Pena de
morte para virgens defloradas, palmadas para as crianças, regras para a
poligamia... e uma política radical de juros. Conheça as leis mais curiosas da
Bíblia. Tópico por tópico. Ao pé da letra.
POR Alexandre
Versignassi, Tiago Cordeiro
A
Bíblia não é apenas a Bíblia. Ela também funciona como uma espécie de
Constituição. Natural: o Livro Sagrado não é exatamente um livro, mas uma
coleção de 66 livros. Alguns são basicamente de histórias, caso do Gênesis, que
narra o início dos tempos e as origens do povo de Israel. Outros não. Eram
obras que, antes de entrarem para a Bíblia, tinham vida própria na forma de
códigos de conduta. Ou seja: eram versões antigas, escritas entre o século 10
a.C. e 5 a.C., daquilo que hoje conhecemos como "código civil" e
"código penal".
Esses códigos, essas leis, estão principalmente nos livros Deuteronômio e
Levítico. Mas aparecem por praticamente toda a Bíblia, inclusive no Novo
Testamento, escrito a partir do século 1 e que revisa boa parte dessas leis.
Por essas, muitos preceitos bíblicos são contraditórios ou sujeitos a mais de
uma interpretação. "No contexto em que foram escritos, porém, eles
ajudaram a formar um povo com uma identidade tão forte que sobreviveria a
séculos de diáspora e uma religião que dominaria o mundo ocidental", diz o
historiador Marc Zvi Brettler, professor de estudos judaicos da Universidade
Brandeis, nos EUA. Nas próximas páginas, vamos fazer uma viagem pelas leis
daquele tempo e daquele espaço. É a Bíblia. Mas como você nunca leu.
MARIDOS & ESPOSAS
Poucas coisas mudaram tanto nos últimos 3 mil anos como a instituição do casamento. Então esse é o nosso primeiro tópico. Para começar, o Velho Testamento deixa claro que as mulheres deveriam ser funcionárias de seus maridos. Funcionárias mesmo: não só com deveres, mas com direitos também. Se uma esposa fosse "demitida" pelo parceiro, por exemplo, podia ganhar uma carta de recomendação, que a moça podia usar como trunfo na hora de tentar uma vaga de mulher de outro sujeito.
Não é exagero falar em "vaga": um homem podia ter tantas esposas quanto quisesse (ou melhor: quanto pudesse adquirir e sustentar). A poligamia era a regra. Tanto que o primeiro caso aparece logo no capítulo 4 do primeiro livro da Bíblia: "E tomou Lameque para si duas mulheres" (Gênesis).
A situação era tão comum que vários dos personagens mais importantes do Antigo Testamento viviam com mais de uma esposa sob o mesmo teto. Abraão acolhe uma segunda mulher a pedido de Sara, sua número 1, que não conseguia ter filhos. Depois a própria Sara dá à luz Isaac, enquanto a escrava Hagar tem Ismael. Nota: a tradição considera o primeiro como pai de todos os judeus e o segundo, patriarca dos povos árabes.
O caso de Jacó, filho de Isaac e também patriarca de todos os judeus, é o mais conhecido: ele casa com as irmãs Lea e Raquel, filhas de Labão. E compra o dote delas trabalhando no pastoreio do sogro por 14 anos - 7 anos de labuta por cada esposa.
Mas nunca na história do Livro Sagrado houve maior predador matrimonial que Salomão, o rei: foram 700 esposas. Setecentas de papel passado, já que o sábio soberano ainda mantinha 300 concubinas. E tudo isso sem pílula nem camisinha... Por isso mesmo o Deuterônimo traz regras para a distribuição de bens entre filhos de diferentes mulheres - os rebentos de mães com mais milhagem em anos de casamento ganham mais. E os primogênitos também. Mas por quê, afinal, a poligamia era a regra lá atrás? "Provavelmente porque havia mais mulheres do que homens entre os judeus, que com frequência estavam envolvidos em guerras violentas. A poligamia, então, era uma forma de garantir a manutenção da população", diz o historiador Richard Friedman, professor de estudos judaicos da Universidade da Geórgia. "Além disso, uma mulher solteira tinha pouquíssimas alternativas para sobreviver, a não ser se prostituir. Quando um único homem é provedor de várias mulheres, essa questão acaba minimizada."
O Novo Testamento não cita tantos exemplos de poligamia, mas sugere que ela ainda era comum no século 1. Jesus não toca no assunto, mas, em duas cartas, são Paulo recomenda que os líderes da nova comunidade cristã tenham apenas uma esposa porque "assim eles teriam mais tempo para dedicar aos fiéis". "O cristianismo só refuta a poligamia quando se aproxima do poder em Roma, que proibia a poligamia", afirma Brettler. Como escreve santo Agostinho no século 5, "em nosso tempo, e de acordo com o costume romano, não é mais permitido tomar outra esposa".
Escravas também tinham direitos: se um homem casava com uma de suas servas, só poderia se divorciar se vendesse a mulher para outro senhor. Bom para a mulher, já que evita a situação constrangedora de trabalhar para o ex - e de graça... Menos "feminista" é outra lei bíblica: quando um homem morre e deixa uma viúva, seu irmão deve casar com ela, para garantir que o patrimônio da família não se perca. O adultério, adivinhe, é crime - pudera: no Brasil mesmo era crime até 2005 (detenção de 15 dias a 6 meses, segundo o artigo 240 do Código Penal). A diferença é que lá a pena era de morte mesmo - para ambos os envolvidos na relação sexual fora da lei.
Mais brando é são Paulo, que dá orientações para o dia a dia do casal. Ele até diz que os homens são a cabeça da relação, mas pede que os maridos respeitem as esposas. Um grande salto para nas regras de matrimônio da Antiguidade.
SEXO
Além de polígamo, qualquer homem podia ter amantes, contanto que oficiais. Eram as concubinas. Jacó trabalhou 14 anos pela posse de suas duas mulheres - mas ganhou duas concubinas de bônus pelos bons serviços prestados. Uma série de regras estabelece como deve ser a vida sexual também: toda mulher tem de se casar virgem, ou então poderá ser dispensada pelo marido - por outro lado, se o marido acusar falsamente a esposa de não ter casado casta, deve permanecer com ela até o fim da vida. Para comprovar sua pureza, a acusada devia apresentar testemunhas dispostas a defender a limpidez do passado dela. As leis sexuais, enfim, eram bem abrangentes: "Quem tiver relações com um animal deve ser morto", diz o Êxodo. E masturbação também não pode. Como diz o sutil são Paulo: "A mulher não pode dispor de seu corpo: ele pertence ao marido. E o marido não pode dispor do seu corpo: ele pertence à esposa". "O sexo na Bíblia é cheio de contradições", diz o arqueólogo Michael Coogan, autor de God and Sex (Deus e o Sexo). "É de se desconfiar que fossem realmente levados a sério naquela época."
BÍBLIA S/A - NEGÓCIOS E FINANÇAS
A ética comercial do Livro Sagrado tem regras simples: não roubar
nem trapacear no peso ou fazer nada que prejudique a outra parte. A cobrança de
juros também é proibida. As ordens se repetem ao longo da Bíblia, sempre em tom
firme: "Não tomarás dele juros nem ganho" (Levítico), "Não
emprestando com usura, e não recebendo mais do que emprestou" (Ezequiel).
E isso numa época em que a grande moeda corrente eram sacos de grãos. O fato é
que a restrição à cobrança de juros é mais antiga do que a Bíblia. As leis da
Babilônia, codificadas mil anos antes, já impunham tetos na cobrança de juros,
provavelmente para evitar que os mais espertos enriquecessem à custa de
empobrecer o resto da sociedade. Jesus, inclusive, radicaliza. Não só condena
os juros como também a cobrança do principal (a quantia emprestada
inicialmente): "E se emprestardes àqueles de quem esperais receber, que
mérito há nisso?" (Lucas). Cristo, aliás, dá muita atenção à cobiça.
"Não podeis servir a Deus e às riquezas" (Mateus, 6:24), diz. E pede
que seus seguidores façam como os lírios-do-campo, que recebem proteção e
alimento da divindade sem precisar trabalhar. Também diz, para desespero de um
fiel cheio de posses, um de seus maiores hits verbais: "É mais fácil um
camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos
Céus". Mas existe uma exceção na política bíblica de juros: nos casos em
que o empréstimo é concedido a um não-judeu ("um estranho", nas
palavras do Deuterônimo), é permitido praticar a usura. Até por isso os judeus
se tornaram os grandes banqueiros da Idade Média. Os cristãos também
respeitavam a Bíblia, e não emprestavam a juros entre si (para eles, os
"estranhos" eram os judeus). Mas num mundo sem juros o estímulo para
conceder empréstimos é nulo. Então a maioria cristã pedia empréstimos para quem
os concedia, a juros - as minorias judaicas. O fato de os judeus não terem
direito à posse de terras também ajudava - emprestar a juros era uma das poucas
formas de renda possíveis para quem não tinha como plantar para acumular
excedentes.
Se o Livro Sagrado proíbe a cobrança de juros, mas só entre judeus, o mesmo vale para a escravidão. Você pode ter escravos, contanto que "sejam das nações que estão ao redor de vós; deles comprareis escravos e escravas", diz o Levítico. Mas havia uma exceção: era possível a um judeu endividado vender a si mesmo para o credor.
"A escravidão era comum entre todos os povos daquela área, mas os servos eram relativamente bem tratados, sem violência desnecessária. Os próprios israelitas seriam respeitados quando foram forçados ao exílio na Babilônia", afirma a historiadora Catherine Hezser, professora de história das religiões da Universidade de Londres e autora de Jewish Slavery in Antiquity (Escravidão Judaica na Antiguidade).
Por isso mesmo, os israelitas são orientados a conceder uma série de direitos a seus escravos, que servem por 6 anos, e no sétimo são libertados. Se ele for escravizado com a esposa, os dois são libertados juntos. Até para punir os indisciplinados existem regras - se o dono arrancasse um olho do servo, seria obrigado a libertá-lo (Êxodo). Ou seja: a Bíblia também servia como uma espécie de CLT para escravos
Mas a parte mais humanista nas relações de trabalho previstas na Bíblia é uma regra para os fazendeiros: sempre deixar sem colher as plantações das bordas do terreno. Para quê? Para que as pessoas mais pobres, sem-terra, possam aproveitar essa parte.