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domingo, 25 de outubro de 2015

A INQUISIÇÃO

O sexo era pecado, mesmo no seio do matrimônio, mas o cristão casado que fizesse voto de castidade poderia ser suspeito de heresia.



Entre os séculos XI e XII, as penas de morte para os hereges não eram mais um fato inédito, mas a maioria do corpo eclesiástico ainda relutava em aceitar a situação. Pier Damiani (1007-1072) afirmou orgulhosamente que os santos estão dispostos a sacrificar a própria vida pela fé, mas não matam hereges.

Em 1144, Wazo, bispo de Liège, salvou a vida de alguns cátaros que a multidão queria jogar na fogueira.1 O arcebispo de Milão também protestou contra a multidão que havia linchado alguns hereges. Bernardo de Chiaravalle, que contribuiu para prender vários hereges, declarou, no entanto, que estes deveriam ser conquistados com a razão, e não com a força. Em 1162, o papa Alexandre III (1159-1181), julgando o caso de alguns cátaros, declarou que "era melhor perdoar o culpado do que tirar a vida de um inocente". Em 1165, em Narbonne, um debate público pacífico explicou a diferença entre católicos e cátaros.2 Em suma, na Igreja, observavam-se várias tendências sobre como lidar com os hereges.

Na verdade, foi o próprio "clemente" Alexandre III que deu um passo muito importante para o nascimento da futura Inquisição. Usando as deliberações do Terceiro Concilio de Latrão, ele daria aos bispos ordens expressas para investigar sobre os hereges, mesmo com base em meras suspeitas. Ao poder leigo foi reservado o papel de subordinado do braço executivo da instituição eclesiástica.3 Inocêncio III (1198-1216), com os decretos Licetheli, de 1199, e Qualiter et quando, de 1206, estabeleceu que a acusação de heresia podia ser formalizada mesmo com base em "fama pública", ou seja, nos boatos que corriam sobre dada pessoa.4

Em 1229, um concilio reunido em Toulouse, em uma região que retomara a "verdadeira fé" com as armas e o extermínio, criou oficialmente o Tribunal da Santa Inquisição. Mais tarde, o papa Gregório IX (1227-1241) tirou dos bispos o controle dos processos contra os hereges e os confiou a comissários especiais escolhidos entre dominicanos e franciscanos.5 Justamente os membros das ordens mendicantes, que haviam sido acusadas de heresia, tornaram-se os mais ferrenhos perseguidores de quem professava ideias não ortodoxas. Muitos conventos franciscanos foram dotados de prisões para os hereges, mas também para os frades culpados de rebeliões.

A partir desse movimento, a Inquisição adquiriu uma estrutura autônoma, tornando-se uma verdadeira polícia da Igreja, com tarefas de investigação e repressão. Os inquisidores tinham plenos poderes, inclusive o de depor e mandar prender eclesiásticos que defendessem hereges.

O quadro foi completado por Inocêncio IV (1243-1254), que deliberou o recurso à tortura para "promover a obra de fé de maneira mais verdadeira".6 Esta deveria ser realizada por autoridade secular, mas depois, por questões práticas, os inquisidores e seus assistentes também receberam permissão para "sujar as mãos", com a possibilidade de darem a absolvição uns aos outros.7

Além da política de repressão, a Inquisição usou também a de "colaboração". Ainda Inocêncio IV, em 1426, autorizou que fosse reduzido o período de noviciado para os cátaros convertidos que quisessem entrar para a ordem dos dominicanos e se tornar inquisidores. Bonifácio VIII (1294-1303) permitiu "que no processo inquisitório contra a maldade herética se agisse de maneira simples e extrajudicial, longe da confusão dos advogados e do procedimento judiciário".8

Os territórios da cristandade foram divididos em distritos, correspondentes às Províncias das Ordens Mendicantes. Para cada distrito, era designado um inquisidor junto com um séquito de policiais, espiões e torturadores. Os tribunais da Inquisição eram itinerantes. O terreno era preparado por um pregador, que percorria as várias cidades e povoados alguns dias antes do inquisidor e concedia indulgências a todos que abjurassem a eventuais convicções heréticas e dessem o nome de outros pecadores.9 Contemporaneamente, o poder temporal também contribuiu para a luta contra as heresias. Além disso, um Estado cristão que tolerasse a heresia poderia receber excomunhão, interditos, além de correr o risco de ser alvo de uma Cruzada. Frederico Barba-Ruiva, em 1184, declarou os hereges ilegais. Em 1197, Pedro de Aragão os condenou à fogueira.

Como já lembramos, o Tratado de Meaux, de 1229, que sucedeu a Cruzada anticátaros, equiparava o crime de heresia ao de lesa-majestade, delito punível com a pena de morte. O imperador Frederico II emanou, entre 1220 e 1239, uma série de editos cada vez mais cruéis, com os quais condenou os hereges ao confisco dos bens, ao exílio, à prisão perpétua e, finalmente, à fogueira.10

Na França, a condenação à fogueira, já aplicada de fato, tornou-se lei para todos os efeitos em 1270. Na Inglaterra, só foi aprovada em 1401, com o estatuto que tinha o estranho nome de Da haeretico comburendo.11

A aliança entre trono e altar para frear um fenômeno que ameaçava tanto a autoridade civil quanto a religiosa se tornou um dos traços constitutivos da Inquisição também nos anos seguintes à sua criação. Os tribunais da Inquisição emitiam suas condenações, mas era o "braço secular" que as executava.

Portanto, uma denúncia anônima ou a suspeita de heresia já eram suficientes para ser investigado; suspeita essa que podia ser "leve", "veemente" ou "violenta", de acordo com o juiz.12 Até mesmo a prática assídua demais da oração e do jejum podia levantar suspeitas.

Diante dos tribunais da Inquisição, um suspeito era considerado culpado, a menos que conseguisse provar a própria inocência. "Para a Igreja, ser investigado equivale a ser legitimamente suspeito. O inquisidor poderá (ou melhor, deverá) investigar e julgar, partindo sempre da presunção de que o imputado — ou seja, o réu — [...] é culpado, e, consequentemente, deve confessar a própria culpa, o que significa que o inquisidor não deverá julgar com base no fato ou fatos provados, mas na suspeita; não no que retém dos atos, mas no que suspeita ser." (Mereu, 1200, p. 187.) Esse procedimento se contrastava bastante com o direito romano e com o germânico, de origem bárbara, ambos de tipo acusatório (ou seja, o acusador deve fornecer as provas do que afirma, e não o contrário) e baseados na presunção de inocência.

As provas e os depoimentos eram colhidos secretamente, sem o conhecimento do imputado. A construção da acusação não era nada sutil: podiam ser colhidos depoimentos de mulheres, crianças, hereges, excomungados, "arrependidos", inimigos pessoais, mentirosos declarados e criminosos. Os patrões podiam testemunhar contra os empregados, e os empregados contra os patrões. Naturalmente, também eram válidas as declarações conseguidas por meio de tortura.

O suspeito de heresia era convocado pelos inquisidores sem saber as motivações, e quando se apresentava, antes de tudo, era-lhe perguntado se tinha ideia da razão por que fora chamado. Então, as acusações eram lidas de forma sumária. O réu não tinha direito de saber quem o acusava nem de confrontar os acusadores ou ler todos os atos que lhe diziam respeito. Eventuais testemunhas de defesa corriam o risco de, por sua vez, serem acusadas de cumplicidade. Aqueles que colaboravam com os inquisidores, ajudando-os a pegar um suspeito, por exemplo, obtinham, em compensação, as mesmas indulgências que os peregrinos que iam à Terra Santa.

Os processos da Inquisição não acabavam nunca com a total absolvição. Mesmo quando não era condenado, o imputado devia abjurar a heresia da qual era acusado. Em todos os casos, a instrução contra ele podia ser aberta a qualquer momento. O mero fato de ser suspeito de heresia o transformava automaticamente em reincidente em caso de novo processo.

O Manual do inquisidor, de Eymerich, descreve uma série de "malícias" dos acusados nos processos: dar respostas elusivas, dizer que não sabe ou fingir-se de louco. Como diferenciar alguém verdadeiramente louco de quem finge sê-lo? Eymerich não tem dúvidas: "Para ter certeza, será preciso torturar o louco, seja ele falso ou real. Se não for louco, dificilmente continuará sua farsa se tomado de dor."13 Por lei, a tortura só podia ser infligida uma vez, mas na verdade era repetida enquanto o inquisidor achasse necessário, com a desculpa de se tratar de uma única sessão com vários "intervalos".

Se a instrução, a tortura e os debates aconteciam em segredo, a sentença e a subsequente execução mereciam o máximo de publicidade. Como explica um eclesiástico do século XVI: "É preciso lembrar que o principal escopo do processo e da condenação à morte não é salvar a alma do réu, mas buscar o bem público e aterrorizar o povo... Não resta dúvida de que instruir e aterrorizar o povo com o proferimento das sentenças... seja uma boa ação."14

"As sentenças [...] eram executadas aos domingos, durante a grande missa na catedral, com a participação das autoridades civis. Os suspeitos confessavam seus erros e abjuravam publicamente antes de se submeter à penitência (nunca chamada de pena ou punição), que podia ir de tempo de reclusão à morte, passando pela flagelação ou a peregrinação sob coação.15 Aqueles que permanecessem obstinadamente fiéis a suas próprias posições ou que recaíssem na heresia eram conduzidos para fora da igreja e entregues aos magistrados com a recomendação de serem caridosos e não causarem derramamento de sangue. A suprema hipocrisia de tudo isso estava no fato de que, se o magistrado não mandasse as vítimas para a fogueira no dia seguinte, seria processado de co-autoria em heresia."16

Todavia, nem sempre as execuções públicas conseguiam concretizar sua intenção de intimidar o povo. Às vezes, obtinham até o efeito contrário. Em 1279, por exemplo, a multidão que assistia à execução da herege Olivia de Fridolfi, em Parma, ficou tão revoltada com a crueldade do espetáculo (parece que foi queimada "em fogo lento") que deu início a um tumulto. O convento dominicano vizinho, que também hospedava o Tribunal da Inquisição, foi invadido e saqueado. Os frades que lá se encontravam foram expulsos a pauladas.17

Nem os mortos escapavam da fogueira. Vários notáveis e eclesiásticos (mais adiante falaremos do caso de Wycliffe) foram declarados hereges após a morte, e seus corpos foram exumados e entregues às chamas. O primeiro ato da Inquisição espanhola medieval, por exemplo, foi a execução póstuma do conde Raymond de Forcalquier, em 1257. A prática da condenação póstuma não tinha apenas um valor simbólico: a excomunhão era retroativa e previa o confisco dos bens pertencentes aos condenados, prejudicando os herdeiros legítimos.

Em toda a história da Igreja, como já vimos, não faltaram contradições, crimes, perseguições e até guerras por motivos de fé. Mas, muitas vezes, eram decorrentes do fanatismo ou da ambição de soberanos ou pontífices, do clima histórico de outras épocas ou da histeria coletiva. Podia-se falar de "luzes e sombras" de um fenômeno complexo e articulado.

A organização da Inquisição determinou um verdadeiro salto de qualidade dentro dos aparatos burocráticos: a estrutura interna eclesiástica se moldou e adaptou para melhor realizar a obra dos que estavam encarregados de revelar e destruir os hereges. Os bispos foram superados em suas prerrogativas; a delação, a confissão extraída com tortura, o recurso a suplícios públicos e execuções capitais "para dar o exemplo" se tornaram práticas habituais e aceitas, se não abençoadas. E criticar ou obstar o trabalho dos inquisidores era considerado diabólico.

Mas, além disso, aos poucos caiu uma pesada capa sobre todas as práticas religiosas. Podia-se rezar em grupo, mas só nas formas e maneiras consentidas pela Igreja. Podia-se ler o Evangelho, mas só com uma autorização escrita. Podiam-se venerar os santos, mas apenas os "oficiais"; os mortos com "cheiro de santo", não reconhecidos pela Igreja, podiam ser exumados e queimados para evitar o nascimento de cultos populares incontroláveis.18

O sexo era pecado, mesmo no seio do matrimônio, mas o cristão casado que fizesse voto de castidade poderia ser suspeito de heresia. Em suma, tudo que não era proibido era obrigatório. Ou melhor, às vezes o proibido e o obrigatório coincidiam.

A Inquisição medieval chegou ao ápice de sua atividade na metade do século XIV, para chegar a uma lenta decadência nos 150 anos sucessivos, em especial na Itália.19 Os motivos do declínio residiam paradoxalmente no sucesso de sua obra, mas também na vulnerabilidade das nascentes monarquias nacionais a qualquer forma de interferência externa.

A história que causou o cisma de Lutero, por exemplo, é tratada por canais diferentes dos inquisitoriais. Só depois da difusão da Reforma em toda a Europa, a Cúria romana relançou a Inquisição, com a intenção de impedir a difusão das ideias protestantes em todos os territórios que ainda permaneciam sob o controle da Santa Sé.


A Inquisição espanhola

A Inquisição espanhola foi retomada por volta de 1482, por iniciativa do rei Ferdinando. Sua principal característica era a criação de um organismo central chamado "Conselho da Suprema e Geral Inquisição", que tinha a tarefa de organizar e coordenar os vários tribunais distritais, rever os processos presididos pelas cortes locais, julgar pessoalmente os casos mais graves e investigar os próprios inquisidores.

Os membros da "Suprema" eram nomeados formalmente pelo papa, mas quem os escolhia e dirigia era o rei da Espanha. O próprio nome de "Conselho", dado ao novo organismo, já o caracteriza: na época, os conselhos eram órgãos do governo que equivaliam aos nossos ministérios (existia um Conselho de Estado, um da Economia etc.). O primeiro presidente da "Suprema", Diego Espinoza, também era presidente do Conselho de Castela.20 E ainda mais políticas do que religiosas eram as finalidades da nova Inquisição: "O motivo (aparente) de defesa da fé nos reinos espanhóis do século XVI estava perfeitamente conectado à questão (real e verdadeira) da reconstrução da unidade política e social do território, dividido em dois reinos (Castela e Aragão), perturbado pela presença invasora muçulmana (que irá se encerrar com a retomada de Granada), transtornado com as guerras civis financiadas pelos nobres e falido, por causa de tudo isso, sob o ponto de vista econômico."21 A contaminação mútua entre Igreja e Estado e o uso da religião como instrumentum regni se tornaram cada vez mais evidentes.

O mais famoso inquisidor espanhol foi, sem dúvida, o dominicano Tomás de Torquemada (1420-1498), filho de judeus convertidos, homem de vida exemplar e irrepreensível cujo nome parecia já assinalar um destino (em espanhol, torque significa "enforcado", e quemada, "queimada"). O rei Ferdinando queria a Inquisição, mas foi Torquemada que a organizou materialmente, instituindo um a um os tribunais das várias províncias do reino e redigindo um verdadeiro código para disciplinas à ação.

O dominicano, no entanto, encontrou oposições violentas à sua obra. Muitas vezes, nas cidades por que passava, autoridades e cidadãos se recusavam a acolhê-lo, e a população o insultava durante seus sermões públicos. Foi, por exemplo, expulso pela população de Barcelona e rejeitado das Cortes (conselhos municipais) de Valência e Aragão.

Apesar desses incidentes de percurso, Torquemada mandou mais de dez mil hereges à fogueira, a Inquisição se ramificou por toda a Espanha e as "cortes" de itinerantes se tornaram estáveis: tribunais em todos os sentidos.

Como já foi dito, ninguém estava a salvo das investigações da Inquisição. Com certeza não os nobres, para os quais estavam previstas punições específicas, como a proibição de se vestir com elegância, andar a cavalo e portar armas. Nem os próprios inquisidores, contra os quais até pessoas por eles mesmos condenadas podiam testemunhar. Qualquer um poderia utilizar a estrutura da Inquisição para atingir eventuais rivais, mas também podia ser vítima, em uma espécie de vingança sem fim. O inquisidor de Córdoba, Luis de Capones, por exemplo, viu-se acusado de 106 delitos. Essa situação criou um clima de medo e suspeitas gerais, em que um desconfiava do outro, dando vantagem ao poder do rei, único árbitro de qualquer processo.

Ao contrário do que se poderia pensar, a Inquisição espanhola tratou muito pouco das ditas "bruxas". O episódio mais significativo de perseguição antifeminista dizia respeito às "ilusas", clarividentes itinerantes que "se faziam passar por santas" e que eram punidas com o açoite nas cidades em que pregavam.

Os processos por bruxaria muitas vezes se concluíam com o que hoje chamamos de declaração de doença mental. Talvez tanta "benevolência" escondesse uma subestimação da mulher, tão desprezada pela sociedade espanhola da época que não era considerada um perigo real. "Assim, o Santo Ofício espanhol fez da bruxa uma variedade de 'ilusa', não mais temida e poderosa, mas louca e burra [...] e contribui habilmente para fazer que as mulheres sofram de afasia histórica." (Benassar, 2005, p. 209.) Ou talvez existissem na sociedade espanhola da época outras categorias de pessoas que já desempenhavam muito bem o papel de bode expiatório no lugar das bruxas, como judeus convertidos e mouriscos, os muçulmanos convertidos.


Os judeus convertidos e os mouriscos

Grande parte do território espanhol fora ocupada por muito tempo pelos emirados muçulmanos, e apenas em 1492 o domínio cristão se estendeu por toda a Península Ibérica. Dentro dos limites dos reinos cristãos, havia não só uma quantidade significativa de muçulmanos, mas também uma grande comunidade judaica, muito florescente do ponto de vista econômico e cultural. Na verdade, os regimes islâmicos da época tinham por hábito dar aos judeus condições melhores do que as dos cristãos. O sucesso econômico, o espírito empreendedor e o prestígio de muitos expoentes da comunidade judaica (que se tornaram conselheiros tanto nas cortes cristãs quanto nas muçulmanas) acabaram atraindo contra eles o ódio da povo e a inveja da nobreza.22

Por volta do final de século XIV, a hostilidade popular contra os judeus (chamados pejorativamente de "marranos", "porcos") se manifestou através de verdadeiros pogrom (massacres indiscriminados). Muitos se salvaram fugindo, outros se convertendo e praticando sua verdadeira religião às escondidas. Os que ousavam fazê-lo viviam em um estado de ameaça constante, assim como os cristãos, que rejeitavam publicamente a própria religião, mas continuavam a celebrar seus ritos em segredo: eram acusados de crime de apostasia e muitas vezes eram punidos com a morte.

Em 1391, em Sevilha, quatro mil judeus foram mortos em uma única noite. Em 1412, houve vários casos de expulsão, alguns executados por "convertidos" condenados pelo pontífice Nicolau V. Em 1477, dois judeus convertidos foram queimados na fogueira em Llerena. Uma investigação conduzida à época por um dominicano apurou que quase todos os judeus continuavam praticando sua religião escondidos. Essa descoberta foi o pretexto para novas perseguições anti-semitas e para a volta da Inquisição a Castela.

Em 1481, foi celebrado o primeiro auto-de-fé, no qual morreram seis conhecidos convertidos. O auto-de-fé era uma condenação à fogueira executada em público e o rito jurídico mais impressionante e solene usado pela Inquisição espanhola. O condenado era arrastado por entre a multidão com os cabelos raspados e vestido com sacos, era feita uma oração por ele e a sentença era cumprida. As imagens nas vestes espelhavam a pena: uma cruz de Santo André, se o réu houvesse se arrependido a tempo de evitar o suplício; meia cruz, se também tivesse recebido uma multa; chamas se, arrependido in extremis, devesse ser estrangulado e depois queimado; e diabos e dragões entre chamas se não tivesse renegado a própria posição. Quem confessava recebia penas inferiores, como peregrinações, penas pecuniárias, açoite em público ou a obrigação de costurar cruzes em suas roupas. Os falsos acusadores eram obrigados a costurar nas roupas duas línguas em tecido vermelho.

Em 1482, Xisto IV posicionou-se contra alguns excessos da Inquisição espanhola, mas seus protestos permaneceram como palavras ao vento. Os dominicanos haviam se tornado conselheiros da corte, conquistando um papel muito parecido com o desempenhado pelos judeus em seu tempo. Em 1485, alguns judeus convertidos assassinaram o inquisidor Pedro Arbués, o que causou um recrudescimento da repressão. Em Saragoza, no período entre 1486 e 1490, 307 pessoas morreram na fogueira. Em Maiorca, nos anos entre 1488 e 1499, foram executadas 129 sentenças de morte. Em Barcelona, em 1491, foram cominadas 129 sentenças, das quais 126 em contumácia.

Em 31 de dezembro de 1492, um edito real submeteu os judeus a uma escolha drástica: o exílio ou a conversão. O provimento atingiu também um dos patrocinadores da expedição de Cristóvão Colombo.

Tratamento similar foi reservado aos mouriscos, os muçulmanos convertidos. Em 1492, um tratado firmado entre o reino cristão e o último soberano muçulmano de Granada previa, em troca de sua retirada, a garantia de liberdade de culto para os islâmicos. Dez anos depois, no entanto, a rainha Isabel de Castela submeteu os muçulmanos ao mesmo dilema dos judeus: ou se converte ou vai embora. Naturalmente, muitos árabes resolveram se converter e sempre foram suspeitos de falsa conversão.

Em Granada, entre 1550 e 1580,780 mouriscos foram condenados a várias penas. Em Hornachos (povoado de sete mil habitantes), no biênio 1590-1592, foram julgados 133 processos. Em geral, os muçulmanos convertidos foram condenados a penas relativamente mais leves do que os judeus. Eram na maioria confiscos, multas ou decretos de expulsão. No geral, foi uma guerra étnica ferrenha que expropriou bens de árabes e judeus abastados.


A Inquisição romana

Em 1542, o papa Paulo III (1534-1549), com a demonstração de eficácia da Inquisição espanhola, decidiu imitá-la para impedir a difusão das doutrinas protestantes.

Foram instituídos tribunais territoriais com jurisdição exclusiva para todos os casos de heresia. Acima deles, foi fundado um organismo central com sede em Roma composto de sete cardeais e sob o controle direto do pontífice, que participava de todas as sessões. O organismo podia investigar também outros prelados e tinha jurisdição em todo o território cristão, mas na verdade tratou principalmente das questões italianas.

O papa Júlio III (1550-1555) mandou queimar as cópias do Talmude (um dos textos sagrados do judaísmo. Ao contrário da Tora, o Talmude só é reconhecido pelos judeus e consiste em uma coletânea de discussões ocorridas entre sábios e mestres — rabinos — sobre os significados e as aplicações dos passos da Tora) em mãos dos judeus de Roma23 e incluiu a blasfêmia entre os crimes investigados pela Inquisição. Os plebeus blasfemos eram punidos com a perfuração da língua, o açoite e os remos por três anos. Os blasfemos nobres, ao contrário, recebiam uma multa, perdiam o título, dignidade e benefícios; eram proibidos de fazer testamento e receber herança; eram considerados incapazes de testemunhar; e exilados de Roma por três anos.

Paulo IV (1555-1559) tornou a propor o crime de "heresia simoníaca", que consistia também em ordenar menores de idade em troca de dinheiro, e utilizou a inquisição para mandar prender cardeais adversários seus. Pio IV (1559-1565) mandou absolver os cardeais presos por seu antecessor por decreto inquisitorial e ordenou a prisão de cardeais da facção contrária, junto com seus colaboradores e familiares. Em seguida, os novos prelados presos foram condenados à morte, naturalmente, após um processo.2'

Paulo IV, Pio IV e seu sucessor, Pio V (1565-1572), formaram o que os historiadores chamam de "trindade do terror, não porque eram especialmente 'maus', mas porque utilizaram com muito zelo todos os expedientes necessários para lutar sua batalha sem que nenhum golpe fosse excluído. De Pio V, será dito que o zelo o fez ser proclamado santo [...] A santidade faz fronteira com os métodos policiais, que se torna um mérito" (Mereu, 2000, p. 84).

Gregório XIII (1572-1585), ao contrário, conquistou junto aos biógrafos a fama de pontífice "moderado", por ter permitido que os condenados à fogueira usassem uma roupa comum, no lugar daquela com as chamas que eram obrigados a usar.

Xisto V (1585-1590) dividiu a administração pontifícia em 15 congregações, cuja principal era a da Santa Inquisição da Herética Pravidade, diretamente presidida por ele.


Homossexualidade

O papa Júlio III (1550-1555), amante dos banquetes, das festas, da caça e das apresentações teatrais, ordenou cardeal um rapaz de 17 anos, que os escritos da época definiam pudicamente como "desviado". A coisa provocou protestos veementes de alguns altos prelados.25

O gesto de Júlio III certamente foi a gota d’água, principalmente por ter ocorrido durante o Concilio de Trento, que tornou ainda mais rígida a moral sexual da Igreja, mas é fato que, acerca da homossexualidade, havia, se não doutrinas, ao menos práticas diferentes.

É preciso rever a cronologia do pecado da sodomia. Os conceitos do que era "natural" ou "contra a natureza" sempre mudou de acordo com a época e o lugar. O que parecia "natural" em uma civilização era condenado por outra e vice-versa.

Segundo o mito grego exposto por Platão no Simpósio, em sua origem, a humanidade era formada por três tipos de seres completos: o primeiro era composto por dois homens fundidos em um só; o segundo, por duas mulheres; e o terceiro, por um casal de homem e mulher. Para castigá-los, os deuses dividiram esses seres superiores, dando vida à humanidade atual, formada por homens e mulheres que vagam por aí incompletos em uma eterna busca pela "cara-metade". De acordo com essa visão da natureza humana, portanto, tanto as escolhas heterossexuais quanto as homossexuais são completamente legítimas e "naturais". A rigor, o único comportamento que vai "contra a natureza" é o celibato.

O cristianismo tirou seu desprezo pela homossexualidade do judaísmo. A cultura judaica (assim como a grega e a romana) também era resultado de uma sociedade patriarcal e guerreira, hostil às mulheres, consideradas inferiores, e à feminilidade.

O homossexual, que se comportava "como uma mulher", era digno de profundo desprezo e atentava contra a ordem do Universo desejada pelo próprio Deus ("Deus criou o homem à sua imagem [...] criou-os macho e fêmea.")26 Além disso, desperdiçar o sêmen para fins diferentes ao reprodutivo era considerado um grave pecado, como mostra o episódio de Onan.

São Paulo, que considerava superadas as rigorosas proibições alimentares judaicas, levou para o cristianismo os preceitos contra as mulheres e os "sodomitas". Quando, no final do século IV, o cristianismo se tornou a única religião de Estado do Império Romano, um dos primeiros efeitos da nova época foi uma lei de 390 que previa a morte na fogueira para quem praticasse o homossexualismo.27

O imperador do Oriente, Justiniano, mandou executar publicamente dois bispos homossexuais. Mas a perseguição aos "sodomitas" só se acirrou quando a Igreja Católica, após o século XI, reafirmou com vigor o princípio do celibato eclesiástico. Era uma tentativa de assexualizar as relações entre os homens de Deus em uma sociedade (a Igreja) totalmente masculina. Mas se a Igreja tivesse imposto o celibato sem punir a sodomia, os fiéis teriam entendido esse ato como a demonstração de que a instituição era composta de misóginos homossexuais. De todo modo, por séculos, diferentes orientações conviveram juntas dentro da Igreja.

Por outro lado, o penitencial de Gregório III (século VIII) impunha uma penitência de 160 dias para o lesbianismo, de um ano para a sodomia e de três anos para o padre que fosse à caça.28 No século XI, duas tendências opostas se confrontam sobre esse argumento. De um lado, São Pedro Damião criticou os clérigos que se entregavam às práticas homossexuais e lutou (inutilmente) para que fossem banidos da Igreja. O abade Aelred de Rievaux, por outro lado, tentou defender o amor entre os homens (ainda que, no final, tenha recomendado a castidade).

A moral sexual da Igreja tomou uma direção mais clara com o Concilio de Latrão de 1179, que determinou que os religiosos homossexuais fossem reduzidos ao estado leigo ou à reclusão no mosteiro, para os clérigos, e à excomunhão, para os leigos. De todo modo, nunca houve uma Cruzada contra os homossexuais nem uma perseguição sistemática por parte da Inquisição, como aconteceu com as heresias. A Igreja, na verdade, nunca reconheceu os homossexuais como um grupo, limitando-se a condenar os comportamentos, mas pedindo aos governos "leigos" que os punissem.

A partir do século XIII, vários países europeus adotaram legislações muito severas contra as práticas homossexuais. Por exemplo, na França, um código previa a fogueira para quem reincidisse no crime de sodomia, pena que atingia também as mulheres. E parece que o termo "finocchio", que em italiano significa funcho e é usado pejorativamente para designar homossexuais, deriva do costume de queimar plantas aromáticas nas fogueiras, para encobrir o fedor da carne. O confisco de bens em favor do soberano era uma das penas acessórias, o que, em algumas épocas, encorajava os monarcas a fazer de tudo para combater o homossexualismo.

Muitas vezes, o crime de sodomia era colocado no mesmo caldeirão que os de heresia e bruxaria. Por essa razão, não é simples quantificar o número exato de vítimas.

Um estudo recente29 sobre processos por sodomia julgados em Bolonha no século XVI, revelou dados muito interessantes. De oito processos de sodomia contra 11 acusados, cinco eram eclesiásticos. Dos oito acusados leigos, três foram condenados à morte (por enforcamento ou decapitação), cinco foram banidos pelo resto da vida. Dos cinco eclesiásticos, apenas um foi confinado no convento por três anos. Para os outros quatro, o processo não seguiu em frente ou foi encerrado sem condenação. Não se podia admitir que no interior do clero, tão rígido na hora de regulamentar os costumes sexuais dos outros, houvesse "sodomitas". Além disso, se o poder sagrado do clero se baseava na castidade, colocá-la em questão ameaçava sua legitimidade.



FONTES DE ESTUDOS
1.   Por isso foram introduzidas as penas da fogueira e a dispersão das cinzas para as bruxas e os hereges. "Antes que os cemitérios fossem levados para fora das muralhas, como era hábito entre os romanos, os mortos repousavam sob o chão de suas casas. Eram os lares, os protetores do lugar. Assim, o ritual da fogueira e da dispersão de hereges e bruxas constituía, na época, um ato traumático, pois rompia a 'convivência' entre vida e morte, entre 'corpo e alma'" Vanna De Angelis, Le Streghe Roghi, processi, riti e pozioni, Casale Monferrato, Edizioni Piemme, 1999, p. 155.
2.   Todos os exemplos aqui citados estão reportados em David Christie-Murray, I percorsi delle eresie, Milão, Rusconi, 1998.
3.   ítalo Mereu, Storia della'intolleranza in Europa, Milão, Bompiani, 2000, p. 121.
4.   Natale Benazzi, Matteo D'Amico, Il libro nero dell'lnquisizione. La hcostruzione dei grandi processi, Casale Monferrato, Edizioni Piemme, 1998, p. 40.
5.   David Christie-Murray, op. cit, p. 156-7.
6.   Ibid., p. 15.
7.   Ibid.                        
8.   ítalo Mereu, op. cit, p. 173.
9.   David Christie-Murray, op. cit, p. 157.
10. Benazzi, D'Amico, op. cit, p. 32.
11. David Christie-Murray, op. cit, p. 158.
12. ítalo Mereu, op. cit, p. 124.
13. Nicolau Eymerich, Francisco Pena, Il Manuale dell'lnquisitore. Organizado por Luis Sala-Molins, Roma, Fanucci Editore, 2000.
14. Nicolau Eymerich, Francisco Pena, op. cit
15. Uma das penitências que podia consistir na obrigação de usar pelo resto da vida alguns sinais ou roupas especiais, os "sanbenitos"(sacos), que visivelmente marcavam o pecador aos olhos da comunidade.
16. David Christie-Murray, op. cit, p. 157-158.
17. Rino Ferrari, Fra Gherardo Segarello libertário di Dio, Quaderni dolciniani, Biella, Centro di Studi Dolciniani, p. 40.
18.G.G. Merlo, Eretici ed eresie medievali, Bolonha, Il Mulino, 1989.
19. Romano Canosa, Storia delllnquisizione in Itália, vol. 1, Roma, Sapere 2000,1986, p. 7.
20. Benazzi, D'Amico, op. cit, p. 97.
21. Ibid.
22. Benazzi, D'Amico, op. cit, p. 101
23. ítalo Mereu, op. cit, p. 77 24./6/d,p.81-2.
25. ítalo Mereu, Storia delllntolleranza in Europa, Milão, Bompiani, 2000, p. 75.
26. A Bíblia Sagrada, Gênesis, 2,27.
27. Uta Ranke-Heinemann, Eunuchiper il regno dei cieli, Milão, Rozzoli.
28. Jean Verdon, Il piacere nel Medioevo, Milão, Editore Baldini & Castoldi, 1999, p. 62.
29. Ugo Zuccarello, Processi per sodomia a Bologna tra XVI e XVII secolo, monografia de conclusão do curso de História Moderna defendida em 25 de novembro de 1998 junto à Universidade de Bolonha, a quem agradecemos.


      

terça-feira, 9 de junho de 2015

MANUAL DO INQUISIDOR

O Tribunal Inquisitorial do Santo Ofício existe e está em plena atividade, apenas mudou e aperfeiçoou os métodos.


Leonardo Boff, pseudônimo de Genézio Darci Boff (Concórdia, 14 de dezembro de 1938), é um teólogo brasileiro, escritor e professor universitário, expoente da Teologia da Libertação no Brasil. Foi membro da Ordem dos Frades Menores (franciscanos). Atualmente dedica-se sobretudo às questões ambientais.

Leonardo Boff ingressou na Ordem dos Frades Menores em 1959 e foi ordenado sacerdote em 1964. Em 1970, doutorou-se em Filosofia e Teologia na Universidade de Munique, Alemanha. Ao retornar ao Brasil, ajudou a consolidar a Teologia da Libertação no país. Lecionou Teologia Sistemática e Ecumênica no Instituto Teológico Franciscano em Petrópolis (RJ) durante 22 anos. Foi editor das revistas Concilium (1970-1995) (Revista Internacional de Teologia), Revista de Cultura Vozes (1984-1992) e Revista Eclesiástica Brasileira (1970-1984).

Seus conceitos teológicos sobre a doutrina Católica com respeito à hierarquia da Igreja, expressos no livro Igreja, Carisma e Poder, renderam-lhe um processo junto à Congregação para a Doutrina da Fé, então dirigida por Joseph Ratzinger, depois Papa Bento XVI. O documento final desse processo foi assinado pelo próprio Cardeal Ratzinger e conclui que "as opções aqui analisadas de Frei Leonardo Boff são de tal natureza que põem em perigo a sã doutrina da fé, que esta mesma Congregação tem o dever de promover e tutelar" .

Em 1985, foi condenado a um ano de "silêncio obsequioso", perdendo sua cátedra e suas funções editoriais na Igreja Católica. Em 1986, recuperou algumas funções, mas sempre sob observação de seus superiores. Em 1992, ante novo risco de punição, desligou-se da Ordem Franciscana e pediu dispensa do sacerdócio. Sem que esta dispensa lhe fosse concedida, uniu-se, então, à educadora popular  e militante dos direitos humanos Márcia Monteiro da Silva Miranda, divorciada e mãe de seis filhos, com quem mantinha uma relação amorosa em segredo desde 1981. Boff afirma que nunca deixou a Igreja: "Continuei e continuo dentro da Igreja e fazendo teologia como antes", mas deixou de exercer a função de padre dentro da Igreja.

Sua reflexão teológica abrange os campos da Ética, Ecologia e da Espiritualidade, além de assessorar as Comunidades Eclesiais de Base(CEBs) e movimentos sociais como o MST.

Trabalha também no campo do ecumenismo.

Em 1993 foi aprovado em concurso público como professor de Ética, Filosofia da Religião e Ecologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde é atualmente professor emérito.


Foi professor de Teologia e Espiritualidade em vários institutos do Brasil e exterior. Como professor visitante, lecionou nas seguintes instituições: de Universidade de Lisboa (Portugal), Universidade de Salamanca (Espanha), Universidade Harvard (Estados Unidos), Universidade de Basel (Suíça) e Universidade de Heidelberg (Alemanha). É doutor honoris causa em Política pela universidade de Turim, na Itália, em Teologia pela universidade de Lund na Suécia e nas Faculdades EST – Escola Superior de Teologia em São Leopoldo (Rio Grande do Sul). Boff fala fluentemente alemão.

Sua produção literária e teológica é superior a 60 livros, entre eles o best-seller A Águia e a Galinha. A maioria de suas obras foram publicadas no exterior.

Atualmente, viaja pelo Brasil dando palestras sobre os temas abordados em seus livros, participando também de encontros da Agenda 21.

Vive em Petrópolis (RJ) com sua companheira, a educadora popular Márcia Miranda.





MANUAL DOS INQUISIDORES



Ao se terminar a leitura do Manual dos Inquisidores, a primeira reação é de perplexidade e de espanto: como é possível tanta desumanidade dentro do cristianismo e em nome do cristianismo? Os sonhos originais da proposta cristã são de ilimitada generosidade: Deus é pai com características de mãe; todos são filhos e filhas de Deus; o Verbo ilumina cada pessoa que vem a este mundo; a redenção resgata toda a humanidade; e o arco-íris da benevolência divina cobre todas as cabeças e o universo inteiro. Como se passa deste sonho para o pesadelo da Inquisição?

Não vale chorar nem rir. Importa compreender. É o que tentaremos sucintamente.


1. A pretensão da verdade absoluta leva à intolerância

Para entender o comportamento da Igreja através da Inquisição, entre outros elementos importantes, faz-se mister considerar a autoconsciência que a própria Igreja fez e, em setores de direção, ainda faz de si mesma. Como ela constrói religiosamente a realidade? Como se representa a história humana?

A leitura comum, que se encontra nos catecismos clássicos, é a seguinte: a humanidade foi criada na graça de Deus. A criação era um livro aberto que falava do Criador. Porém em Adão e em Eva ela decaiu. Perdeu os dons sobrenaturais (a graça) e mutilou os dons naturais (obscureceu a inteligência e enfraqueceu a vontade). As frases da criação se decompuseram em palavras soltas e sem nexo. Os seres humanos não conseguiam mais ler a vontade de Deus no alfabeto natural (revelação natural). Deus se compadeceu e nos entregou um outro livro, escrito por judeus e cristãos, as Escrituras sagradas, que contêm o alfabeto sobrenatural (revelação sobrenatural). Mediante ele, podemos refazer as frases da criação e assim ter acesso às verdades divinas sobre o ser humano e o universo. Nas Escrituras, como num depósito (depositum lidei), estão todas as verdades necessárias para a salvação.

Mas o livro pode ser lido de mil maneiras. Qual é a leitura correta? Deus, novamente, se apiedou da humanidade e criou o Magistério: o Papa e os bispos. Eles são os representantes de Deus e os vigários de Cristo. A missão do Magistério é guardar fielmente, defender ciosamente e interpretar autenticamente o depósito das verdades salvíficas.

Mas eles não são humanos, sujeitos a erros? Deus novamente se apiedou da fragilidade humana e concedeu ao Papa e aos bispos reunidos um privilégio único. Em questões que interessam a todos concernentes à fé e à moral, visando à salvação eterna, seus pronunciamentos gozam de infalibilidade. Eles não podem errar e por isso, na história, nunca erraram.

Eis o que reza a doutrina, uma verdadeira metafísica religiosa, quer dizer, uma interpretação da história a partir dessa determinada ótica religiosa.

As pessoas agora podem ficar tranquilas e gozar de plena segurança. Basta ouvir o que o Magistério ensina, vivê-lo coerentemente e já estão em conformidade com a vontade de Deus. O efeito é promissor: nada menos que a vida eterna.

O Magistério, portanto, é portador exclusivo de uma verdade absoluta. A verdade não é objeto de uma busca. Mas de uma posse agradecida. Por mil formas esta verdade é distribuída por parte do Magistério cada vez com graus diferentes de certeza, mas sempre sob a assistência divina no horizonte da infalibilidade: pronunciamentos, admoestações, encíclicas, declarações dos sínodos e dos concílios, proclamação de dogmas de fé etc.

Face à verdade absoluta, não cabem dúvidas e indagações da razão ou do coração. Tudo já está respondido pela instância suprema e divina. Qualquer experiência ou dado que conflita com as verdades reveladas só pode significar um equívoco ou um erro. A Igreja detém o monopólio dos meios que abrem o caminho para a eternidade.

Sendo as coisas assim só existe um perigo fundamental: a heterodoxia, a heresia e o herege. Em outras palavras, a grande oposição se dá entre o dogma e a heresia. Para essa compreensão, erro gravíssimo e radical não é tanto a injustiça, o assassinato, a espoliação de povos e a opressão de classe, o genocídio e o ecocídio.

 Esses são atos e atitudes morais perversos mas corrigíveis; o caminho da eternidade continua aberto pelo arrependimento e o perdão; a fé não é negada, nem as verdades absolutas questionadas. Erro radical é a heresia ou a suspeição de heresia. Aqui se negam as verdades necessárias e se fecha o caminho para a eternidade. A perda é total. O mal, absoluto. O herege é o arquiinimigo da fé. O ser perigosíssimo. Se o perigo é máximo, máximas devem ser a vigilância e a repressão.

Por isso, nessa visão, o portador da verdade é intolerante. Deve ser intolerante e não tem outra opção. Caso contrário a verdade não é absoluta. Só os que não possuem a verdade podem ser tolerantes. Consentir a dúvida. Permitir a busca. Aceitar a verdade de outros caminhos espirituais. O fiel, este é condenado á intolerância.

Os inimigos da verdade e da reta doutrina (ortodoxia), os hereges verdadeiros ou presumidos devem ser perseguidos lá onde estiverem e exterminados. Deve-se esquadrinhar suas mentes, identificar os acenos do coração, desmascarar idéias que possam levar à heresia. Contra o mal absoluto – a heresia – valem todos os instrumentos e todas as armas. 

Pois se trata de salvaguardar o bem absoluto – a salvação eterna, apropriada pela adesão irrestrita à verdade absoluta como vem proposta, explicada e difundida pela Igreja. Fora da Igreja não há salvação, porque fora dela não existe revelação divina e por isso verdade absoluta. Podem existir verdades fragmentadas, não sicut opponet ad salutem consquendam (“como devem ser para se conseguir a salvação”, como repetem os textos dos concílios), mas incapazes de abrir caminho pelo matagal das confusões humanas e aceder à destinação eterna. Por isso a Igreja é imprescindível.


2. Uma lógica férrea e irretorquível

Ao instaurar a Inquisição, a Igreja produz e habita esse discurso totalitário e intolerante. Quem quiser entender o presente Manual dos Inquisidores deverá imbuir-se dessa mentalidade e visão das coisas. Só assim fará justiça a seus autores. Então tudo aparece lógico e coerente. O inquisidor é extremamente fiel e imbuído da melhor das intenções. A arquitetônica de sua argumentação é irretorquível. É obra de mestre.

Assim como quem quiser entender a repressão e a tortura dos regimes militares latino-americanos deverá entender a leitura da sociedade feita a partir da ideologia da segurança nacional e repassada às mentes dos torturadores e de seus mandantes. Da mesma forma as câmaras de gás e a limpeza genética perpetradas pelo nazifascismo. Ou, num nível maior, a cultura ocidental, que foi incapaz de acolher a diferença e alteridade e que por isso, historicamente, cometeu toda sorte de genocídios e exclusões, ainda hoje, no processo de sua mundialização. Em todos esses antifenômenos há uma lógica irretorquível. Em nome dela se excluem outros, eventualmente até são mortos.

Uma vez aceito o sistema de idéias, tudo flui de forma férrea e coerente. É a verdade intra-sistêmica. Evidentemente, cabe analisar o sistema. A boa intenção dos torturadores certamente não é boa, pois produz a morte. O sistema é sacrificialista, pois exige mais e mais vítimas para se manter. Como pode, como pretende, ter o aval divino? Mas isso já é outra questão, não mais analítica, mas ética e teológica.






3. Os autores do Manual dos Inquisidores

Trata-se de dois dominicanos, um do século XIV e outro do século XVI, peritos em jurisprudência e teologia: Nicolau Eymerich e Francisco Peña. A importância deles reside no fato de ambos procederem a uma grandiosa codificação das práticas e das justificativas (teologias e ideologias) acerca do controle das doutrinas na Igreja que culminaram na instituição da Inquisição.

Sabemos que desde cedo a Igreja se viu ás voltas com doutrinas divergentes daquelas comumente estabelecidas pela tradição. O problema dos hereges perpassa toda a história da Igreja. O herege é aquele que se recusa a repetir o discurso da consciência coletiva. Ele cria novos discursos a partir de novas visões da realidade religiosa. Por isso está mais voltado para a criatividade e o futuro do que para a reprodução e o passado.

Com efeito, refletindo bem, a verdade, por mais absoluta que se apresente, não pode se fundir numa única fórmula. Uma coisa é a verdade nela mesma. Outra coisa são as suas várias formulações históricas. A verdade, como se vê nas várias culturas, permite várias linguagens. E as várias linguagens comunicam novas significações. Por isso a definição da verdade não pode cair sob o domínio da posse exclusiva de alguém, detentor de algum código. Mesmo participando da verdade e, de certa forma, possuindo-a, o ser humano pode buscá-la sempre de novo e sob mil formas.

Mas eis que emerge o conflito. Como sobrevivem aqueles que buscam a verdade no meio daqueles que presumem havê-la encontrado? Pergunta-se: buscar a verdade não significa que ela ainda não foi encontrada? E se não a encontramos, estamos no erro e então não estamos em risco de perdição eterna? A conseqüência é previsível: o rompimento da comunhão entre um e outro. E aí começam os processos de exclusão.

Nos primeiros séculos, os portadores de pensamento divergente eram punidos com a excomunhão, vale dizer, eram excluídos da comunidade eclesial. Portanto, era uma questão meramente intra-eclesial. Mas, quando o cristianismo se transformou em religião oficial do Império, a questão virou política. O cristianismo era considerado o fator principal de coesão e união política. Então, qualquer doutrina divergente colocava em risco a unidade política. Os representantes das novas doutrinas eram tidos por hereges. A punição era a excomunhão, o confisco dos bens, o banimento e mesmo a condenação à morte.

A perseguição aos divergentes já ocorreu nos séculos IV e V com a crise do donatismo (os rigoristas no norte da África que não concediam o perdão aos que fraquejaram nas perseguições e não reconheciam os sacramentos administrados por eles). O controle e a repressão das novas doutrinas ganharam força no final do século XII e inicio do século XIII com a eclosão do movimento popular dos cátaros e valdenses no sul da França. Eram movimentos rigoristas, de volta ao espírito simples dos Atos dos Apóstolos, com a pregação itinerante do evangelho na linguagem do povo, levada a efeito, em sua grande maioria, por leigos.

A Inquisição propriamente surgiu quando em 1232 o imperador Frederico II lançou editos de perseguição aos hereges em todo o Império pelo receio de divisões internas. O Papa Gregório IX, temendo as ambições político-religiosas do imperador, reivindicou para si essa tarefa e instituiu inquisidores papais. Estes foram recrutados entre os membros da ordem dos dominicanos (a partir de 1233), seja por sua rigorosa formação teológica (eram tomistas), seja também pelo fato de serem mendicantes e por isso presumivelmente desapegados de interesses mundanos.

A partir de então se foi criando uma prática de controle severo das doutrinas, legitimadas com sucessivos documentos pontifícios como a bula de Inocência IV (Ad extirpanda) de 1252, que permitia a tortura nos acusados para quebrar-lhes a resistência. Até que em 1542 o Papa Paulo III estatuiu a Sagrada Congregação da Inquisição Romana e Universal ou Santo Ofício como corte suprema de resolução de todas as questões ligadas à fé e à moral.

O mérito de Nicolau Eymerich foi elaborar o Directorium inquisitorum (Diretório dos inquisidores), um verdadeiro tratado sistemático em três partes:

(1) o que é a fé cristã e seu enraizamento; 
(2) a perversidade da heresia e dos hereges; 
(3) a prática do ofício de inquisidor que importa perpetuar.

Trata-se de um manual de “como fazer”, extremamente prático e direto, baseado em toda a documentação anterior e na própria prática inquisitorial do autor Nicolau Eymerich. Pouca coisa do seu manual é obra de reflexão pessoal. Tudo é remetido a textos bíblicos, pontifícios, conciliares, imperiais. A astúcia teológica (e os inquisidores eram mestres nisso) vem sempre justificada pelos teólogos mais eminentes. Em casos controversos, expõe todas as teses correntes com seus prós e contras e suas convergências e divergências. Numa palavra: nele encontra-se tudo, como ele mesmo reconhece, o que é necessário para o bom exercício da Inquisição.

Sua importância é tão grande que, depois da Bíblia (o Livro dos Salmos é de 1457), foi um dos primeiros textos a serem impressos, em 1503, em Barcelona. E quando o Vaticano quis reanimar a Inquisição para fazer frente à Reforma protestante mandou reeditar o livro como manual para todos os inquisidores, primeiro em Roma, em 1578, 1585 e 1587, e depois em Veneza, em 1595 e 1607. Quem são os autores?

Nicolau Eymerich nasceu em 1320 em Gerona, no reino de Catalunha e Aragão. Fez-se dominicano, com excelente formação jurídica e teológica. Em 1357 já é inquisidor-geral do reino até 1392, com duas interrupções mais ou menos longas. Pelo excesso de zelo inquisitorial, foi exilado dos territórios de Catalunha e Aragão. Mas foi compensado em 1371 com o convite para ser o capelão do Papa Gregório IX (o criador da Inquisição) quando ainda estava no exílio em Avinhão e depois em Roma. Em 1376, ainda em Avinhão, escreveu o Manual que o tornou famoso. Morreu em Gerona em 1399.

Devido ao surgimento de novas heresias no século XVI, fazia-se urgente atualizar o manual de Nicolau Eymerich. Foi quando o comissário geral da Inquisição romana, Thoma Zobbio, em nome do Senado da Inquisição Romana, solicitou a outro dominicano, o canonista espanhol Francisco Pefia transcrever e completar o manual de Eymerich com todos os textos, disposições, regulamentos e instruções aparecidos depois de sua morte, em 1399. Penã redigiu uma obra minuciosa de 744 páginas de texto com 240 outras de apêndices, publicada em 1585.

Não obstante as inquisições locais com suas singularidades e privilégios, o autor fortalece “o direito comum inquisitorial” como norma geral a ser seguida, o quanto possível, por todos os inquisidores em todas as partes. Sabemos que havia duas Inquisições oficiais, a romana e a espanhola. Peña consegue uma síntese processual e doutrinária tal que se transformou em referência necessária e comum para as duas e para todos os inquisidores.

A obra de Peña é uma transcrição e complementação de Eymerich. Por isso, segue-lhe o mesmo esquema em três partes, referidas acima. Não seria viável nem legível publicar tudo. Ascenderia a quase mil páginas. Nesta edição, se aproveitou apenas a terceira parte, que trata dos procedimentos do inquisidor. Como o leitor irá perceber, somos informados, de saída, o que é a heresia, quem são os hereges e, depois sim, quem é o inquisidor e como trabalha.

A obra é retilínea e severa. Não se perde em relatos circunstanciais para não perder o rigor da argumentação. A prática da Inquisição está aí com toda a sua inclemência, O autor possui um sentido prático formidável. No final da obra, faz um inventário das 22 rubricas mais recorrentes que o inquisidor pode consultar rapidamente como se fosse um fichário. Aí estão as respostas claras para serem aplicadas sem qualquer titubeio.


4. Como funciona a lógica inquisitorial

Vejamos rapidamente como funciona a lógica inquisitorial. Como já consideramos, a centralidade está na verdade absoluta revelada para nossa salvação, a ser sempre defendida a todo preço.
Herética, segundo o manual, é “toda proposição que se oponha:

(a) a tudo o que esteja expressamente contido nas Escrituras; 
(b) a tudo que decorra necessariamente do sentido das Escrituras; 
(c) ao conteúdo das palavras de Cristo, transmitidas aos apóstolos, que, por sua vez, as transmitiram à Igreja; 
(d) a tudo o que tenha sido objeto de uma definição em algum dos concílios ecumênicos;
(e) a tudo o que a Igreja tenha proposto à fé dos fiéis;
(f) a tudo o que tenha sido proclamado, por unanimidade, pelos Padres da Igreja, no que diz respeito à reputação da heresia; 
(g) a tudo o que decorra, necessariamente, dos princípios estabelecidos nos itens c, d, e, f” (parte 1, A, 2).

Como se depreende, nenhum desvio da doutrina era permitido.

A Bíblia e a doutrina tradicional somente podiam ser apresentadas como verdade divina e Palavra de Deus, sob a condição de tudo nelas ser verdadeiro. A concessão de algum erro, em alguma frase da Bíblia, ou em algum ensinamento da Igreja, seria fatal. Destruiria a base da afirmação de que a Igreja seria a portadora da verdade absoluta que se encontra na Bíblia e na tradição. Ela tem que afirmar como verdade, indistintamente, tudo, que o Sol gira ao redor da Terra e a burra de Balaão falou de verdade. 

Assim, no século XIV, a Inquisição condenou o médico e filósofo Pietro d’Abano e seu conterrâneo Cecco d’Ascoli porque afirmavam a existência dos antípodas. Partiam da acepção de que a Terra era uma esfera redonda; portanto, os que viviam do outro lado dela eram antípodas. Os inquisidores argumentavam: segundo a Bíblia, a Terra não é uma bola redonda, mas uma chapa redonda e chata. E a Bíblia, porque é Palavra de Deus, não pode ensinar erros. 

Aceitar a Terra como uma esfera seria assumir a visão pagã e admitir que a Bíblia está errada e a Igreja não é infalível. Ambos foram condenados à fogueira, não por terem proferido uma heresia ou negado alguma verdade de fé, mas porque afirmavam uma verdade física do mundo que, indiretamente, entrava em conflito com a visão cosmológica da Bíblia.

Como se depreende, praticamente tudo cai sob a suspeita de heresia. Portanto, todos são condenados à repetição do discurso oficial.

o império da monotonia do status quo. O congelamento da história. Todos se tornam suspeitos. Razão por que a Inquisição vem sendo considerada uma instituição perene e os bispos, junto com o poder pastoral, devem exercer, em sintonia com o inquisidor, o poder inquisitorial de “investigar, interrogar, convocar, prender, torturar e sentenciar

Por que o rigor da detectação da heresia? Pelas consequências funestas que ela comporta. Os autores, quase obsessivamente, elencam as perniciosas: “por causa da heresia, a verdade católica se enfraquece e se apaga nos corações, os corpos e os bens materiais se acabam, surgem tumultos e insurreições, há perturbação da paz e da ordem pública, de maneira que todo povo, toda nação que deixa eclodir em seu interior a heresia, que a alimenta, que não a elimina logo, corrompe-se, caminha para a subversão e pode até desaparecer; a história dos antigos prova isso, e o presente também, mostrando-nos o exemplo de prósperas regiões e remos em franco desenvolvimento atingidos por grandes calamidades por causa da heresia” (parte 1, A, 1).

Em razão desses malefícios se entende a severidade na repressão do pensamento divergente e da mais leve suspeita, perseguição dos seguidores dos hereges, de quem os hospeda ou de qualquer forma os favoreça. Como se percebe, persiste a visão antiga (a partir do século IV): a heresia é tida como um crime político de lesa-majestade.

Consoante o Manual, em primeiro lugar, o inquisidor se apresenta com poder apostólico, investido da autoridade papal; outras vezes se apresenta como “um enviado especial de Deus” (parte II,A,I). 

Em seguida mobiliza todas as forças eclesiais. Num determinado domingo na catedral, todos são obrigados a ouvir o sermão geral proferido pelo inquisidor. AI ouve que “se alguém souber que alguém disse ou fez algo contra a fé, que alguém admite tal ou tal erro, é obrigado a revelar ao inquisidor”, sob pena de excomunhão. Os delatores são animados a delatar, pois a delação os faz obedientes à fé divina (parte II,B,6).

Mobiliza também todas as autoridades civis para que prestem juramento, sob pena de excomunhão, caso não dêem “assistência em tudo ao inquisidor, aplicando todas as leis canônicas contra os hereges, seus defensores, filhos e netos” (parte II,A,2).

Começa ai o trabalho de recepção das denúncias a partir das delações ou da apresentação espontânea dos que se consideram em erro de doutrina. Há três tipos de processo: por acusação, por denúncia (delação), por investigação. A mais longa e complicada cabe aos interrogatórios dos hereges e das testemunhas.

Curiosíssimos são os “dez truques dos hereges para responder sem confessar” e os “dez truques do inquisidor para neutralizar os truques dos hereges”. A malícia da mente do inquisidor é completa. A astúcia, refinadíssima. Como faziam os interrogadores militares da repressão política, deve-se, diz o Manual, dar a impressão de que se sabe de tudo: “Confessa logo, porque, como estás vendo, sei de tudo” (parte II, E, 23, 4).

Os acusados são submetidos a todo tipo de pressão, são induzidos à confusão, os amigos são obrigados a pressioná-los, até a dormir com eles na cela, para obrigá-los a falar. Mas “colocam-se as testemunhas, além do escrivão inquisitorial, num bom lugar, na escuta, com a cumplicidade da escuridão” (parte II,E,23,9). E então são apanhados em confissão e condenados. Tudo sem maiores escrúpulos éticos. E, quando surgem, vale a acribia da sofistica teológica para justificar o que, no bom senso, é injustificável.

Por exemplo: o inquisidor não deve prometer perdoar o acusado de heresia caso este confesse. O inquisidor sabe que não pode prometer perdão, porque a heresia não conhece perdão. Perguntam-se os autores do Manual: “Isto não é simplesmente uma desonestidade?” A resposta é rabulística: “reduzindo, mesmo numa proporção mínima, a pena atribuída a um delito (e é raríssimo que o culpado não tenha cometido vários delitos), o inquisitor que tiver prometido ‘perdoar’ terá mantido sua palavra” (parte II,E,23,1O). Portanto, não é desonestidade. O inquisidor mantém a boa consciência, porque, como se explica pouco antes no Manual, “tudo o que se fizer para a conversão de hereges é perdão; e as penitências são perdão e remédio” (parte II,E,23,8).

Outro exemplo clamoroso é o processo contra mortos denunciados de heresia. Para isso “não há limite de tempo”, diz o Manual. O morto é processado. Se condenado, lança-se o anátema sobre sua memória: “os filhos dos hereges serão declarados infames e inaptos a qualquer cargo público ou privilégio” (parte 111,22). E a efígie do condenado já falecido é queimada publicamente. Outras vezes, como os próprios autores do Manual contam, exumavam-se os cadáveres e abriam-se os processos contra eles. Sob o Papa Clemente VI (1342-1352), por exemplo, em Béziers, foi exumado, por ordem deste papa beneditino, o cadáver de frei Pedro João, dos franciscanos menores. Acusado publicamente de herege, o frade já morto foi condenado, quebraram-lhe os ossos e os queimaram (parte 1, 12). Os autores justificam: “Trata-se de uma sentença perfeitamente de acordo com o Direito, se bem que acabe, lamentavelmente, punindo quem não cometeu crime nenhum” (os filhos dos hereges).

Mas continuam com escrúpulos e perguntam-se a si mesmos: “Como proceder contra um morto? Uma questão difícil, porque será que se pode abrir um processo contra quem, por definição, não pode comparecer? Não seria melhor falar claramente de ‘condenação da memória de Fulano’ do que ‘processo’? Sim, em direito civil. Mas evidente que não, em se tratando de um delito de lesa-majestade divina” (parte 111,22).

Em vários lugares do Manual os autores concedem que são mais rigorosos que qualquer outro tribunal humano. Mas justificam: tratam dos crimes mais hediondos e terríveis, aqueles que ameaçam a salvação eterna que são as heresias.

Lugar à parte ocupa o capítulo das torturas. Há precauções, pois os autores têm consciência dos abusos; nem o inquisidor sozinho deve torturar; precisa da permissão do bispo local. Mas praticamente todos os suspeitos e acusados passavam por vários tipos de tortura. “Tortura-se o acusado que vacilar nas respostas”; “o suspeito que só tem uma testemunha contra ele é torturado” (parte I1I,F,28), e por ai vai. 

A regra básica é esta: “É bom lembrar, antes de proceder à tortura, de que sua finalidade é menos provar um fato do que obrigar o suspeito a confessar a culpa que cala...; a tortura serve apenas como paliativo na falta de provas” (parte III,F,28,7). 

Por isso, para a Inquisição não há pessoas não-torturáveis. “Este é um direito que não conta nas questões de heresia: nenhuma das pessoas isentas de tortura a propósito de qualquer delito não o será, tratando-se de heresia”, embora, de fato, se prevejam exceções a membros da alta hierarquia e da nobreza superior. Nem escapam os velhos e as crianças: “Pode-se torturá-los, mas com uma certa moderação; devem apanhar com pauladas ou, então, com chicotadas” (parte II,H).

A confissão é tudo na Inquisição, não as provas, contrariamente ao senso do direito universal, pois, sabemos, a confissão pode ser extorquida sob coação. Os autores do Manual dos Inquisidores, num outro lugar, esclarecem: “Diante do tribunal da Inquisição basta a confissão do réu para condená-lo. O crime de heresia é concebido no cérebro e fica escondido na alma: portanto, é evidente que nada prova mais do que a confissão do réu. Eymerich tem razão (glosa do compilador e atualizador Peña) quando fala da total inutilidade da defesa” (parte lI,G,31).

Com efeito, a defesa tem uma função meramente nominal, diria até perversa, pois não trata de defender o réu, mas de agilizar a sua condenação. O Manual ensina que “o papel do advogado é fazer o réu confessar logo e se arrepender, além de pedir a pena para o crime cometido” (parte II,G,3 1). 

O estatuto do defensor não é assegurado, como em qualquer legislação de Hamurabi (século XV a.C.) a Stalin ou Hitler. O lugar do defensor é no capitulo sobre “obstáculos à rapidez de um processo”. Os autores começam o capítulo acerca da “admissão de um defensor” com esta sentença: “O fato de dar direito de defesa ao réu também é motivo de lentidão no processo e de atraso na proclamação da sentença; essa concessão algumas vezes é necessária (no sentido de agilizar a sentença, porque o acusado não confessa: aclaração minha), outras não” (quando confessa: parte II,F,31).

Ademais, o inquisidor deve ter o campo totalmente aberto à sua ação. Por isso “pode punir quem coloque entraves ao exercício da Inquisição; deve excomungar qualquer leigo que publicamente ou não discuta questões teológicas; ‘procederá’ (abrirá processo) contra qualquer advogado ou escrivão que der assistência a um herege” (parte 111,18). Como, em condições dessas, haver lugar para um advogado de defesa?

O medo da heresia era tanto que implicava violação das comezinhas regras do sentido do direito universal e também a estupidificação dos leigos, que jamais podiam se ocupar com a teologia. A fé devia ser aceita, jamais pensada. A reflexão religiosa era monopólio exclusivo da hierarquia. Quem pensasse a fé, e pensar a fé significa discutir questões teológicas, era já suspeito de heresia, portanto, objeto da repressão. Não pensavam assim os agentes da repressão militar em regime de segurança nacional: quem discutir publicamente política é já suspeito de subversão e, logo, de sequestro, de tortura e de cárcere? Mudem os sinais, mas não a lógica de um sistema totalitário e por isso repressivo de toda e qualquer diferença.

As punições variavam consoante o grau de adesão do acusado às doutrinas consideradas heréticas ou suspeitas de heresia, que vão desde a simples abjuração, expiação canônica, pagamento de multas, expropriação dos bens, excomunhão, prisões e a fogueira pelo braço secular. 

Os leitores verão a severidade das penas e também os processos psicológicos para demover os hereges convictos de suas doutrinas. Vão dos flagelos das prisões escuras, das torturas, das humilhações, tudo para “acordar a inteligência” e desdizer o que diz (parte II,H).

Se este método não funcionar, então se utiliza a bondade, a presença da esposa e dos filhos. Se nada adiantar, será entregue ao braço secular e irá para o auto-de-fé. 

O Manual é claro ao subordinar o bem individual ao bem da Igreja: é preciso lembrar que a finalidade mais importante do processo e da condenação à morte não é salvar a alma do acusado, mas buscar o bem comum e aterrorizar os outros (ut alii terreantur); ora, o bem comum deve estar acima de quaisquer outras considerações sobre a caridade visando ao bem de um indivíduo” (parte 11,22,10).

Efetivamente, o mundo da Inquisição é marcado de medos, sermões aterradores dos inquisidores, delações, suspeitas, vinditas, perseguições e sobretudo autos-de-fé macabros, com condenados à fogueira in conspectu omnium. Que sobrou aqui do cristianismo como boa e alvissareira notícia de libertação, de fraternidade e sororidade universais, de amor ilimitado?


5. O que tornou possível a Inquisição e a continuação de seu espírito

A Inquisição foi possível na Igreja romano-católica com processos de exclusão, torturas e condenações porque nas relações internas dela existem violências. A Inquisição é ponto de cristalização de uma violência anterior. A violência interna da Igreja romano-católica se dá na forma como o poder sagrado é distribuído. Ele sofre uma profunda dissimetria. Um pequeno grupo (é menos que 0,3% de toda a Igreja), a hierarquia (papa, bispos e padres), detém todos os meios de produção simbólica de forma excludente. Os demais não participam, não devem nem podem participar. São dependentes e meros beneficiários desses portadores exclusivos de poder.

Não cabe aqui detalhar essa questão, feita por nós em outras obras (Igreja, carisma e poder; E a Igreja se fez povo; Leigos e ministérios). Basta a indicação de algumas pistas.

Inicialmente o cristianismo era uma comunidade fraternal e sororal. A comunidade inteira se sentia herdeira de Jesus e portadora de seu poder. Este poder se diversificava em vários serviços e ministérios, consoante as necessidades da comunidade. Mais que ministérios institucionalizados e institucionais, havia ministros, pessoas geralmente com características carismáticas. A autoridade era moral, portanto, autoridade no sentido originário da palavra (aquilo que faz crescer os outros e que reforça e não tira o poder dos outros) e quase nada jurídica, embora essa dimensão estivesse também presente como em todas as comunidades que buscam certa ordem e funcionamento de sua vida interna. Mas o jurídico de forma alguma era hegemônico e era vivido dentro do espírito evangélico do poder como serviço desinteressado à comunidade. A Igreja se definia como comunidade dos seguidores de Jesus; a rede de comunicações formava o novo povo de Deus, em solidariedade com os demais povos.

Com a transformação do cristianismo em religião do Império (séculos IV e V), novas responsabilidades tiveram que ser assumidas pelos cristãos (eram menos que 1/6 dos habitantes). Estes sentiram a necessidade de organizar-se e institucionalizar certas funções. Foi então que o aspecto jurídico ganhou corpo, assimilando a da tradição jurídica romana, que sempre foi fascinante. 

Surgiu o corpo clerical, distinto do corpo laical. Emergiu um corpo de peritos do sagrado que acumulou toda a responsabilidade pelo espaço da fé: produziu o discurso, o ethos e o rito. E articulou o poder religioso com o poder político dominante. O que se criou foi considerado oficial. Lentamente se impôs à produção mais espontânea das expressões da fé, das celebrações e dos costumes cristãos, feitos pelos fiéis, homens e mulheres, no quotidiano de suas vidas.

O conceito dominante de Igreja agora é de hierarquia, o grupo dos consagrados pelo sacramento da ordem e que detém o poder sagrado na comunidade. De tal forma que a Igreja ficou sendo simplesmente sinônimo de hierarquia, presente ainda hoje na compreensão comum. Quando se diz: que pensa a Igreja, que diz ela sobre a família, o socialismo e o mercado mundial, se pensa: que diz o Papa, que ensinam os bispos acerca dessas questões?

A partir do século X, se configurou de forma severa a divisão na Igreja entre o corpo clerical e o corpo laical. A primeira codificação jurídica da Igreja, o Código de Graciano (século XII), consagra definitivamente essa visão como direito divino. E isso veio pelos séculos afora. Não admira que, na crise do pensamento cristão em confronto com a modernidade, o Papa Gregório XVI (1831-1846) tenha reafirmado para toda a Igreja: “Ninguém pode desconhecer que a Igreja é uma sociedade desigual, na qual Deus destinou a uns como governantes, a outros como servidores. Estes são os leigos, aqueles são os clérigos.” 

Pio X, em 1904, o repete de forma quase grosseira: “Somente o colégio dos pastores tem o direito e a autoridade de dirigir e governar. A massa não tem direito algum, a não ser o de deixar-se governar qual rebanho obediente que segue seu Pastor.”

Por mais que a teologia posterior e o Concílio Vaticano II (1962-1965) tenham enfatizado a natureza comunitária da Igreja, prevalece ainda na doutrina e na mente do Magistério e dos fiéis (e em textos importantes do próprio Vaticano II) a noção de que Igreja é fundamentalmente a Hierarquia. O direito canônico de 1983 reafirma de novo que é de instituição divina a existência entre os fiéis dos que são clérigos e os outros também denominados leigos (cânon 207).

Ora, essa divisão traz desigualdades. E as desigualdades são sempre odiosas, porque implicam relações tensas e, de certa forma, injustas. Por que o leigo, por mais inteligente e sábio que seja na sociedade civil, na sua vida profissional de reconhecido cientista, notável escritor, notório jurista, deva crer, pelo fato de ser leigo, que no interior da Igreja-comunidade pouco ou nada vale, que tenha que estar sempre e inapelavelmente submetido a um grupo que alega um poder recebido de cima e por isso infenso a qualquer crítica e correção?

Essa divisão entre os clérigos que tudo têm e os leigos despojados de tudo criou incontáveis polêmicas, rebeliões e rupturas do corpo eclesial, primeiramente entre Igreja grega ortodoxa e Igreja romano-católica, depois as Igrejas da Reforma com suas sequelas até os dias de hoje, e em seguida o enfrentamento cada vez mais rígido e tenso entre os cristãos e os portadores de poder sagrado, na medida em que universalmente cresce o espírito de participação, de co-responsabilidade, de maturidade e autonomia de cada pessoa humana com seus direitos e deveres pessoais e sociais.

Para fazer frente a essa crise, já há séculos, os clérigos criaram um discurso de legitimação. Dogmatizaram-no. Atribuíram origem divina ao seu poder. Elaboraram uma visão do mundo, da revelação de Deus, em que eles constituem o pivô de todas as questões. Eles são decisivos para a salvação da humanidade. A leitura da história que referimos no início destas reflexões constitui a peça de legitimação do corpo clerical e de seus poderes. 

É um discurso ideológico, porque todo discurso ideológico é um discurso do interesse real ou escuso do ator à custa do interesse dos outros. Este discurso é apresentado como intocável e inquestionável porque de origem divina. Todos os professantes da fé cristã devem aceitá-lo humildemente e jamais colocá-lo sob qualquer dúvida. Na verdade, trata-se de um discurso humano, demasiadamente humano, legitimador dos direitos, privilégios e interesses históricos dos detentores de poder na Igreja.

Hoje ele já se fez um discurso inconsciente, tal é o nível de imposição e internalização da maioria dos cristãos e nos próprios portadores de poder.

A característica desse sistema de poder é o autoritarismo. Autoritário é um sistema quando os portadores de poder não necessitam do reconhecimento livre e espontâneo dos membros da comunidade para se constituir e exercer. Por isso temos a ver com um sistema de dominação. Quando há aceitação livre e espontânea de uma pessoa ou instituição de direção por parte dos membros da comunidade, então estamos diante da legitima autoridade. Separada desse reconhecimento, a autoridade decai para autoritarismo. É o que vigorou e vigora na Igreja romano-católica já há séculos.

Para se entender no nível estrutural um fenômeno como este da dominação clerical, não se deve partir daquilo que os clérigos pensam e dizem de si mesmos (a origem divina de seu poder etc), mas daquilo que eles efetivamente fazem no seu processo real de vida eclesial. O que eles fazem é manifesto: conservam em suas mãos, de forma corporativo-privada, os meios de produção simbólica, controlam sua distribuição, hierarquizam as formas de participação subordinada (mas em nenhum caso em termos de decisão; esta é reservada somente aos clérigos. 

As mulheres, que constituem mais da metade da Igreja e são mães ou irmãs da outra metade, vêm excluídas, e os leigos, atrelados), limitam as formas de consumo religioso-simbólico. Fundamentalmente se dá esse dualismo, reforçado enormemente sob o Pontificado de João Paulo II: de um lado está o ordenado, homem, celibatário que pode produzir, celebrar, fazer o discurso oficial, decidir; do outro está o não-ordenado que assiste e é convidado a se associar ao projeto e à visão do ordenado, devendo sempre obedecer. 

Dessa forma, toda a capacidade de criar, de produzir, de decidir dos não-ordenados, dos leigos, deixa de ser aproveitada, ou o é de forma atrelada. O corpo eclesial aparece depauperado, formalizado, marcadamente machista, enrijecido e mandonista. A dimensão da anima, pela exclusão das mulheres e pelo recalque da dimensão feminina nos homens de poder, subtrai ao corpo clerical de qualquer irradiação benfazeja e humanizadora. O excesso de poder mostra dimensões necrófilas em quase tudo o que pensa, diz e faz. Não há um interesse real e ousado pelos problemas dos homens e das mulheres, mas uma preocupação quase neurótica pelos interesses da Igreja-hierarquia, de sua identidade, de sua preservação, de sua imagem.

A leitura doutrinária da revelação de verdades absolutas mascara o real conflito subjacente à Igreja: o poder de uns sobre outros. Alguns detém o poder de decidir sobre a verdade, dar-lhe uma formulação única, de definir qual é o caminho necessário para a eternidade. Decretam que a sua verdade é absoluta. E a impõem aos outros. Por isso o discurso do outro é um discurso impossível. Deve ser silenciado, perseguido, estrangulado. Daí se entende o rigor da Inquisição. O que está em jogo, realmente, é o poder do corpo clerical, que não tolera nenhum concorrente ou nenhum confronto. Ele quer se manter como o único. É ele que se entende como absoluto e terminal. Não a verdade e a revelação, pois estas, por serem realidades divinas, são sempre abertas e passíveis de novas achegas e novas leituras, sem jamais esgotar sua riqueza interior.

O espírito que fez surgir a Inquisição perdura na Igreja romano-católica, pois persiste a predominância do corpo clerical sobre toda a comunidade e a visão piramidal de Igreja, centrada no poder sagrado. Enquanto perdurar esse tipo de prática com a sua correspondente teologia (ideologia), haverá sempre condições psicológicas, espirituais e materiais para a ativação do espírito inquisitorial e dos instrumentos de sua implementação (controle, repressão, silenciamento, condenações etc.).

Ele continua na mentalidade e nos métodos da atual Congregação para a Doutrina da Fé. As modificações históricas, ao nível estrutural, são praticamente nulas. Evidentemente, não se condena mais à morte física, mas claramente não se evita a morte psicológica. Pressiona os acusados até o limite da suportabilidade psicológica. São desmoralizados, faz-se perder a confiança em sua pessoa e palavra; por isso proíbe-se que sejam convidados para conferências, assessorias e retiros espirituais; muitos são transferidos para outros países, são forçados a tomar “anos sabáticos” eufemisticamente, quer dizer, devem deixar as cátedras; pressionam-se as editoras a não publicar seus escritos e proíbem-se as livrarias religiosas de expor e de vender seus escritos. 

Praticamente a maioria das vítimas da ex-Inquisição, para poderem sobreviver humanamente, se vê obrigada a abandonar suas atividades ministeriais e teológicas. Mas sejamos sensatos: porém, mais vale um herege vivo e feliz em sua fé, que um teólogo ortodoxo infeliz, castrado e recastrado pelo ex-Santo Ofício.

Ainda perdura o processo de delação, a negação ao acesso às atas dos processos, a inexistência de um advogado e a impossibilidade de apelação. A mesma instância acusa, julga e pune. Isso é uma perversidade jurídica em qualquer Estado de direito, pagão, ateu ou cristão. Não há a salvaguarda suficiente do direito de defesa.

As punições impostas são ainda compreendidas como benevolência e misericórdia da Igreja. Após a punição que o autor desta introdução recebeu da ex-Inquisição em 1984 (deposição como editor da Editora Vozes, deposição de redator da Revista Eclesiástica Brasileira, proibição de dar aulas, de falar publicamente, de dar entrevistas, de publicar qualquer texto e por fim a imposição de um “silêncio obsequioso” por tempo indeterminado, portanto punições nada banais para um intelectual cujo único instrumento e arma é a palavra falada e escrita), o atual Pontífice, através de seu Secretário de Estado, Cardeal Agostino Casaroli, me escreveu com data de 29 de julho de 1985:

“Aquilo que, efetivamente, é requerido ao Rev. Padre, ou seja, ater-se a algumas limitações, entre as quais o obsequjosum silentium, visa como finalidade ajudá-lo a ter um período de pausa para repensar diante de Deus problemas que são de grande importância para um teólogo e para refletir nas suas responsabilidades diante dos irmãos de fé” (cf. Roma locuta: documentos sobre o livro Igreja: Carisma e Poder, CDDH, Petrópolis 1985, p.l52).

A subjetividade das pessoas que sentem, que desenvolveram um sentido de justiça e de equidade dentro da Igreja, que militam, com riscos pessoais, até de ameaça de morte, na defesa e promoção dos direitos humanos pisoteados nas sociedades autoritárias do Terceiro Mundo, nada conta. Conta a objetividade da doutrina (fruto da subjetividade coletiva do corpo clerical que a impõe como objetiva aos Outros), que deve ser salvaguardada a preço do escândalo dos mais simples, daqueles que sofrem a contradição de uma Igreja que se compromete na observância dos direitos humanos na sociedade e não consegue fazer valê-los nas relações internas dela mesma.

Não cabe refutar a lógica do sistema. Mas questionar o sistema mesmo. Dispensamo-nos desta tarefa, pois transcende o sentido da introdução deste Manual dos Inquisidores. Mas não será difícil o próprio leitor fazê-lo, pois:

a) A Inquisição contradiz o bom senso das pessoas. Como se pode, em nome da verdade e ainda mais da verdade religiosa, perseguir, torturar, matar tanto e de forma tão obsessiva? Importa enfatizar que, mediante a Inquisição, a Igreja hierárquica introduziu os sacrifícios humanos. O auge do sacrificialismo furibundo da Inquisição no século XVI na Europa corresponde aos sacrifícios humanos perpetrados pelos colonizadores espanhóis chegados ao nosso Continente contra as culturas originárias dos astecas, maias, incas, chibchas e outras. Quando Hernán Cortez penetrou em 1519 no planalto de Anahuac no México, havia no Império asteca 25.200.000 habitantes. Menos de 80 anos, em 1595, só restaram 1.375.000 habitantes. 

A dizimação global, por guerras, doenças, excesso de trabalho-escravo na encomiendas, desestruturação cultural, nos dois primeiros séculos da colonização-invasão, foi da ordem de 25 por 1. Quem oferecia mais sacrifícios humanos: os astecas, que faziam sacrifícios rituais ao deus Sol para que sempre voltasse a nascer e assim garantisse a vida para todos os povos e para o universo, ou os espanhóis, que sacrificavam ao deus Mamona para serem ricos e fidalgos na Espanha? E sobre isso os bispos reunidos no Concílio de Trento (1545-1563), contemporâneo a todos esses fatos, não dizem sequer uma palavra. Estavam ocupados com questões internas da Instituição em confronto com a Reforma de Lutero.

A verdade possui, em si, uma dimensão de libertação e humanização. Na Inquisição ela é afogada. Repugna à inteligência assumir uma pretensa verdade à força do terror.

b) A Inquisição contradiz o sentido da verdade religiosa, da verdade simplesmente e a natureza da religião. A verdade é como o sol. Ele ilumina a todos e a todos se dá. Pode dizer a montanha à planta que está ao seu pé: por que sou mais alta e sou a primeira a ser bafejada pelo sol, você, plantazinha ao meu pé, não tem direito de receber sol nenhum? E a luz que tens não é luz e não vem do sol? Seria absurdo o discurso da montanha. E seria menos absurdo o discurso da teologia (ideologia) da verdade absoluta que subjaz aos órgãos de controle e repressão das doutrinas na Igreja romano-católica que nega verdade às outras religiões e a outras confissões cristãs?

Todos estamos em algum nível da verdade. Como também todos estamos a caminho de uma verdade mais plena. A verdade não está apenas nas frases verdadeiras. Ela está fundamentalmente na vida, na profundidade do coração, nas relações entre as pessoas, no curso da história. Ela pode ser expressa de mil formas, num poema, numa música, numa catedral, numa parábola e num discurso.

Na história, nossas formulações exprimem a verdade absoluta que está em todos, mas não logram exprimir todo o absoluto da Verdade. No dito fica sempre o não-dito. E todo ponto de vista é sempre a vista de um ponto. Por isso haverá sempre possibilidade de se dizer a verdade e a fé em doutrinas expressas em marcos inteligíveis de uma outra cultura, de uma outra tradição espiritual e, por que não dizê-lo também, no código de uma outra classe social. A Inquisição é contra a natureza da religião. Esta trabalha o sagrado que está na profundidade de cada pessoa, na história e no cosmos. O efeito da prática religiosa é a potenciação do sentido da vida, do sentimento de salvação, da formulação de uma esperança contra toda esperança e do apreço e salvaguarda da vida e do menor sinal de vida. Uma religião que produz morte e exige sacrifícios humanos desnatura a religião e se transforma num aparelho de controle social.

c) A Inquisição nada tem a ver com Cristo, nem com o seu Evangelho. Se tem a ver, é contra eles. O próprio Cristo foi vitima da inquisição judaica de seu tempo. Como em seu nome instaurar uma inquisição? Não esqueçamos que o Grande Inquisidor de Dostoievski acabou condenando Jesus Cristo. Nem tem a ver com a Igreja em sua compreensão maior, teológica e sacramental. Pois a Igreja como comunidade dos professantes procura manter viva a memória de Jesus, do seu sonho, da irradiação do seu Espírito, na profunda alegria de sermos todos filhos e filhas de Deus e por isso irmãos e irmãs de toda humana criatura e de cada ser do universo. A Inquisição tem a ver sim com a patologia como distorção dessa convicção, e com o pecado como negação prática dessa proposta, carregada de promessa e de utopia. Mas sejamos realistas: quem é são pode ficar doente. E quem está na graça pode pecar.

A “Santa” Inquisição é expressão de um componente neurótico-obsessivo do corpo clerical e cristaliza a dimensão de pecado que existe nas relações internas da Igreja. Pois, a própria Igreja-comunidade de fiéis se confessa santa e pecadora. Se assim é então aqui é o pecado Institucional que ganha a cena e a ocupa durante séculos. Seu espírito vaga assustador até os dias de hoje. E devemos nos precaver contra ele. Antes, ajudar a própria instituição eclesial a ser fiel à sua utopia originária e a ser um lugar de exercício de liberdade e de experimentação da graça humanitária de Deus. E isso se fará na medida em que os professantes da fé romano-católica se reapropriarem daquilo de que foram historicamente despojados: sua capacidade de experimentar o sonho de Jesus, de dizê-lo de forma criativa e responsável no interior da comunidade, de confrontá-lo solidariamente com outras experiências do evangelho de Deus na história e articulá-lo com o curso do mundo, onde se revela também e principalmente o desígnio de benquerença e de amor de Deus.

A comunidade cristã viveu séculos sem a Inquisição. Isto significa que não precisou dela para viver e sobreviver. Portanto, ela é supérflua. Sua existência mantém o mesmo escândalo, denota uma patologia e concretiza um pecado. Nunca teve direito a existir. Não deve mais existir. Por amor a Deus, por fidelidade a Jesus Cristo e por respeito às opiniões religiosas diferentes nas sociedades humanas.


LEONARDO BOFF Prof. de ética e Teologia na UERJ Rio de Janeiro, Sexta-feira Santa da Paixão de 1993.