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quarta-feira, 3 de junho de 2015

OS CRISTÃOS COMEM CRIANCINHAS ?








Por dois mil anos, milhões de crentes tentaram de todas as maneiras testemunhar a palavra de paz e amor supostamente pregada por Jesus.  Viam-se crentes nas cabeceiras dos doentes, recolhendo órfãos pelas ruas, curando os feridos depois das batalhas e saques.

Havia cristãos, como São Francisco, que davam casa e conforto aos que eram devorados pela lepra e comida a quem morria de fome. E muitos como ele atravessaram as linhas de frente das batalhas para promover a paz entre os exércitos. Existiam muitos fiéis que socorriam os sobreviventes das inundações, dos terremotos, das fomes. Havia ainda cristãos que tentavam impor um limite à brutalidade contra os escravos e servos da gleba oprimidos pelos possessores. Existiram cristãos que se expuseram abertamente a fim de obter a graça para um inocente condenado sem provas, apenas por fanatismo religioso.

Viram-se sacerdotes que construíram comunidades de índios e morreram com eles quando os conquistadores católicos decidiram que se agrupar em comunidades igualitárias e não pagar impostos constituía um crime contra Deus e a Coroa. Existiram sacerdotes que fundaram cooperativas e escolas para trabalhadores, que organizaram caixas de assistência mútua e ajudaram judeus e ciganos perseguidos a fugir... Mas essas pessoas, que por dois milênios contribuíram enormemente para melhorar a condição humana e civil dos mais fracos, raramente faziam parte dos vértices da Igreja.

Como aconteceu com todas as religiões do mundo que se tornaram "cultos do Estado", os centros de poder das principais igrejas cristãs foram conquistados por indivíduos inescrupulosos e maliciosos, dispostos a usar a fé e o misticismo com o único objetivo de obter riqueza e autoridade.

É claro que não se pode generalizar: existiram homens religiosos com grandes incumbências na esfera eclesiástica, que agiram com justiça e notável honestidade, e que sobretudo eram partidários — colocando em risco até mesmo a própria vida — do direito à dignidade e à sobrevivência dos pobres, golpeando, com palavras e atos concretos, "os ricos bem nutridos e poderosos, inimigos de Cristo e dos homens" (de uma homilia de Santo Ambrósio). Mas também é verdade que, por séculos, os papas continuaram vendendo os cargos religiosos a quem oferecia mais, e para ser ordenado bispo bastava pagar, não era necessário nem ser padre. Por dinheiro, Júlio II consagrou cardeal um rapazinho de 16 anos. Assim, no final das contas, muitos enganadores conseguiram até chegar a ser eleitos papas e macularam suas vidas com crimes horrendos.

O papa Woityla pediu perdão a Deus pelos pecados cometidos no passado por aqueles que representavam a ou pertenciam à Igreja. Mas, por maior que seja a lista dos atos nefastos cometidos, não podemos pretender que ela seja exaustiva.

Então, demo-nos o trabalho de reunir o maior número de documentos que produzam uma ideia menos vaga do "pecado" que maculou a Igreja. Ao realizar esta pesquisa, deparamo-nos com um quadro de traços chocantes, povoado com um número inacreditável de episódios por vezes grotescos, mas sempre trágicos.

As histórias que contaremos não se encontram em todos os livros. Ao contrário, os textos que narram esses fatos (salvo raras exceções) foram colocados no limbo por especialistas.

Mas por que embarcamos em tal aventura? Decerto, não por um anticlericalismo doentio. Hoje, até mesmo no clero inaugurou-se um debate muito fértil sobre a pesquisa histórica do percurso das religiões. Em toda parte, nascem grupos de fiéis que tentam pôr em prática a suposta palavra de Jesus contida no Novo Testamento e constroem solidariedade, liberdade, paz, superando obstáculos que ainda se interpõem à criação de um mundo onde a vida anterior à morte também seja digna de ser vivida. Mas, para que essa renovação seja profícua, é indispensável mergulhar profundamente no clima histórico, político e religioso que determinou o sacrifício de tantos mártires, vítimas da parte corrupta e autoritária do clero, muitas vezes com o auxílio dos grupos no poder.

Aquela consciência e aquela cultura, capazes de impedir que tais horrores se repitam, só podem ser construídas por meio da análise e do discernimento da natureza e gravidade dos abusos.

No ano de 476, o Império Romano do Ocidente, há tempos já corrompido e devastado pelas lutas de poder, deixa de existir até oficialmente. Os "bárbaros" zinhos, confiantes em seu valor em sua homogeneidade social, chegam em ondas, mas logo são arrebatados pela febre da traição e da desconfiança. Nenhum império resiste muito tempo.

Mas entre as lutas religiosas e políticas, amplificadas pelas invasões "bárbaras", pode acontecer que um rei traído por seus súditos e abandonado pelos mercenários decorra aos camponeses, oferecendo a eles liberdade e a propriedade da terra, e obtendo em troca exércitos invencíveis. O envolvimento dos camponeses na política, a explosão do artesanato, das manufaturas, da cultura dos ofícios e da invenção de novas técnicas levam o povo a amadurecer uma ideia mais digna de si próprio e um senso de justiça mais profundo.

Assim, por volta do ano mil, este novo modo de conceber e viver o mundo se funde ao que resta das ideias do cristianismo primitivo. Desenvolvem-se movimentos que unem a ideia do retorno ao cristianismo puro e a vontade de organizar uma sociedade sem rei, generais ou escravidão. Basicamente, a população dos fracos começa a se rebelar contra o poder sagrado e abençoado dos nobres patrões, inspirados pelo indispensável clero. Eles também descobrem que os poderosos, como guerreiros profissionais, não são muito valorosos: os artesãos e camponeses reunidos na comuna, armados de lanças e bem treinados, muitas vezes conseguem abatê-los como a fantoches.


Hereges

E já que os nobres não servem para nada, por que não se livrar deles? E para que servem os padres, que muitas vezes são bispos e condes ao mesmo tempo? Ninguém mais acredita na santidade deles, já que, sob as vistas de todos, cometem todo tipo de pecado.

E assim nasce a ideia de que os sacramentos, se administrados por pessoas indignas, não têm nenhum valor. "Ignorem o indigno exemplo deles", grita logo um teólogo "sigam o que dizem os ministros de Deus, não o que eles fazem".

No século X, começam a nascer em toda a Europa grupos de fiéis que pregam e aplicam a comunidade do bem, a fraternidade, e recusam a autoridade eclesiástica. Combatendo esses movimentos, as hierarquias eclesiásticas e nobres (que muitas vezes são a mesma coisa) se organizam para exterminar os habitantes de regiões inteiras, condenando os sobreviventes ao suplício público.

No ápice dessa perseguição, muitas pessoas são torturadas e assassinadas de formas horrendas apenas por terem apoiado a tese de que Jesus e os apóstolos não possuíam riquezas ou bens materiais. O mero fato de ter uma Bíblia em casa já bastava para levantar as suspeitas de se ser um inimigo da Igreja. Se essa Bíblia ainda fosse traduzida para o latim vulgar, ou seja, uma língua entendida pelo povo, e não tivesse autorização, a condenação por heresia era certa.

Os cristãos comunitários queriam se inspirar no Evangelho, sem intermediários. E muitas, muitas vezes, pagaram por isso com a própria vida. Um martírio que enfraquece aquele dos primeiros cristãos sob o Império Romano.

Contra os hereges, em dado momento, chegou a ser inventado um instrumento repreensivo de perfeição diabólica: a Inquisição. Os inquisidores eram, ao mesmo tempo, policiais, carcereiros, acusadores e juízes. Qualquer besteira já era suficiente para acabar em suas garras: um boato, uma carta anônima, um comportamento ligeiramente diferente do normal. Até ser devoto demais era considerado comportamento duvidoso. O suspeito era considerado culpado se não conseguisse provar a própria inocência. E quem testemunhava em favor de um suposto herege podia, por sua vez, tornar-se suspeito e sofrer um processo.

Na verdade, as perseguições aos hereges começam logo depois da criação da Igreja de Estado e terminam no século XVIII, com as últimas ondas de caça às bruxas. As histórias dos processos e das perseguições realizadas pela organização eclesiástica e pelo "Santo Tribunal" são tão absurdas e contraditórias que não nos permitem nenhuma análise verossímil. É impossível fazer um balanço confiável dessas guerras e perseguições, e decerto milhões de pessoas foram assassinadas em mais de mil anos de crueldade desumana.

.   Caio Júlio César, De bello Gallico, trad. S. Giametta, Tascabili Bompiani, livro VI, parágrafos 34 e 35.