Mostrando postagens com marcador Satanás pele ajuda. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Satanás pele ajuda. Mostrar todas as postagens

domingo, 1 de julho de 2018

SATANÁS, NA VISÃO DE KHALIL GIBRAN




Por Khalil Gibran


Todos consideravam o Padre Samaan como seu guia no campo dos assuntos espirituais e teológicos, pois ele era autoridade e fonte de profundas informações sobre pecados veniais e mortais, muito versado nos segredos do Paraíso, Inferno e Purgatório.

A tarefa do Padre Samaan no Norte do Líbano era viajar de vila em vila, pregando e curando o povo da enfermidade espiritual do pecado e salvando-o das terríveis armadilhas de Satã. O Reverendo Padre travava uma constante guerra contra Satã. Os camponeses reverenciavam e respeitavam esse clérigo e estavam sempre prontos a comprar seus conselhos e orações com moedas de ouro e prata e em toda colheita sempre o presenteavam com os melhores frutos de suas lavouras.

Numa noite de outono, quando o Padre Samaan se dirigia para a sua solitária aldeia, ao atravessar aqueles vales e colinas, ouviu um angustioso grito que partia de um buraco, ao lado do caminho. Parou e olhou na direção da voz e viu um homem nu, deitado sobre o chão. Um fio largo de sangue corria de profundas feridas em sua cabeça e pelo peito todo. Este estava gemendo e implorando socorro, dizendo:

 "Salvem-me!! Socorram-me! Tenham piedade de mim, que estou morrendo!" O Padre Samaan olhou perplexo para o sofredor e disse para consigo mesmo: "Este homem deve ser um ladrão... Provavelmente tentou roubar os viandantes e fracassou. Alguém o feriu, e receio que, se ele morrer, me acusem de o ter matado."

Pensando assim, retomou a sua viagem, mas o moribundo o interrompeu de novo, gritando: "Não me abandone! Eu estou morrendo".

Então o Padre pensou duas vezes e empalideceu ao admitir que estava recusando um auxílio. E, lábios trêmulos, disse a si mesmo: "Ele há de ser, por certo, um dos loucos da floresta. Seus ferimentos causam-me medo ao coração; que farei? Por certo não se espera que um doutor espiritual cuide de feridas do corpo." O Padre Samaan deu mais uns poucos passos, quando o semimorto soltou um gemido que comoveria um coração de pedra, suspirando: "Chegue mais perto de mim. Venha, pois temos sido bons amigos desde há muito tempo... O senhor é o Padre Samaan, o Bom Pastor, eu não sou nem ladrão nem louco. Venha, e eu lhe direi quem sou."

O Padre Samaan aproximou-se do homem, ajoelhou-se e contemplou-o atentamente. Mas viu um estranho rosto de contrastantes feições: viu inteligência com velhacaria; fealdade com beleza, e maldade com brandura. Ele recuou, erguendo-se, de um salto, e exclamou: "Quem sois?".

Com a voz sumida o moribundo disse: "Não se receie de mim, Padre, pois temos sido grandes amigos desde há muito tempo. Levante-me, leve-me ao riacho próximo e limpe-me as feridas com o seu lenço". Mas o Padre perguntou: "Dizei-me quem sois, pois não vos conheço, nem mesmo me lembro de vos ter visto".

O homem respondeu com voz agonizante: "O senhor conhece a minha identidade. O senhor já me viu mil vezes e fala de mim todo dia. Sou mais caro ao senhor do que sua própria vida".

Mas o Padre o repreendeu: "Sois um impostor e mentiroso! Um moribundo devia dizer a verdade... Nunca vi o vosso rosto mau em toda a minha vida. Dizei-me quem sois ou me permitirei que morrais, encharcado na vossa própria vida que se esvai..."

O homem ferido moveu-se, vagarosamente, olhou dentro dos olhos do sacerdote, e brotou em seus lábios um místico sorriso. E em voz tranqüila, profunda e suave disse: "Eu sou Satanás".

Ao ouvir a palavra terrível, o Padre Samaan deu um grito que, de tão grande, sacudiu os mais longínquos recôncavos do vale. Então, abrindo os olhos espantados, lembrou-se de que as feições do homem agonizante coincidiam com as de Satanás, numa pintura religiosa pendente numa parede da igreja do vilarejo.

Tremeu, então, e gritou "Deus me mostrou a vossa infernal figura e me fez, com justiça, odiar-vos. Maldito sede para todo e sempre! A ovelha ferida deve ser sacrificada pelo pastor, para que ela não infeccione as outras."

Satanás respondeu: "Não se apresse, Padre, nem perca seu precioso tempo com palavras vãs. Venha e pense as minhas feridas rapidamente, antes que a Vida parta do meu corpo."

Mas o Sacerdote retorquiu: "As mãos que oferecem sacrifícios a Deus diariamente não tocarão num corpo feito das secreções do Inferno. Vós deveis morrer, amaldiçoado pelas línguas das Idades, pelos lábios da Humanidade, pois sois o inimigo do Homem, e é vosso fim confesso destruir toda virtude."

Satanás moveu-se, angustiosamente, erguendo-se sobre um dos cotovelos, e respondeu: ¿O senhor não sabe o que está dizendo, nem compreende o crime que comete contra si mesmo. Preste atenção, que lhe contarei a minha história. Eu hoje andava, só, por este vale solitário. Quando cheguei a este lugar, um grupo de anjos desceu para atacar-me e feriu-me seriamente. Não fosse por um deles, que portava uma espada flamejante de dois gumes, eu os teria posto a correr; mas não pude enfrentar a espada reluzente."

Satanás parou de falar por um momento, apertando a mão trêmula contra uma profunda ferida que tinha num dos lados. E continuou: "O anjo armado - creio que era Miguel - portou-se como um hábil gladiador. Se eu não me tivesse atirado a este chão amigo, ele me teria matado estupidamente."

Com ares de triunfo, o Padre ergueu os olhos aos céus e disse: "Bendito o nome de Miguel, que salvou a Humanidade de seu asqueroso inimigo".

Mas Satã protestou: "Meu desdém pela humanidade não é maior do que o seu ódio a si mesmo. O senhor está abençoando Miguel que nunca veio em seu auxílio... O senhor me está xingando na hora de minha derrota, embora eu fosse, e ainda seja, a fonte de sua tranqüilidade e felicidade... O senhor me nega a sua bênção e não me oferece a sua bondade, mas vive e prospera à sombra da minha existência. O senhor adotou, com a minha existência, uma desculpa e uma arma para a sua carreira, e usa o meu nome para justificar os seus atos. Não indica o meu passado que o senhor precisa do meu presente e meu futuro? Já atingiu o senhor os seus cálculos na acumulação da fortuna desejada? Acha o senhor impossível extorquir mais ouro e prata de seus seguidores, usando o meu nome como ameaça?"

"Não compreende o senhor que morreria de fome, se eu morresse? Que faria o senhor amanhã, se permitisse que eu morresse hoje? Que vocação, buscaria o senhor, se meu nome desaparecesse? Há décadas vem o senhor percorrendo estas aldeias, aconselhando o povo a que não caia nas minhas mãos. Todos têm comprado os seus conselhos com os seus pobres denários e com os produtos de sua lavoura. Que comprariam do senhor amanhã, se descobrissem que o seu cruel inimigo não existia mais? Sua profissão acabaria comigo, pois todos se salvariam do pecado. Como sacerdote não compreende o senhor que só a minha existência criou a minha grande inimiga, a Igreja? Este velho conflito é a mão secreta que tira o ouro e a prata do bolso dos fiéis e o deposita para sempre no bolso do pregador e do missionário.

Como permitiria o senhor que eu morresse aqui, quando sabe que com isto o senhor perderia, sem dúvida, o seu prestígio, a sua igreja, a sua casa, o seu meio de vida?"

Satanás permaneceu em silêncio por um momento e sua humildade converteu-se logo em confiante independência, e continuou: "Padre, o senhor é orgulhoso, mas ignorante. Contar-lhe-ei a história da crença; nela encontrará a verdade que reúne os nossos seres e liga a minha existência à sua própria consciência.

"No primeiro momento do começo do tempo o homem se pôs de pé, diante da face do sol, ergueu os braços e exclamou pela primeira vez: atrás dos céus há um grande Deus, amoroso e benevolente. Então o homem virou-se para o grande círculo da luz, viu a sua sombra sobre a terra e bradou: "Nas profundezas da terra há um demônio horrível que ama a iniquidade."

E o homem seguiu para a caverna, murmurando para consigo mesmo que estava entre duas forças antagônicas, uma em que deveria buscar refugio e outra contra a qual deveria lutar. E as idades passaram em procissão, enquanto o homem vivia entre duas forças, uma que ele abençoava, porque o exaltava, e outra que amaldiçoava, porque ela o amedrontava. Mas ele nunca percebeu o sentido de uma bênção ou de uma maldição; ele estava entre as duas, como uma árvore, entre o verão, quando a terra floresce, e o inverno, quando a terra é fria.

"Quando o homem assistiu à aurora da civilização, que é entendimento humano, a família, como uma unidade, apareceu. Então vieram as tribos, quando o trabalho foi dividido de acordo com a habilidade e a inclinação de cada um. Uns cultivavam a terra, outros construíam habitações, outros, ainda, teciam roupas, ou saíam à caça, em busca de alimento . Em seguida a arte da adivinhação apareceu na terra, e esta foi a primeira carreira adotada pelo homem sem maior urgência ou necessidade".

Satanás cessou de falar por um momento. E logo riu; a sua gargalhada sacudiu todo o vale; mas a sua risada o fez lembrar-se de suas feridas, e apertou o lado em que sentia dor. Ele procurou firmar-se e continuou: "A adivinhação apareceu e se desenvolveu na terra de uma maneira estranha.

"Houve um homem, na primeira tribo, chamado La Wiss. Não sei qual a origem do seu nome. Ele era uma criatura inteligente, mas extremamente ociosa, e detestava o trabalho do cultivo da terra, construção de habitações, criação de gado ou qual quer outra atividade que exigisse movimento ou exercício do corpo. E porque, durante aquela era, o alimento não se podia conseguir sem um trabalho árduo, La Wiss dormiu muitas noites de estômago vazio.
"Numa noite de verão, quando os membros do seu clã se reuniram ao redor da tenda de seu Chefe conversando sobre os trabalhos do dia, à espera da hora de dormir, um homem, de repente, deu um pulo, apontou para a lua e exclamou: "Olhem para a Deusa da Noite! Sua face escureceu, sua beleza se esvaiu, ela tornou-se numa grande rocha preta, pendente da cúpula do céu!"

"A multidão olhou para a lua, soltou um grito e tremeu de medo, como se as mãos das trevas lhe tivessem apertado os corações pois todos viram a Deusa da Noite tornar-se, vagarosamente, numa bola escura que mudava a fisionomia clara da terra e fazia com que os vales e as montanhas diante de seus olhos desaparecessem atrás de um negro véu.

"Nesse momento, La Wiss, que já tinha visto antes um eclipse, e compreendia a sua causa simples, deu um passo em frente, para valer-se dessa oportunidade.

"Ergueu-se no meio da multidão, levantou as mãos para os céus e em voz possante dirigiu-se aos circunstantes, dizendo: "Ajoelhai-vos e orai, pois o Deus Mau das Trevas está em luta com a Deusa Iluminadora da Noite. Se o Deus Mau a vencer, nós todos pereceremos; mas, se a Deusa da Noite triunfar sobre ele, permaneceremos vivos. Orai, agora, e adorai... Cobri vossos rostos com terra. Fechai os olhos e não levanteis a cabeça para os céus, pois quem vir os dois lutando perderá a vista e o juízo, ficará cego e louco pelo resto da vida!

Dobrai as cabeças e de todo coração incitai a Deusa da Noite contra o seu inimigo, que é, também, nosso inimigo mortal!"

"Assim La Wiss continuou a falar, usando muitas palavras de sentido hermético de sua própria invenção, as quais ninguém nunca tinha antes ouvido.

"Após esta astuciosa trapaça, quando a lua tinha voltado ao seu prévio esplendor, La Wiss ergueu a voz mais alto do que antes e disse, impressionantemente: "Levantai-vos, agora, e olhai para a Deusa da Noite, que triunfou sobre o seu maldoso inimigo Ela está reencetando a sua jornada entre as estrelas. Saiba-se que, por vossas orações, vós a ajudastes a vencer o Demônio das Trevas. Ela está satisfeita agora e mais brilhante do que nunca."

"A multidão ergueu-se e contemplou a lua, que brilhava em toda a sua plenitude. Os receios da multidão tornaram-se em tranqüilidade, e a confusão reinante converteu-se em alegria. Começaram todos a dançar e cantar, batendo com seus grossos bastões em lâminas de ferro, enchendo os vales com seu clamor e euforia.

"Naquela noite o Chefe da Tribo chamou La Wiss e disse-lhe: "Você fez uma coisa que nenhum homem jamais fizera. Você demonstrou o conhecimento de um segredo escondido que ninguém entre nós conhece. Refletindo a vontade de meu povo, você será o membro mais alto de nossa hierarquia, depois de mim. Eu sou o mais forte; você será o mais sábio e o mais letrado. Você será o medianeiro entre o nosso povo e os deuses, cujos atos e desejos deverá interpretar, e você nos ensinará aquelas coisas necessárias a conquistar-lhes as bênçãos e o amor."

"E La Wiss astutamente assegurou: "Tudo o que o Deus Humano me revelar, em meus sonhos divinos, trarei a vós, quando acordar, e podeis confiar em que agirei diretamente entre vós e Ele.

"O Chefe confiou em La Wiss e deu-lhe dois cavalos, sete vitelas, setenta ovelhas e setenta carneiros; e dirigiu-se a ele, dizendo-lhe: "Os homens da tribo construirão para você uma boa casa e dar-lhe-ão, ao fim de cada estação, uma parte da colheita, de modo que você poderá viver como um Senhor honrado e respeitado".

"La Wiss levantou-se para sair, mas o Chefe o interrompeu, dizendo: "Quem é aquele que você chama de "Deus Humano"? Quem é este Deus corajoso que luta com a gloriosa Deusa da Noite? Nunca tomamos conhecimento dele antes."

"La Wiss esfregou a testa e respondeu, dizendo:

"Meu honrado Senhor, antigamente, antes da criação do homem, todos os deuses viviam pacificamente, num mundo superior, além da vastidão das estrelas. O Deus dos deuses era o pai deles, sabia o que eles não sabiam e fazia o que eles eram incapazes de fazer. Ele conservava só para Si os segredos divinos que existiam além das leis eternas. Durante a sétima época da décima segunda idade, o espírito de Bahtaar, que odiava o grande Deus, revoltou-se. Ergueu-se diante de seu pai e disse: "Por que guardais só para vós mesmo o poder de grande autoridade sobre as criaturas, escondendo de nós os segredos e as leis do Universo? Não somos nós vossos filhos que acreditam em vós e participam convosco do grande entendimento e do ser perpétuo?

"O Deus dos deuses ficou enraivecido e disse: "Eu preservarei para num o poder primário, a grande autoridade e os segredos essenciais, porque eu sou o começo e o fim."

"Bahtaar respondeu: "A não ser que eu participe convosco de vosso poder e força, eu e meus filhos e os filhos de meus filhos nos revoltaremos contra vós."

"Neste instante o Deus dos deuses ergueu-se de seu trono dos céus profundos e desembainhou a espada, tomando o sol como um escudo; e com voz tonitruante, que sacudiu os recônditos da eternidade, exclamou, dizendo: "Descei, vós, rebelde, maldito, para o horroroso mundo inferior, onde existem as trevas e a miséria! Lá permanecereis exilado, vagando, até que o sol se torne em cinzas, e as estrelas era partículas dispersas!"

"Naquela hora, Bahtaar desceu do mundo superior para o mundo inferior, onde habitam todos os espíritos maus. Pelo que ele jurou, pelo segredo da Vida, que lutaria contra o seu Pai e seus irmãos, enganando toda alma que o amasse.

"Ouvindo isto, o Chefe franziu a testa e empalideceu. E perguntou: "Então o nome do Deus do Mal é Bahtaar?" "Seu nome era Bahtaar", disse La Wiss, "quando ele estava no mundo superior; mas, quando desceu para o mundo inferior, adotou, sucessivamente, os nomes de Belzebu, Satanásás, Balial, Zamil, Arimã, Mara, Abdon, Demônio e, finalmente, Satanás, que é o mais famoso."

"O chefe repetiu a palavra "Satanás" muitas vezes, com uma voz entrecortada que soava como o farfalhar de galhos secos ao perpassar do vento. E disse então: "Por que Satanás odeia os homens tanto quanto odeia os deuses?"

E La Wiss respondeu prontamente: "Ele odeia o homem porque o homem é descendente dos seus irmãos e irmãs". O Chefe exclamou: "Então Satanás é parente do homem!"

"Numa voz que era um misto de aborrecimento e confusão, ele replicou: "Sim, Senhor, mas ele é o grande inimigo que lhe enche os dias de miséria e as noites de sonhos horrorosos. Ele é o poder que dirige as tempestades para os seus telhados, traz fome às suas terras e doenças para as suas famílias e animais. Ele é um deus mau e poderoso. Ele é malvado e se regozija quando estamos tristes e chora quando estamos alegres. Precisamos, por meio de meus conhecimentos, examiná-lo detidamente, a fim de evitarmos os seus danos. Precisamos estudar o seu caráter, de modo a não trilharmos pelo seu caminho cheio de armadilhas."

"O Chefe descansou a cabeça no seu grosso cajado e suspirou, dizendo: "Aprendi agora o segredo íntimo daquele poder estranho que dirige as tempestades para as nossas casas e traz a pestilência sobre nós e o nosso gado. O povo aprenderá tudo o que aprendi agora e La Wiss será abençoado, honrado e glorificado por lhe revelar o mistério de seu poderoso inimigo e resguardá-lo do caminho do mal."

"La Wiss deixou o Chefe da Tribo e foi para o seu retiro, feliz pela sua astúcia e intoxicado do vinho de seu prazer e de sua fantasia. Pela primeira vez o Chefe e todos os da sua tribo passaram a noite rolando em suas camas, rodeados de fantasmas horrorosos, espectros temíveis e sonhos perturbadores.

Satanás cessou de falar por um momento, enquanto o Padre Samaan olhava para ele inteiramente confuso; e nos lábios do Padre brotou o sorriso doentio da Morte. Então Satã continuou: "Foi assim que a adivinhação apareceu nesta terra e foi assim a minha existência a causa de seu aparecimento. La Wiss foi o primeiro que adotou a minha crueldade como motivo para a sua vocação.

"Depois da morte de La Wiss esta ocupação espalhou-se por meio de seus filhos e aperfeiçoou-se até que se tomou uma profissão perfeita e divina exercida por aqueles cujas mentes se impregnem de sabedoria, cujas almas sejam nobres, cujos corações sejam puros e cuja imaginação seja fértil.

"Na Babilónia o povo curvava-se sete vezes em adoração frente ao sacerdote que me combatesse com os seus cânticos. Em Nínive, considerava-se o homem que pretendesse conhecer os meus mais íntimos segredos um elo de ouro entre Deus e o homem. No Tibete chamavam a pessoa que lutasse comigo "filho do sol e da lua". Em Biblo, Êfeso e Antioquia ofereciam-se vidas de crianças como sacrifício aos meus adversários. Em Jerusalém e em Roma havia os que colocavam as suas vidas nas mãos daqueles que se diziam meus inimigos e lutavam contra mim com todas as suas forças.

"Em toda cidade debaixo do sol meu nome era a mola dos sistemas de educação religiosa, artística e filosófica.

"Se não fosse eu, não se teriam construído templos nem se teriam erguido torres e palácios. Eu sou a coragem que dá resolução ao homem. Eu sou a fonte que provoca originalidade de pensamento. Eu sou a mão que move a mão dos homens. Eu sou Satanás... eterno. Eu sou Satanás que os homens combatem para que possam viver. Se eles cessarem de lutar contra mim, a preguiça amortecer-lhes-á as mentes, os corações e as almas, de acordo com misteriosas penalidades de seus incríveis mitos.

"Eu sou a tempestade muda e raivosa que agita as mentes dos homens e os corações das mulheres. Com medo de mim visitarão lugares santos, para condenar-me, ou lugares de pecado, para me agradarem, entregando-se à minha vontade. O monge que ora no silêncio da noite, para afugentar-me da sua cama, é semelhante à prostituta que me convida para a sua alcova. Eu sou Satanás, sem fim, eterno.

"Eu sou o construtor de conventos e mosteiros, em função do medo. Construo tavernas e casas de perdição em função do vício, do prazer barato. Se eu cessar de existir, o medo e o prazer serão abolidos do mundo e, pelo seu desaparecimento, os desejos e as esperanças cessarão também de existir no coração humano. A vida tomar-se-á vazia e fria, harpa de cordas partidas. Eu sou Satanás - eterno.

"Eu sou a inspiração da Falsidade, da Injúria, da Traição, do Engano, do Deboche, e se estes elementos fossem removidos deste mundo a sociedade humana tornar-se-ia um campo deserto em que nada medraria, senão espinhos de virtude. Eu sou Satanás eterno.
"Sou o pai e a mãe do pecado, e se o pecado desaparecesse os inimigos do pecado desapareceriam com ele, com as suas famílias e suas organizações.

"Sou o coração de todo mal. Desejaria o senhor a cessação do movimento humano pela cessação das minhas pulsações? Aceitaria o senhor o efeito, depois de destruída a causa? Eu sou a causa! Consentiria que eu morresse nesta solidão deserta? Desejaria romper os laços que existem entre o senhor e mim? Responda-me, Clérigo!"

Satã estendeu os braços, dobrou a cabeça para a frente e suspirou profundamente. A face tomou-se-lhe de um cinzento-azulado, e ele pareceu uma daquelas estátuas egípcias abandonadas pelos séculos às margens do Nilo.

Então fitou os olhos brilhantes no rosto do Padre Samaan e disse, balbuciante: "Estou cansado e fraco. Errei, usando as minhas forças esvaecentes para falar de coisas que o senhor já sabia. Agora faça o que lhe aprouver. O senhor pode levar-me para a sua casa e tratar-me as feridas, ou deixar-me morrer neste lugar."

O Padre Samaan estremeceu-se todo e esfregou nervosamente as mãos, e com ares de desculpas na voz, disse: "Sei agora o que não sabia há uma hora. Perdoai-me a ignorância. Sei que a vossa presença neste mundo provoca a tentação e que a tentação
é a medida com que Deus julga o valor da alma humana. É uma balança que Deus Todo-poderoso usa para pesar os espíritos. Estou certo de que, se morrerdes, a tentação morrerá e, com o seu desaparecimento, a morte destruirá o idealismo, que eleva e alerta o homem.

"Vós precisais viver, pois, se morrerdes, e os homens o souberem, seu medo do inferno desaparecerá, e eles deixarão de orar, pois nada seria pecado. Precisais viver, pois em vossa vida está a salvação da humanidade, do vício e do pecado.

"Quanto a mim, sacrificarei o meu ódio a vós no altar do meu amor ao homem."

Satanás deu uma gargalhada que sacudiu violentamente o chão e disse: "Como o senhor é um homem inteligente. Padre! E que conhecimentos admiráveis o senhor possui de fatos teológicos! O senhor encontrou, pelo poder de sua inteligência, uma finalidade para a minha existência que eu mesmo não tinha percebido antes, e agora compreendemos a nossa necessidade mútua.

"Aproxime-se de mim, meu irmão. As trevas estão cobrindo as campinas, e metade do meu sangue já se derramou nas areias deste vale, e nada sobra de mim senão os restos de um corpo alquebrado que a Morte arrematará, a não ser que o senhor me ajude."
O Padre Samaan dobrou as mangas de sua túnica, aproximou-se, pôs Satanás nas costas e caminhou para casa.

No seio daqueles vales, engolfados de silêncio e embelezados com o véu da escuridão, o Padre Samaan caminhou para a aldeia, as costas dobradas ao peso de sua carga. Sua batina preta e as longas barbas ficaram salpicadas de sangue que escorria sobre ele, mas caminhava afoito, lábios balbuciantes em fervente prece pela vida de Satanás agonizante...



Satanás, na visão cristã



Tema Correlato
Xô Satanás