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quarta-feira, 27 de março de 2019

INQUISIÇÃO NA BAHIA










A PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO À BAHIA:



Salvador, 50 anos depois de fundada, possuía por volta de 800 vizinhos brancos e três vezes mais negros e índios, quando no ano do Senhor de 1591 desembarca em seu porto inesperado visitante: o Licenciado Heitor Furtado de Mendonça, Deputado do Santo Ofício da Inquisição.

A notícia de tão temível visita deve ter-se alastrado a trote de cavalo pelos mais de 40 engenhos espalhados pelo Recôncavo, deixando a população em palpos de aranha. Afinal todos sabiam que a Inquisição tinha poderes quase tão ilimitados quanto o próprio Rei, só que as justiças reais enforcavam ou degolavam seus criminosos mais graves, enquanto o Santo Ofício encaminhava-os à fogueira.

Após cumprir certas formalidades burocráticas previstas no Regimento do Tribunal do Santo Ofício, aos 29 de julho de 1591 tem início uma das páginas mais dramáticas de nossa história colonial: a 1ª Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil – episódio triste e melancólico que completou seu 4° Centenário em 1991. Fundado em Portugal em 1536, pelo rei D. João III, o Tribunal do Santo Ofício tinha como principal atribuição perseguir as heresias – sobretudo o judaísmo, protestantismo e feitiçarias –, acrescentando-lhe com o decorrer do tempo, também o castigo aos bígamos, sodomitas e aos sacerdotes que solicitavam suas penitentes para atos torpes.

Mal completara sua primeira década de funcionamento, já em 1546, é presa uma primeira vítima na Bahia: Pero de Campos Tourinho, Donatário de Porto Seguro, acusado de não guardar os domingos e dias santos, além de autoproclamar-se Rei e Papa de sua Capitania.

Passados alguns anos, em 1573, é queimado em Salvador um francês herege – a única execução realizada em terras de Santa Cruz, e de acordo com nosso primeiro historiador, Frei Vicente do Salvador, o próprio Padre José de Anchieta teria instruído o algoz como cortar a cabeça do infeliz protestante – Jean dez Boulez – antes de levá-lo às chamas.

No ano seguinte, 1574, é preso incomunicável outro estrangeiro, o colono italiano Rafael Olivi, morador em Ilhéus, acusado de possuir uma coleção de livros suspeitos – entre eles O Príncipe, de Machiavel – além de blasfemar contra a fé católica. É contudo em 1591 a data oficial que marca o início da atuação regular da Inquisição na América Portuguesa, contando-se às centenas o número de colonos nordestinos que foram denunciados, presos e sentenciados por este Monstrum Horrendum, que segundo as próprias palavras de João Paulo II, “foi um erro histórico”.

A primeira providência tomada pelo Visitador Furtado de Mendonça na cidade da Bahia foi obrigar a todas autoridades eclesiásticas e civis a curvarem-se obedientes à autoridade maior do Santo Ofício: o próprio Bispo da Bahia, o cisterciense Dom Antônio Barreiros, (1575-1600), o terceiro da diocese e único dos Brasis, foi incumbido de ler publicamente a Provisão da Visita, beijando o manuscrito e colocando-o por sobre sua cabeça em sinal de respeito e obediência.

É contudo aos 28 de julho deste mesmo ano do Senhor de 1591, domingo da Oitava de Pentecostes, que tem lugar o primeiro Auto-de-Fé que se celebrou no Brasil: fora previamente preparado, pois em todas as mais de sessenta igrejas e capelanias espalhadas pelo recôncavo baiano, os párocos haviam estimulado previamente aos fiéis que se dirigissem a Salvador naquele domingo fatídico, a fim de com suas presenças, demonstrarem o respeito que tributavam à Santa Inquisição.

De fato, a pequenina capital  da América Portuguesa nunca presenciara tamanha aglomeração humana e tanta pompa como naquele domingo invernoso. As cerimônias iniciaram-se de manhã cedo, na primitiva igreja da Ajuda, a antiga “Sé de palha”: daí saiu o cortejo em direção à Catedral, que segundo palavras do vereador e latifundiário Gabriel Soares de Sousa, já nesta época ostentava “três naves, de honesta grandeza, alta e bem assombrada, com cinco capelas muito bem feitas e ornamentadas e dois altares na ombreira da capela-mor, porém ainda não está acabada”.

Soleníssima, a procissão percorreu as principais ruas de Salvador, dela participando o Bispo, os cônegos do Cabido, todos os oficiais da Governança e da Justiça, além dos vigários, curas, capelães, clérigos, os frades de São Francisco, São Bento e da Companhia de Jesus, os membros das confrarias religiosas, e mais povo de toda a Capitania. Debaixo de um pálio de tela de ouro lá estava hierático, o Visitador do Santo Ofício, que entre outros títulos ostentava o de Capelão Fidalgo del Rei e membro do Desembargo do Paço de Sua Majestade. As ruelas barrentas da juvenil Salvador, devido às chuvas hibernais, devem ter respingado de lama as batinas, paramentos e casacas de elite soteropolitana, quando os mais graduados colonos ocuparam seus devidos lugares, dentro da Sé Primacial. Uma cadeira de carmesim guarnecida de ouro, sob um docel de damasco também carmesim, posto do lado direito do altar-mor, foi logo ocupada pelo Senhor Visitador, enquanto o Chantre da Catedral, acolitado por dois cônegos, celebrou a Santa Missa.

 Foi orador desta cerimônia o Provincial dos Jesuítas, cujo Colégio, a poucos passos da Catedral, costumava servir de hospedaria aos visitantes ilustres, local onde provavelmente ficou alojado o enviado inquisitorial. O mote da pregação não poderia ter sido mais acertado: parafraseou o inaciano a sentença de Cristo quando disse ao Príncipe dos Apóstolos: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja!” oportuna lembrança do poder hierárquico eclesial, num momento em que o Tribunal da Fé iria expurgar, com todo o rigor, as erronias do meio dos cristãos e fiéis vassalos de Sua Majestade el Rey Felipe II de Espanha, e 1° de Portugal, cognominado “o Prudente”. Terminada a missa, foi a vez do Arcediago da Sé – a segunda autoridade eclesiástica depois do Bispo – a subir ao púlpito, portando riquíssima capa de asperges de damasco branco e tela de ouro, onde leu com voz alta e inteligível, os dois Editais da Fé, onde se declarava que Sua Majestade perdoava o sequestro dos bens daqueles faltosos que tomassem a iniciativa de se confessar dentro dos próximos 30 dias, o chamado “tempo da graça”.

Leu-se, em seguida, a Bula de São Pio V (1504-1572), onde se ameaçava com excomunhão maior a todos que ousassem ofender os ministros do Santo Ofício ou obstaculizar seu reto procedimento, obrigando-se a todos os presentes que encaminhassem ao Visitador lista completa de bigamia, feitiçaria e pacto com o demônio, leitura de livros proibidos, apostasia, leitura da Bíblia em língua vernácula, fornecimento de armas aos indígenas ou adoção dos costumes gentílicos.

Centenas de moradores da Bahia devem ter sido atacados por tenebrosos pesadelos, posto incluírem-se entre os “criminosos” culpados por um ou mais desvios apontados no Monitório afixado na porta da Sé. Entre estes infelizes, o mais assustado certamente era o Padre Frutuoso Álvares, Vigário de Matoim, no recôncavo baiano, 65 anos, tanto que no dia seguinte à instalação do Tribunal da Fé, mal o Reverendo Inquisidor se assentara na Mesa da Visitação, já lá estava, no primeiro lugar da fila, o velho sacerdote - e o mais surpreendente é que queria confessar-se de um “crime” que então, sequer constava no rol do Monitório: o abominável e nefando pecado de sodomia, o homoerotismo. Em coisas do Santo Ofício, era melhor prevenir do que remediar. Aos 29 de julho de 1591, perante o Senhor Visitador, compareceu o Padre Frutuoso Álvares, dizendo que tinha de confessar nesta Mesa, sem ser chamado. E confessando, disse que de quinze anos a esta parte que está nesta Capitania cometeu a torpeza dos tocamentos desonestos com alguns quarenta mancebos, pouco mais ou menos, abraçando, beijando e tendo ajuntamentos por diante e dormindo com alguns pelo vaso traseiro, sendo mais paciente que agente, entre eles com Cristóvão Aguiar, Jerônimo Viegas, Medina da Ilha da Maré etc. etc.

Ao todo se confessaram na 1ª Visitação da Bahia 121 pessoas, contando-se em mais de três centenas as pessoas denunciadas, predominando entre os “crimes”, as blasfêmias, a distorção ou omissão de práticas litúrgicas, a sodomia, o judaísmo e as “gentilidades”, isto é, uma espécie de conversão às crenças e rituais dos brasilíndios.

Nesta primeira Visitação, a maior parte dos réus foi sentenciada aqui mesmo no Brasil, com penas que incluíam açoites, seqüestro de bens, degredo para outra Capitania, não chegando a uma dezena os que foram remetidos a Portugal para serem julgados nos cárceres secretos da Inquisição de Lisboa.

Terminada a visita na Bahia, partiu o Licenciado Furtado de Mendonça para Pernambuco e Paraíba, onde repetiu as mesmas cerimônias intimidatórias, processando outra centena de desviantes da fé e moral oficiais.

Entre 1618-1620 tem lugar a 2ª Visitação na Bahia, tendo como protagonista o Bispo D. Marcos Teixeira, redundando na prisão de outro tanto de infelizes, em sua maior parte acusados de praticarem rituais judaicos. Assim sendo, na tentativa de quantificar o número das vítimas da Inquisição na Capitania da Bahia, conseguimos localizar até o presente um total de 235 moradores, entre baianos e colonos nascidos em outras terras, que chegaram de fato não só a ser denunciados, mas a sofrer processo formal com sentença e punição. Provavelmente, este número deve ser superior, pois dentre os mais de 40 mil processos arquivados na Torre do Tombo em Lisboa, muitos há que ainda não foram catalogados, e que poderão aumentar o número dos réus procedentes do Brasil.

A partir de pesquisas em Portugal, eis a lista dos “crimes” de 235 moradores da Bahia processados pela Santa Inquisição entre 1546 a 1821, data em que é extinto este tribunal eclesiástico: judaísmo: 96; bigamia:34; blasfêmia: 33; sodomia: 18; gentilismo: 12; luteranismo: 10; feitiçaria: 10; contra a Inquisição: 8; falsos padres: 6; irreligiosidade: 6; solicitação: 2. Como nunca se instalou no Brasil um Tribunal Inquisitorial, cabia aos famigerados Comissários e Familiares do Santo Ofício a temida tarefa de denunciar, prender, seqüestrar os bens, e embarcar para o Reino os suspeitos enquadrados no rol de crimes do conhecimento da Santa Inquisição. Viveram na Bahia mais de mil destes funcionários inquisitoriais, muitos deles dando origem a importantes cepas da aristocracia local.

A maior parte das vítimas do Santo Ofício oriundos da Bahia processados pelo Monstrum Horrendum, teve como castigo, além do ultraje de ter sua sentença lida num Auto-de-Fé em Lisboa, a perda de seus bens, os açoites pelas principais ruas da capital do Reino, a prisão por longos anos nos lúgubres cárceres secretos do Rocio, o degredo seja para a África ou para servir nas galés del Rei. Aproximadamente 1.200 réus da Inquisição portuguesa chegaram a ser queimados nos Autos-de-Fé, 90% dos quais pelo crime de judaísmo. Moradores do Brasil, temos notícia certa de 20 réus queimados em Lisboa – além do infeliz herege executado em Salvador, anos antes da primeira Visitação.

Desta vintena de colonos do Brasil queimados na Metrópole, seis viveram na Bahia, todos condenados pelo crime de judaísmo; a saber: 1644, Gaspar Gomes, soldado e sapateiro, morador em Salvador; 1647, José de Lis (Isaac de Castro), professor, residente em Salvador; 1709, Rodrigo Álvares, farmacêutico, 32 anos, residente no interior da Bahia; 1731, Félix Nunes de Miranda, comerciante, 28 anos, morador em Salvador; e 1739, Luiz Mendes de Sá, comboieiro, 35 anos, morador em Rio das Contas. Além destes infelizes, um controvertido baiano também terminou seus dias na fogueira do auto-de-fé, realizado em 13 de outubro de 1726: trata-se do Padre Manuel Lopes Carvalho, natural de Salvador, 42 anos, Vigário de São Miguel de Cotegipe, que tinha entre suas culpas o dizer que os judeus só erraram em não ter aceito o Messias, mas que estavam certos em cumprir a Lei de Moisés, guardando o sábado, a circuncisão e outros rituais do Antigo Testamento; que o Padre Antônio Vieira, também ele vítima da Inquisição, “foi a melhor luz de toda a Igreja”; dizendo com afronta aos Inquisidores, que “devia seguir o que Deus lhe ensinava, e não o que lhe propunham na Mesa do Santo Ofício”.

Revoltado com os rigores de sua prisão, certamente sofrendo demência mental, chegou ao extremo de proclamar-se ele próprio como o Messias prometido pelos Profetas, enquanto acusava o Santo Tribunal “de não ser de Cristo mas de Maomé”. Por pouco não se atirou janela abaixo da Sala de Audiências do Rocio, ao gritar desesperado que“a Mesa inquisitorial era um tribunal de ladrões, que o tinham conservado nos cárceres por anos seguidos, como morto e abstraído do mundo, sem ter comunicação com os homens e privado do uso dos sentidos de ver, ouvir e falar, por quanto se falam os réus uma palavra mais alto, logo os castigam”!

 Pobre clérigo, ele próprio vítima da intolerância de seus colegas de batina. Não teve apelação: foi o primeiro sacerdote do Brasil a ser queimado pelo Santo Ofício. Depois dele, já em 1761, outro religioso, o jesuíta Gabriel Malagrida, também terminou seus dias na fogueira inquisitorial: italiano de nascimento, este inaciano percorreu amiudamente o território baiano, de Jacobina à Comarca de Ilhéus, fundando em Salvador o Recolhimento do Santíssimo Coração de Jesus da Soledade, ainda hoje funcionando no bairro da Lapinha. Até Voltaire e o próprio papa Clemente XIII protestaram contra a execução deste velhinho com mais de setenta anos, vítima de flagrante injustiça inquisitorial, patrocinada então pelo poderoso Marquês de Pombal.

O último morador da Bahia a ser condenado à fogueira foi Manoel de Abreu, morador em Campos, que tinha parte de cristão -novo. Apesar de ter morrido no cárcere, nem por isto deixou de ter sua “estátua” queimada no auto-de-fé, realizado em 1769, encerrando aí as condenações à morte das vítimas do Santo Tribunal.

Uma triste página de nossa história, onde a intolerância e o fanatismo tinham foros de verdade, e levaram às barras do tribunal da fé milhares de cidadãos, simplesmente por pensarem e agirem de acordo com suas consciências, advogando liberdades e novos estilos de vida hoje plenamente reconhecidos pelas ciências e pelos direitos humanos como legítimos e legais. Inquisição, nunca mais!

Notas 1 Este artigo, com pequenas modificações, foi originalmente publicado com o título 1591-1991: 4º Centenário da Visitação do Santo Ofício ao Brasil, no Diário Oficial Leitura, Imprensa Oficial de São Paulo, n.10, v. 110, junho l991, p.1-3. · 27 · 2 Frei Vicente do Salvador. História do Brasil (1500-1627). São Paulo: Editora Weiszflog, 1918, p. 191-192. 3 Mott, Luiz: A Inquisição em Ilhéus, Revista da Federação das Escolas Superiores de Ilhéus e Itabuna, ano VI, nº 10, 1989, p. 73-83. 4 Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 4-1-1982. 5 Sousa, Gabriel Soares. Tratado Descritivo do Brasil em 1587, São Paulo: Martins Editora, 1971, p. 258. 6 Todos os detalhes da instalação desta Visita constam na obra de Abreu, Capistrano de. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil, Rio de Janeiro, Editora F. Briguiet, 1935, p. 8 e seguintes. Reedição de Vainfas, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 7 Abreu, Capistrano, op.cit., p. 20 e ss. 8 Siqueira, Sônia. A inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Editora Ática, 1978. 9 Mott, Luiz: Regimentos dos Comissários e escrivães do seu cargo, dos qualiflcadores e dos familiares do Santo Ofício. Salvador: Centro de Estudos Baianos, 1990. 10 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Proc. n° 9.255


quinta-feira, 20 de junho de 2013

INQUISIÇÃO NO PIAUÍ

Por Claucio Ciarlini Neto

A história do Brasil é mergulhada em mitos e silêncios. Um destes foi de que não houve Inquisição no Brasil, devido ao fato de não ter havido um tribunal atuando em terras brasileiras, porém esta interferiu bastante na vida colonial durante mais de dois séculos, atingiu as regiões mais distantes e perseguiu portugueses residentes no País e brasileiros natos, através de seus visitadores, comissários, bispos, vigários locais e “familiares”. Quem era pego pelos “olhos e ouvidos” desse tribunal logo era conduzido para Portugal, e lá recebia sua sentença.

Os elementos mais visitados foram os cristãos-novos, acusados de praticarem secretamente rituais judaicos. As investigações abrangiam, também, culpas de sodomia, bruxaria e blasfêmias contra a Igreja católica, incluindo luteranos e judaizantes. Os jesuítas, assim como os vigários locais, ajudavam na busca dos culpados e suspeitos.

  No Piauí colonial, vários foram os “pecadores” julgados por essa instituição, segundo o Pesquisador Luiz Mott em seus achados na Torre do Tombo: “Ao todo, conseguimos localizar na Torre do Tombo (Lisboa) 23 nomes de moradores do Piauí denunciados ao Tribunal de Lisboa: 15 por desvios relacionados à fé e 8 por crimes sexuais, entre estes 7 sacerdotes. Apenas um destes processos mereceu rápida menção na ainda insuperada Cronologia Histórica do Piauí, de Pereira da Costa: portanto a presença inquisitorial nestes sertões é um tema ainda praticamente virgem na historiografia nacional”. 

O primeiro morador do Piauí a ser capturado pela Inquisição foi Dionísio da Silva, natural da Paraíba. Vinha de uma família de cristãos novos que, secretamente,  realizavam algumas práticas cerimoniais próprias da religião judaica. Cristão novo era a designação dada em Portugal, Espanha e Brasil a judeus convertidos ao cristianismo. Luiz Mott, brilhante pesquisador e antropólogo, em suas abundantes investigações na Torre do Tombo (Lisboa), encontrou, e catalogou, vários casos de moradores capturados pelo Tribunal Inquisitorial em muitos estados do Nordeste, dentre eles Pernambuco, Bahia, Maranhão, Ceará e Piauí, e é Mott que nos relata sobre o ocorrido com a família de Dionísio, em artigo intitulado “Inquisição no Piauí”:

“Seu pai, José Nunes, lavrador de mandioca, demonstrava inclusive certa hostilidade à religião de Cristo, tanto que fora visto desrespeitar uma imagem de Nossa Senhora agredindo-a com uma faca, repreendia seu filho quando o via rezar o rosário e costumava dizer ‘que não devia adorar a um Deus que foi açoitado e morreu’.

Por tais dizeres e práticas proibidas, quase toda sua família foi presa e sentenciada pela Inquisição: a partir de 1729 foram presos seu pai, três tios e uma sobrinha, sendo condenados a abjurar seus erros judaicos e usarem perpetuamente o sambenito – aquela humilhante capa, tipo um escapulário, identificador dos condenados pelo Santo Ofício. Foi sua tia Joana  do Rêgo quem o denunciou: naqueles tempos de terror, para salvar a própria pele, filhos denunciavam seus pais; pais acusavam seus próprios filhos, pois esconder os crimes alheios implicava penas ainda maiores para os réus”.

Em meados de 1730, Dionísio fugiu da Paraíba para o Piauí, foi morar na Fazenda das Éguas, na Ribeira dos Guaribas, distrito da Mocha. Instalou-se como vaqueiro na propriedade. Depois de onze anos, a Inquisição conseguiu encontrá-lo, delatado por seu vizinho, assim como sua “covarde tia” havia feito anos antes com sua família, e o Juiz Ordinário da Mocha, na ocasião, efetuou sua detenção, cumprindo ordem por determinação inquisitorial.

Para instrumentalizar o processo, não havendo até então representantes do Santo Tribunal no Piauí, para lá se dirigiu o Juiz Comissário Frei João da Purificação, do convento carmelitano do Maranhão, que gastou 41 dias entre viagem e inquirições; despendendo a soma de 40$000 com tal diligência, o equivalente ao valor de 16 bois, concluindo com a informação de que ‘todas as testemunhas eram de verdade e crédito, dizendo o mesmo unani­memente”.

 Em 23 de janeiro de 1744, Dionísio recebeu sua punição: “é colocado no “potro” – uma espécie de cama de  madeira onde o réu era amarrado, tendo suas pernas e braços apertados por correias de couro até provocar insuportáveis dores e hematomas.

Diz o documento que o  pobre Dionísio “no potro gritava por Jesus e a Virgem Nossa Senhora do Rosário”. Ouviu sua sentença no Auto de Fé de 21 de junho do mesmo ano, sendo condenado a abjurar seus erros judaicos, a cumprir algumas penitências espirituais, como rezar salmos, comungar e confessar nas principais festas litúrgicas do ano e usar o sambenito para sempre. Teve seus bens confiscados”.

No mesmo ano da prisão de Dionísio, ocorreu mais um caso registrado na Torre do Tombo sobre um morador do Piauí. Foi na freguesia de Nossa Senhora do Livramento de Paranaguá, onde um sacerdote abusou de sua autoridade e recebeu a punição do Santo Oficio, tratou-se de Padre José Aires, 40 anos, natural do Recife, formado em teologia pela Universidade de Coimbra, que ao constatar uma série de denúncias de desvios pertencentes à jurisdição inquisitorial, exagerou no uso de seus poderes, ordenando algumas prisões “em nome do Santo Ofício”, comportamento severamente punido pois apenas aos Inquisidores era dado o poder de prender e julgar os que pecavam contra a fé.

Mais uma vez Mott: “Quem fez a denúncia foi o próprio vigário de Paranaguá, o padre Francisco Xavier Rosa: disse que o padre visitador chegando à fazenda das Traíras, a duas léguas da Matriz, exigiu que os fregueses viessem buscá-lo debaixo do pálio (aquela espécie de guarda-sol utilizado nas procissões solenes para proteger o Santíssimo Sacramento), e após poucos dias da abertura à visita, mandou prender e seqüestrar os bens do próprio Vigário Rosa, proibindo que lhe falassem na prisão e impondo-lhe restrita dieta.

 A acusação que pesava contra o Vigário de Paranaguá era de ter revelado o segredo da confissão. Culpa grave mas que somente com ordem expressa de Lisboa é que o Comissários ou familiares do Santo Ofício poderiam efetuar a prisão do faltoso. Ao reclamar ao Santo Tribunal das arbitrariedades do Padre Visitador, o Vigário Rosa diz ter sido  preso com uma corrente no pescoço e levado a uma cadeia  na vila de Mocha, e dali para São Luiz, achando-se há 13 meses no cala­bouço.”  Já preso e em Lisboa, Padre José Aires confessou e pediu perdão por seus desmandos, recebendo como sentença o degredo por três anos para o extremo sul de Portugal, nos Algarves.

 Outro caso registrado foi o de  Joaquim de Santana,  sapateiro, natural da Bahia, que mudou-se para Jaguaribe com medo de ser denunciado, pois havia casado uma segunda vez, sendo sua primeira mulher ainda viva. O crime de bigamia era considerado um “pecado horrendo” aos “olhos” da Igreja católica, pois ia contra os preceitos desta, contra o discurso instituído quanto religião, pois depois de casados, ou seja, depois de terem recebido as bênçãos católicas, um casal não poderia se separar, pois dessa forma estariam quebrando uma ordem imposta pela Igreja.

 Porém um dos casos mais tenebrosos registrados sobre as “Vítimas” da Inquisição no Piauí Colonial foram as confissões de duas escravas negras, como bem relata Mott: “Em 1758 registra-se o episódio de feitiçaria mais fantástico da história do Piauí, quiçá um dos mais espantosos de todo nordeste brasileiro: a confissão de duas mestiças da Mocha envolvidas com o diabólico ritual do “sabá”, i.e., uma reunião de demônios com feiticeiras, muito semelhante ao relatado na Europa medieval e moderna, mas rarissimamente documentado na América Portuguesa…”.

“Eu, Joana Pereira de Abreu, mestiça, agora escrava do Capitão Mor José de Abreu Bacelar, e moradora nestas Cajazeiras, Fazenda do dito meu Senhor, Freguesia de Nossa Senhora do Livramento, da Vila de Paranaguá… denuncio e me vou a denunciar a Vossas Excelências Reverendíssimas que haverá oito anos, com pouca diferença, vivendo eu na Mocha, donde nasci e fui criada na casa do dito primeiro meu senhor acima dito, já defunto, uma mestiça forra da mesma vila, chamada Cecília, não estou bem certa no sobrenome, mas cuido que Cecília Rodrigues, bem conhecida na vila por Cecília e tem uma filha chamada Mariana, se me fez Mestra ela e também uma minha irmã mestiça, chamada Josefa Linda, mais velha e que então vivia comigo na mesma casa e depois veio comprada para estas Cajazeiras dois anos antes de eu vir também comprada pelo dito agora meu Senhor Capitão Mor.

Estas foram as duas Mestras que eu tive para tudo o que de mim e delas denunciarei abaixo, pedindo para mim ao Santo Tribunal compaixão pois já o faço arrependida e com prometimento de não tornar a semelhantes erros como os que tem sido em mim…   Um mês antes, me contou a dita Mãe Cecília, que o Demônio tinha torpezas com as mulheres. E que se eu queria falar e ter com ele, ela me ensinaria. Aceitei eu, como rapariga de nenhuns miolos e por outra parte de costumes de pouca ou nenhuma boa educação.

Então me disse ela que eu havia de ir nua à porta da igreja da mesma vila da Mocha, em que vivíamos, e na qual igreja da vila se conserva sempre o Santíssimo Sacramento, que ali havia de bater com as partes prepósteras assim nua umas  três vezes na porta da Igreja indo sempre para trás, e havia no mesmo ponto de chamar por este nome e vocábulo: Tundá,  o qual vocábulo nem eu lhe sei bem decifrar a significação inteira e cabal, mas julgo ser nome do Demônio. E que dali havia de endireitar nua para umas covas de defuntos que estão a um lado da vila, a onde chamam o Enforcado, por se ali ter enforcado algumas vezes alguns delinqüentes. E que ali me havia de aparecer um moleque e que eu pondo-me na postura de quatro pés, ele me havia de conhecer pela parte prepóstera…”.

 Temendo os castigos da Inquisição, Joana Pereira de Abreu delatou ao “Santo Oficio”, a também escrava Cecília que, segundo ela, a teria convencido a fazer parte de um Sabá, ritual de bruxaria em adoração ao Demônio.

A partir da primeira Inquisição, a iconografia cristã passou a representar o “Arcanjo Decaído” não mais como um arcanjo, mas com a aparência de deuses pagãos, como Pã, um deus dos bosques, dos campos, dos rebanhos e dos pastores na mitologia grega e Cernunnos, Deus Cornífero, por ser muitas vezes representado como um homem com chifres adornando a cabeça. Era o Deus da fertilidade, da abundância e patrono da caça para os povos antigos, às vezes era representado alimentando animais; também podia mudar de forma e aparecer como cobra, lobo ou veado.

Tal fato levou, séculos após, à suposição de que bruxas eram adoradoras do demônio, o que não faz sentido, uma vez que a figura do demônio faz parte do dogma cristão, não pertencendo às crenças pagãs e nem existindo personagem de caráter equivalente ao diabo em qualquer panteão pagão. O uso alternativo do nome Lúcifer para designar o mal encarnado, na visão cristã, agravou a ignorância a respeito do culto das bruxas, uma vez que o nome Lúcifer, pela raiz latina, representa portador/fabricante da luz (Lux Ferre), inescapável semelhança ao mito grego de Prometeu, que roubou o fogo dos céus para trazê-lo aos homens.

Concluindo este artigo, foi encontrado por Mott um caso relacionado à suspeita na Fé, fato que os Regimentos Inquisitoriais rotulavam de proposições heréticas (a proposição herética encerrava uma parte de verdade, e era perigosa para a fé porque apresentava essa parcela de verdade como a verdade toda, como por exemplo, quando se diz que é verdade que Cristo é Deus e homem, mas para a Igreja é heresia afirmar que Cristo é apenas Deus ou apenas homem).

Mott transcreveu e analisou com maestria esse episódio ocorrido na Parnaiba do periodo colonial: “Trata-se de um morador da Vila de São João da Parnaíba, José Francisco Souto Maior, natural de Pernambuco, acusado de ter proferido as seguintes heresias: “que Deus tinha obrigação de salvá-lo posto que o criara; que os mártires eram tolos, pois devemos defender à vida acima de tudo; que homem nenhum do mundo não se deixou cair no 6º mandamento,  e perante o Santíssimo Sacramento dizia: eu vos adoro se aí estais…”.

Tal delação traz à data 29 de janeiro de 1802, a única ocorrência de um morador do Piauí já no século XIX. Como as demais denúncias, também esta ficou arquivada no Secreto do Tribunal da Inquisição de Lisboa, sem que este Monstro Sagrado ordenasse qualquer medida punitiva contra o irreverente sertanejo. Já nesta época, o Santo Ofício estava moribundo, e também no Piauí as novas idéias dos iluministas da Revolução Francesa tinham seus adeptos e divulgadores”.

No dia 31 de Março de 1821 foi extinta a Inquisição em Portugal, por uma sessão das Cortes Gerais da Nação Portuguesa. Um “mundo da razão” pedia passagem e certos tipos de radicalização da fé não poderiam mais ser bem aceitos, pois afinal de contas, as revoluções que o capitalismo necessitava, e assim impulsionava, ocorriam já há décadas e o Brasil acabaria por não ficar de fora, mesmo que na forma de um Império herdado por um filho de sua antiga metrópole.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

INQUISIÇÃO NA PARAÍBA





Se o teu irmão, filho de tua mãe
ou teu filho ou tua filha, ou tua mulher que repousa sobre o teu seio, ou o amigo a quem amas como à tua alma, te quiser persuadir, dizendo-te em segredo: Vamos, e sirvamos a deuses estranhos (...), não cedas ao que te diz, nem o ouças, nem teus olhos lhe perdoem (...), mas logo o matarás; seja a tua mão a primeira sobre ele, e depois todo o povo lhe ponha a mão. (...)Se ouvires alguns que dizem: Alguns filhos de Belial saírem do meio de ti, e perverteram os habitantes da sua cidade, e disseram: Vamos e sirvamos aos deuses estranhos, que vós não conheceis; informa-te com solicitude e diligência, e, averiguada a verdade do fato, se achares ser certo o que se disse, e que, efetivamente se cometeu tal abominação, imediatamente farás passar à espada os habitantes daquela cidade; e destruí-la-ás com tudo que há nela, até aos gados. Juntarás também no meio das suas praças todos os móveis que nela se acharem, e queimá-los-ás juntamente com a cidade, de maneira que consumas tudo em honra do Senhor teu Deus, e que seja um túmulo perpétuo, e não seja mais reedificada, e não se te pegará às mãos nada deste anátema, para que o Senhor aplaque a ira do seu furor, e se compadeça de ti (...).” (Bíblia Sagrada, Deuteronômio, 13, 6-9 e 12-27. Grifos nossos.),



No ano de 1492 cerca de 93 mil judeus foram expulsos da Espanha pelos reis católicos e refugiaram-se em Portugal onde o rei Dom Manuel I, se mostrava mais tolerante com a comunidade judaica. A partir de 1497 os reis católicos pressionaram o reino português na questão do asilo dado aos judeus, o que fez com que Dom Manuel obrigasse a conversão forçada dos judeus. Estes judeus convertidos por decreto passaram a ser conhecidos como cristãos-novos.

Em 1506 o “Pogrom” de Lisboa ou a Matança da Páscoa, resultou na morte de aproximadamente 3000 judeus, incitados pelos prelados onde  são trucidados pelos piedosos católicos em praça pública. 

Essa perseguição ferrenha aos judeus que se deu na época dos descobrimentos, motivou a corrida de muitos judeus para o Novo Mundo, incluindo o Brasil, nas cidades do Rio de Janeiro, Salvador, Pernambuco e Paraíba.

Paraiba Judaica

Desde o século XVI a Paraíba foi um foco de judaísmo. Os cristãos-novos que aqui viviam não eram abastados como os da Bahia ou do Rio de Janeiro, mas também tinham algumas posses. Tiravam sua subsistência da agricultura e possuíam alguns escravos. Seu número cresceu após a expulsão dos holandeses, quando judeus que não quiseram deixar o Brasil penetraram fundo no sertão.

Não demorou muito para que os judeus que fixaram residência por aqui e os paraibanos descendentes de judeus aparecem como suspeitos de judaísmo. O primeiro visitador que a Inquisição mandou ao Brasil no ano de 1595, Heitor Furtado, já teve ordem de investigar a Paraíba. João Nunes, cristão-novo que aí viveu em fins do século XVI, e teve importante papel na colonização local, foi denunciado por ter dito “quando me ergo pela manhã que rezo uma Ave Maria, amarga-me a boca”.

Segundo dados obtidos do site do Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba, a cidade de Filipéia de Nossa Senhora das Neves (João Pessoa), no ano de 1625 – 40 anos de sua fundação, tinha cerca de 80 casas, 3 igrejas e 3 conventos o que, pela proporção, dá par se notar o valor da Igreja durante a colonização.

Pesquisas mais exaustivas poderão esclarecer ainda obscuros ângulos da realidade dos ‘judeus’ da Paraíba. As suspeitas aparentes repetiam as seculares acusações de que “faziam ajuntamentos”, costumavam estar na Igreja com muito pouco acato e reverência no tempo em que se alevantava o “Santíssimo Sacramento” quando falavam uns com os outros, e não traziam livros de rezas nem de contas”.

A chegada aqui do Santo Ofício, em 1595, não teve muita repercussão porque a população era muito pequena, foram cerca de 16 denúncias e os casos mais interessantes foram de bigamia e sodomia, embora tivessem alguns casos judaizantes.

 Na quaresma de 1673, a Inquisição de Lisboa ordenou que se publicasse um edital na igreja de Nossa Senhora das Neves, chamando todos fieis católicos a vir denunciar sob pena de excomunhão. Deviam contar tudo que presenciaram ou “ouviram” contra a Santa Fé Católica. O vigário da Igreja de Nossa Senhora das Neves, padre Francisco Arouche e Abrantes, leu o edital no púlpito. A população se agitou e de boca em boca corria a notícia da excomunhão. Amedrontados, sussurravam que as iras do inferno iriam desabar sobre os cúmplices.

 Acontece então algo surpreendente: apenas oito pessoas se apresentaram perante o vigário para cumprir as ordens da Igreja. Todos repetiram que o faziam por medo. Durante os treze meses que durou o inquérito, de 26 de fevereiro de 1673 a 20 de março de 1674, o vigário ouviu apenas as denúncias desses oito paraibanos. A maioria dos denunciantes pertencia à governança. A população que ouviu a chamada da Igreja não compareceu para denunciar.

Esse fenômeno já se havia passado na Bahia, durante a “grande inquirição” de 1646. Os oito denunciantes repetiram que “ouviram dizer” sobre feitiçarias e superstições, mas principalmente sobre “judaísmo”. Na Paraíba, a heresia judaica se entende durante séculos. Na investida inquisitorial do século XVIII, quando são presos em poucos anos cerca de cinqüenta paraibanos, as evidências sobre as ‘sinagogas’ e as reuniões secretas aumentaram. O Santo Ofício obteve vantagens econômicas com suas prisões, cujo montante ainda não foi avaliado.

Passemos ao século XVIII, onde poderemos focalizar as famílias de judeus da Paraíba.

Posso mostrar-lhe um impresso, de autoria de Sérgio Maia, onde se vê a Capela do Engenho Santo André, e onde foram travadas renhidas batalhas contra os holandeses. Hoje existem apenas ruínas. O Engenho Santo André é hoje a usina de açúcar Santana, no município atual de Santa Rita, Paraíba, disse o professor Carlos André Macêdo Cavalcanti.

Continuando diz o historiador Carlos André que nesse Engenho Santo André viveu Clara Henriques da Fonseca, condenada pela Inquisição de Lisboa, em 17 de junho de 1731. Era mãe de Antônio da Fonseca Rego, morador no Engenho Velho, município de Santa Rita, condenado em 6 de julho de 1732. Antônio da Fonseca Rego casou com Maria de Valença, natural do Engenho do Meio, também na várzea do rio Paraíba, também condenada pela Inquisição de Lisboa em 17 de junho de 1731 e em 20 de julho de 1756 a cárcere e hábitos perpétuos sem remissão. 

Foram dois processos. São os pais dele Joana Nunes da Fonseca, casada com João Soares Filgueira. O casal já era falecido em 1777. Residia na serra do Martins, Rio Grande do Norte, fugindo da Inquisição portuguesa. São pais dele Florência Nunes da Fonseca, casada com João Francisco Fernandes Pimenta. Abandonando o refúgio da serra do Martins, o casal foi residir em Catolé do Rocha, na Paraíba, no início do século XIX. Três filhas do casal casaram com dois filhos de Antônio Ferreira Maia. Cosma casou com Francisco Alves Maia, ela falecida em 2 de março de 1827, ele falecido em 5 de agosto de 1831. Damiana casou com Manoel Alves Ferreira Maia, foi sua primeira mulher e Maria, a terceira filha dos descendentes judeus, também casou com o cunhado, o viúvo Manoel Alves Ferreira Maia.

Grande parte da família Maia do Catolé do Rocha tem como herança o sangue dos hebreus, que se perpetua através dos tempos em todas as partes do globo terrestre. Américo Sérgio Maia, autor destes apontamentos a que agora me refiro, é descendente de Cosma e Damiana por parte de pai e parte de mãe.

Por aqui vocês vêem a dimensão lírica da História, o emocionante disso tudo, abrangendo um casal e toda uma família vítima da Inquisição, que foi levada para Lisboa e tiveram destinos trágicos.

Mas, a História continua. Quando falo nessa dimensão lírica é para realçar essa capacidade, essa potencialidade, a força que vem da própria vida, que nem a Inquisição, nem o nazismo, nem nenhum regime totalitário é capaz de matar. A vida continua devido a esse impulso lírico.

Vemos também, dentro da História da Paraíba, o deslocamento de famílias, de núcleos familiares daqui da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará para o interior, para o sertão. O que se deu juntamente no século XVIII no momento em que se intensificava o povoamento do sertão.

Assim, quero continuar falando sobre essa família ilustre da Paraíba.

Antônio da Fonseca Rego era filho de Clara Henriques, como vocês viram. Clara Henriques é uma figura que emociona quando a gente passa a vista no rol dos culpados registrados no livro de Anita Levinsky, porque ela emerge como a própria figura da máter dolorosa. Ela era uma senhora de 71 anos, uma matriarca, parente de todo mundo, porque esses cristãos-novos daqui da várzea da Paraíba eles constituíam uma grande família: os Fonseca, os Henriques, Nunes, Pereira, Chaves. Mas todos entrelaçados e descendentes de dois casais que remontam à época dos holandeses. De Ambrósio Vieira, casado com Joana do Rego, que por sinal se multiplicam essa Joana do Rego, de geração em geração e Diogo Nunes Tomaz, casado com Guiomar Nunes, que também tem outra seqüência de Guiomar Nunes.

 Pois bem, Clara Henrique morava no Engenho de Santo André, ali num sítio histórico, e ali toda essa comunidade se reunia. Se eles foram processados, não foram inocentes, porque eles realmente judaizavam. Nas suas reuniões celebravam seus sabás, os jejuns de expiação e todo o ritual do calendário judaico.

Clara Henriques foi uma grande figura e foi presa quando já era viúva; foi para Portugal e não voltou. Deve ter morrido. Antônio da Fonseca Rego foi acusado de judaísmo e feitiçaria. Maria de Valença, que foi processada duas vezes, na primeira foi levada para Portugal em 1731. Quando foi posta em liberdade não pôde voltar e foi acolhida numa casa de cristão-novos, por sinal na casa de um irmão do teatrólogo Antônio José da Silva. Como se sabe, naqueles interrogatórios da Inquisição a pressão era muito grande, e por conta disso ela denunciou o marido, e quando ele chegou lá denunciou o filho Simão, que deveria ter uns 15 anos. Simão depois se tornou um olheiro, um espião a serviço da Inquisição. 

Eu pergunto, prossegue o professor Carlos André, teria sido uma lavagem cerebral? Simão quando foi solto ficou abrigado na mesma casa onde a mãe estava e denunciou que ela estava preparando o jejum da expiação. Justamente quando estavam reunidos na casa de um cunhado, para iniciar o jejum, chega o pessoal da Inquisição e prende todo mundo. É esta a prisão de Clara pela segunda vez, que já não andava boa do juízo. O processo vai para Roma, demora sete anos para voltar para Lisboa, sem uma solução em face da sua doença mental. Como não soubessem o que fazer com ela, mandaram-na para Évora, sendo afinal libertada, tendo morrido na miséria, mendigando nas ruas de Évora.

Simão foi mandado para o Rio de Janeiro e durante a viagem endoideceu, e ficava dizendo que era judeu, talvez por remorso, retornando do Rio para Lisboa.

Tem também o processo de Luiz de Valença. Vamos ter notícia de Luiz de Valença porque ele compareceu no mesmo auto de fé do padre Malagrida, tendo morrido no cárcere.

Com esse relato vocês podem ter uma idéia do que significou a Inquisição na Paraíba. Outra família que também se tem notícia é a de João Inácio Cardoso Darão. Esse conseguiu fugir aqui das perseguições, foi para o Ceará e lá se casou com uma moça da família Alencar, em Barbalha. Depois volta e se refugia em Mari do Seixas, saindo de lá para Pombal. Era uma família de artesãos, que passaram a arte da ourivesaria para os filhos.

Era uma família pequena. João Inácio era casado com Catarina Liberato de Alencar. Deles descende o professor Inácio Tavares de Araújo e José Romero Araújo Cardoso, que é escritor e professor de Geografia em Mossoró. O interessante dessa família é que eles conservaram na memória familiar a sua ascendência judaica e conservam viva  na memória a história de Branca Dias, da Branca Dias da Paraíba..

Segundo o professor Inácio, na memória da família (não tem documento) João Inácio e Francisco se diziam que eram filhos de Simão Dias Cardoso de Araújo, morador no Engenho Velho, nas margens do Gramame. Ora, esse Simão Dias aqui da margem do Gramame é dado, embora não tenha documentação, como pai da própria Branca Dias. Estou apenas passando aquilo que colhi na família.

No rol de culpados de Anita Novinsky nós vamos encontrar um João Almeida, um Inácio Cardoso e um Pedro Cardoso, filhos de Francisco Cardoso. Mas esse Francisco Cardoso era o senhor do engenho, do Engenho Tibiri. Acredito que haja uma relação desses três com essa descendência de  João Inácio Como se vê, a história continua através da família, que é instituição legítima, primeira da sociedade.

No rol dos culpados de Anita Novinsky, vamos encontrar um Manoel Homem, cristão-novo, natural do Engenho das Tabocas e morador no Taipu. Viúvo, senhor de engenho, filho de Antônio de Figueiroa, lavrador de cana. Testemunha: Antônio Nunes Chaves, 12 de maio de 1732. E nada mais consta.

Mas acontece que no volume II, da NOBILIARQUIA PERNAMBUCANA, vamos encontrar o seguinte: e o sobredito, Manoel Homem de Figueiroa, que ainda vive em crescida idade, foi filho de Antônio de Figueiroa, que o era de Jorge Homem Pinto e de sua mulher D. Ana de Carvalho.

Na mesma fonte encontra-se que Antônio de Figueroa teria nascido em 1634 e Jorge Homem Pinto falecido em 1651. Poderíamos fazer uma relação entre esse número Homem constante do rol dos culpados com esse Manoel Homem citado por Borges da Fonseca (fica em aberto o assunto; trouxe-o apenas para ilustrar).

Manoel Homem foi casado com Margarida de Albuquerque, herdeira do Taipu. Dessa descendência se encaminha (faltam alguns zeros) para José Lins do Rego.

 Outra família: Diogo Nunes Tomaz, esse é o segundo nome. Foi casado com D. Vitória Barbalha Bezerra, neta por via materna de Duarte Gomes da Silveira. Ele é um ramo do morgado. Como ela não mostrou arrependimento, foi queimada viva. Ela morava no Engenho Santo André, mas era pernambucana, tanto que lá é tida como heroína, e nós também, porque ela morava aqui. Ele era da vila de Serinhaém, e morador na Paraíba. Lá no rol dos culpados ele é dado sem ofício, já devia ser um homem idoso. Era pai de Diogo Nunes Tomaz, casado com Catarina Ferreira Barreto, que foi preso em 1729 e vemos, através de depoimento, porque não houve inventário, que ele era primo da morgada.

Esse é o Brasil dos 500 anos, o  Brasil das nossas raízes, porque não se pode fazer uma comemoração, escrever-se sobre a nossa história sem a história das nossas famílias, a história dos povoadores desses nossos municípios, porque eles é que realmente fizeram a história.

Sugestão de Leitura
Branca Dias