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quarta-feira, 27 de março de 2019

INQUISIÇÃO NA BAHIA










A PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO À BAHIA:



Salvador, 50 anos depois de fundada, possuía por volta de 800 vizinhos brancos e três vezes mais negros e índios, quando no ano do Senhor de 1591 desembarca em seu porto inesperado visitante: o Licenciado Heitor Furtado de Mendonça, Deputado do Santo Ofício da Inquisição.

A notícia de tão temível visita deve ter-se alastrado a trote de cavalo pelos mais de 40 engenhos espalhados pelo Recôncavo, deixando a população em palpos de aranha. Afinal todos sabiam que a Inquisição tinha poderes quase tão ilimitados quanto o próprio Rei, só que as justiças reais enforcavam ou degolavam seus criminosos mais graves, enquanto o Santo Ofício encaminhava-os à fogueira.

Após cumprir certas formalidades burocráticas previstas no Regimento do Tribunal do Santo Ofício, aos 29 de julho de 1591 tem início uma das páginas mais dramáticas de nossa história colonial: a 1ª Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil – episódio triste e melancólico que completou seu 4° Centenário em 1991. Fundado em Portugal em 1536, pelo rei D. João III, o Tribunal do Santo Ofício tinha como principal atribuição perseguir as heresias – sobretudo o judaísmo, protestantismo e feitiçarias –, acrescentando-lhe com o decorrer do tempo, também o castigo aos bígamos, sodomitas e aos sacerdotes que solicitavam suas penitentes para atos torpes.

Mal completara sua primeira década de funcionamento, já em 1546, é presa uma primeira vítima na Bahia: Pero de Campos Tourinho, Donatário de Porto Seguro, acusado de não guardar os domingos e dias santos, além de autoproclamar-se Rei e Papa de sua Capitania.

Passados alguns anos, em 1573, é queimado em Salvador um francês herege – a única execução realizada em terras de Santa Cruz, e de acordo com nosso primeiro historiador, Frei Vicente do Salvador, o próprio Padre José de Anchieta teria instruído o algoz como cortar a cabeça do infeliz protestante – Jean dez Boulez – antes de levá-lo às chamas.

No ano seguinte, 1574, é preso incomunicável outro estrangeiro, o colono italiano Rafael Olivi, morador em Ilhéus, acusado de possuir uma coleção de livros suspeitos – entre eles O Príncipe, de Machiavel – além de blasfemar contra a fé católica. É contudo em 1591 a data oficial que marca o início da atuação regular da Inquisição na América Portuguesa, contando-se às centenas o número de colonos nordestinos que foram denunciados, presos e sentenciados por este Monstrum Horrendum, que segundo as próprias palavras de João Paulo II, “foi um erro histórico”.

A primeira providência tomada pelo Visitador Furtado de Mendonça na cidade da Bahia foi obrigar a todas autoridades eclesiásticas e civis a curvarem-se obedientes à autoridade maior do Santo Ofício: o próprio Bispo da Bahia, o cisterciense Dom Antônio Barreiros, (1575-1600), o terceiro da diocese e único dos Brasis, foi incumbido de ler publicamente a Provisão da Visita, beijando o manuscrito e colocando-o por sobre sua cabeça em sinal de respeito e obediência.

É contudo aos 28 de julho deste mesmo ano do Senhor de 1591, domingo da Oitava de Pentecostes, que tem lugar o primeiro Auto-de-Fé que se celebrou no Brasil: fora previamente preparado, pois em todas as mais de sessenta igrejas e capelanias espalhadas pelo recôncavo baiano, os párocos haviam estimulado previamente aos fiéis que se dirigissem a Salvador naquele domingo fatídico, a fim de com suas presenças, demonstrarem o respeito que tributavam à Santa Inquisição.

De fato, a pequenina capital  da América Portuguesa nunca presenciara tamanha aglomeração humana e tanta pompa como naquele domingo invernoso. As cerimônias iniciaram-se de manhã cedo, na primitiva igreja da Ajuda, a antiga “Sé de palha”: daí saiu o cortejo em direção à Catedral, que segundo palavras do vereador e latifundiário Gabriel Soares de Sousa, já nesta época ostentava “três naves, de honesta grandeza, alta e bem assombrada, com cinco capelas muito bem feitas e ornamentadas e dois altares na ombreira da capela-mor, porém ainda não está acabada”.

Soleníssima, a procissão percorreu as principais ruas de Salvador, dela participando o Bispo, os cônegos do Cabido, todos os oficiais da Governança e da Justiça, além dos vigários, curas, capelães, clérigos, os frades de São Francisco, São Bento e da Companhia de Jesus, os membros das confrarias religiosas, e mais povo de toda a Capitania. Debaixo de um pálio de tela de ouro lá estava hierático, o Visitador do Santo Ofício, que entre outros títulos ostentava o de Capelão Fidalgo del Rei e membro do Desembargo do Paço de Sua Majestade. As ruelas barrentas da juvenil Salvador, devido às chuvas hibernais, devem ter respingado de lama as batinas, paramentos e casacas de elite soteropolitana, quando os mais graduados colonos ocuparam seus devidos lugares, dentro da Sé Primacial. Uma cadeira de carmesim guarnecida de ouro, sob um docel de damasco também carmesim, posto do lado direito do altar-mor, foi logo ocupada pelo Senhor Visitador, enquanto o Chantre da Catedral, acolitado por dois cônegos, celebrou a Santa Missa.

 Foi orador desta cerimônia o Provincial dos Jesuítas, cujo Colégio, a poucos passos da Catedral, costumava servir de hospedaria aos visitantes ilustres, local onde provavelmente ficou alojado o enviado inquisitorial. O mote da pregação não poderia ter sido mais acertado: parafraseou o inaciano a sentença de Cristo quando disse ao Príncipe dos Apóstolos: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja!” oportuna lembrança do poder hierárquico eclesial, num momento em que o Tribunal da Fé iria expurgar, com todo o rigor, as erronias do meio dos cristãos e fiéis vassalos de Sua Majestade el Rey Felipe II de Espanha, e 1° de Portugal, cognominado “o Prudente”. Terminada a missa, foi a vez do Arcediago da Sé – a segunda autoridade eclesiástica depois do Bispo – a subir ao púlpito, portando riquíssima capa de asperges de damasco branco e tela de ouro, onde leu com voz alta e inteligível, os dois Editais da Fé, onde se declarava que Sua Majestade perdoava o sequestro dos bens daqueles faltosos que tomassem a iniciativa de se confessar dentro dos próximos 30 dias, o chamado “tempo da graça”.

Leu-se, em seguida, a Bula de São Pio V (1504-1572), onde se ameaçava com excomunhão maior a todos que ousassem ofender os ministros do Santo Ofício ou obstaculizar seu reto procedimento, obrigando-se a todos os presentes que encaminhassem ao Visitador lista completa de bigamia, feitiçaria e pacto com o demônio, leitura de livros proibidos, apostasia, leitura da Bíblia em língua vernácula, fornecimento de armas aos indígenas ou adoção dos costumes gentílicos.

Centenas de moradores da Bahia devem ter sido atacados por tenebrosos pesadelos, posto incluírem-se entre os “criminosos” culpados por um ou mais desvios apontados no Monitório afixado na porta da Sé. Entre estes infelizes, o mais assustado certamente era o Padre Frutuoso Álvares, Vigário de Matoim, no recôncavo baiano, 65 anos, tanto que no dia seguinte à instalação do Tribunal da Fé, mal o Reverendo Inquisidor se assentara na Mesa da Visitação, já lá estava, no primeiro lugar da fila, o velho sacerdote - e o mais surpreendente é que queria confessar-se de um “crime” que então, sequer constava no rol do Monitório: o abominável e nefando pecado de sodomia, o homoerotismo. Em coisas do Santo Ofício, era melhor prevenir do que remediar. Aos 29 de julho de 1591, perante o Senhor Visitador, compareceu o Padre Frutuoso Álvares, dizendo que tinha de confessar nesta Mesa, sem ser chamado. E confessando, disse que de quinze anos a esta parte que está nesta Capitania cometeu a torpeza dos tocamentos desonestos com alguns quarenta mancebos, pouco mais ou menos, abraçando, beijando e tendo ajuntamentos por diante e dormindo com alguns pelo vaso traseiro, sendo mais paciente que agente, entre eles com Cristóvão Aguiar, Jerônimo Viegas, Medina da Ilha da Maré etc. etc.

Ao todo se confessaram na 1ª Visitação da Bahia 121 pessoas, contando-se em mais de três centenas as pessoas denunciadas, predominando entre os “crimes”, as blasfêmias, a distorção ou omissão de práticas litúrgicas, a sodomia, o judaísmo e as “gentilidades”, isto é, uma espécie de conversão às crenças e rituais dos brasilíndios.

Nesta primeira Visitação, a maior parte dos réus foi sentenciada aqui mesmo no Brasil, com penas que incluíam açoites, seqüestro de bens, degredo para outra Capitania, não chegando a uma dezena os que foram remetidos a Portugal para serem julgados nos cárceres secretos da Inquisição de Lisboa.

Terminada a visita na Bahia, partiu o Licenciado Furtado de Mendonça para Pernambuco e Paraíba, onde repetiu as mesmas cerimônias intimidatórias, processando outra centena de desviantes da fé e moral oficiais.

Entre 1618-1620 tem lugar a 2ª Visitação na Bahia, tendo como protagonista o Bispo D. Marcos Teixeira, redundando na prisão de outro tanto de infelizes, em sua maior parte acusados de praticarem rituais judaicos. Assim sendo, na tentativa de quantificar o número das vítimas da Inquisição na Capitania da Bahia, conseguimos localizar até o presente um total de 235 moradores, entre baianos e colonos nascidos em outras terras, que chegaram de fato não só a ser denunciados, mas a sofrer processo formal com sentença e punição. Provavelmente, este número deve ser superior, pois dentre os mais de 40 mil processos arquivados na Torre do Tombo em Lisboa, muitos há que ainda não foram catalogados, e que poderão aumentar o número dos réus procedentes do Brasil.

A partir de pesquisas em Portugal, eis a lista dos “crimes” de 235 moradores da Bahia processados pela Santa Inquisição entre 1546 a 1821, data em que é extinto este tribunal eclesiástico: judaísmo: 96; bigamia:34; blasfêmia: 33; sodomia: 18; gentilismo: 12; luteranismo: 10; feitiçaria: 10; contra a Inquisição: 8; falsos padres: 6; irreligiosidade: 6; solicitação: 2. Como nunca se instalou no Brasil um Tribunal Inquisitorial, cabia aos famigerados Comissários e Familiares do Santo Ofício a temida tarefa de denunciar, prender, seqüestrar os bens, e embarcar para o Reino os suspeitos enquadrados no rol de crimes do conhecimento da Santa Inquisição. Viveram na Bahia mais de mil destes funcionários inquisitoriais, muitos deles dando origem a importantes cepas da aristocracia local.

A maior parte das vítimas do Santo Ofício oriundos da Bahia processados pelo Monstrum Horrendum, teve como castigo, além do ultraje de ter sua sentença lida num Auto-de-Fé em Lisboa, a perda de seus bens, os açoites pelas principais ruas da capital do Reino, a prisão por longos anos nos lúgubres cárceres secretos do Rocio, o degredo seja para a África ou para servir nas galés del Rei. Aproximadamente 1.200 réus da Inquisição portuguesa chegaram a ser queimados nos Autos-de-Fé, 90% dos quais pelo crime de judaísmo. Moradores do Brasil, temos notícia certa de 20 réus queimados em Lisboa – além do infeliz herege executado em Salvador, anos antes da primeira Visitação.

Desta vintena de colonos do Brasil queimados na Metrópole, seis viveram na Bahia, todos condenados pelo crime de judaísmo; a saber: 1644, Gaspar Gomes, soldado e sapateiro, morador em Salvador; 1647, José de Lis (Isaac de Castro), professor, residente em Salvador; 1709, Rodrigo Álvares, farmacêutico, 32 anos, residente no interior da Bahia; 1731, Félix Nunes de Miranda, comerciante, 28 anos, morador em Salvador; e 1739, Luiz Mendes de Sá, comboieiro, 35 anos, morador em Rio das Contas. Além destes infelizes, um controvertido baiano também terminou seus dias na fogueira do auto-de-fé, realizado em 13 de outubro de 1726: trata-se do Padre Manuel Lopes Carvalho, natural de Salvador, 42 anos, Vigário de São Miguel de Cotegipe, que tinha entre suas culpas o dizer que os judeus só erraram em não ter aceito o Messias, mas que estavam certos em cumprir a Lei de Moisés, guardando o sábado, a circuncisão e outros rituais do Antigo Testamento; que o Padre Antônio Vieira, também ele vítima da Inquisição, “foi a melhor luz de toda a Igreja”; dizendo com afronta aos Inquisidores, que “devia seguir o que Deus lhe ensinava, e não o que lhe propunham na Mesa do Santo Ofício”.

Revoltado com os rigores de sua prisão, certamente sofrendo demência mental, chegou ao extremo de proclamar-se ele próprio como o Messias prometido pelos Profetas, enquanto acusava o Santo Tribunal “de não ser de Cristo mas de Maomé”. Por pouco não se atirou janela abaixo da Sala de Audiências do Rocio, ao gritar desesperado que“a Mesa inquisitorial era um tribunal de ladrões, que o tinham conservado nos cárceres por anos seguidos, como morto e abstraído do mundo, sem ter comunicação com os homens e privado do uso dos sentidos de ver, ouvir e falar, por quanto se falam os réus uma palavra mais alto, logo os castigam”!

 Pobre clérigo, ele próprio vítima da intolerância de seus colegas de batina. Não teve apelação: foi o primeiro sacerdote do Brasil a ser queimado pelo Santo Ofício. Depois dele, já em 1761, outro religioso, o jesuíta Gabriel Malagrida, também terminou seus dias na fogueira inquisitorial: italiano de nascimento, este inaciano percorreu amiudamente o território baiano, de Jacobina à Comarca de Ilhéus, fundando em Salvador o Recolhimento do Santíssimo Coração de Jesus da Soledade, ainda hoje funcionando no bairro da Lapinha. Até Voltaire e o próprio papa Clemente XIII protestaram contra a execução deste velhinho com mais de setenta anos, vítima de flagrante injustiça inquisitorial, patrocinada então pelo poderoso Marquês de Pombal.

O último morador da Bahia a ser condenado à fogueira foi Manoel de Abreu, morador em Campos, que tinha parte de cristão -novo. Apesar de ter morrido no cárcere, nem por isto deixou de ter sua “estátua” queimada no auto-de-fé, realizado em 1769, encerrando aí as condenações à morte das vítimas do Santo Tribunal.

Uma triste página de nossa história, onde a intolerância e o fanatismo tinham foros de verdade, e levaram às barras do tribunal da fé milhares de cidadãos, simplesmente por pensarem e agirem de acordo com suas consciências, advogando liberdades e novos estilos de vida hoje plenamente reconhecidos pelas ciências e pelos direitos humanos como legítimos e legais. Inquisição, nunca mais!

Notas 1 Este artigo, com pequenas modificações, foi originalmente publicado com o título 1591-1991: 4º Centenário da Visitação do Santo Ofício ao Brasil, no Diário Oficial Leitura, Imprensa Oficial de São Paulo, n.10, v. 110, junho l991, p.1-3. · 27 · 2 Frei Vicente do Salvador. História do Brasil (1500-1627). São Paulo: Editora Weiszflog, 1918, p. 191-192. 3 Mott, Luiz: A Inquisição em Ilhéus, Revista da Federação das Escolas Superiores de Ilhéus e Itabuna, ano VI, nº 10, 1989, p. 73-83. 4 Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 4-1-1982. 5 Sousa, Gabriel Soares. Tratado Descritivo do Brasil em 1587, São Paulo: Martins Editora, 1971, p. 258. 6 Todos os detalhes da instalação desta Visita constam na obra de Abreu, Capistrano de. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil, Rio de Janeiro, Editora F. Briguiet, 1935, p. 8 e seguintes. Reedição de Vainfas, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 7 Abreu, Capistrano, op.cit., p. 20 e ss. 8 Siqueira, Sônia. A inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Editora Ática, 1978. 9 Mott, Luiz: Regimentos dos Comissários e escrivães do seu cargo, dos qualiflcadores e dos familiares do Santo Ofício. Salvador: Centro de Estudos Baianos, 1990. 10 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Proc. n° 9.255