No século
XVII, na Rússia, era preciso prestar muita atenção ao fazer o sinal-da-cruz.
Quem errasse corria o risco de acabar na fogueira.
O período
entre 1598 e 1613 é conhecido na história russa como o "Tempo das
Dificuldades". No breve espaço de 15 anos, sucederam-se levantes
populares, invasões, guerras civis, escassez. A própria Igreja Ortodoxa Russa
viu-se ameaçada pelo proselitismo dos missionários católicos e luteranos.
As
"dificuldades" chegaram ao fim com uma revolta popular que libertou
Moscou dos estrangeiros e com a ascensão da dinastia Romanov ao trono.
Em 1619,
Filaret, pai do czar Mikhail Fedorovich, que cuidou da reorganização
administrativa da Igreja, foi nomeado patriarca da Igreja de Moscou (ou seja,
líder da Igreja Russa). Essa centralização familiar do poder político e
espiritual não foi casual. Na verdade, a própria concepção da religião e da
sociedade russas previa um Estado e uma Igreja unidos em simbiose. "O
Estado moscovita — ou seja, seu soberano, o czar — era inconcebível fora da
moldura eclesiástica, sem a companhia da hierarquia da Igreja e, em mais alto
grau, de seu patriarca."1
Os anos
que se sucederam aos "difíceis" também testemunharam o nascimento de
um novo movimento religioso, o dos "Amigos de Deus", liderado pelo pope
(termo russo que significa sacerdote) Ivan Nerovov. Outro expoente de
relevo do movimento foi o arcebispo Awakum, autor de uma famosa autobiografia.
Os
"Amigos" eram um grupo de padres que pregavam em russo, mesmo fora
das igrejas; lutavam pela moralização do clero e da vida pública; opunham-se
aos costumes importados do exterior (como raspar a barba), e às diversões
"pagãs".
A confraternidade
queria impor "um cristianismo de uma austeridade monástica que [...]
banisse qualquer alegria e qualquer distração. Em vez de adaptar o serviço
divino dos súditos monges às necessidades dos leigos, impunha a militares,
camponeses, a toda uma população, ritos de quatro ou cinco horas na
igreja".2
Os popes da confraternidade dos
"Amigos" tiveram muitos desentendimentos com as autoridades locais
fortemente contrárias à sua obra de moralização. O próprio Awakum fala, em sua
autobiografia, que um poderoso atirou contra ele por "exasperação pela
demora excessiva da liturgia".
O povo
mais humilde também se desesperava com o rigor e mais de uma vez os expulsou
das paróquias. Mas os "Amigos" sempre conseguiam se safar, entre
outras coisas, porque contavam com a amizade e proteção tanto do czar quanto do
patriarca de Moscou.
Em 1652,
Nikon, graças também ao apoio dos "Amigos de Deus", foi eleito
patriarca de Moscou. Mas ele acabou logo com as expectativas de seus
partidários. Os reformistas sonhavam com uma regeneração espiritual da Rússia
que envolvesse todo o clero e grupos sociais.
Mas Nikon,
que os historiadores compararam a uma espécie de Inocêncio III russo, queria
criar uma Igreja teocrática, submissa às vontades do patriarca, que impusesse
sua própria autoridade ao czar e estendesse sua influência às outras Igrejas
ortodoxas do Oriente.
E talvez
para dar à Igreja uma imagem mais "ecumênica" e autoritária, ele
tenha decidido eliminar da liturgia russa alguns elementos nacionais e torná-la
mais parecida com as outras crenças de rito grego, em especial a de Jerusalém.
Nikon
manteve boas relações com o patriarca ortodoxo de Jerusalém, Paisios, não
obstante o seu envolvimento no assassinato de seu rival fosse conhecido na
corte e apesar de ele ter personagens duvidosos entre seus emissários a Moscou,
como o religioso Arsênio, um aventureiro internacional que trocara de religião
três ou quatro vezes durante suas peregrinações.
As
diferenças mais evidentes entre os costumes gregos e russos estavam no
sinal-da-cruz (os gregos o faziam com três dedos, os russos, com dois), no
batismo (os gregos o realizavam por infusão, como os latinos, os russos, por
imersão tripla) e na contagem dos anos a partir da criação do mundo (5500 para
os gregos, 5508 para os russos).
Nikon
decidiu adotar os ritos gregos, erradamente considerados mais "puros"
e antigos. Também foram introduzidas outras mudanças, como a grafia do nome
Jesus, que mudava de Isus para lisus. Muitos não a aceitaram,
pois para eles parecia que Cristo era substituído por outra divindade ou até
mesmo pelo anticristo.
O
patriarca de Moscou introduziu suas reformas de maneira brutal e autoritária,
sem nenhuma mediação ou gradualismo. Suas inovações provocaram angústia nos
fiéis russos, que de um dia para o outro se viram proibidos de praticar o que
lhes pareciam as manifestações "naturais" de religiosidade,
substituindo -as por costumes estranhos à sua cultura e tradição.
Naturalmente,
os "Amigos de Deus" foram os primeiros a protestar contra as
mudanças, mas Nikon respondeu com a repressão.
Em 1653,
mais de sessenta opositores às reformas, dentre os quais Neronov e Awakum,
foram presos. Este último foi trancado no mosteiro de Sant'Andronico, em
Moscou, onde tentaram subjugá-lo, inutilmente, pela fome. Neronov, ao contrário,
cedeu ao suplício e abjurou.
Awakum
(graças à intervenção do czar, que o poupou de penas bem piores) foi exilada
na Sibéria com toda a família por dez anos.
Em 1654,
Nikon convocou um concilio em Moscou para ratificar sua reforma. O arcebispo de
Kolomna Pavel, que contestou as conclusões da assembléia, foi deposto, preso
secretamente e, ao que parece, queimado na fogueira.
No mesmo
ano do concilio, eclodiu na Rússia uma epidemia de peste, que muitos fiéis
tradicionalistas interpretaram como uma punição pela traição com a qual o clero
russo se sujara.
Em 1655,
Nikon proibiu o sinal-da-cruz; com dois dedos e, no ano seguinte, passou a
punir com a excomunhão quem continuasse a fazê-lo. "Aquele sinal-da-cruz,
que a grande maioria dos russos havia visto os pais e avós fazendo, agora era
considerado heresia, e quem insistisse em realizá-lo era afastado da
Igreja." (Pia Pera, 1986, p. 36.)
Foi
naqueles anos que surgiu o cisma dos "antigos crentes" na Igreja
russa, que perdura até hoje. Uma Igreja popular, próxima às classes humildes e
presa às tradições se contrapunha a uma autoritária e voltada para as classes
altas.
Em 1657,
três artesãos de Rostov, inimigos das inovações, foram torturados e exilados
por ordem do czar.
Muitos
"antigos crentes", que rejeitavam tanto a autoridade do Estado quanto
a da Igreja, fugiram dos vilarejos e das cidades para se estabelecer nos
espaços abandonados e quase inabitados do Baixo Volga, do Don, dos Urais e da
Sibéria. Alguns extremistas, convencidos de que o mundo estava dominado pelo
anticristo, deixaram-se morrer de fome ou atearam fogo ao próprio corpo.
Os monges
do mosteiro de Solovki se rebelaram contra a nova liturgia e foram atacados
pelas tropas do czar, que só conseguiram tomar o convento após um assédio de
oito anos.
"No
geral, a reforma de Nikon teve o efeito de afastar da Igreja uma parcela
considerável do povo russo." (Pia Pera, 1986, p. 37.)
Em 1666,
um novo concilio depôs Nikon, mas confirmou todas as suas inovações
doutrinárias (que tinham a aprovação do czar).
Awakum,
que participara dos trabalhos do concilio para defender a causa da
"verdadeira" fé russa, foi declarado deposto e preso. Três discípulos
seus tiveram um pedaço da língua cortado.
A sessão
se concluiu em 2 de julho, com a condenação solene da antiga fé e a de seus
adeptos.
Em 1667,
Awakum foi exilado em Pustozërsk junto com alguns seguidores. De lá, continuou
guiando os "antigos crentes" que permaneceram na Rússia.
Em 1670,
foram realizadas outras perseguições sanguinárias. Alguns discípulos de Awakum foram
enforcados, e sua mulher e seus filhos (que ele não via há quatro anos) foram
presos em um calabouço. Três amigos seus, que com ele compartilhavam a
experiência do exílio, tiveram um pedaço da língua cortado e foram presos em um
calabouço junto com seu pai espiritual.
Em 1682,
foi realizado um enésimo concilio, que ordenou que as autoridades civis e
religiosas procurassem ativamente os antigos crentes e acirrassem as
perseguições. Também foi dada ordem para queimar vivos os quatro sacerdotes
irredutíveis.
E, assim,
em 14 de abril de 1682, os quatro crentes Awakum, Lazar, Epifanij e Fédor foram
martirizados por insistirem em fazer o sinal-da-cruz com dois dedos, em vez de
três.
Antes da
execução, Awakum escrevera, no cárcere, uma autobiografia que entrou para a
história com o título de A vida do arcebispo Avvakum, e circulou de
forma clandestina e manuscrita por cerca de dois séculos, antes de ser
impressa.
FONTE DE ESTUDO
1. É a tese do historiador Marc Raeff, citado
em: Pia Pera (organizado por), Vita deii'arciprete Avvakum scritta da lui
stesso. Milão, Adelphi, 1986.
2. Pierre Pascal citado em Pia Pera, op.
cit., p. 22.