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sábado, 4 de novembro de 2017

OS SANTOS PERSEGUIDOS











Agência PúblicaGabriele Roza · 01/11/2017




Mãe Merinha foi bem rápida, amarrou um pano branco na roupa e colocou alguns colares fios-de-conta coloridosno pescoço. ‘‘O mais triste disso tudo é saber que eles não param’’, disse, enquanto prendia um tecido também branco na cabeça. Estava pronta, com sua vestimenta de mãe-de-santo. Sinalizou que poderia começar a entrevista e se apresentou, ‘‘sou Mãe Merinha de Oxum, fui iniciada no Candomblé há 36 anos, sou filha de Mima de Oxossi, do Ilê Axé Obá Ketu’’. Há um ano e meio, Rosimere Lucia dos Santos abriu um terreiro de Candomblé em Belford Roxo, município do Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense, onde também começou um trabalho social com crianças da região. No dia 27 de setembro, quarta-feira, completou 51 anos e, naquele mesmo dia, seu terreiro foi invadido e incendiado.

Os vizinhos, quando perceberam as chamas, chamaram o irmão de Mãe Merinha, que mora perto, para ajudar a apagar o fogo. O incêndio foi controlado a tempo de não afetar a edificação principal, mas, no dia seguinte, Mãe Merinha percebeu que colocaram fogo bem na casa do meio, onde ficavam os donativos, roupas de santo e os orixás. Os criminosos furtaram também uma TV, celular e rádio. O Registro de Ocorrência foi feito uma semana depois, já na segunda tentativa: ‘‘A delegacia estava muito cheia, fiquei umas três horas lá, tava muito enfraquecida, chocada com tudo, fui buscando força, aí retornei na quinta-feira’’.



Mãe Merinha segura uma das fotos que sobrou do incêndio (Foto: Dado Gadieri e Pilar Olivares/Hilaea Media)

Queimaram também livros sobre religiões de matriz africana e as fotos da história da família no Candomblé.  ‘‘O que mais me entristece é o material de trabalho e as fotografias. Eu tenho toda uma história de santo, de quando era dirigido por minha mãe’’. Mãe Merinha é descendente de negros e indígenas, e a religião veio pela avó materna que foi para o Rio de Janeiro fugindo do marido violento, no Espírito Santo. Lavadeira, a avó conseguiu comprar um terreno em Belford Roxo e destinou parte para o orixá da filha. ‘Tinha até algumas fotos da minha mãe com trouxa na cabeça quando elas chegaram no município de Belford Roxo’’, relembra. ‘‘Levei tudo que eu tinha no decorrer desses anos para esse local, é toda uma história de vida do sagrado’’.

Mãe Merinha é uma das vítimas mais recentes da violência contra adeptos das religiões de matriz africana no Estado do Rio de Janeiro. De acordo com os dados do Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir), das 52 denúncias de intolerância religiosa ao Ceplir – de dezembro de 2016 a agosto de 2017-,  34 foram de pessoas do Candomblé, Umbanda e outras denominações de religiões de matriz africana no Estado do Rio.

Em cinco anos, as denúncias de discriminação por motivo religioso no Brasil cresceram 4960%. Foram de 15, em 2011, para 759, em 2016, de acordo com os dados do Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH). Em 2016, 69 eram candomblecistas (9,09%), 74 eram umbandistas (9,75%) e 33 são descritas como “religião de matriz africana” (4,35%), totalizando 23,19%.

Segundo relatório da Pew Foundation, o país deixou de ser um dos países mais populosos com menor taxa de Hostilidade Social por motivações religiosas, em 2007, para um dos países com alta taxa em 2014, passando da 2ª posição para a 9ª neste período.

Em agosto e setembro deste ano, uma nova onda de ataques a terreiros de Candomblé e Umbanda na Baixada Fluminense comprovou que os crimes de ódio por motivo religioso estão crescendo no estado que tem, pela primeira vez, um bispo evangélico governando a sua capital – em janeiro, Marcelo Crivella (PRB), bispo de Igreja Universal do Reino de Deus, assumiu a prefeitura do Rio de Janeiro.

Em resposta à violência, a Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDHMI) lançou o Disque Combate ao Preconceito para facilitar as denúncias.

Nos meses de agosto e outubro foram feitas 43 denúncias: uma de um espírita kardecista, uma de um evangélico, dois islâmicos e 39 umbandistas e candomblecistas, representando 90% do total. Foram seis tipos de violações identificadas, entre eles invasão/atentado a instituições religiosas (11), discriminação/difamação (10), agressão física (6), incitação ao ódio (6), agressão verbal (6), ameaça (4).


Inquisição do tráfico na Baixada

Dentre as denúncias contra religiosos de matriz africana, 12 ocorreram na Baixada Fluminense. A região reúne 13 municípios do Rio de Janeiro reabriga ao menos 274 terreiros, do total de 847 no Estado, de acordo com a pesquisa Mapeamento das Casas de Religiões de Matrizes Africanas,realizada pela PUC-Rio com o apoio da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR/PR), entre 2008 e 2011.

A SEDHMI recebeu quatro denúncias de ataques a terreiros realizados por traficantes de agosto a outubro, três delas de ocorrências na Baixada Fluminense – duas em Nova Iguaçu e uma em Itaguaí. Segundo a secretaria, as quatro vítimas informaram que por ordem da facção criminosa é proibida a prática de religiões de matriz africana na área dominada pela facção. Todas as pessoas que denunciam casos de intolerância religiosa são orientadas a fazer o registro na delegacia da região, mas algumas vítimas não o fazem por medo.

Em setembro, o terreiro da mãe de santo Carmen de Oxum foi atacado em Nova Iguaçu. O traficante, que ainda registrou o crime com a câmera de um celular, dá ordens para destruir os objetos sacralizados: ‘‘quebra tudo, apaga as velas, pelo sangue de Jesus tem poder… Todo mal tem que ser desfeito em nome de Jesus’’. Segundo o diretor-Geral da Polícia da Baixada Fluminense, Sérgio Caldas, o caso está sendo investigado  pela 58ª DP e já foram identificados, como executores, dois traficantes do Terceiro Comando Puro, facção criminosa conhecida por ameaçar candomblecistas e umbandistas. ‘‘Essa pessoa veio de uma outra comunidade para pressionar os terreiros de candomblé’’, disse Caldas à Pública, acrescentando que as condições “não são favoráveis” para a investigação. “Quando ocorre em comunidade conflagrada, a vítima fica com medo de se expor’’.

Os indiciados deste caso serão penalizados pela Lei 7.716, de 1989, conhecida como “Lei Caó’’, que determina a punição para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, como crime   inafiançável e imprescritível. A pena é de dois a cinco anos de reclusão.

O babalaô Ivanir dos Santos, fundador da Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa e porta-voz da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, diz que as primeiras ações de destruição de terreiros por traficantes aconteceram na década de 1990, no Morro do Urubu, em Pilares, Zona Norte do Rio. Depois, outros casos ocorreram no Morro do Dendê (localizado na Ilha do Governador), no Lins de Vasconcelos e na Cidade Alta. “É um fenômeno compreensível. Toda religião que cresce vai influenciar algumas esferas sociais’’, diz. Ivanir acredita que a presença de igrejas evangélicas nos presídios do Rio é um fator de influência para o surgimento do que chama de “tráfico evangelizado’’. ‘‘O cara tá lá preso, vira evangélico e vai sair por bom comportamento, isso diminui a pena do sujeito… Quando sai da prisão, nem todo mundo muda de vida”, diz.

As igrejas evangélicas devem se tornar ainda mais presentes nos presídios fluminenses. Em fevereiro, a Igreja Universal do Reino de Deus firmou acordo com o Governo do Estado para a construção de templos em unidades penitenciárias, custeados pela instituição religiosa. O acordo permite que a Universal construa ou reforme templos ecumênicos nas 51 unidades prisionais do Estado, dependendo de autorização do diretor da unidade. Até o momento, graças ao convênio, 15 templos foram inaugurados ou reformados, nos Complexos de Gericinó, Campos, Resende e Água Santa.

A Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Sistema Prisional e Direitos Humanos do Rio de Janeiro visitou as unidades prisionais onde foram construídos os templos religiosos para apurar a validade do acordo. Segundo o promotor de Justiça Murilo Nunes de Bustamante, os espaços não deveriam ser vinculados à religião específica, mas o padrão arquitetônico encontrado por eles se assemelha ao usado pela Igreja Universal. ‘‘Apesar da previsão de ser ecumênico de ter o livre uso pra qualquer um, os próprios internos só admitiriam que algumas religiões realizarem seus cultos no local’’. A investigação da Promotoria ainda não foi concluída. “Os indicativos são no sentido da identidade arquitetônica dos espaços, o que será debatido com as igrejas atuantes no sistema prisional’’, esclareceu.

Em resposta à Pública, a Igreja Universal do Reino de Deus informou que o programa social Universal nos Presídios (UNP) atende 80% da população carcerária do Brasil, aproximadamente 500 mil pessoas, do total de 622 mil detentos, segundo o Infopen de 2014,‘‘oferecendo cursos e apoio aos detentos e seus familiares, realizando um trabalho de ressocialização que é reconhecido pelas autoridades em todos os estados da Federação, inclusive no estado do Rio de Janeiro’’.


Oito homicídios por intolerância religiosa

Os dados disponíveis no Relatório de Intolerância e Violência Religiosa, da Secretaria Especial de Direitos Humanos,detalha o que ativistas pela liberdade religiosa chamam de ‘‘Guerra Santa’’. O Relatório mostra que, entre 2011 e 2015, 27% das denúncias feitas nas ouvidorias do país eram de pessoas da religião de matrizes africana, 16% de evangélicos, 8% de católicos e a 7% de espíritas. Em relação à religião dos agressores, informada pela vítima, as informações indicam que 17% eram evangélicos. Católicos aparecem em segunda posição, porém muito distantes, com 3%, seguidos de Testemunhas de Jeová  (1%) e Espíritas(1%), Matriz Africana (1%). Em 73% dos casos não foram registradas informações sobre a religião do agressor.

Também foram identificados no Relatório oito homicídios por motivo religioso, segundo investigações da polícia civil ou do Ministério Público. Quatro mortes envolveram lideranças de candomblé, em Londrina (PR) e em Manaus (AM), e quatro foram mortes de uma mesma família de evangélicos, em Itapecerica da Serra (SP).  Todos os assassinatos foram realizados por uso de facas, e os agressores e vítimas eram próximos.

O professor Jayro de Jesus, coordenador da Escola Livre Ubuntu de Filosofia e Teologia Afrocentrada, explica que os neopentecostais entendem que a fé traz saúde, bem estar e prosperidade material. Já as doenças, desemprego e pobreza resultam do ‘‘mal’’ e de uma vida em pecado. ‘‘É o mal que prejudica a vida alheia. E o mal é tipificado nas religiões afro’’, explica. ‘‘Os neopentecostais, hoje, contam com a ajuda da própria população que encontra justificativa para acabar com o mal que é o seu vizinho, o seu entorno.’’

Jayro, figura histórica na luta contra a violência às religiões de matriz africana, coordenou nos anos 80 o Projeto Tradição dos Orixás, que visitava os terreiros na Baixada para ouvir relatos de intolerância, e encaminhava para as delegacias. ‘‘Eram 20 jovens que saiam por toda a Baixada. Levantamos 3 mil terreiros com queixa de invasão, xingamentos, apedrejamentos, surras de bíblia’’, relembra. “A perseguição vinha essencialmente da Igreja Universal’’, diz.

Os relatos ao grupo foram reunidos no Dossiê ‘‘A Guerra Santa Fabricada’’, primeiro entregue ao Governo Federal sobre o assunto, protocolado na Procuradoria-Geral da República em 1989. Mas nada foi feito, garante Uilian Portella, advogado do grupo. ‘‘O dossiê denunciou reiteradas atitudes agressivas das igrejas evangélicas neopentecostais, notadamente a denominada Universal do Reino de Deus… Os adeptos dos cultos de Matriz Africana vinham sendo apedrejados, espancados e surrados com Bíblias ‘para expulsar capetas’”.

Em 2015, as emissoras de televisão Rede Record e a Rede Mulher (comprada pela Record), de Edir Macedo, fundador e líder da Igreja Universal, foram condenadas pela Justiça Federal a exibir quatro programas de televisão como direito de resposta às religiões de matriz africana por ofensas contra elas no programa “Mistérios” e no quadro “Sessão de Descarrego”.

Procurada pela reportagem, a Universal afirmou que a acusação de que seus membros perseguiam outros cultos na década de 80 é “mentirosa”. “A Igreja Universal do Reino de Deus defende, de modo intransigente, a liberdade de pensamento, de crença e de culto, conforme assegurado por nossa Constituição Federal”. A Igreja diz que prega o contrário. “Orientamos nossos adeptos a respeitarem as convicções das outras pessoas, pois são exatamente os bispos, pastores e milhões de simpatizantes da Universal as maiores vítimas do preconceito religioso no Brasil”, afirmou, por nota.


‘‘É como se tivessem arrancado um filho”

Às 22h do dia 4 de outubro deste ano, Mãe Vivian de Souza estava em casa, em Nova Sepetiba, quando recebeu a ligação de um vizinho do seu terreiro, em Seropédica, na Baixada. Por telefone, ele disse que entraram na casa dela e, até aquela hora, muitas imagens e objetos já deveriam estar quebrados. O vizinho repassou a ameaça de que se ela não retirasse os pertences o mais rápido possível, iriam destruir tudo. Mãe Vivian entrou em desespero. Sua casa fica a uma hora de distância de carro.

Há quase dois anos, Mãe Vivian se mudou com a família para Nova Sepetiba e transformou a sua casa em Seropédica em Casa de Candomblé. Não visitava o terreiro com regularidade, mas podia ficar uma ali uma semana inteira ou apenas um fim de semana, ‘‘o tempo que a obrigação religiosa exigir’’. Quando chegou à casa, próximo da meia noite, viu o portão arrombado, o Orixá Bará no chão, os Exus quebrados. Conseguiu um caminhão para tirar o que sobrou. No dia seguinte, alugou uma casa em Sepetiba para começar a construção de um novo espaço dedicado aos orixás. Para o anterior, não quer voltar mais: ‘‘É como se tivessem arrancado um filho meu’’. Além dos orixás, destruíram a própria estrutura da casa e outros objetos, ‘‘coisa que pra gente tem muito valor. Um búzio, uma moeda pra gente vale, pra outras pessoas talvez não, mas é muito ruim’’, contou.



Mãe Vivian mudou o terreiro para uma casa mais isolada em Sepetiba (Foto: Dado Gadieri e Pilar Olivares/Hilaea Media)

A casa nova é menor; objetos simbólicos foram armazenados em um quarto, e a outra parte em uma sala, com os atabaques e colchões que conseguiu levar. ‘‘Não dá pra entender tanto ódio. Parece que eu tô no tempo dos meus antepassados, da gente ter que se esconder na mata, como meus avós fizeram pra continuar cultuando a nossa religião. Eu tô acuada, eles estão nos acuando cada vez mais.’’

Mãe Vivian foi até a Delegacia em Sepetiba para fazer a denúncia, mas foi orientada a fazer o Registro de Ocorrência online ou ir à delegacia de Seropédica. “A forma que eles agem é como se você fosse culpado por aquilo que tá acontecendo, ‘porque a senhora não tava lá na hora?’. Não sou eu que tenho que saber quem foi.’’  Para ela, não há interesse da polícia em realizar uma investigação de fato.


Com a crise, o fim do Centro de Promoção da Liberdade Religiosa

Mãe Vivian buscou ajuda no Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir) que, de 2012 até este ano, atendeu às vítimas de intolerância no Estado Rio com acompanhamento psicológico, jurídico e assistência social.

Porém, Flávia Pinto, que era diretora da instituição até esta semana, explicou à Pública que o Centro deixou de receber recursos do Governo do Estado em 2016.  ‘‘Com a crise do Estado, o Ceplir ficou sucateado. Conseguimos recurso com a Fundação Cultural Palmares [do Governo Federal] e colocamos o Ceplir pra funcionar por mais um ano na UFF [Universidade Federal Fluminense], mas esse recurso acabou’’, informou. ‘Estamos conscientizando as pessoas de que intolerância religiosa é crime. A política de liberdade religiosa ainda é embrionária no país. As pessoas ainda não têm o entendimento de que ser discriminado pela sua religiosidade é crime’’.

O secretário estadual de Direitos Humanos, Átila Alexandre Nunes, rebate as críticas. Segundo ele, a Secretaria estadual de Proteção e Apoio à Mulher e ao Idoso passou a ser Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos (SEDHMI) e, com a mudança, a secretaria vai incorporar os técnicos do Ceplir  já em novembro ‘‘pra que seja uma estrutura permanente, consolidada e que não dependa de recurso de terceiros’’. Mesmo assim, a Ceplir não terá atendimento em novembro, mês da Consciência Negra, segundo Flávia. Ela agora vai trabalhar na Secretaria Municipal de Direitos Humanos da capital.   

Em agosto, o secretário anunciou que o Estado vai criar uma delegacia policial especializada em combate a crimes raciais e delitos de intolerância, a DECRADI, com um grupo capacitado para realizar as investigações e os atendimentos com as vítimas de crimes de ódio.



Mãe Vivian na porta da casa em Sepetiba com parte da estrutura da casa de Seropédica em mãos (Foto: Dado Gadieri e Pilar Olivares/Hilaea Media)

Ainda há muito o que melhorar no atendimento, comenta Flávia Pinto: “Os casos de intolerância ainda são interpretados pela polícia como brigas de vizinhos, aí a pessoa não tem atendimento correto e os dados não são gerados’’.

Sobre o problema orçamentário, o secretário acredita que a ação pode desafogar as delegacias regionais que vão poder encaminhar para a especializada a investigação. ‘‘Estamos falando de uma estrutura mais enxuta, a Secretaria de Direitos Humanos disponibilizaria os técnicos de psicossocial pra fazer o atendimento e ajudar nesse acolhimento das vítimas’’.

‘‘Infelizmente, estamos vivendo um outro momento que traficantes estão perseguindo os terreiros, a lógica agora é uma lógica territorial por conta desses traficantes’’, diz o secretário. A violência por parte dos traficantes estimula o aumento do número de casos não notificados e dificulta o trabalho da polícia. ‘‘No caso da mãe Carmen, foram quase 10 traficantes, segundo o relato dela. A gente até acompanhou ela até a delegacia, mas ela não quis assinar o depoimento por receio”, conta. Ele diz ainda que há uma sensação de impunidade por esses casos não serem tratados com seriedade e notificados como intolerância religiosa.

O Delegado Henrique Pessoa, da 151º DP de Nova Friburgo, coordenou o Núcleo de Combate a Intolerância da Polícia Civil que centralizava as informações de ocorrências recebidas pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa. “Esse assessoramento nas delegacias. A nossa função era devolver à polícia a consciência da relevância da investigação. O problema não pode ser enfrentado de uma forma banal. Mas, lamentavelmente, a polícia trabalha em condições precárias, de forma inadequada.’’ O núcleo foi extinto em 2012, durante a reestruturação da polícia civil, no governo de Sérgio Cabral (PMDB).


Mãe Elaine e Pai Márcio

Mãe Elaine Dias Pereira, mãe Elaine de Oxalá, mora em Nova Iguaçu há 30 anos – e há 30 anos sofre perseguição pela sua religião. Ela conta que logo que começou a casa em Santa Rita, bairro de Nova Iguaçu, já colocaram fogo nas colunas da casa. Ainda hoje, jogam constantemente pedras nas telhas. Até dezembro do ano passado, ela nunca tinha feito uma denúncia ou registro de ocorrência na delegacia. Mas, daquela vez, explodiram uma bomba no relógio de luz do terreiro enquanto ocorria uma cerimônia religiosa. ‘‘Tinha muita gente, muitos filhos aqui na casa, tinha criança, mulher grávida, e a explosão foi assustadora, naquele momento da explosão a gente não tinha noção do que estava acontecendo’’.

Ela foi à delegacia da Posse (58º) para relatar o caso. ‘‘Para minha surpresa, fui muito bem atendida e foi registrado como intolerância religiosa, foi uma vitória, cheguei aqui feliz porque tinha conseguido fazer isso’’. Um inspetor de polícia visitou a casa no dia seguinte. ‘‘O caso não foi adiante, não houve uma investigação até o fim’’, conta. Depois do episódio, ela resolveu colocar duas câmeras na frente do terreiro, o que inibiu as agressões.

Pai Márcio Virginio também precisou colocar uma câmera no quintal de seu terreiro, na Penha, Zona Norte no Rio de Janeiro, para identificar os autores das pedradas e restos de lixo que são frequentemente jogados na Casa de Candomblé. A Casa está aberta há três anos e, a partir do segundo ano, os ataques começaram em dias certos, segunda-feira e sábado – sempre em momentos de cerimônia. ‘‘As pedras vêm do prédio do lado, sendo que a câmera não é tão boa, então vou gastar mais dinheiro pra comprar uma câmera melhor.’’ Além de quebrar partes do telhado, os agressores já quebraram uma imagem do Caboclo, orixá cultuado na casa. ‘‘Quando a gente vê uma imagem de santo quebrada eu fico pra baixo, porque é a casa do nosso sagrado.’’

Foi necessário colocar lona na parte aberta do quintal para que as pessoas não fossem atingidas pelas pedras no momento das cerimônias religiosas. ‘‘Minha casa tem muitos idosos, gente que vem com cadeira de roda. A pessoa já chega com medo’’.

Pai Márcio foi até a delegacia quando as agressões começaram a ficar mais frequentes. “Na primeira vez não abriram o boletim de ocorrência. Só na segunda vez’’. Ele conta que foi pelo menos 20 vezes à delegacia para fazer mais denúncias. “Não fizeram nada”, diz.

Os defensores da liberdade religiosa veem uma ligação entre a inação da polícia e o preconceito. Ivanir dos Santos argumenta que um passo ainda pendente seria a instituição do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas, segundo a Lei 10639. A culpa é, também, do desconhecimento.  “Não adianta colocar a conta só nos neopentecostais porque não são só eles. Para a sociedade brasileira nós somos feiticeiros, macumbeiros e do mal”, resume.

No dia 27 de setembro, o Supremo Tribunal Federal autorizou ensino religioso confessional nas escolas públicas – ou seja, as aulas podem seguir os ensinos de religiões específicas. Para Ivanir dos Santos, o efeito da ação será aumentar a discriminação e a perseguição às religiões afro-brasileiras. “Isso é referendar o papel da igreja como elemento do estado, isso é igualzinho na Colônia e no Império’’, comenta. Jayro concorda que o ensino religioso reforça a dualidade entre o bem e mal. ‘‘As igrejas se sentem detentoras do bem, não só da alma, mas da vida social. Então o ensino religioso nas escolas é um incentivo a essa dualidade’’, comenta.

Sem conhecer a religião, é difícil à sociedade entender a seriedade desses ataques. Na visão de mundo africana, o assentamento dos orixás é uma espécie de ‘‘extensão do seu eu’’, da própria existência, explica o professor Jayro. “A violência é muito mais vigorosa do que a gente imagina’’. Desrespeitar as lideranças religiosas e os símbolos representativos de matriz africana, diz ele, é entendido como uma forma de expulsão. Para muitas pessoas, depois da destruição, é necessário se reconstruir em outro espaço físico.

Para se reconstruir, Mãe Merinha contou com um mutirão de voluntários a limpar, fisicamente, a sua casa varrida pelas chamas. Agora, prepara o ritual de limpeza religiosa, com direito a preces para os Pretos Velhos. “Passamos por um momento de grande intolerância religiosa em nosso país, que a cada dia se agrava mais. Não sei se é de conhecimento de todos, mas o nosso espaço infelizmente também veio a fazer parte dessa estatística de ódio”, escreveu aos seus filhos.


Mãe Merinha olha as roupas de santo queimadas (Foto: Dado Gadieri e Pilar Olivares/Hilaea Media)


Um passado que volta

Em vários momentos da história brasileira, as religiões de matriz africana, cuja essência teológica e filosófica é baseada nos valores civilizatórios negroafricanos, sofreram repressão e foram tratadas como práticas primitivas e profanas. Até a Constituição Imperial, promulgada em 1824, que concedeu certa liberdade de culto aos não-católicos, foram alvo de perseguição do estado e consideradas criminosas. Neste período, os negros-africanos escravizados só podiam cultuar as divindades secretamente. A liberdade religiosa só passou a ser considerada um direito fundamental com a Constituição de 1988.

‘‘Hoje, o que o neopentecostalismo faz com os terreiros, a Igreja Católica fez na Colônia e no Império. A destruição dos terreiros tem essa lógica, de um passado que se presentifica’’, comenta o professor Jayro de Jesus.

Os mais de 130 anos de história do terreiro Ilè Așé Opò Afonjá, o mais antigo do Rio de Janeiro, revelam a resistência do Candomblé. Dois anos antes da abolição da escravatura, em 1886, mãe Eugênia Ana dos Santos, a mãe Aninha, se mudou de Salvador para a região portuária e se instalou na Pedra do Sal. Após a abolição, a repressão continuava, e polícia fazia prisões asseguradas pela Lei da Vadiagem.

A Lei punia a manifestações negro-africanas, como a capoeira, o samba e as práticas religiosas. ‘‘Hoje, eles vão mudando de lugar para preservar esse culto, assim como lá dentro da senzala’’, explica Sandra Brandão, 47 anos, pedagoga e Presidente da Sociedade Civil do Ilè Așé Opò Afonjá do Rio – nome que significa Casa de Força Sustentada por Xangô.

A Casa passou por diversos locais antes de se instalar em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, para fugir da intolerância religiosa. ‘‘O objetivo era se afastar dos grandes centros’’, conta a neta de Edgard Brandão, que veio de Salvador com mãe Aninha. ‘‘E mesmo nesse endereço que estamos hoje, também existia essa intolerância. Tenho uma tia biológica de 89 anos que conta que quando criança, as crianças brincavam na frente da casa pra fazer barulho pro candomblé poder tocar atrás pra polícia não coibisse essa manifestação.’’ As prevenções continuam. Sandra diz que principalmente os mais idosos estão amedrontados – e que o medo já causou um efeito psicológico. “Quando a gente faz as práticas religiosas, a gente fala, olha o portão, tem que estar fechado’’, conta.

A maioria das Casas de Candomblé antigas no Rio de Janeiro continuam na Baixada Fluminense, como o Terreiro Alákétú e a Casa Branca. Mãe Beata de Iemanjá seguiu o mesmo caminho: foi de Salvador para o Rio em 1969 e fundou em 1985 o terreiro Ilê Omiojuarô, em Miguel Couto, Nova Iguaçu. Reconhecida pela militância em diversas causas, entre elas a liberdade religiosa, Mãe Beata morreu em maio deste ano em Nova Iguaçu, onde ‘‘encontrou seus laços, suas redes bem tecidas de apoio da população negra de terreiro’’, conta Pai Adailton, filho biológico de Mãe Beata de Iemanjá.  

NOTA

 SEPLIR - Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial

INFOPEN -  Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias




MAIS VIOLÊNCIAS



Centros religiosos de matriz africana em MG sofrem com ataques


VICE BrasilCarla Castellotti · 01/11/2017

A prática de religiões de matriz africana em Minas Gerais está sendo ameaçada graças à intolerância religiosa. Dos casos apurados pelo O Beltrano, o mais recente ocorreu no dia 24 de outubro, quando a Casa Espírita Império dos Orixás Nossa Senhora da Conceição e São Jorge Guerreiro, na cidade de Mário Campos, foi destruída por um grupo de quatro homens liderado por um policial militar reformado. Além de armados, inclusive com uma motosserra, eles destruíram imagens e ameaçaram de morte os religiosos.

No dia seguinte, três homens, entre eles um pastor evangélico, retomaram as ofensas e agressões na mesma casa. A Polícia Militar (PM) foi acionada e um umbandista foi levado à delegacia depois de jogar uma pedra contra os homens. Enquanto isso, os acusados cortaram os serviços de água e luz do terreiro. A prefeitura local investiga as ações do pastor, que está com uma tramitação para construir uma igreja evangélica no lugar do terreiro.

Em junho, em Santa Luzia, região metropolitana da capital mineira, o Centro Espírita Candomblé Ilê Axé e Sangô recebeu um mandato judicial do Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) que impõe restrições à prática religiosa. O mandato foi resultado de reclamações por parte dos vizinhos contra o barulho das manifestações do terreiro.

No mesmo mês, O Beltrano também divulgou quando um sargento evangélico da PM invadiu um terreiro armado e ameaçou uma mãe de santo. Após a decisão do MP-MG, das ameaças e ataques, praticantes e membros de comunidades religiosas de matriz africanas protestaram contra a intolerância religiosa em Belo Horizonte.


O Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (CENARAB), com sede em BH, presta assistência aos religiosos de umbanda e candomblé. A associação está acompanhando os casos sofridos pelos terreiros na Justiça.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

A SALVAÇÃO DE LUTERO E A REFORMA PROTESTANTE

A venda de indulgências



No que consistia a doutrina das indulgências? "Acreditava-se que Jesus em pessoa, a Virgem Maria e muitos santos tivessem ganhado, durante sua vida, um surplus de mérito que poderia ser distribuído entre os cristãos menos praticantes da fé e que haviam, ao contrário deles, acumulado um déficit em razão dos pecados cometidos, e, para expiá-los, deveriam passar um longo período de tempo no Purgatório.

Os papas, depositários, através de Pedro, das chaves da Igreja, tinham acesso a esse tesouro e podiam estendê-lo aos pecadores que precisassem de uma diminuição na pena. Estes podiam, assim, privar-se de parte das riquezas acumuladas durante a vida terrena e receber em troca a riqueza espiritual dos santos. Mesmo não sendo possível comprar a salvação, podia-se, no entanto, pagar pela remissão (mesmo total) da pena." (David Christie-Murray, 1998, p. 169.)

O auge dessa prática se deu durante o pontificado de João de Mediei, o Leão X (1513-1521), que lançou uma aberta política de venda de indulgências. Verdadeiros mascates percorreram a Europa vendendo "cartas de indulgência", quase bônus-Paraíso, que podiam ser comprados sem maiores formalidades, mas desconcertando muitos crentes genuínos.

Em 1517, foi divulgada a Taxa Camarae, uma lista das indulgências previstas para os vários pecados, com um tarifário a elas referentes, reportado a seguir:


1. O eclesiástico que incorrer em pecado carnal, seja com freiras, primas, sobrinhas, afilhadas ou, enfim, com outra mulher qualquer, será absolvido mediante o pagamento de 67 libras e 12 soldos.

2.   Se o eclesiástico, além do pecado de fornicação, pedir para ser absolvido do pecado contra a natureza ou de bestialidade, deverá pagar 219 libras e 15 soldos. Mas se tiver cometido pecado contra a natureza com crianças ou animais, e não com uma mulher, pagará apenas 131 libras e 15 soldos.

3.   O sacerdote que deflorar uma virgem pagará 2 libras e 8 soldos.

4.   A religiosa que quiser ser abadessa após ter se entregado a um ou mais homens simultânea ou sucessivamente, dentro ou fora do convento, pagará 131 libras e 15 soldos.

5.   Os sacerdotes que quiserem viver em concubinato com seus parentes pagarão 76 libras e 1 soldo.

6.   Para cada pecado de luxúria cometido por um leigo, a absolvição custará 27 libras e 1 soldo.

7.   A mulher adúltera que pedir a absolvição para se ver livre de qualquer processo e ser dispensada para continuar com a relação ilícita pagará ao papa 87 libras e 3 soldos. Em um caso análogo, o marido pagará o mesmo montante; se tiverem cometido incesto com o próprio filho, acrescentar-se-ão 6 libras pela consciência.

8.   A absolvição e a certeza de não ser perseguido por crime de roubo, furto ou incêndio custarão ao culpado 131 libras e 7 soldos.

9.   A absolvição de homicídio simples cometido contra a pessoa de um leigo custará 15 libras, 4 soldos e 3 denários.

10. Se o assassino tiver matado dois ou mais homens em um único dia, pagará como se tivesse assassinado um só.

11. O marido que infligir maus-tratos à mulher pagará às caixas da chancelaria 3 libras e 4 soldos; se a mulher for morta, pagará 17 libras e 15 soldos; e se a tiver matado para se casar com outra, pagará mais 32 libras e 9 soldos. Quem tiver ajudado o marido a perpetrar o crime será absolvido mediante o pagamento de 2 libras por cabeça.

12. Quem afogar o próprio filho pagará 17 libras e 15 soldos (ou seja, 2 libras a mais que aquele que matar um desconhecido), e se pai e mãe o tiverem matado de comum acordo, pagarão 27 libras e 1 soldo pela absolvição.

13. A mulher que destruir o filho que carrega no ventre e o pai que contribuir para a realização do crime pagarão 17 libras e 15 soldos cada. Aquele que facilitar o aborto de uma criatura que não for seu filho pagará 1 libra a menos.
14. Pelo assassinato de um irmão, uma irmã, mãe ou pai, pagar-se-ão 17 libras e 5 soldos.

15. Aquele que matar um bispo ou prelado de hierarquia superior pagará 131 libras, 14 soldos e 6 denários.

16. Se o assassino tiver matado mais sacerdotes em várias ocasiões pagará 137 libras e 6 soldos pelo primeiro homicídio e a metade pelos seguintes.

17. O bispo ou abade que cometer homicídio por emboscada, acidente ou estado de necessidade pagará, para conseguir a absolvição, 179 libras e 14 soldos.

18. Aquele que quiser comprar antecipadamente a absolvição por qualquer homicídio acidental que possa vir a cometer no futuro pagará 168 libras e 15 soldos.

19.  O herege que se converter pagará, pela absolvição, 269 libras. O filho do herege que tiver sido queimado, enforcado ou executado de qualquer outra forma poderá ser readmitido apenas mediante o pagamento de 218 libras, 16 soldos e 9 denários.

20. O eclesiástico que, não podendo pagar os próprios débitos, quiser se livrar de ser processado pelos credores entregará ao pontífice 17 libras, 8 soldos e 6 denários, e a dívida lhe será perdoada.

21. Será concedida a licença para a instalação de postos de venda de vários gêneros sob os pórticos das igrejas mediante o pagamento de 45 libras, 19 soldos e 3 denários.

22. O delito de contrabando e fraude aos direitos do príncipe custará 87 libras e 3 denários.

23. A cidade que quiser que seus habitantes ou sacerdotes, freis ou monjas obtenham licença para comer carne e laticínio em épocas em que é proibido pagará 781 libras e 10 soldos.

24. O mosteiro que quiser variar a regra e viver com menos abstinência do que a prescrita pagará 146 libras e 5 soldos.

25. O frade que, por conveniência própria ou gosto, quiser passar a vida em um ermitério com uma mulher dará ao tesouro pontifício 45 libras e 19 soldos.

26. O apóstata vagabundo que quiser viver sem obstáculos pagará igual quantia pela absolvição.

27. Igual montante pagarão os religiosos, sejam eles seculares ou regulares, que queiram viajar em trajes de leigo.

28. O filho bastardo de um sacerdote que queira preferência para suceder o pai na cúria pagará 27 libras e 1 soldo.

29. O bastardo que queira receber ordens sagradas e gozar de seus benefícios pagará 15 libras, 18 soldos e 6 denários.

30. O filho de pais desconhecidos que queira entrar para as ordens pagará ao tesouro pontifício 27 libras e 1 soldo.

31. Os leigos feios ou deformados que queiram receber ordenamentos sagrados e ter benefícios pagarão à chancelaria apostólica 58 libras e 2 soldos.

32. Igual quantia pagará o vesgo do olho direito, enquanto o vesgo do olho esquerdo pagará ao papa 10 libras e 7 soldos. Os estrábicos bilaterais pagarão 45 libras e 3 soldos.

33. Os eunucos que queiram entrar para as ordens pagarão a quantia de 310 libras e 15 soldos.

34. Aquele que, por simonia, queira comprar um ou muitos benefícios se dirigirá aos tesoureiros do papa, que lhe venderão os direitos a preços módicos.

35. Aquele que, tendo descumprido um juramento, queira evitar qualquer perseguição e se livrar de qualquer tipo de infâmia pagará ao papa 131 libras e 15 soldos. Além disso, dará 3 libras para cada um que ouviu o juramento.1




TARIFA DA CHANCELARIA E PENITENCIÁRIA DE JOÃO XXII.

1 - Pela absolvição do que tiver violado uma mulher numa igreja, ou cometido outros que tais sacrilégios, 6 gros.

2 - Pela absolvição dum clérigo que mantiver concubinagem, com dispensa de irregularidade, e apesar das proibições provinciais, e sinodais, 7 gros.

3 - Pela absolvição do que tiver cometido incesto com sua mãe, sua irmã, ou qualquer outra mulher que seja sua parente, por sangue ou aliança, ou com a sua madrinha, 6 gros. 

4 - Pela absolvição do que tiver desflorado uma virgem, 6 gros. 

5 - Pela absolvição de um perjúrio, 6 gros.

6 - Pela absolvição do que tiver morto seu pai, sua mãe seu irmão, sua irmã, ou algum parente secular, 5 a 7 gros. pelo morto. (Se o assassínio for um parente, pertencente à Igreja, deverá o matador visitar a Santa Sé.)

7 - Pela absolvição de um marido que tiver espancado sua mulher, e desse espancamento lhe haja resultado aborto, 6 gros.

8 - Pela absolvição duma mulher, que servindo-se de uma beberagem, ou de outra qualquer trama, promover um aborto, 6 gros.

Nota. - No caso de que seja clérigo o homem que tiver administrado a beberagem, ou promovido o aborto, este crime será considerado como o de morte de secular, e a pena será a mesma. 

9 - Pela absolvição de pilhagens, incêndio, roubo e assassinatos de seculares com dispensa, 8 gros. 



Não havia crime, nem o mais cruel, que não pudesse ser perdoado mediante pagamento.

Naqueles anos, o dominicano Tetzel percorreu a Alemanha vendendo cartas de indulgência. Mais tarde, Lutero descreveria sua obra da seguinte forma: 

"Seus poderes e graça foram ampliados de tal forma pelo papa que, se alguém violasse ou engravidasse a Virgem Maria, ele teria perdoado aquele pecado assim que uma quantia de dinheiro suficiente fosse colocada em sua bolsa... Ele redimiu mais almas com as indulgências do que São Pedro com seus sermões; quando era colocado em sua bolsa um dinheiro pelo Purgatório... a alma se elevava imediatamente para o Paraíso; não havia necessidade de comprovar dor ou arrependimento por um pecado se era possível comprar indulgências ou cartas de indulgência. Tetzel vendia até o direito de poder pecar no futuro... qualquer coisa era garantida em troca de dinheiro."2

A venda de indulgências era apenas a ponta do iceberg de um fenômeno geral de corrupção na Igreja da época. Os altos prelados acumulavam mais encargos e as relativas prebendas. Os bispos não residiam nas sedes a eles designadas: por exemplo, um nobre de Ferrara podia ser nomeado arcebispo na Hungria e nunca sair de sua casa, limitando-se a receber o dízimo dos fiéis de cujas almas devia cuidar.

O título de cardeal (que era o "príncipe", também em sentido terreno) muitas vezes não era resultado de um longo percurso espiritual, mas da venda ou concessão do papa a parentes e amigos. Quem podia se permitir o comprava para o filho caçula ou ilegítimo, por vezes adolescente, como uma renda vitalícia. O próprio Leão X (1513-1521) se tornara cardeal aos 13 anos.

Os pontífices eram, em todos os aspectos, soberanos renascentistas. Como os reis, eliminavam os adversários e se cercavam de homens de confiança. Como os reis, usavam a intriga e o homicídio político, como o papa Alexandre VI Bórgia (1492-1503), por exemplo, e seu filho César. Como os reis, declaravam guerra contra seus inimigos e conduziam as tropas na batalha; o papa Júlio II (1503-1513) foi retratado em armadura.3 Como os reis, tinham concubinas e filhos bastardos. E, como os reis, amavam as artes e protegiam os artistas. Mas os cuidados com as almas nada tinham a ver com tudo isso.


Martinho Lutero




Lutero (1483-1546) foi ordenado sacerdote em 1507, após ter concluído brilhantes estudos universitários. Atormentado com o sentido do pecado, sua ânsia o levou a elaborar uma nova doutrina da Salvação, em contraposição à católica. Para Lutero, a absolvição do pecado derivava de uma relação direta entre Deus e o fiel, que poderia ser obtida apenas através da própria fé, não por meio de obras e, muito menos, com a compra de indulgências ou a intervenção de um confessor.4

Lutero defendeu o direito que cada fiel tem de ler e interpretar as Escrituras, negou a autoridade jurisdicional do papa, dando início a uma vigorosa polêmica contra a corrupção da Igreja de Roma, e contestou o poder temporal do clero. Negou também a validade de alguns sacramentos e o valor do celibato eclesiástico.

Em 31 de outubro de 1517, afixou na porta de uma igreja as "95 teses para esclarecer a eficácia das indulgências", que suscitaram grandes polêmicas e tiveram ampla difusão em toda a Alemanha.

Em 15 de junho de 1520, uma bula papal condenou algumas proposições luteranas, ordenando que fossem queimadas. Lutero, em compensação, queimou, diante de uma multidão que o aplaudia, o que ele mesmo chamava de "execrável bula anticristo".

Em 1521, apresentou-se à Dieta de Worms com o salvo-conduto do imperador Carlos V. Ao final de uma acirrada discussão teológica, Lutero declarou que não podia se remeter à autoridade do papa e dos concílios, até porque estes muitas vezes se contradiziam, mas apenas à das Sagradas Escrituras.

Excomungado pela Igreja e banido pelo imperador, continuou suas atividades ou, ao menos, deu início a um projeto ambicioso: a tradução das Escrituras para o alemão. Lutero, com grande probabilidade, salvou-se da fogueira por um conjunto de fatores deliciosamente políticos: o favor de alguns príncipes alemães, dentre os quais estava o eleitor da Saxônia, que o escondeu no castelo de Wartburg encenando um falso rompimento; a desconfiança do papa com relação a Carlos V, cuja influência se tornara preponderante na Itália; o fato de que o próprio Carlos V, nos anos seguintes, estivesse ocupado demais com guerras contra turcos, franceses, venezianos e o próprio Estado Pontifício.

As teses luteranas eram populares entre os príncipes alemães, que desejavam se apoderar dos bens dos grandes eclesiásticos: latifúndios enormes com vários servos da gleba e que gozavam de amplos privilégios fiscais, quase Estados dentro dos Estados.

Lutero também gozava de grande admiração entre o povo, que reconhecia em algumas de suas declarações as próprias aspirações de justiça social. Mas as expectativas de muitos, sob esse ponto de vista, não foram atingidas.

Em 1524, eclodiu nos territórios do Império uma gigantesca rebelião camponesa. Bandos armados compostos de cerca de trezentos mil camponeses saquearam igrejas, castelos e cidades. Lutero, depois de tentar inutilmente uma mediação, escreveu o tratado Contra os bandos arruaceiros e assassinos dos camponeses, uma espécie de carta aberta aos príncipes alemães pedindo para conter os rebeldes. "Esta é a época da ira e da espada, não a da graça [...] Por isso, caros senhores [...] matem, esganem, estrangulem quem puderem [...] e se alguém julgar tudo isso duro demais, pense que a sedição é insuportável e que a cada momento é preciso esperar a catástrofe do mundo."5

Os príncipes católicos e protestantes acolheram o convite e massacraram os rebeldes. Uma das características da Igreja Luterana foi o direito de envolvimento dos príncipes na gestão eclesiástica. O soberano de um Estado se tornava o chefe da Igreja nacional.

Os escritos de Lutero tiveram ampla difusão na Europa, com exceção, talvez, apenas da Itália, onde desencadearam uma severa repressão. Os sermões luteranos se difundiram em muitos países europeus, em alguns casos fornecendo combustível para as fogueiras, em outros, com sucesso, transformando a Reforma em religião de Estado (que perseguiu, por sua vez, os católicos).

A Dinamarca se tornou protestante com o reinado de Cristiano III (1534-1559). Os bispos católicos foram presos e substituídos pelos luteranos, as propriedades eclesiásticas foram confiscadas e utilizadas para manter o Estado e financiar a cultura. O rei era o chefe da Igreja. A Bíblia foi traduzida para o dinamarquês.

Posteriormente, Cristiano III estendeu a própria soberania também sobre a Noruega e a Suécia. Na Noruega, os soldados luteranos demoliram algumas igrejas católicas, e todos os bispos foram expulsos, com exceção de dois que se converteram ao luteranismo. Na Suécia, as doutrinas reformadas penetraram de maneira mais suave e "em diálogo" com Roma. A ruptura só aconteceu em 1523, quando o papa se recusou a ratificar a nomeação de quatro bispos suecos enquanto não se pagassem as anonas (um dos tantos tributos que os reinos cristãos deviam à Santa Sé). O rei da Suécia respondeu que o país era pobre demais para pagar e nomeou ele próprio os bispos.

Dos países escandinavos, o luteranismo se propagou pelas regiões bálticas. Na Finlândia, tornou-se religião de Estado. A Islândia, no século XVI, estava subordinada à Dinamarca, e o luteranismo chegou com os mercadores e doutos que tinham estudado no continente (a Universidade de Wittemberg tornara-se um importante centro de difusão cultural), mas sobretudo pela influência de Cristiano III, contestada em vão por um bispo local e seus dois filhos. Os prelados católicos foram depostos, e seus bens, confiscados. Contudo, a Igreja Reformada manteve várias práticas católicas, como a da confissão e a adoração a alguns santos locais.

Na Boêmia, a Reforma se difundiu graças aos estudantes hussitas formados em Wittemberg. Os alemães da Boêmia se tornaram luteranos; os eslavos, calvinistas, mas depois as duas correntes elaboraram uma confissão de fé unitária para enfrentar melhor os soberanos católicos, o que deu ensejo a uma violenta reação dos católicos em geral e dos jesuítas em particular. Até o final do século XVI, calcula-se que 90% dos boêmios fossem protestantes.

Na Hungria, a Reforma também se difundiu através de diretrizes "étnicas": alemães e eslavos se voltavam preferivelmente ao luteranismo; os magiares, com algumas exceções, ao calvinismo. Vários fatores ajudaram a obra dos reformadores.

Em primeiro lugar, a corrupção que se espalhou entre o clero e os leigos católicos. Os hussitas e (provavelmente) os valdenses abriram o caminho.

A invasão turca à Hungria, em 1541, auxiliou na instituição da Reforma tanto indireta (muitos líderes católicos foram mortos em combate contra os turcos) quando diretamente: as forças de ocupação turcas favoreceram os protestantes em detrimento dos católicos, mais temidos por sua propensão às Cruzadas e sua ligação com o imperador.6

Na Transilvânia, alguns decretos de 1568 e 1571 garantiram direitos iguais a católicos, calvinistas, luteranos e unitaristas.


João Calvino




Calvino (1509-1564), francês, foi o fundador da Igreja Calvinista, outro grande culto reformado que se espalhou pela Europa talvez com um sucesso ainda maior que o luterano. Para Calvino, o pecado original transmitido por Adão a toda a humanidade tornou os homens incapazes de redenção. Apenas os eleitos, que haviam recebido uma graça especial de Deus, poderiam se salvar; todos os outros estavam predestinados à danação.7

Com base nessa afirmação, ninguém além de Deus podia saber com certeza quem eram os eleitos, embora a profissão de fé, uma vida correta e a observância dos sacramentos fossem provas evidentes do favor divino. Existem, assim, duas Igrejas: uma invisível, formada pelos eleitos vivos e mortos e conhecida apenas por Deus; e uma visível, composta também de homens indignos, imperfeita, mas passível de melhoras, e os cristãos deveriam respeitar sua autoridade.8 Obviamente, quando falava de "Igreja visível", Calvino se referia àquela fundada por ele próprio. A Igreja e o Estado eram partes integrantes da mesma comunidade sagrada. Entre os deveres do Estado, havia o de defender a religião e evitar as ofensas contra ela. A pena capital e, dadas as condições, a guerra eram consideradas práticas legítimas e admissíveis para um cristão.

Graças à sua influência, a República de Genebra se transformou em um regime teocrático, o que lhe conferiu um incrível impulso para o comércio, os investimentos e a educação. Um conselho eclesiástico cuidava da moralidade dos cidadãos, cominando penas severas até mesmo para pequenas infrações, e se ocupava dos crimes de heresia.9

Considerado herege e banido da Igreja de Roma, Calvino, por sua vez, teve um comportamento muito duro com os dissidentes de sua doutrina.10

O calvinismo se difundiu em vários países, às vezes em detrimento do luteranismo, como em Estrasburgo, onde muitos reformados aderiram à nova crença, incentivados pela intransigência dos luteranos mais radicais. No Palatinado, tornou-se religião de Estado, e o governo perseguiu católicos e luteranos.11


Os huguenotes


Catarina de Médici examina os corpos dos protestantes mortos na Noite de São Bartolomeu


Na França, a Reforma se difundiu sobretudo no sul do país, onde três séculos antes pregavam os cátaros e os valdenses. Os calvinistas franceses eram apelidados de "huguenotes". A disciplina e a moral rígida que os caracterizavam lhes permitiram exercer grande influência na vida pública francesa, embora representassem uma pequena minoria dentro de um país quase totalmente católico.

As autoridades francesas adotaram uma política que se alternava entre tolerância e repressão aos calvinistas e outras minorias religiosas. A repressão não poupou nem os seguidores do bispo católico reformista de Meaux, Guillaume Briçonnet (1492-1549), confessor de Margarida, irmã do rei, que foram lançados à fogueira. A Sorbonne proibiu livros de reformistas, o Parlamento os baniu e decretou a destruição de muitas cidades habitadas por comunidades hereges.

Em 1535, para vingar uma suposta profanação da hóstia sagrada, foram queimados seis hereges, um por cada uma das estações que compunham a solene procissão do Corpus Domini.12

O ano de 1572 pareceu presenciar um período de paz na luta entre católicos e huguenotes. As núpcias entre a católica Margarida, irmã do rei da França, e o protestante Henrique, rei de Navarra, estavam previstas para o dia 28 de agosto. Mas na noite de São Bartolomeu (24 de agosto), em Paris, os soldados do rei da França entraram nas casas dos huguenotes e os mataram em emboscadas. Poucos encontraram abrigo, todas as ruas haviam sido bloqueadas. Nos dias que se seguiram, o massacre se estendeu também a outras cidades francesas e aos campos. Calcula-se que, em Paris e arredores, foram mortos entre 25 mil e 35 mil huguenotes.

O papa Gregório XIII (1572-1585), assim que foi informado do massacre, ordenou que o acontecimento fosse comemorado com festas solenes e celebrou um jubileu "no qual os fiéis deveriam agradecer a Deus pela destruição dos huguenotes e pedir que absolvesse, por completo a França católica".13 Finalmente, encarregou Vasari de imortalizar o feito em um afresco na Sala Regia do Vaticano.

As contendas religiosas, que se misturaram às dinásticas pelo trono da França, só tiveram fim em 1594, quando Henrique IV se tornou rei dos franceses, um protestante convertido ao catolicismo. "Paris vale uma missa", frase que lhe foi atribuída, diz tudo sobre as relações entre política e religião.

Em 1598, foi promulgado o Edito de Nantes, que garantia aos huguenotes a liberdade de culto e o controle, a título de garantia, de algumas cidades fortificadas. Apesar disso, as perseguições não cessaram.

Em 1621, os huguenotes assinaram, na cidade fortificada de La Rochelle, uma verdadeira declaração de independência. A cidade foi tomada em 1628, após um longo sítio. Os reformistas perderam, assim, sua cidade e foram obrigados a pagar pesadas taxas, sendo excluídos por lei do exercício de algumas profissões.

Em 1680, novas perseguições se iniciaram (Luís XIV, o Rei Sol, não tolerava nenhuma forma de autonomia no próprio reino). Alguns protestantes emigraram, outros se converteram à força, por meio de missionários escoltados por bandeiras de dragões (as forças francesas mais ferozes). Dizem que, em três dias do ano de 1684, foram convertidos sessenta mil huguenotes.

Em 1685, o Edito de Nantes foi ab-rogado, provocando um novo êxodo de protestantes. Nas montanhas de Cevennes, um grupo de três mil reformistas guiados, ao que parece, por alguns "profetas-meninos", desafiou um contingente de seis mil soldados do exército francês.


Henrique VIII e a Reforma inglesa




A Igreja Anglicana nasce graças a Henrique VIII"(1509-1547), conhecido por ter tido seis mulheres (duas repudiadas, duas decapitadas e uma morta no parto). Henrique iniciara seu reinado com o marco da ortodoxia católica: seguidores das teses luteranas, como o estudioso Thomas Bilney e o sacerdote William Tyndale, que traduziu para o inglês o Novo e grande parte do Antigo Testamento, acabaram na fogueira. Ele próprio escreveu (ou mandou escrever) um libelo antiprotestante e foi nomeado Defensor Fidei (defensor da fé) pelo papa. Em 1509, casou-se com Catarina de Aragão, viúva de seu irmão mais velho, Artur, após ter obtido uma dispensa especial do papa (as leis da época proibiam casamento entre cunhados).

Por volta de 1527, não havendo tido nenhum filho homem de sua união e desejoso de um herdeiro para sua dinastia, Henrique tentou obter do papa a anulação do casamento, para poder se casar com Ana Bolena. O papa indeferiu o pedido, provavelmente porque temia ofender o imperador Carlos V, sobrinho de Catarina, que já havia saqueado Roma com suas tropas.

Henrique entrou em controvérsia com a Igreja Católica. Em 1531, a assembléia geral do clero o nomeou "chefe supremo da Igreja na Inglaterra" e doou uma notável quantia em dinheiro à Coroa. Em seguida, o Parlamento decretou que os impostos religiosos não fossem mais pagos ao papa, mas ao rei, e que a Igreja Anglicana podia deliberar sobre as próprias questões internas, sem recorrer a Roma.

Quando o papa excomungou Henrique, o parlamento inglês ab-rogou o chamado "Óbolo de Pedro", uma taxa papal imposta a todas as famílias pela Igreja de São Pedro, e proclamou o rei o "único chefe supremo em Terra da Igreja na Inglaterra". Qualquer referência ao papa foi tirada das missas.

Forest, um frei praticante, defensor da autoridade absoluta do papa nas questões de fé, foi acusado de heresia e queimado na fogueira junto com um ídolo de madeira venerado em Gales. Thomas Moore e o bispo Fisher também foram decapitados por sua fidelidade a Roma.

Em todas as igrejas, apareceram uma Bíblia em latim e uma em inglês, para que os leigos lessem diretamente as Escrituras e verificassem como muitas doutrinas e costumes católicos não correspondiam aos textos sagrados. Os mosteiros foram saqueados e destruídos, e seus bens foram confiscados e vendidos.

A ruptura com Roma não significou a automática adesão às doutrinas luteranas, muito pelo contrário. Henrique VIII em pessoa, junto com seus bispos, julgou o caso do luterano John Nicholson, que foi condenado e mandado à fogueira apesar de seu pedido de perdão.

Sob o reinado de Henrique e o breve governo de Eduardo VI, os artigos da fé da Igreja Anglicana foram reescritos várias vezes, alternando posições reformistas e "católicas", às vezes com resultados tragicômicos. Em 1539, foram promulgados os Seis Artigos, que reformulavam vários aspectos da doutrina católica, como o celibato eclesiástico. As infrações seriam punidas com a fogueira ou com o enforcamento. O arcebispo Cranmer, que se casara, teve de esconder a mulher. Em 1543, seis pessoas foram executadas num único dia: três queimadas por heresia e três enforcadas por negarem a supremacia religiosa do rei.     

             
Maria, a Sanguinária, e Elisabete I


Maria, a Sanguinária


Em 1553, a reação católica levou ao poder Maria I (chamada também de Maria, a Católica; ou Maria, a Sanguinária), filha de Henrique VIII e de Catarina de Aragão.

Durante seu breve reinado, ela ab-rogou todos os provimentos de Henrique VIII e Eduardo e retomou as leis contra os hereges. Muitos protestantes fugiram do país e os bispos católicos retomaram a posse de suas sedes. Foram instituídas comissões especiais com a tarefa de encontrar e processar os hereges em todo o território do reino. Em cinco anos, 282 pessoas foram mortas por heresia.


Elizabeth I


Elisabete I (1558-1603) escolheu o meio-termo, criando uma igreja autônoma cujos artigos de fé representavam um compromisso entre instâncias católicas, luteranas e calvinistas e contentaram grande parte dos cristãos da Inglaterra. Ela conservou a oposição ao extremismo: de um lado, aos jesuítas, que ordenaram vários complôs contra a rainha; de outro, aos puritanos.

Em 1570, Elisabete foi oficialmente excomungada por Roma (lembremos que esse ato, que excluía os súditos da obrigação de fidelidade, representava um grave perigo para a autoridade e a própria vida do monarca), ao que respondeu perseguindo, sem hesitar, os católicos. Das 187 pessoas mortas durante seu reinado, 123 eram sacerdotes católicos ou jesuítas.


Puritanos e anglicanos


Puritanos


A Igreja da Inglaterra fora dividida em duas: de um lado, os puritanos, integralistas da religião, que rejeitavam liturgias e hierarquias eclesiásticas, mas eram impiedosos com os "pecadores"; de outro, os anglicanos, partidários do poder, mais tolerantes com o pecado, mas impiedosos com os puritanos.

Os puritanos (rótulo que na verdade englobava uma constelação de movimentos muito diferentes entre si) professavam o sacerdócio universal, defendiam a igualdade de todos os ministros do culto contra a hierarquia dos bispos e condenavam como "idolatras" a missa e outros rituais anglicanos adaptados dos católicos. Seu programa "político-social" previa punições severas contra blasfemos, caluniadores, perjuros, fornicadores e alcoólatras, além da pena de morte "sem salvação" para os adúlteros. O Parlamento inglês apoiou seus pedidos. Seus adversários eram a monarquia e o clero institucional. A luta entre uma Igreja Alta, aliada ao poder real, e uma Igreja Baixa, muito influente no Parlamento, duraria quase um século, intercalando-se com os vários fatos históricos da época.14

Os anglicanos emanaram leis muito severas contra os puritanos: quem não participasse da missa seria punido com o exílio. Quem fazia "reuniões religiosas particulares" era condenado a penas graves (o pregador John Bunyan foi preso por 12 anos). Os escritores e pregadores puritanos corriam o risco de ser colocados na berlinda, açoitados, marcados com fogo ou ter o nariz e as orelhas arrancados.




A guerra civil e o período do Commonwealth (1649-1659) marcaram um breve triunfo dos puritanos, que conseguiram abolir a instituição dos bispos. Mas a sucessiva restauração voltou a fazer a balança pender para o lado dos anglicanos, que reinstauraram à força a hierarquia eclesiástica. Só os católicos nunca tiveram seu instante de triunfo e foram cuidadosamente perseguidos durante todo o século XVII, acusados de conjuras verdadeiras (como a dos pós) ou inventadas, e excluídos dos cargos públicos. Em 1689, um Ato de Tolerância garantiu liberdade de culto a batistas, presbiterianos, congregacionalistas e quacres, mas não aos católicos e unitaristas.


Na Irlanda, os católicos se rebelam

Apesar do cisma de Henrique VIII, os irlandeses continuaram tenazmente ancorados pela Igreja Católica. O arcebispo de Amagh declarou que "esta ilha não pertence a ninguém além do bispo de Roma, que a entregou aos antepassados do soberano". Em todas as dioceses, enfrentaram-se dois bispos rivais, nomeados respectivamente pelo papa e pelo rei.

A destruição dos mosteiros revelou-se uma verdadeira catástrofe para o povo irlandês, já que eram os únicos centros de difusão da cultura e da assistência. A destruição das imagens sagradas gerou o horror dos fiéis. Bispos e eclesiásticos anglicanos comportaram-se com grande arrogância em relação aos irlandeses, não se preocupando nem em convertê-los. Os habitantes da ilha, apoiados pelos jesuítas a partir de 1542, reagiram criando a Liga Católica, para se defender da obrigação de freqüentar as igrejas protestantes e para difundir a instrução. A existência de uma oposição católica organizada representaria um obstáculo durante todo o reinado da rainha Elisabete.


 FONTE DE ESTUDOS

1.   Pepe Rodriguez, Verità e menzogne delia Chiesa Cattolica, Roma, Editori Riuniti, 1998, p. 263-266.
2.   David Christie-Murray, I percorsi delle eresie, Milão, Rusconi, 1998, p. 180.
3.   Uma sátira de Erasmo de Rotterdam imaginava que o defunto Júlio II, subindo aos céus, foi deixado do lado de fora do Paraíso. Ele, então, tentou tomar militarmente o Reino dos Céus.
4.   Para um aprofundamento sobre a doutrina de Lutero e sobre a Reforma, cf. Luise Schorn-Schütte, La Riforma protestante. Bolonha, Il Mulino, 1998.
5.   David Christie-Murray, op. cit, p. 202.
6.   Ibid., p. 203.
7.   Ibid., p.205.
8.   ítalo Mereu, Storia dell'lntoleranza in Europa, Milão, Bompiani, 2000, p. 89.
9.   David Christie-Murray, op. cit, p. 247.
10. Ibid., p. 247-8. 11.Ibid.,p.212.
12. Ibid., p. 212.
13. Ibid., p. 213.
14.0 rei Jaime da Inglaterra adotou uma política religiosa"centrista": discriminou tanto católicos quanto extremistas puritanos, atraindo para si o ódio de ambas as facções. Em 1605, alguns notáveis católicos organizaram uma conspiração para matar o rei: uma câmara subterrânea localizada embaixo da Câmara dos Lordes foi cheia de barris de pólvora e barras de ferro. A idéia era explodir o palácio quando o rei Jaime lá entrasse, junto com seus herdeiros. No último momento, uma denúncia anônima mandou o plano pelos ares. Guy Fawkes, que deveria ter sido o executor material do crime, não foi avisado por seus cúmplices e, assim, em 15 de novembro, dirigiu-se à cela subterrânea com uma tocha e foi preso pelos agentes reais que lá estavam. Fawkes foi enforcado em 1606, junto com três supostos cúmplices. O 5 de novembro é celebrado até hoje pelos católicos irlandeses, e Fawkes é lembrado corno uma espécie de mártir.

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Martinho Lutero