Estrutura mental da
espiritualidade e seu papel evolutivo ainda são um mistério.
Um dos temas atuais mais palpitantes em neurociências é saber "onde"
estão as redes neurais cerebrais que codificam a crença (ou a fé).
Localizacionistas apostam no lobo temporal, e tal convicção se
fundamenta na religiosidade das pessoas que sofreram lesão nessa área.
Trabalhos científicos enfatizam o fato de que portadores de epilepsia do
lobo temporal desenvolvem religiosidade exacerbada. Entre casos famosos
mencionados encontra-se o pintor Vincent Van Gogh. Qual teria sido a origem do
seu fervor religioso, levando-o a tornar-se um pregador tão obstinadamente
preocupado com seus deveres que acabou expulso de sua seita?
Numa tentativa de compreender melhor o fervor religioso despertado em pessoas
com lesão temporal o neurologista Vilayanur Ramachandran estudou dois pacientes
epiléticos do lobo temporal, ambos com tendência espiritualista exacerbada.
Submeteu-os a um
experimento simples, conectando-lhes ao braço um eletrodo que capta impulsos
elétricos na pele quando a pessoa é envolvida por alguma emoção. Numa tela de
computador assistiam a figuras neutras (como bola de tênis, árvore e quadro-negro)
intercaladas com imagens de sexo, violência, símbolos religiosos e palavras
alusivas a Deus.
Para surpresa dos
examinadores, os impulsos mais intensos não se deram com cenas violentas ou
eróticas: naqueles dois epiléticos do lobo temporal, a intensidade aumentava
nitidamente quando os pacientes viam imagens religiosas.
Assim, seria lícito supor - por mais absurdo que possa parecer - que existem
áreas no cérebro cujos circuitos são especializados em fé ou apego religioso?
É exatamente aí que se
inicia a penumbra do nosso conhecimento. Talvez por isso os neurocientistas
tenham se negado sistematicamente a dedicar tempo de pesquisa ao tema.
Um epilético com lesão no lobo temporal e que desenvolvera religiosidade
exacerbada quando não havia nele nenhum vestígio de interesse religioso antes
da cirurgia causadora da lesão contou-me que, ocasionalmente, sofre uma crise
em que tem a nítida sensação de sair do corpo, uma evidente sensação
extra-sensorial.
Relatos como esse se
encaixam na experiência tornada pública em 2001 por Olaf Blanke. Ele colheu o
extraordinário relato de uma paciente que passou por uma experiência
extra-sensorial quando teve o giro angular direito estimulado por uma corrente
elétrica. Ela estava se submentendo a cirurgia de crânio para a retirada de
áreas geradoras de descargas epiléticas no lobo temporal.
Esse tipo de operação geralmente se faz sob anestesia local, pois é importante
que o paciente esteja acordado para orientar os médicos quanto à sensação
experimentada em cada área estimulada. Assim, colocam-se delicadamente
eletrodos sobre o córtex cerebral, e desencadeia-se uma estimulação elétrica
enquanto se aguarda a reação do paciente. Dessa forma, faz-se um mapa das áreas
cerebrais próximas à lesão, permitindo identificar o local, remover
precisamente a área afetada e preservar as áreas sadias das vizinhanças.
Quando neurocirurgiões estimularam o giro angular (região próxima à porção mais
posterior do lobo temporal), a paciente relatou a sensação de levitar. Os
estímulos foram repetidos várias vezes, e, numa delas, ela se referiu à
sensação extracorpórea; estava a cerca de 2 metros distante do
próprio corpo, perto do teto da sala, observando os médicos operar sua cabeça.
Até que ponto o resultado desses experimentos se superpõem?
Pode uma avaria nas
redes neurais que parecem governar a fé desencadear uma crença que não existia
ou estava adormecida?
E qual o papel do giro angular na sustentação
da imagem corporal?
Por que a estimulação
dessa área cortical projeta para o paciente sua imagem fora do corpo?
Que papel a evolução
atribuiu ao lobo temporal no controle das nossas crenças?
Se nossos genes são de fato
"egoístas", a que atribuir a crença ilimitada em outra vida, em outra
dimensão?
E por que tais crenças
se tornam acentuadas quando estruturas do lobo temporal são atingidas?
Respostas a essas
questões talvez sejam um dos maiores desafios para as neurociências.
Edson Amâncio, neurocirurgião do Hospital Albert Einstein, de São Paulo, é
doutor pela Unifesp e autor de "O homem que fazia chover."
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