que resgatou vítimas de rodas(5) e ecúleos(6).
Voltaire, que travou guerra contra a tirania dos tronos, a ganância e a
perversidade do poder. Voltaire, cujo intelecto arremessou setas farpadas e
envenenadas contra os padres; que fez os devotos hipócritas, que o condenaram
publicamente, rirem de si mesmos por dentro. Voltaire, que tomou o partido dos
oprimidos, resgatou os desafortunados, defendeu os humildes e os fracos,
civilizou juízes, revogou leis e aboliu a tortura em sua terra natal.
Em todas direções, este homem incansável combateu o absurdo, o
milagroso, o sobrenatural, o idiota, o injusto. Não tinha reverência à
ascendência. Não se intimidava ante o esplendor e a pompa, ante o crime
coroado, ante a afetação mitrada. Sob a coroa viu um criminoso; sob a mitra, um
hipócrita.
Como sentença de sua consciência, de sua razão, pronunciou seu
julgamento contra toda a barbárie de seu tempo — um julgamento que vem sendo
corroborado pelo mundo inteligente. Voltaire acendeu a tocha e passou aos
outros a chama sagrada — cuja luz ainda brilha, e continuará brilhando enquanto
o homem amar a liberdade e buscar a verdade.
Li Zenão, o homem que, séculos antes do nascimento de Cristo, disse que
os homens não têm direito de posse sobre seus semelhantes: “Não importa se
você reivindica a posse de um escravo por compra ou captura, é um pretexto
injusto. Aqueles que alegam direitos de posse sobre seus semelhantes estão
fitando a mina e esquecendo-se de que a justiça deveria governar o mundo”.
Familiarizei-me com Epicuro, que ensinava a religião da utilidade, da
temperança, da coragem e da sabedoria, e que disse: “Por que temer a morte?
Enquanto eu sou, a morte não é; e, quando ela for, eu já não serei. Por que
deveria temer o que não pode ser enquanto sou?”.
Li sobre Sócrates, o qual, na ocasião do julgamento que decidiria o
destino de sua vida, disse a seus juízes, entre outras coisas, estas magníficas
palavras: “Não faço outra coisa a não ser convencer-vos, jovens e velhos, de
que não deveis vos preocupar nem com o corpo, nem com as riquezas, nem com
qualquer outra coisa antes e mais que com a alma, a fim de que ela se torne
excelente e muito virtuosa”.
Então li sobre Diógenes, o filósofo que odiava a superfluidade, o
inimigo do desperdício e da ganância. Este um dia entrou no templo,
aproximou-se respeitosamente do altar, esmagou um pilho entre seus dedos, e
disse solenemente: “O sacrifício de Diógenes a todos os Deuses”. Isto
parodiou a adoração de todo o mundo, escarneceu todas as crenças, condensou
toda a essência da religião num único ato.
Diógenes devia conhecer esta passagem “inspirada”: “sem derramamento
de sangue não há remissão”. (Cf. Hebreus 9:22 e Levítico 17:11)
Comparei Zenão, Epicuro e Sócrates — três pagãos difamados que nunca
chegaram a conhecer o Velho Testamento ou os Dez Mandamentos — com Abraão,
Isaac e Jacó — os três favoritos de Jeová —, e fui depravado o suficiente para
considerar os pagãos superiores aos patriarcas — e também ao próprio Jeová.
VII
Minha atenção agora se voltava às outras religiões: aos livros sagrados,
às crenças e às cerimônias de outras terras — da Índia, do Egito, da Assíria,
da Pérsia e de nações extintas ou decadentes.
Concluí que todas as religiões tinham o mesmo fundamento: a crença no
sobrenatural, num poder acima da natureza, o qual o homem poderia influenciar
através da adoração, com sacrifícios e orações.
Descobri que todas as religiões assentavam-se sobre uma concepção
equivocada da natureza; que a religião de um povo constituía a ciência daquele
povo, ou seja, sua explicação do mundo — da vida e da morte, da origem e do destino.
Percebi que todas religiões tinham substancialmente a mesma origem; que,
na verdade, nunca houve senão uma religião no mundo. Os ramos e as folhas podem
diferir, mas o tronco é o mesmo.
O nível da religiosidade de um pobre africano que derrama seu coração a
uma divindade de pedra é idêntico ao de um padre de batina que suplica ao seu
Deus. É o mesmo erro, a mesma superstição que dobra os joelhos e fecha os olhos
de ambos. Os dois pedem ajuda ao sobrenatural; nenhum desconfia da absoluta
uniformidade da natureza.
Parece-me provável que a primeira cerimônia religiosa organizada tenha
sido a adoração do Sol. O Sol era o “Pai Céu”, o “Onividente” — a fonte da
vida, a lareira do mundo. O Sol era considerado um deus que combatia a
escuridão, a qual representava o poder do mal, o inimigo do homem.
Houve muitos deuses-sol; parecem ter sido as divindades mais importantes
das religiões antigas; foram adorados em muitas terras, por muitas nações já
extintas.
Apolo era um deus-sol que combateu e conquistou a serpente da noite.
Baldur era um deus-sol apaixonado pela Aurora — uma donzela.
Krischna era um deus-sol; em seu nascimento o Ganges foi estremecido
desde sua nascente até sua foz, e todas as árvores — tanto as vivas quanto as
mortas — floresceram.
Hércules era um deus-sol.
Também o era Sansão, cuja força estava em seus cabelos, ou seja, em seus
raios; Dalila — a sombra, a escuridão — foi quem o despojou de sua força.
Osíris, Baco, Mitra, Hermes, Buda, Quetzalcoatl, Prometeu, Zoroastro,
Perseu, Cadom, Lao-tsé, Fo-hi, Horus, Ramsés — todos eram deuses-sol.
Todos esses deuses descendiam de pais deuses e de mães virgens. O
nascimento de quase todos era anunciado pelas estrelas — celebrado por uma
música celestial —, e vozes declaravam que uma bênção havia chegado ao mundo
desventurado. Todos esses deuses nasceram em lugares humildes — em cavernas,
sob árvores, em estalagens —, e tiranos tentaram matá-los quando eram bebês.
Todos esses deuses-sol nasceram no solstício de inverno — no natal.
Quase todos eram adorados por “homens sábios”. Todos jejuaram por quarenta
dias. Todos ensinavam através de parábolas. Todos realizaram milagres. Todos
tiveram uma morte violenta.
Todos ressuscitaram.
A história desses deuses é exatamente igual à história de nosso Cristo.
Isso não é uma coincidência, não é um acidente.
Cristo era um deus-sol. Cristo era um novo nome para o último
sobrevivente dos deuses-sol. Cristo não foi um homem, mas um mito — não uma
vida, mas uma lenda.
Descobri que não apenas nosso cristo era um plágio, mas que todos nossos
sacramentos, símbolos e cerimônias eram legados oriundos de um passado já
sepultado. Nada é original no cristianismo.
A cruz já era um símbolo milhares de anos antes de nossa era. Era o
símbolo da vida, da imortalidade — do deus Agni —, e foi entalhada sobre tumbas
muitas eras antes de a primeira linha da Bíblia ter sido escrita.
O batismo é muito mais antigo que o cristianismo — que o judaísmo.
Hindus, egípcios, gregos e romanos já tinham sua Água Sagrada muito antes de o
primeiro católico ter nascido. A eucaristia foi apropriada dos pagãos. Ceres
era a deusa dos campos e Baco o deus do vinho; durante o festival da colheita
faziam bolos trigo e diziam: “Esta é a carne de nossa deusa”; bebiam vinho e
bradavam: “Este é o sangue de nosso deus”.
Os egípcios tinham uma Trindade. Adoravam Osíris, Isis e Horus muito
antes de o Pai, o Filho e o Espírito Santo tornarem-se conhecidos.
A Árvore da Vida cresceu na Índia, na China e entre os Astecas bem antes
de o Jardim do Éden ter sido plantado.
Outras nações já tinham seus livros sagrados muito antes de nossa Bíblia
ter sido conhecida.
Os dogmas da Queda do Homem, da Expiação e da Salvação pela Fé são muito
anteriores à nossa religião.
Nada em nosso sagrado evangelho é novidade, nada é original em nosso
“esquema divino”. É tudo antigo — tudo emprestado, recortado e remendado.
Percebi que todas as religiões foram produzidas naturalmente — que eram
todas variantes de uma só —, e então concluí que não passavam de obras humanas.
VIII
Os teólogos sempre insistiram que seu Deus era o criador de todos os
seres viventes; que as formas, partes, funções e cores dos animais eram
expressão de sua imaginação, gosto e sabedoria; que os fez exatamente como são
atualmente; que inventou barbatanas, pernas e asas; que os equipou com armas e
proteções; que os fez em harmonia com o alimento e o clima, levando em
consideração todos os fatos que afetam a vida.
Eles insistiam que o homem era uma criação especial, desvinculado
totalmente dos animais abaixo dele. Também afirmavam que todas as formas de
vegetação atuais — desde os musgos até as florestas — são as mesmas desde sua
criação.
Homens de gênio, em sua maioria isentos de preconceitos religiosos,
estavam examinando essas coisas, estavam procurando por fatos. Estavam
examinando os fósseis de animais e plantas; as formas dos animais — seus ossos
e músculos, os efeitos do clima e da alimentação, as estranhas modificações
pelas quais haviam passado.
Humboldt publicou suas dissertações repletas de grandes pensamentos, de
esplêndidas generalizações, com sugestões que estimulavam o espírito
investigativo e com conclusões que satisfaziam a mente. Demonstrou a
uniformidade da Natureza — o parentesco entre tudo que vive e cresce, entre
tudo que respira e pensa.
Darwin, com Origem das Espécies, com suas teorias sobre a Seleção
Natural — a sobrevivência dos mais aptos — e sobre a influência do
meio-ambiente derramou uma torrente luminosa sobre as grandes questões da vida
animal e vegetal.
Essas coisas haviam sido conjeturadas, profetizadas, afirmadas e
insinuadas por muitos outros, mas Darwin, com perfeito esmero, com infinita
paciência e honestidade, encontrou os fatos, cumpriu as profecias e demonstrou
a veracidade das hipóteses, insinuações e afirmações. Ele foi, em minha
opinião, o mais arguto observador, o melhor juiz do significado e do valor de
um fato, o maior Naturalista que o mundo já produziu.
A visão teológica começou a parecer pequena e reles.
Spencer propôs sua teoria da evolução e respaldou-a com inúmeros fatos.
Colocando-se a grande altitude, com os olhos de um filósofo, de um profundo
pensador, perscrutou o mundo. Ele influenciou o pensamento dos mais sábios.
A teologia parecia mais absurda que nunca.
Huxley tomou o partido dos darwinistas. Nenhum homem jamais teve uma
espada mais afiada e um escudo mais eficiente. Ele desafiou o mundo. Os grandes
teólogos e os pequenos cientistas — aqueles com mais coragem que inteligência —
aceitaram o desafio. O que restou de seus pobres corpos foi carregado pelos
seus amigos.
Huxley tinha a inteligência, a dedicação, o gênio e a coragem para
expressar seu pensamento. Ele foi absolutamente leal ao que julgava ser
verdadeiro. Sem preconceitos ou temores, seguiu as pegadas da vida desde as
formas mais simples até as mais sofisticadas.
A teologia parecia ainda menor.
Haeckel partiu da célula mais simples e, de mudança em mudança, de forma
em forma, seguindo a linha do desenvolvimento, o caminho da vida, chegou à raça
humana. Tudo isso naturalmente, sem recorrer a interferências externas.
Li as obras destes grandes homens e de muitos outros, e me convenci que
de eles estavam certos e de que os teólogos — todos os crentes da “criação
especial” — estavam absolutamente errados.
O Jardim do Éden desvaneceu; Adão e Eva viraram pó; a serpente rastejou
de volta à grama; Jeová tornou-se um miserável mito.
IX
Então dei outro passo. Perguntei: que é a matéria, a substância? Pode
ser destruída, aniquilada? Será possível conceber a destruição do menor átomo de
substância? Um sólido pode ser triturado até virar pó, pode ser transformado em
líquido, o líquido pode ser transformado em gás — mas tudo continua existindo.
Nada é perdido, nada é destruído.
Deixe que um Deus infinito — se é que existe — ataque um grão de areia
com seu infinito poder. Ele não poderá destruí-lo. A substância desafia toda a
força, é indestrutível.
Então dei mais um passo.
Se a matéria é indestrutível, se não pode ser aniquilada, então não pode
ter sido criada.
Tudo que é indestrutível também é necessariamente incriável.
Então perguntei: que é força? Não podemos conceber a criação ou a
destruição da força. Ela pode ser convertida de uma forma para outra — de
mecânica para calórica —, mas não pode ser destruída, não pode ser aniquilada.
Se a força não pode ser destruída, não pode ter sido criada.
Portanto, é eterna.
Outra coisa: a matéria não pode existir à parte da força; a força não
pode existir à parte da matéria. A matéria não poderia ter existido antes da
força; a força não poderia ter existido antes da matéria. Matéria e força só
podem ser concebidas em
conjunto. Isso tem sido demonstrado por vários cientistas,
mas mais contundentemente por Buchner.
O pensamento é uma forma de força, consequentemente não pode ter causado
ou criado a matéria. A inteligência é uma forma de força, por isso não pode ter
existido sem ou à parte da matéria. Sem substância não pode haver uma mente,
nem vontade, nem qualquer espécie de força; não poderia ter existido substância
sem força.
A matéria e a força não foram criadas. Existiram desde a eternidade. São
indestrutíveis.
Não houve, não há um criador. Então veio a questão: Existe um Deus?
Existe um ser infinitamente inteligente, bondoso e poderoso que governa o
mundo?
Pode haver bondade sem muita inteligência, mas parece-me que a
inteligência perfeita e a bondade perfeita precisam existir necessariamente em
conjunto.
Na natureza coexistem — pelo menos ao meu ver — bem e mal, inteligência
e ignorância, bondade e crueldade, dedicação e desprezo, economia e
desperdício. Vejo meios que não cumprem seus fins; desígnios que parecem
malograr.
Parece-me infinitamente cruel que a vida alimente-se da vida — criar
animais que devoram outros animais.
Enchem-me de horror os dentes, os bicos, as garras e as presas que
rasgam e dilaceram. O que pode ser mais apavorante que um mundo em guerra? Em
cada folha, um campo de batalha; em cada flor, um gólgota; em cada gota de
água, perseguição, captura e morte. Em cada sombra, vida à espreita de vida. Em
cada folha de grama, algo que mata e algo que sofre. Em todo lugar, o forte
vivendo às custas do fraco, o superior vivendo às custas do inferior.
Em todo lugar, o fraco, o insignificante vivendo às custas do forte, o
inferior às custas do superior, o mais elevado servindo de alimento ao mais
baixo — o homem sendo sacrificado em nome de micróbios.
Morticínio universal. Em todo local, dor, enfermidade e morte. Morte
esta que não aguarda por cabelos grisalhos, mas abraça bebês e jovens felizes;
morte esta que separa a mãe de sua criança frágil e indefesa; morte esta que
preenche o mundo com dor e lágrimas.
Como o cristão ortodoxo pode explicar tais coisas?
Sei que a vida é boa. Lembro-me da luz do Sol e da chuva, mas então
penso nos terremotos e nas inundações. Não esqueço da saúde e da colheita, do
lar e do amor, mas o que dizer da pestilência e da fome? Não consigo harmonizar
todas essas contradições, essa mescla de bênçãos e agonias, com a existência de
um Deus infinitamente bondoso, sábio e poderoso.
O teólogo diz que o chamado mal existe para nosso bem; que fomos
colocados neste mundo de pecado e arrependimento para que com isso
desenvolvêssemos o caráter. Se isso é verdade, então por que crianças morrem?
Milhões e milhões morrem nos braços de suas mães após uns poucos suspiros. Eles
nem chegam a ter chance de desenvolver seu caráter.
O teólogo diz que serpentes receberam presas para protegerem-se de seus
inimigos. Mas por que o mesmo Deus que as fez também fez seus inimigos? Por que
muitas espécies de serpentes não têm presas?
O teólogo diz que Deus encouraçou o hipopótamo, que cobriu seu corpo —
exceto na região inferior — com placas e escamas que outros animais não podiam
perfurar com dentes ou presas. Mas este mesmo Deus fez os rinocerontes e
dotou-os de um chifre no nariz, com o qual estripam o hipopótamo.
Este mesmo Deus fez a águia, o urubu, o falcão e as suas vítimas
indefesas.
Para cada desígnio positivo parece haver outro negativo.
Se Deus criou o homem, se é o pai de todos nós, então por que fez os criminosos,
os loucos, os deformados e os débeis mentais?
Os homens inferiores deveriam agradecer a Deus?
A mãe que embala em seu seio uma criança com retardamento mental deveria
agradecer a Deus? Um indivíduo escravizado deveria agradecer a Deus?
O teólogo diz que Deus governa os ventos, as chuvas e os raios. Então o
que dizer dos ciclones, das inundações, das secas e dos fulgurantes relâmpagos
que matam?
Suponhamos que existisse um homem neste país que pudesse controlar os
ventos, as chuvas e os raios. Suponhamos que houvéssemos elegido-o para
governar tais coisas, e que ele tivesse permitido que estados inteiros secassem
e definhassem ao mesmo tempo em que desperdiçava água com chuvas no oceano.
Suponhamos que permitisse que ventanias destruíssem cidades e
transformassem milhares de corpos de homens e mulheres em rubros despojos
amórficos; que permitisse que relâmpagos ceifassem a vida de mães e bebês. O
que diríamos? O que pensaríamos deste selvagem?
Ainda assim, de acordo com os teólogos, este fado representa exatamente
a vontade Deus.
O que pensaríamos de um homem que decide não proteger seus amigos quando
possui plenos poderes para fazê-lo? Por que o Deus cristão permitiu que seus
inimigos torturassem e incinerassem seus amigos, seus adoradores?
Quem é suficientemente ingênuo para pretender explicar tais coisas?
Faz sentido que um homem infinitamente bondoso e infinitamente poderoso
permita que inocentes sejam encarcerados, acorrentados em calabouços e vejam
suas vidas passarem por entre suspiros cansados e paredes úmidas?
Se Deus governa o mundo, por que a inocência não é um escudo perfeito?
Por que a injustiça triunfa?
Quem pode responder a essas perguntas?
A única resposta digna de um homem inteligente e honesto é esta: eu não
sei.
X
Se este Deus existe, deve ser uma pessoa, um ser consciente. Quem é
capaz de imaginar uma personalidade infinita? Este Deus deve possuir força, e
não somos capazes de conceber força separadamente da matéria. Este Deus deve
ser material. Deve possuir meios através dos quais transforma força no que
denominamos pensamento. Quando pensa, usa força, e esta força precisa ser
restituída.
Ainda assim, nos dizem que ele é infinitamente sábio. Se for, então ele
não pensa. O pensamento é uma escada, um processo pelo qual chegamos a uma
conclusão. Aquele que já conhece tudo não pensa. Não pode ter esperanças ou
temores. O conhecimento perfeito exclui a paixão, a emoção. Se Deus é infinito,
não tem desejos, pois já possui tudo, e quem não deseja, não age. O infinito
jaz na serenidade eterna.
Conceber tal ser é tão impraticável quando imaginar um triângulo
quadrado ou um círculo sem diâmetro.
Ainda assim nos dizem que temos o dever de amar a Deus.
Podemos amar o desconhecido, o inconcebível? É possível que o amor surja
por obrigação? É nosso dever agir com justeza, com honestidade, mas amar não
pode ser imposto como dever. É impossível obrigar alguém a admirar um quadro, a
encantar-se com um poema ou a emocionar-se com uma música. A admiração não pode
ser controlada. O amor e o gosto não estão sujeitos à vontade. O amor é
necessariamente livre, surge do coração como o perfume de uma flor.
Há incontáveis anos os homens e as mulheres vêm tentando amar os deuses,
tentando abrandar seus corações e conseguir sua ajuda.
- Vejo-os todos, o panorama desfila ante meus olhos.
- Vejo-os com as mãos estendidas e os olhos reverentemente fechados em
adoração ao Sol.
- Vejo-os curvando-se diante de meteoritos por medo; suplicando a
serpentes, bestas e árvores sagradas; rezando para ídolos esculpidos em madeira
e pedra.
- Vejo-os erigindo altares para poderes invisíveis e manchando-os com o
sangue de crianças e animais.
- Vejo incontáveis padres e ouço seus cantos solenes.
- Vejo as vítimas moribundas, os altares fumegantes, os incensários
pendulantes e as nuvens elevando-se.
- Vejo homens semideuses — os desafortunados Cristos de muitas terras.
- Vejo acontecimentos triviais do dia-a-dia se transformando em milagres
ao serem passados de boca a boca.
- Vejo os profetas insanos lendo o livro secreto do destino através de
sinais e sonhos.
- Vejo-os todos. Os assírios cantando as preces de Assur e Ishtar; os
hindus adorando Brahma, Vishnu e Draupadi; os caldeus fazendo sacrifícios a Bel
e Rea; os egípcios curvando-se a Ptah, Osíris e Ísis; os medos aplacando a
tempestade e adorando o fogo; os babilônios suplicando a Bel e Merodach.
- Vejo-os todos ao redor do Eufrates, do Tigre, do Ganges e do Nilo. - Vejo
os gregos construindo templos para Zeus, Netuno e Vênus. - - Vejo os romanos
ajoelhando-se a uma centena de deuses.
- Vejo outros rejeitando ídolos e devotando suas expectativas e seus
medos a uma vaga imagem mental.
- Vejo as multidões boquiabertas aceitando mitos e fábulas de anos
remotos como sendo verdades.
- Vejo-os dar seu trabalho, sua riqueza, para vestir padres, para
construir igrejas com tetos ornamentados, corredores espaçosos e abóbadas
reluzentes.
- Vejo-os trajando farrapos, amontoados em tocas e barracas, devorando
cascas e migalhas, para que assim possam fazer mais doações a fantasmas e
deuses.
- Vejo-os criar doutrinas cruéis e disseminar o ódio, a guerra e a morte
pelo mundo.
- Vejo-os com as faces empoeiradas nos negros dias de peste e morte,
quando as faces estão pálidas e os lábios lívidos pela falta de pão. Ouço suas
orações, seus gemidos, seus suspiros.
- Vejo-os beijar lábios frios enquanto suas lágrimas cálidas caem sobre
as faces dos falecidos.
- Vejo nações malograrem e desvanecerem; vejo-as sendo capturadas e
escravizadas.
- Vejo altares abandonados ruírem; vejo templos lentamente se desfazerem
em pó.
- Vejo seus deuses envelhecendo, adoecendo, morrendo e sendo esquecidos.
- Vejo-os caindo de seus tronos imaginários, desamparados e inertes;
seus adoradores não recebem amparo.
- Vejo a injustiça triunfar; trabalhadores remunerados com chibatadas;
bebês comercializados; inocentes executados em patíbulos; heróis reduzidos a
cinzas.
- Vejo terremotos destruidores, vulcões abrasadores, ciclones famintos,
inundações arrasadoras e relâmpagos letais.
As nações sucumbiram. Os deuses estão mortos. O trabalho e a riqueza
perderam-se. Os templos foram construídos em vão. Todas as bocas
pereceram sem resposta às suas súplicas.
Então me perguntei: existe um poder sobrenatural, uma mente arbitrária,
um Deus entronado, uma vontade suprema que maneja os cordéis do mundo, que
comanda tudo, à qual subordinam-se todas as causas?
Não nego, pois não sei — mas também não acredito.
Creio que o natural é o supremo; que na infinita cadeia de eventos,
nenhum elo ser quebrado ou perdido; que não há poderes sobrenaturais que possam
responder às orações; que não há qualquer poder que a adoração possa persuadir
ou mudar; que não há qualquer força que se importa com o homem.
Acredito que a Natureza envolve tudo com seus braços onipresentes; que
não há interferências; nenhum acaso; que por detrás de cada evento há um
sem-número de causas inexoráveis; que em decorrência de cada evento
inevitavelmente haverá incontáveis efeitos.
Cabe ao homem proteger-se. Ele não pode depender do sobrenatural — de um
pai imaginário nos céus. Deve proteger-se através da investigação dos fatos da
Natureza, através do desenvolvimento de seu intelecto, para com isso sobrepujar
seus obstáculos e tirar proveito das forças da Natureza.
Deus existe?
Eu não sei.
O homem é imortal?
Eu não sei.
Mas de uma coisa eu sei: nem a expectativa, nem o medo, nem a crença,
nem a negação podem mudar algo. As coisas são como são; serão como devem ser.
Aguardamos e temos esperanças.
XI
Quando me convenci de que o Universo é natural, de que todos os
fantasmas e deuses são mitos, a alegria da liberdade permeou todos os meus
sentidos, toda a minha alma, toda a minha mente, todas as gotas de meu sangue.
As paredes de minha prisão ruíram, o calabouço inundou-se de luz; todas as fechaduras,
barras e grilhões dissolveram-se. Eu já não era mais um servo, um empregado ou
um escravo; já não havia para mim qualquer mestre em todo o mundo — nem mesmo
no infinito.
Estava livre. Livre para pensar, para expressar meus pensamentos; livre
para viver meu próprio ideal; livre para viver para mim e para aqueles que
amava; livre para usar todas minhas faculdades e todos meus sentidos; livre
para abrir as asas da imaginação; livre para investigar, adivinhar, sonhar e
expectar; livre para julgar e determinar a meu bel-prazer; livre para rejeitar
todas crenças cruéis e ignorantes, todos os livros “inspirados” que selvagens
produziram e todas as lendas bárbaras do passado; livre de papas e padres;
livre da barreira entre os “escolhidos” e os “excluídos”; livre de todos os
erros santificados e das mentiras sacrossantas; livre do medo da danação
eterna; livre dos noctívagos monstros alados; livre de todos os demônios,
fantasmas e deuses.
Pela primeira vez estava livre. Já não havia mais nenhum local de entrada
proibida nos reinos do intelecto; nenhum ar, nenhum espaço onde a imaginação
não pudesse abrir suas asas multicores; nenhuma corrente para meus membros;
nenhum flagelo para minhas costas; nenhuma chama para minha carne; nenhum
mestre para me intimidar ou ameaçar; nenhum caminho de outrem para ser seguido;
nenhuma necessidade de obedecer, adular, rastejar ou fingir.
Estava livre. Emergi ereto, destemido e feliz. Encarei todos os mundos.
Então meu coração encheu-se de gratidão por todos heróis e pensadores
que deram suas vidas pela liberdade no pensar e no agir — pela liberdade das
mãos e do intelecto; por todos aqueles que pereceram ferozmente em campos de
batalha; por todos aqueles que morreram acorrentados em calabouços; por todos
aqueles que subiram orgulhosamente as escadas de patíbulos; por todos aqueles
cujos ossos foram triturados, cuja carne foi marcada e rasgada; por todos
aqueles que foram consumidos pelo fogo; por todos os indivíduos sábios,
bondosos e bravos de quaisquer terras cujos pensamentos e feitos permitiram que
seus filhos fossem livres.
Jurei que seguraria a tocha que eles seguraram, e que a seguraria alta,
para que assim sua luz sobrepujasse a escuridão remanescente.
Sejamos honestos para conosco, honestos para com os fatos que
conhecemos; e, acima de tudo, preservemos a veracidade de nossas almas.
Mesmo se deuses existirem, não temos como ajudá-los, mas temos como
ajudar nosso semelhante. Não podemos amar o inconcebível, mas podemos amar
nossas esposas, nossos filhos e nossos amigos.
Podemos ser honestos quanto à nossa ignorância. Se formos, quando
questionados sobre o que há além do horizonte do conhecimento, devemos dizer
que não sabemos; podemos dizer a verdade, e desfrutar da abençoada liberdade
conquistada pelos bravos; podemos destruir os monstros da superstição, as
serpentes ciciantes da ignorância e do medo; podemos expulsar de nossas mentes
as aterrorizantes presas que rasgam e ferem; podemos civilizar nossos
semelhantes; podemos preencher nossas vidas com ações generosas, com palavras
amorosas, com arte, com música e com todo o arroubo do amor; podemos inundar
nossa existência com o brilho do Sol, com o divino clima da bondade; e podemos
beber até a última gota do cálice dourado da felicidade.
Notas do tradutor
1.
O mais
antigo dos ciclos orogenéticos da era proterozoica. (Dic. Aurélio)
2.
A lança
de Ituriel, ao menor toque, expõe a infâmia. (Cf. Paraíso Perdido, Parte IV,
versos 810-813, por John Milton).
3.
Vento
abrasador que sopra do centro da África para o norte. (Dic. Aurélio)
4.
Robert
G. Ingersoll foi um livre-pensador americano do século XIX, ou seja, está
referindo-se aos Estados Unidos.
5.
Suplício
que consistia em amarrar alguém numa espécie de cruz em forma de X, quebrar-lhe
os membros com uma maça e, em seguida, atar-lhe o corpo a uma roda, que se
fazia girar. (Dic. Aurélio)
6.
Cavalo
de madeira, no qual se torturavam os acusados ou condenados; ecúleo. (Dic.
Aurélio)
- autor: Robert G. Ingersoll
- tradução: André Cancian
- fonte: The Secular Web