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quarta-feira, 28 de outubro de 2015

A SALVAÇÃO DE LUTERO E A REFORMA PROTESTANTE

A venda de indulgências



No que consistia a doutrina das indulgências? "Acreditava-se que Jesus em pessoa, a Virgem Maria e muitos santos tivessem ganhado, durante sua vida, um surplus de mérito que poderia ser distribuído entre os cristãos menos praticantes da fé e que haviam, ao contrário deles, acumulado um déficit em razão dos pecados cometidos, e, para expiá-los, deveriam passar um longo período de tempo no Purgatório.

Os papas, depositários, através de Pedro, das chaves da Igreja, tinham acesso a esse tesouro e podiam estendê-lo aos pecadores que precisassem de uma diminuição na pena. Estes podiam, assim, privar-se de parte das riquezas acumuladas durante a vida terrena e receber em troca a riqueza espiritual dos santos. Mesmo não sendo possível comprar a salvação, podia-se, no entanto, pagar pela remissão (mesmo total) da pena." (David Christie-Murray, 1998, p. 169.)

O auge dessa prática se deu durante o pontificado de João de Mediei, o Leão X (1513-1521), que lançou uma aberta política de venda de indulgências. Verdadeiros mascates percorreram a Europa vendendo "cartas de indulgência", quase bônus-Paraíso, que podiam ser comprados sem maiores formalidades, mas desconcertando muitos crentes genuínos.

Em 1517, foi divulgada a Taxa Camarae, uma lista das indulgências previstas para os vários pecados, com um tarifário a elas referentes, reportado a seguir:


1. O eclesiástico que incorrer em pecado carnal, seja com freiras, primas, sobrinhas, afilhadas ou, enfim, com outra mulher qualquer, será absolvido mediante o pagamento de 67 libras e 12 soldos.

2.   Se o eclesiástico, além do pecado de fornicação, pedir para ser absolvido do pecado contra a natureza ou de bestialidade, deverá pagar 219 libras e 15 soldos. Mas se tiver cometido pecado contra a natureza com crianças ou animais, e não com uma mulher, pagará apenas 131 libras e 15 soldos.

3.   O sacerdote que deflorar uma virgem pagará 2 libras e 8 soldos.

4.   A religiosa que quiser ser abadessa após ter se entregado a um ou mais homens simultânea ou sucessivamente, dentro ou fora do convento, pagará 131 libras e 15 soldos.

5.   Os sacerdotes que quiserem viver em concubinato com seus parentes pagarão 76 libras e 1 soldo.

6.   Para cada pecado de luxúria cometido por um leigo, a absolvição custará 27 libras e 1 soldo.

7.   A mulher adúltera que pedir a absolvição para se ver livre de qualquer processo e ser dispensada para continuar com a relação ilícita pagará ao papa 87 libras e 3 soldos. Em um caso análogo, o marido pagará o mesmo montante; se tiverem cometido incesto com o próprio filho, acrescentar-se-ão 6 libras pela consciência.

8.   A absolvição e a certeza de não ser perseguido por crime de roubo, furto ou incêndio custarão ao culpado 131 libras e 7 soldos.

9.   A absolvição de homicídio simples cometido contra a pessoa de um leigo custará 15 libras, 4 soldos e 3 denários.

10. Se o assassino tiver matado dois ou mais homens em um único dia, pagará como se tivesse assassinado um só.

11. O marido que infligir maus-tratos à mulher pagará às caixas da chancelaria 3 libras e 4 soldos; se a mulher for morta, pagará 17 libras e 15 soldos; e se a tiver matado para se casar com outra, pagará mais 32 libras e 9 soldos. Quem tiver ajudado o marido a perpetrar o crime será absolvido mediante o pagamento de 2 libras por cabeça.

12. Quem afogar o próprio filho pagará 17 libras e 15 soldos (ou seja, 2 libras a mais que aquele que matar um desconhecido), e se pai e mãe o tiverem matado de comum acordo, pagarão 27 libras e 1 soldo pela absolvição.

13. A mulher que destruir o filho que carrega no ventre e o pai que contribuir para a realização do crime pagarão 17 libras e 15 soldos cada. Aquele que facilitar o aborto de uma criatura que não for seu filho pagará 1 libra a menos.
14. Pelo assassinato de um irmão, uma irmã, mãe ou pai, pagar-se-ão 17 libras e 5 soldos.

15. Aquele que matar um bispo ou prelado de hierarquia superior pagará 131 libras, 14 soldos e 6 denários.

16. Se o assassino tiver matado mais sacerdotes em várias ocasiões pagará 137 libras e 6 soldos pelo primeiro homicídio e a metade pelos seguintes.

17. O bispo ou abade que cometer homicídio por emboscada, acidente ou estado de necessidade pagará, para conseguir a absolvição, 179 libras e 14 soldos.

18. Aquele que quiser comprar antecipadamente a absolvição por qualquer homicídio acidental que possa vir a cometer no futuro pagará 168 libras e 15 soldos.

19.  O herege que se converter pagará, pela absolvição, 269 libras. O filho do herege que tiver sido queimado, enforcado ou executado de qualquer outra forma poderá ser readmitido apenas mediante o pagamento de 218 libras, 16 soldos e 9 denários.

20. O eclesiástico que, não podendo pagar os próprios débitos, quiser se livrar de ser processado pelos credores entregará ao pontífice 17 libras, 8 soldos e 6 denários, e a dívida lhe será perdoada.

21. Será concedida a licença para a instalação de postos de venda de vários gêneros sob os pórticos das igrejas mediante o pagamento de 45 libras, 19 soldos e 3 denários.

22. O delito de contrabando e fraude aos direitos do príncipe custará 87 libras e 3 denários.

23. A cidade que quiser que seus habitantes ou sacerdotes, freis ou monjas obtenham licença para comer carne e laticínio em épocas em que é proibido pagará 781 libras e 10 soldos.

24. O mosteiro que quiser variar a regra e viver com menos abstinência do que a prescrita pagará 146 libras e 5 soldos.

25. O frade que, por conveniência própria ou gosto, quiser passar a vida em um ermitério com uma mulher dará ao tesouro pontifício 45 libras e 19 soldos.

26. O apóstata vagabundo que quiser viver sem obstáculos pagará igual quantia pela absolvição.

27. Igual montante pagarão os religiosos, sejam eles seculares ou regulares, que queiram viajar em trajes de leigo.

28. O filho bastardo de um sacerdote que queira preferência para suceder o pai na cúria pagará 27 libras e 1 soldo.

29. O bastardo que queira receber ordens sagradas e gozar de seus benefícios pagará 15 libras, 18 soldos e 6 denários.

30. O filho de pais desconhecidos que queira entrar para as ordens pagará ao tesouro pontifício 27 libras e 1 soldo.

31. Os leigos feios ou deformados que queiram receber ordenamentos sagrados e ter benefícios pagarão à chancelaria apostólica 58 libras e 2 soldos.

32. Igual quantia pagará o vesgo do olho direito, enquanto o vesgo do olho esquerdo pagará ao papa 10 libras e 7 soldos. Os estrábicos bilaterais pagarão 45 libras e 3 soldos.

33. Os eunucos que queiram entrar para as ordens pagarão a quantia de 310 libras e 15 soldos.

34. Aquele que, por simonia, queira comprar um ou muitos benefícios se dirigirá aos tesoureiros do papa, que lhe venderão os direitos a preços módicos.

35. Aquele que, tendo descumprido um juramento, queira evitar qualquer perseguição e se livrar de qualquer tipo de infâmia pagará ao papa 131 libras e 15 soldos. Além disso, dará 3 libras para cada um que ouviu o juramento.1




TARIFA DA CHANCELARIA E PENITENCIÁRIA DE JOÃO XXII.

1 - Pela absolvição do que tiver violado uma mulher numa igreja, ou cometido outros que tais sacrilégios, 6 gros.

2 - Pela absolvição dum clérigo que mantiver concubinagem, com dispensa de irregularidade, e apesar das proibições provinciais, e sinodais, 7 gros.

3 - Pela absolvição do que tiver cometido incesto com sua mãe, sua irmã, ou qualquer outra mulher que seja sua parente, por sangue ou aliança, ou com a sua madrinha, 6 gros. 

4 - Pela absolvição do que tiver desflorado uma virgem, 6 gros. 

5 - Pela absolvição de um perjúrio, 6 gros.

6 - Pela absolvição do que tiver morto seu pai, sua mãe seu irmão, sua irmã, ou algum parente secular, 5 a 7 gros. pelo morto. (Se o assassínio for um parente, pertencente à Igreja, deverá o matador visitar a Santa Sé.)

7 - Pela absolvição de um marido que tiver espancado sua mulher, e desse espancamento lhe haja resultado aborto, 6 gros.

8 - Pela absolvição duma mulher, que servindo-se de uma beberagem, ou de outra qualquer trama, promover um aborto, 6 gros.

Nota. - No caso de que seja clérigo o homem que tiver administrado a beberagem, ou promovido o aborto, este crime será considerado como o de morte de secular, e a pena será a mesma. 

9 - Pela absolvição de pilhagens, incêndio, roubo e assassinatos de seculares com dispensa, 8 gros. 



Não havia crime, nem o mais cruel, que não pudesse ser perdoado mediante pagamento.

Naqueles anos, o dominicano Tetzel percorreu a Alemanha vendendo cartas de indulgência. Mais tarde, Lutero descreveria sua obra da seguinte forma: 

"Seus poderes e graça foram ampliados de tal forma pelo papa que, se alguém violasse ou engravidasse a Virgem Maria, ele teria perdoado aquele pecado assim que uma quantia de dinheiro suficiente fosse colocada em sua bolsa... Ele redimiu mais almas com as indulgências do que São Pedro com seus sermões; quando era colocado em sua bolsa um dinheiro pelo Purgatório... a alma se elevava imediatamente para o Paraíso; não havia necessidade de comprovar dor ou arrependimento por um pecado se era possível comprar indulgências ou cartas de indulgência. Tetzel vendia até o direito de poder pecar no futuro... qualquer coisa era garantida em troca de dinheiro."2

A venda de indulgências era apenas a ponta do iceberg de um fenômeno geral de corrupção na Igreja da época. Os altos prelados acumulavam mais encargos e as relativas prebendas. Os bispos não residiam nas sedes a eles designadas: por exemplo, um nobre de Ferrara podia ser nomeado arcebispo na Hungria e nunca sair de sua casa, limitando-se a receber o dízimo dos fiéis de cujas almas devia cuidar.

O título de cardeal (que era o "príncipe", também em sentido terreno) muitas vezes não era resultado de um longo percurso espiritual, mas da venda ou concessão do papa a parentes e amigos. Quem podia se permitir o comprava para o filho caçula ou ilegítimo, por vezes adolescente, como uma renda vitalícia. O próprio Leão X (1513-1521) se tornara cardeal aos 13 anos.

Os pontífices eram, em todos os aspectos, soberanos renascentistas. Como os reis, eliminavam os adversários e se cercavam de homens de confiança. Como os reis, usavam a intriga e o homicídio político, como o papa Alexandre VI Bórgia (1492-1503), por exemplo, e seu filho César. Como os reis, declaravam guerra contra seus inimigos e conduziam as tropas na batalha; o papa Júlio II (1503-1513) foi retratado em armadura.3 Como os reis, tinham concubinas e filhos bastardos. E, como os reis, amavam as artes e protegiam os artistas. Mas os cuidados com as almas nada tinham a ver com tudo isso.


Martinho Lutero




Lutero (1483-1546) foi ordenado sacerdote em 1507, após ter concluído brilhantes estudos universitários. Atormentado com o sentido do pecado, sua ânsia o levou a elaborar uma nova doutrina da Salvação, em contraposição à católica. Para Lutero, a absolvição do pecado derivava de uma relação direta entre Deus e o fiel, que poderia ser obtida apenas através da própria fé, não por meio de obras e, muito menos, com a compra de indulgências ou a intervenção de um confessor.4

Lutero defendeu o direito que cada fiel tem de ler e interpretar as Escrituras, negou a autoridade jurisdicional do papa, dando início a uma vigorosa polêmica contra a corrupção da Igreja de Roma, e contestou o poder temporal do clero. Negou também a validade de alguns sacramentos e o valor do celibato eclesiástico.

Em 31 de outubro de 1517, afixou na porta de uma igreja as "95 teses para esclarecer a eficácia das indulgências", que suscitaram grandes polêmicas e tiveram ampla difusão em toda a Alemanha.

Em 15 de junho de 1520, uma bula papal condenou algumas proposições luteranas, ordenando que fossem queimadas. Lutero, em compensação, queimou, diante de uma multidão que o aplaudia, o que ele mesmo chamava de "execrável bula anticristo".

Em 1521, apresentou-se à Dieta de Worms com o salvo-conduto do imperador Carlos V. Ao final de uma acirrada discussão teológica, Lutero declarou que não podia se remeter à autoridade do papa e dos concílios, até porque estes muitas vezes se contradiziam, mas apenas à das Sagradas Escrituras.

Excomungado pela Igreja e banido pelo imperador, continuou suas atividades ou, ao menos, deu início a um projeto ambicioso: a tradução das Escrituras para o alemão. Lutero, com grande probabilidade, salvou-se da fogueira por um conjunto de fatores deliciosamente políticos: o favor de alguns príncipes alemães, dentre os quais estava o eleitor da Saxônia, que o escondeu no castelo de Wartburg encenando um falso rompimento; a desconfiança do papa com relação a Carlos V, cuja influência se tornara preponderante na Itália; o fato de que o próprio Carlos V, nos anos seguintes, estivesse ocupado demais com guerras contra turcos, franceses, venezianos e o próprio Estado Pontifício.

As teses luteranas eram populares entre os príncipes alemães, que desejavam se apoderar dos bens dos grandes eclesiásticos: latifúndios enormes com vários servos da gleba e que gozavam de amplos privilégios fiscais, quase Estados dentro dos Estados.

Lutero também gozava de grande admiração entre o povo, que reconhecia em algumas de suas declarações as próprias aspirações de justiça social. Mas as expectativas de muitos, sob esse ponto de vista, não foram atingidas.

Em 1524, eclodiu nos territórios do Império uma gigantesca rebelião camponesa. Bandos armados compostos de cerca de trezentos mil camponeses saquearam igrejas, castelos e cidades. Lutero, depois de tentar inutilmente uma mediação, escreveu o tratado Contra os bandos arruaceiros e assassinos dos camponeses, uma espécie de carta aberta aos príncipes alemães pedindo para conter os rebeldes. "Esta é a época da ira e da espada, não a da graça [...] Por isso, caros senhores [...] matem, esganem, estrangulem quem puderem [...] e se alguém julgar tudo isso duro demais, pense que a sedição é insuportável e que a cada momento é preciso esperar a catástrofe do mundo."5

Os príncipes católicos e protestantes acolheram o convite e massacraram os rebeldes. Uma das características da Igreja Luterana foi o direito de envolvimento dos príncipes na gestão eclesiástica. O soberano de um Estado se tornava o chefe da Igreja nacional.

Os escritos de Lutero tiveram ampla difusão na Europa, com exceção, talvez, apenas da Itália, onde desencadearam uma severa repressão. Os sermões luteranos se difundiram em muitos países europeus, em alguns casos fornecendo combustível para as fogueiras, em outros, com sucesso, transformando a Reforma em religião de Estado (que perseguiu, por sua vez, os católicos).

A Dinamarca se tornou protestante com o reinado de Cristiano III (1534-1559). Os bispos católicos foram presos e substituídos pelos luteranos, as propriedades eclesiásticas foram confiscadas e utilizadas para manter o Estado e financiar a cultura. O rei era o chefe da Igreja. A Bíblia foi traduzida para o dinamarquês.

Posteriormente, Cristiano III estendeu a própria soberania também sobre a Noruega e a Suécia. Na Noruega, os soldados luteranos demoliram algumas igrejas católicas, e todos os bispos foram expulsos, com exceção de dois que se converteram ao luteranismo. Na Suécia, as doutrinas reformadas penetraram de maneira mais suave e "em diálogo" com Roma. A ruptura só aconteceu em 1523, quando o papa se recusou a ratificar a nomeação de quatro bispos suecos enquanto não se pagassem as anonas (um dos tantos tributos que os reinos cristãos deviam à Santa Sé). O rei da Suécia respondeu que o país era pobre demais para pagar e nomeou ele próprio os bispos.

Dos países escandinavos, o luteranismo se propagou pelas regiões bálticas. Na Finlândia, tornou-se religião de Estado. A Islândia, no século XVI, estava subordinada à Dinamarca, e o luteranismo chegou com os mercadores e doutos que tinham estudado no continente (a Universidade de Wittemberg tornara-se um importante centro de difusão cultural), mas sobretudo pela influência de Cristiano III, contestada em vão por um bispo local e seus dois filhos. Os prelados católicos foram depostos, e seus bens, confiscados. Contudo, a Igreja Reformada manteve várias práticas católicas, como a da confissão e a adoração a alguns santos locais.

Na Boêmia, a Reforma se difundiu graças aos estudantes hussitas formados em Wittemberg. Os alemães da Boêmia se tornaram luteranos; os eslavos, calvinistas, mas depois as duas correntes elaboraram uma confissão de fé unitária para enfrentar melhor os soberanos católicos, o que deu ensejo a uma violenta reação dos católicos em geral e dos jesuítas em particular. Até o final do século XVI, calcula-se que 90% dos boêmios fossem protestantes.

Na Hungria, a Reforma também se difundiu através de diretrizes "étnicas": alemães e eslavos se voltavam preferivelmente ao luteranismo; os magiares, com algumas exceções, ao calvinismo. Vários fatores ajudaram a obra dos reformadores.

Em primeiro lugar, a corrupção que se espalhou entre o clero e os leigos católicos. Os hussitas e (provavelmente) os valdenses abriram o caminho.

A invasão turca à Hungria, em 1541, auxiliou na instituição da Reforma tanto indireta (muitos líderes católicos foram mortos em combate contra os turcos) quando diretamente: as forças de ocupação turcas favoreceram os protestantes em detrimento dos católicos, mais temidos por sua propensão às Cruzadas e sua ligação com o imperador.6

Na Transilvânia, alguns decretos de 1568 e 1571 garantiram direitos iguais a católicos, calvinistas, luteranos e unitaristas.


João Calvino




Calvino (1509-1564), francês, foi o fundador da Igreja Calvinista, outro grande culto reformado que se espalhou pela Europa talvez com um sucesso ainda maior que o luterano. Para Calvino, o pecado original transmitido por Adão a toda a humanidade tornou os homens incapazes de redenção. Apenas os eleitos, que haviam recebido uma graça especial de Deus, poderiam se salvar; todos os outros estavam predestinados à danação.7

Com base nessa afirmação, ninguém além de Deus podia saber com certeza quem eram os eleitos, embora a profissão de fé, uma vida correta e a observância dos sacramentos fossem provas evidentes do favor divino. Existem, assim, duas Igrejas: uma invisível, formada pelos eleitos vivos e mortos e conhecida apenas por Deus; e uma visível, composta também de homens indignos, imperfeita, mas passível de melhoras, e os cristãos deveriam respeitar sua autoridade.8 Obviamente, quando falava de "Igreja visível", Calvino se referia àquela fundada por ele próprio. A Igreja e o Estado eram partes integrantes da mesma comunidade sagrada. Entre os deveres do Estado, havia o de defender a religião e evitar as ofensas contra ela. A pena capital e, dadas as condições, a guerra eram consideradas práticas legítimas e admissíveis para um cristão.

Graças à sua influência, a República de Genebra se transformou em um regime teocrático, o que lhe conferiu um incrível impulso para o comércio, os investimentos e a educação. Um conselho eclesiástico cuidava da moralidade dos cidadãos, cominando penas severas até mesmo para pequenas infrações, e se ocupava dos crimes de heresia.9

Considerado herege e banido da Igreja de Roma, Calvino, por sua vez, teve um comportamento muito duro com os dissidentes de sua doutrina.10

O calvinismo se difundiu em vários países, às vezes em detrimento do luteranismo, como em Estrasburgo, onde muitos reformados aderiram à nova crença, incentivados pela intransigência dos luteranos mais radicais. No Palatinado, tornou-se religião de Estado, e o governo perseguiu católicos e luteranos.11


Os huguenotes


Catarina de Médici examina os corpos dos protestantes mortos na Noite de São Bartolomeu


Na França, a Reforma se difundiu sobretudo no sul do país, onde três séculos antes pregavam os cátaros e os valdenses. Os calvinistas franceses eram apelidados de "huguenotes". A disciplina e a moral rígida que os caracterizavam lhes permitiram exercer grande influência na vida pública francesa, embora representassem uma pequena minoria dentro de um país quase totalmente católico.

As autoridades francesas adotaram uma política que se alternava entre tolerância e repressão aos calvinistas e outras minorias religiosas. A repressão não poupou nem os seguidores do bispo católico reformista de Meaux, Guillaume Briçonnet (1492-1549), confessor de Margarida, irmã do rei, que foram lançados à fogueira. A Sorbonne proibiu livros de reformistas, o Parlamento os baniu e decretou a destruição de muitas cidades habitadas por comunidades hereges.

Em 1535, para vingar uma suposta profanação da hóstia sagrada, foram queimados seis hereges, um por cada uma das estações que compunham a solene procissão do Corpus Domini.12

O ano de 1572 pareceu presenciar um período de paz na luta entre católicos e huguenotes. As núpcias entre a católica Margarida, irmã do rei da França, e o protestante Henrique, rei de Navarra, estavam previstas para o dia 28 de agosto. Mas na noite de São Bartolomeu (24 de agosto), em Paris, os soldados do rei da França entraram nas casas dos huguenotes e os mataram em emboscadas. Poucos encontraram abrigo, todas as ruas haviam sido bloqueadas. Nos dias que se seguiram, o massacre se estendeu também a outras cidades francesas e aos campos. Calcula-se que, em Paris e arredores, foram mortos entre 25 mil e 35 mil huguenotes.

O papa Gregório XIII (1572-1585), assim que foi informado do massacre, ordenou que o acontecimento fosse comemorado com festas solenes e celebrou um jubileu "no qual os fiéis deveriam agradecer a Deus pela destruição dos huguenotes e pedir que absolvesse, por completo a França católica".13 Finalmente, encarregou Vasari de imortalizar o feito em um afresco na Sala Regia do Vaticano.

As contendas religiosas, que se misturaram às dinásticas pelo trono da França, só tiveram fim em 1594, quando Henrique IV se tornou rei dos franceses, um protestante convertido ao catolicismo. "Paris vale uma missa", frase que lhe foi atribuída, diz tudo sobre as relações entre política e religião.

Em 1598, foi promulgado o Edito de Nantes, que garantia aos huguenotes a liberdade de culto e o controle, a título de garantia, de algumas cidades fortificadas. Apesar disso, as perseguições não cessaram.

Em 1621, os huguenotes assinaram, na cidade fortificada de La Rochelle, uma verdadeira declaração de independência. A cidade foi tomada em 1628, após um longo sítio. Os reformistas perderam, assim, sua cidade e foram obrigados a pagar pesadas taxas, sendo excluídos por lei do exercício de algumas profissões.

Em 1680, novas perseguições se iniciaram (Luís XIV, o Rei Sol, não tolerava nenhuma forma de autonomia no próprio reino). Alguns protestantes emigraram, outros se converteram à força, por meio de missionários escoltados por bandeiras de dragões (as forças francesas mais ferozes). Dizem que, em três dias do ano de 1684, foram convertidos sessenta mil huguenotes.

Em 1685, o Edito de Nantes foi ab-rogado, provocando um novo êxodo de protestantes. Nas montanhas de Cevennes, um grupo de três mil reformistas guiados, ao que parece, por alguns "profetas-meninos", desafiou um contingente de seis mil soldados do exército francês.


Henrique VIII e a Reforma inglesa




A Igreja Anglicana nasce graças a Henrique VIII"(1509-1547), conhecido por ter tido seis mulheres (duas repudiadas, duas decapitadas e uma morta no parto). Henrique iniciara seu reinado com o marco da ortodoxia católica: seguidores das teses luteranas, como o estudioso Thomas Bilney e o sacerdote William Tyndale, que traduziu para o inglês o Novo e grande parte do Antigo Testamento, acabaram na fogueira. Ele próprio escreveu (ou mandou escrever) um libelo antiprotestante e foi nomeado Defensor Fidei (defensor da fé) pelo papa. Em 1509, casou-se com Catarina de Aragão, viúva de seu irmão mais velho, Artur, após ter obtido uma dispensa especial do papa (as leis da época proibiam casamento entre cunhados).

Por volta de 1527, não havendo tido nenhum filho homem de sua união e desejoso de um herdeiro para sua dinastia, Henrique tentou obter do papa a anulação do casamento, para poder se casar com Ana Bolena. O papa indeferiu o pedido, provavelmente porque temia ofender o imperador Carlos V, sobrinho de Catarina, que já havia saqueado Roma com suas tropas.

Henrique entrou em controvérsia com a Igreja Católica. Em 1531, a assembléia geral do clero o nomeou "chefe supremo da Igreja na Inglaterra" e doou uma notável quantia em dinheiro à Coroa. Em seguida, o Parlamento decretou que os impostos religiosos não fossem mais pagos ao papa, mas ao rei, e que a Igreja Anglicana podia deliberar sobre as próprias questões internas, sem recorrer a Roma.

Quando o papa excomungou Henrique, o parlamento inglês ab-rogou o chamado "Óbolo de Pedro", uma taxa papal imposta a todas as famílias pela Igreja de São Pedro, e proclamou o rei o "único chefe supremo em Terra da Igreja na Inglaterra". Qualquer referência ao papa foi tirada das missas.

Forest, um frei praticante, defensor da autoridade absoluta do papa nas questões de fé, foi acusado de heresia e queimado na fogueira junto com um ídolo de madeira venerado em Gales. Thomas Moore e o bispo Fisher também foram decapitados por sua fidelidade a Roma.

Em todas as igrejas, apareceram uma Bíblia em latim e uma em inglês, para que os leigos lessem diretamente as Escrituras e verificassem como muitas doutrinas e costumes católicos não correspondiam aos textos sagrados. Os mosteiros foram saqueados e destruídos, e seus bens foram confiscados e vendidos.

A ruptura com Roma não significou a automática adesão às doutrinas luteranas, muito pelo contrário. Henrique VIII em pessoa, junto com seus bispos, julgou o caso do luterano John Nicholson, que foi condenado e mandado à fogueira apesar de seu pedido de perdão.

Sob o reinado de Henrique e o breve governo de Eduardo VI, os artigos da fé da Igreja Anglicana foram reescritos várias vezes, alternando posições reformistas e "católicas", às vezes com resultados tragicômicos. Em 1539, foram promulgados os Seis Artigos, que reformulavam vários aspectos da doutrina católica, como o celibato eclesiástico. As infrações seriam punidas com a fogueira ou com o enforcamento. O arcebispo Cranmer, que se casara, teve de esconder a mulher. Em 1543, seis pessoas foram executadas num único dia: três queimadas por heresia e três enforcadas por negarem a supremacia religiosa do rei.     

             
Maria, a Sanguinária, e Elisabete I


Maria, a Sanguinária


Em 1553, a reação católica levou ao poder Maria I (chamada também de Maria, a Católica; ou Maria, a Sanguinária), filha de Henrique VIII e de Catarina de Aragão.

Durante seu breve reinado, ela ab-rogou todos os provimentos de Henrique VIII e Eduardo e retomou as leis contra os hereges. Muitos protestantes fugiram do país e os bispos católicos retomaram a posse de suas sedes. Foram instituídas comissões especiais com a tarefa de encontrar e processar os hereges em todo o território do reino. Em cinco anos, 282 pessoas foram mortas por heresia.


Elizabeth I


Elisabete I (1558-1603) escolheu o meio-termo, criando uma igreja autônoma cujos artigos de fé representavam um compromisso entre instâncias católicas, luteranas e calvinistas e contentaram grande parte dos cristãos da Inglaterra. Ela conservou a oposição ao extremismo: de um lado, aos jesuítas, que ordenaram vários complôs contra a rainha; de outro, aos puritanos.

Em 1570, Elisabete foi oficialmente excomungada por Roma (lembremos que esse ato, que excluía os súditos da obrigação de fidelidade, representava um grave perigo para a autoridade e a própria vida do monarca), ao que respondeu perseguindo, sem hesitar, os católicos. Das 187 pessoas mortas durante seu reinado, 123 eram sacerdotes católicos ou jesuítas.


Puritanos e anglicanos


Puritanos


A Igreja da Inglaterra fora dividida em duas: de um lado, os puritanos, integralistas da religião, que rejeitavam liturgias e hierarquias eclesiásticas, mas eram impiedosos com os "pecadores"; de outro, os anglicanos, partidários do poder, mais tolerantes com o pecado, mas impiedosos com os puritanos.

Os puritanos (rótulo que na verdade englobava uma constelação de movimentos muito diferentes entre si) professavam o sacerdócio universal, defendiam a igualdade de todos os ministros do culto contra a hierarquia dos bispos e condenavam como "idolatras" a missa e outros rituais anglicanos adaptados dos católicos. Seu programa "político-social" previa punições severas contra blasfemos, caluniadores, perjuros, fornicadores e alcoólatras, além da pena de morte "sem salvação" para os adúlteros. O Parlamento inglês apoiou seus pedidos. Seus adversários eram a monarquia e o clero institucional. A luta entre uma Igreja Alta, aliada ao poder real, e uma Igreja Baixa, muito influente no Parlamento, duraria quase um século, intercalando-se com os vários fatos históricos da época.14

Os anglicanos emanaram leis muito severas contra os puritanos: quem não participasse da missa seria punido com o exílio. Quem fazia "reuniões religiosas particulares" era condenado a penas graves (o pregador John Bunyan foi preso por 12 anos). Os escritores e pregadores puritanos corriam o risco de ser colocados na berlinda, açoitados, marcados com fogo ou ter o nariz e as orelhas arrancados.




A guerra civil e o período do Commonwealth (1649-1659) marcaram um breve triunfo dos puritanos, que conseguiram abolir a instituição dos bispos. Mas a sucessiva restauração voltou a fazer a balança pender para o lado dos anglicanos, que reinstauraram à força a hierarquia eclesiástica. Só os católicos nunca tiveram seu instante de triunfo e foram cuidadosamente perseguidos durante todo o século XVII, acusados de conjuras verdadeiras (como a dos pós) ou inventadas, e excluídos dos cargos públicos. Em 1689, um Ato de Tolerância garantiu liberdade de culto a batistas, presbiterianos, congregacionalistas e quacres, mas não aos católicos e unitaristas.


Na Irlanda, os católicos se rebelam

Apesar do cisma de Henrique VIII, os irlandeses continuaram tenazmente ancorados pela Igreja Católica. O arcebispo de Amagh declarou que "esta ilha não pertence a ninguém além do bispo de Roma, que a entregou aos antepassados do soberano". Em todas as dioceses, enfrentaram-se dois bispos rivais, nomeados respectivamente pelo papa e pelo rei.

A destruição dos mosteiros revelou-se uma verdadeira catástrofe para o povo irlandês, já que eram os únicos centros de difusão da cultura e da assistência. A destruição das imagens sagradas gerou o horror dos fiéis. Bispos e eclesiásticos anglicanos comportaram-se com grande arrogância em relação aos irlandeses, não se preocupando nem em convertê-los. Os habitantes da ilha, apoiados pelos jesuítas a partir de 1542, reagiram criando a Liga Católica, para se defender da obrigação de freqüentar as igrejas protestantes e para difundir a instrução. A existência de uma oposição católica organizada representaria um obstáculo durante todo o reinado da rainha Elisabete.


 FONTE DE ESTUDOS

1.   Pepe Rodriguez, Verità e menzogne delia Chiesa Cattolica, Roma, Editori Riuniti, 1998, p. 263-266.
2.   David Christie-Murray, I percorsi delle eresie, Milão, Rusconi, 1998, p. 180.
3.   Uma sátira de Erasmo de Rotterdam imaginava que o defunto Júlio II, subindo aos céus, foi deixado do lado de fora do Paraíso. Ele, então, tentou tomar militarmente o Reino dos Céus.
4.   Para um aprofundamento sobre a doutrina de Lutero e sobre a Reforma, cf. Luise Schorn-Schütte, La Riforma protestante. Bolonha, Il Mulino, 1998.
5.   David Christie-Murray, op. cit, p. 202.
6.   Ibid., p. 203.
7.   Ibid., p.205.
8.   ítalo Mereu, Storia dell'lntoleranza in Europa, Milão, Bompiani, 2000, p. 89.
9.   David Christie-Murray, op. cit, p. 247.
10. Ibid., p. 247-8. 11.Ibid.,p.212.
12. Ibid., p. 212.
13. Ibid., p. 213.
14.0 rei Jaime da Inglaterra adotou uma política religiosa"centrista": discriminou tanto católicos quanto extremistas puritanos, atraindo para si o ódio de ambas as facções. Em 1605, alguns notáveis católicos organizaram uma conspiração para matar o rei: uma câmara subterrânea localizada embaixo da Câmara dos Lordes foi cheia de barris de pólvora e barras de ferro. A idéia era explodir o palácio quando o rei Jaime lá entrasse, junto com seus herdeiros. No último momento, uma denúncia anônima mandou o plano pelos ares. Guy Fawkes, que deveria ter sido o executor material do crime, não foi avisado por seus cúmplices e, assim, em 15 de novembro, dirigiu-se à cela subterrânea com uma tocha e foi preso pelos agentes reais que lá estavam. Fawkes foi enforcado em 1606, junto com três supostos cúmplices. O 5 de novembro é celebrado até hoje pelos católicos irlandeses, e Fawkes é lembrado corno uma espécie de mártir.

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Martinho Lutero