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domingo, 10 de março de 2013

DEUS NÃO É AMOR

As diferenças entre Jesus e Javé,
na leitura do crítico Harold Bloom 

Jerônimo Teixeira
  



A influência é o tema obsessivo de Harold Bloom. Desde A Angústia da Influência, de 1973, o crítico literário americano vem construindo uma elaborada teoria em que os embates titânicos entre um escritor em busca de originalidade e seus grandes antecessores constituem a mola mestra que impulsiona toda a literatura ocidental. 

Jesus e Javé – Os Nomes Divinos (tradução de José Roberto O'Shea; Objetiva; 276 páginas; 35,90 reais), que está chegando às livrarias brasileiras, pode ser lido como um exame da matriz de todos os casos de influência: a relação entre o Novo Testamento cristão e a Bíblia hebraica. Os teólogos cristãos diriam que, nesse caso, não existem angústia nem influência: o Novo Testamento é apenas a coroação natural do Antigo.

Grande parte de Jesus e Javé é dedicada a derrubar essa idéia, a partir de comparações entre os dois personagens do título. Embora a análise de Bloom se prenda à letra do texto bíblico, suas implicações ultrapassam o campo estrito da literatura – e até da religião. Com sua verve polêmica, o autor afronta um arraigado lugar-comum: o de que existe uma "tradição judaico-cristã". "Isso é um mito usado para fins políticos, e eu detesto intensamente a política", disse o crítico a VEJA. "Não existe nenhuma continuidade entre o judaísmo e o cristianismo." 

O cristianismo, afirma Bloom, reorganizou a Bíblia hebraica para transformá-la em uma espécie de preâmbulo da salvação cristã – o Antigo Testamento. Os profetas, por exemplo, foram deslocados do centro da Bíblia hebraica para o fim do Antigo Testamento, imediatamente antes dos Evangelhos – e essa mudança simples transformou-os em arautos da vinda de Jesus. Mas a junção dos dois Testamentos é, segundo o crítico, artificial. Escrito em grego, o Novo Testamento – e em especial as epístolas de São Paulo – tem dívidas com o pensamento helênico.

A idéia de um Deus Pai etéreo e espiritual, que se consolidou na tradição cristã, tem mais afinidade com a filosofia idealista de Platão do que com a imagem hebraica da divindade. Javé, o Deus hebraico, era um personagem muito humano. Seu poder é incomensurável, mas ele tem uma realidade corpórea muito palpável. Divide uma refeição com Abraão na tenda desse patriarca e se apresenta para Josué como um guerreiro de espada em punho.

Esse Deus caprichoso e violento não é o objeto de estudo da teologia, disciplina abstrata inventada pelos gregos. E tampouco é uma divindade amorosa como aquela que os cristãos cultuam: em certas passagens da Bíblia, a distância que ele mostra em relação ao seu povo escravizado por invasores estrangeiros justifica o apelido que o poeta inglês William Blake – um dos favoritos de Bloom – lhe deu: Nobodaddy, palavra composta que se traduziria mais ou menos como "pai de ninguém".

É claro que Jesus também tem uma personalidade muito humana, que em alguns pontos até pode ser aproximada de Javé – especialmente no Evangelho de São Marcos. O exame que Bloom faz desse livro revela um personagem muito diferente daquele consolidado pela fé: um profeta enigmático, que cultiva o silêncio. Jesus mostra muito pouco afeto por seus discípulos, que parecem escolhidos por sua incapacidade de entender o que o mestre prega – em um dos lances mais excêntricos e iconoclastas do livro, Bloom diz que o brutamontes Sylvester Stallone seria o ator ideal para interpretar o apóstolo Pedro no cinema.

A morte na cruz, porém, é o que separa definitivamente Javé e Jesus. O Deus temperamental da Bíblia hebraica jamais teria essa disposição para o sacrifício – ou, como diz Bloom, para o suicídio. Jesus e Javé, portanto, não são feitos da mesma substância, como prega a doutrina cristã. E o cristianismo ainda se afastaria da fé judaica ao instaurar o que seria de fato uma volta ao politeísmo: Deus Pai divide seu poder com o filho, o Espírito Santo – e até com a Virgem Maria. O judaísmo, portanto, estaria mais próximo do Islã, com sua crença unívoca em Alá, do que do cristianismo. "Mas é claro que ninguém hoje, seja muçulmano ou judeu, se sente disposto a falar em uma 'tradição judaico-islâmica'", diz Bloom.

A leitura de Jesus e Javé está destinada a incomodar os religiosos mais ortodoxos, sejam eles judeus ou cristãos. No entanto, Bloom não contesta uma só linha dos textos sagrados – apenas enfatiza certos aspectos que a fé normativa negligencia. Ele admira pensadores anti-religiosos como Nietzsche e Freud, mas não os segue até o fim na negação de qualquer idéia de divindade.

Bloom se define com um paradoxo: um judeu que não confia na Aliança firmada entre Deus e o seu povo. No epílogo do livro, ele se diz assombrado por pesadelos em que Javé aparece nas mais diversas formas, inclusive com a cara e o charuto de Freud. Javé e Jesus são figuras incontornáveis – respostas para uma sede de transcendência que nem mesmo a literatura de Shakespeare, tão amada por Bloom, parece suficiente para suprir.

Trecho de Jesus e Javé – Os Nomes Divinos, de Harold Bloom


PARTE I JESUS
Capítulo 1
Quem Foi Jesus e o que Ocorreu com Ele?


Não há fatos comprovados acerca de Jesus de Nazaré. Os poucos fatos que constam da obra de Flávio Josefo, fonte da qual todos os estudiosos dependem, são suspeitos, pois o historiador era José ben Matias, um dos líderes da Rebelião Judaica, que salvou a própria pele por ter bajulado os imperadores da Dinastia Flaviana: Vespasiano, Tito e Domício.

Depois que um indivíduo proclama Vespasiano como o Messias, ninguém deve mais acreditar no que tal pessoa escreve a respeito da sua própria gente. Josefo, mentiroso inveterado, assistiu, tranqüilamente, à captura de Jerusalém, à destruição do Templo e à matança dos habitantes.

Os especialistas afirmam que Josefo tinha pouco ou nada a ganhar com as informações fragmentadas acerca do galileu Josué (Yeshuá, em hebraico, Jesus, em grego), mas o historiador que traiu seu povo era tão sorrateiro que suas motivações (se é que as tinha) permanecem enigmáticas. Josefo esclarece que Jesus de Nazaré era filho de José e Maria (Míriam), e irmão de Jacó (Tiago), foi batizado por João, e depois passou a atrair pupilos, atuando como mestre sapiencial, sendo, finalmente, crucificado sob ordens do sátrapa romano, Pôncio Pilatos.

A leitura e reflexão sobre materiais aos quais tive acesso levam-me a duvidar que Jesus constasse da multidão de vítimas de Pilatos. O carismático rabino de Nazaré era perito em evasiva e equivocação, era também um hábil sobrevivente, desde a infância, quando os pais lhe disseram que, embora artesão, sua descendência o colocava em lugar de destaque na casa real de Davi, cuja prole carregava consigo a bênção insofismável de Javé.

Primogênito de pais davídicos, Jesus era candidato ao extermínio nas mãos dos seguidores de Herodes e outras autoridades romanas. Entre os judeus, nunca existira um Messias mais relutante e mais legítimo. A idéia de comandar uma guerra nacionalista contra os romanos e os brutamontes mercenários que lhes serviam contrariava, inteiramente, a natureza daquele gênio espiritual judaico, que, involuntariamente e, sem dúvida, infeliz por sê-lo, era o rei legítimo dos judeus.

Jesus não integrou a resistência, ao contrário do que, inicialmente, fez Josefo, embora viesse a abandonar os companheiros aguerridos, tais como Simão bar Giora e João de Gischala, líderes da Guerra Judaica contra Roma, salvando a pele, à custa da própria integridade e da estima dos judeus.

Tampouco dispomos de fatos comprovados sobre os ensinamentos de Jesus; sequer sabemos se ele teria nascido quatro anos antes do início da Era Comum, ou com que idade teria sido crucificado, levando em conta o registro cronológico de 33 anos.

Conforme reza a lenda, desconfio que fosse sábio o bastante para escapar da execução, e que tenha se dirigido ao norte helenizado da Índia, limite extremo das grandes conquistas de Alexandre, onde algumas tradições situam seu sepulcro.

Nesse particular, sigo a tradição gnóstica, simplesmente porque os ditos gnósticos de Jesus, no Evangelho de Tomé, parecem-me mais autênticos do que toda a gama de pronunciamentos atribuídos ao rabino de Nazaré nos Evangelhos Sinóticos e no mais-que-tardio Evangelho de João.

Não há uma sentença a respeito de Jesus, em todo o Novo Testamento, composta por alguém que tenha conhecido pessoalmente o relutante Rei dos Judeus, a menos que (suposição improvável) a Epístola de Tiago seja, com efeito, de autoria de Tiago, seu irmão, e não de um dos seguidores de Tiago, os ebionitas, ou "homens pobres", alguns dos quais sobreviveram ao holocausto de Jerusalém ao fugir para Pella, na Jordânia, obedecendo ao comando profético de Tiago.

Segundo os estudiosos, as epístolas de São Paulo datam de quarenta anos após a morte de Jesus, os Evangelhos têm datação fixada em cerca de uma geração posterior, e o sumamente helenístico (e quase gnóstico) Evangelho de João data de um século, ao menos, após o possível desaparecimento do mestre itinerante dos pobres e dos excluídos. Não há motivos razoáveis para se questionar o consenso dos especialistas, mesmo que outra pessoa não tenha sido crucificada no lugar de Jesus, conforme sugere, maliciosamente, a tradição gnóstica. Tiago, o Justo, líder dos judeu-cristãos de Jerusalém, na verdade poderia ter sido filho, ou até mesmo neto, de Jacó (Tiago), irmão do próprio Jesus.

Leitores de hoje em dia, quer cristãos, judeus ou muçulmanos, quer céticos ou fiéis, precisam voltar ao ponto de partida para decifrar a história secreta do pregador carismático que, agindo com sabedoria, declinou de se tornar Rei dos Judeus, mas que, ironicamente, talvez tenha sofrido como tal, nas mãos dos romanos.

Capítulo 2 As Buscas e os que Buscam Jesus

A menos que a pessoa atue como um profissional da busca de Jesus, cujo sustento, auto-respeito e saúde espiritual sejam uma questão de vocação, convém alterar quaisquer planos relativos à participação nesse estranho empreendimento. As advertências sensatas sobejam; uma das minhas favoritas é expressa pela sorrateira ironia expressa em um ensaio escrito por Jacob Neusner — homem imensamente erudito — e incluído em um livrinho contumaz por ele publicado sob o título Judaism in the Beginning of Christianity  (O judaísmo no início do cristianismo, 1984). No quarto capítulo, Neusner nos oferece "A Figura de Hillel: Contrapartida à Questão do Jesus Histórico". O admirável Hillel, contemporâneo de Jesus, foi um fariseu exemplar. Até mesmo uma obra honrosa, como o American Heritage College Dictionary (terceira edição, 1993), apresenta duas definições de "fariseu" absolutamente inúteis e inverídicas, e inaplicáveis a Hillel:

1. Membro de antiga seita judaica que enfatizava uma rígida interpretação e obediência à Lei de Moisés.

2. Pessoa hipócrita e moralista.

Não culpo os editores do mencionado dicionário. À exceção de Paulo e Marcos, o Novo Testamento difama, cruel e continuamente, os fariseus. No entanto, proponho que a primeira definição descarte a palavra "rígida" e a substitua por "santificante". Neusner demonstra que o grande Hillel, conquanto, sem dúvida, tenha existido, para todos os efeitos, é uma invenção de rabinos que viveram no século II da Era Comum (e mais tarde).

Hillel é o Jesus do judaísmo, de vez que Yeshuá de Nazaré, sem sombra de dúvida, existiu, mas, na prática, foi uma invenção do Novo Testamento. Recomendo o livro de Charlotte Allen, The Human Christ  (O Cristo humano, 1998), relato judicioso e inteligente (escrito por uma católica) da comédia humana que constitui "a busca do Jesus histórico". Ao aludir à "comédia humana" e a Balzac, não o faço por depreciação, apenas por lamentar que Balzac já não esteja conosco, para compor uma saga ficcional capaz de superar a pitoresca e infinda aventura retratada por Charlotte Allen e outros.

Temos um enxame de cristãos, de todas as denominações, judeus mais diversos, secularistas, romancistas (bons e ruins) e multidões que poderiam fazer parte de uma obra-prima de Balzac, se pudéssemos ressuscitar o mago da narrativa francesa, autor que eu, de todo o coração, aprecio mais do que Stendhal, Flaubert e Proust, ainda que a vivacidade de Stendhal, o talento artístico de Flaubert e a sabedoria de Proust superem Balzac.

A busca incessante do Jesus "verdadeiro", "histórico", não contaminado pelo dogma, é similar à minha incapacidade perpétua de apreender o protéico Vautrin, o mais vivaz personagem de Balzac, na interminável procissão de gênios que figuram na Comédia Humana. Vautrin é Balzac transformado em um homoerótico mestre do crime, conhecido como "Esquiva-Morte", tanto pela polícia quanto pelo submundo. Cada crítico/leitor vê o seu próprio Vautrin, e cada pesquisador que busca o Jesus "histórico", invariavelmente, descobre a si mesmo em Jesus. Como poderia ser diferente? Isso nada tem de deplorável, especialmente nos Estados Unidos, onde, ao longo dos últimos dois séculos, Jesus tem atuado como um protestante sem denominação específica.

 Se tal afirmação parece irônica, minha intenção é, exclusivamente, literal, e não desaprovo a nossa tendência natural de entabular conversas particulares com um Jesus nosso. Não penso que isso torne os norte-americanos mais amáveis ou generosos, mas, somente em casos extremos, os torna piores. A não ser pelo Hamlet shakespeariano, não me ocorre outra figura tão volátil quanto Jesus; ele, de fato, pode ser tudo, para todos os seres humanos.

Da minha parte, por motivos literários e espirituais, prefiro o Evangelho de Tomé a todo o Novo Testamento canônico, porque o referido Testamento apresenta-se repleto de um ódio mal informado contra os judeus, ainda que seja composto, quase na íntegra, por judeus que fogem de si mesmos, desesperados por agradar as autoridades romanas que os exploravam.

Leio, com admiração, a obra de estudiosos católicos, tais como padre Raymond Brown e padre John P. Meier, mas me pergunto por que não admitem o quão pouco é possível saber, de fato, acerca de Jesus. O Novo Testamento tem sido revirado por séculos de estudo minucioso, mas de todo esse trabalho não resulta o mínimo de informação que exigiríamos no caso de qualquer outra questão similar.

Ninguém sabe quem escreveu os quatro Evangelhos, e ninguém é capaz de precisar quando e onde foram compostos, tampouco que tipo de fontes lhes servem de base. Nenhum dos autores conheceu Jesus; sequer ouviram-no pregar. O historiador Robin Lane Fox defende a hipótese contrária, em favor do Evangelho de João, mas o argumento constitui uma das raras aberrações de Fox. Até mesmo Flávio Josefo, escritor brilhante e mentiroso inveterado, mostra-se muito mais interessado em João Batista do que em Jesus, objeto de não mais que um punhado de menções supérfluas.

Raramente, antigos profetas judaicos e supostos messias transformavam-se em anjos, e jamais no próprio Javé, motivo pelo qual Jesus Cristo (e não Jesus de Nazaré) é um Deus cristão, e não judaico.

A grande exceção é Enoque, que caminhava ao lado de Javé, e foi por ele alçado ao céu, sem ter de passar pelo incômodo da morte. Nas alturas, Enoque é Metatron, anjo tão excelso que chega a ser "o Javé Menor", com um trono só para si. Consta que o rabino Elisha ben Abuyah, o mais célebre dos antigos minim (gnósticos) judaicos, tenha ascendido, a fim de verificar que Metatron e Javé sentavam-se em tronos posicionados lado a lado. Ao retornar, o rabino gnóstico (conhecido pelos oponentes como Acher, "o Outro", ou "o Estranho") proclamou a heresia suprema: "Há dois Deuses no céu!"

No livro The Human Christ, Charlotte Allen nos faz lembrar, corretamente, que os Evangelhos estabelecem "Jesus Cristo acima da Torá". Uma vez que a Torá é Javé, a noção situa Cristo acima e além de Javé, o que vai de encontro à complexidade trinitária. Quem quer que tenha sido o Jesus histórico, certamente, teria rejeitado tamanha blasfêmia (conforme ele o faz no Alcorão). Parece um absurdo que Jesus, fiel apenas a Javé, assim como o foram Hillel e Akiba, tenha usurpado Deus. Contudo, Jesus não é o usurpador, tampouco o foi São Paulo (ao contrário do que pensavam Nietzsche e George Bernard Shaw). À semelhança do mentor, João Batista, Jesus é oriundo dos judeus, e veio para os judeus. O cristianismo se baseia na afirmação de que Jesus não foi recebido por sua própria gente, mas todas as evidências apresentadas pelo cristianismo são polêmicas, suspeitas e inadmissíveis em qualquer tribunal de justiça.

A indústria acadêmica não tem por hábito se dispersar, e sempre haverá buscas do Jesus verdadeiro. Por mais honrosas que sejam, aqui as dispenso. Até mesmo os melhores especialistas (penso, primeiramente, em E. P. Sanders e padre Meier) vêem-se forçados a aceitar como válidas determinadas passagens do Novo Testamento, em lugar de outras, e as explicações dos critérios adotados são sinuosas. Forçosamente, os resultados são confusos.

Desagrada-me a argumentação proposta por padre Meier em favor da historicidade de Judas Iscariotes, que, na minha visão e de outros — judeus ou gentios —, surge como uma ficção maléfica que tem contribuído para justificar o extermínio de judeus há dois mil anos. Sanders jamais me deprime, mas fico perplexo quando ele exalta o carisma singular de Jesus, baseando-se na lealdade dos discípulos. Não devemos esquecer a advertência do sociólogo Max Weber contra a "rotinização do carisma". Carismáticos existem em abundância, e Hitler magnetizou toda uma geração de alemães. É pífia a argumentação em prol da singularidade de Jesus como conseqüência de seu carisma.

No entanto, ao escrever este livro, que, absolutamente, não é para mim uma busca, surpreendi-me tanto com Jesus quanto com Javé. Embora eu nele não confie nem o ame, Javé não pode ser dispensado, pois, ausente ou presente, é indistinguível da realidade, seja esta ordinária ou um arremedo de transcendência.

Ao menos duas versões distintas de Jesus, que constam do quase gnóstico Evangelho de Tomé e do extraordinariamente críptico Evangelho de Marcos, parecem-me autênticas, embora amiúde sejam antitéticas. Javé é morte-nossa-morte e vida-nossa-vida, mas não sei quem foi ou é Jesus Nazareno.

Não o considero antitético nem comparável a Javé: os dois se encontram em sistemas cósmicos distintos. Javé nada tem de grego: Homero, Platão, Aristóteles, estóicos e epicuristas são, para ele, estranhos. Jesus, a exemplo do contemporâneo Hillel e de Akiba, este surgido um século mais tarde, emerge de um judaísmo helenizado, ainda que o grau de contaminação por elementos gregos seja questionado e questionável.

Javé é incognoscível, por mais que nos aprofundemos na Torá, no Talmude e na Cabala. Será Jesus — comparado ao Jesus Cristo da teologia — cognoscível? O Jesus norte-americano é conhecido intimamente, na qualidade de amigo e amparo, por dezenas de milhões de pessoas.

O Jesus norte-americano é por vezes mais orientado por Paulo do que pelos Evangelhos: os batistas moderados baseiam-se na Epístola dos Romanos; os pentecostais, que grassam por todos os Estados Unidos, na realidade, substituem Jesus pela crença cinética no Espírito Santo; os mórmons, a mais norte-americana e surpreendente das seitas, consideram o Livro do Mórmon, de Joseph Smith (ou do Anjo Moroni), o Outro Testamento de Jesus Cristo, mas, em Pérola de Grande Valor e Doutrina e Assembléias, dispõem de escrituras inusitadas, das quais a atual hierarquia da Igreja se esquiva.

Atualmente, considera-se que Joseph Smith tenha ascendido e se transformado em Enoque, e talvez no maior dos anjos, Metatron, ou Javé Menor, uma visão cabalística. Não conheço muito bem esses conceitos ora irradiados de Salt Lake City, mas Joseph Smith e Brigham Young acreditavam na doutrina de que Adão e Deus são, em última instância, a mesma pessoa. O humano e o divino se interpenetram na visão de Joseph Smith de maneira muito mais radical do que na insistência da Igreja Católica de que Cristo é, ao mesmo tempo, "homem verdadeiro" e "Deus verdadeiro". Porque fiéis norte-americanos (inclusive espíritos elevados, tais como Emerson e Whitman) acreditavam que o melhor e mais primordial de si mesmos não era natural, e sim divino, é possível, para muitos de nós, interagir livre e intensamente com Jesus. Talvez não seja esse o "Jesus histórico", objeto das buscas dos estudiosos, mas, a meu ver, está bem próximo ao "Jesus vivo" que fala no Evangelho de Tomé.

 Fonte
Revista Veja Edição 1944 .

terça-feira, 5 de março de 2013

PROCURA-SE DEUS.



Em pleno século 21, a humanidade continua tentando conciliar fé e razão. Mas será que algum dia a ciência terá condições de provar que foi mesmo Deus (ou alguma outra entidade superior) quem criou o Universo e determinou os rumos da evolução?

Rodrigo Cavalcante


O zoólogo Richard Dawkins e o paleontólogo Simon Conway Morris têm muito em comum: lecionam nas mais prestigiadas universidades da Grã-Bretanha (Dawkins em Oxford e Morris em Cambridge) e compartilham opiniões e crenças científicas quando o tema é a origem da vida. Para ambos, a riqueza da biosfera na Terra é explicada mais do que satisfatoriamente pela teoria da seleção natural, de Charles Darwin. Os dois também concordam que, caso a história do nosso planeta pudesse ser reproduzida em outro lugar, a evolução provavelmente seguiria um rumo bem parecido ao observado por aqui, inclusive com o aparecimento de animais de sangue quente, como nós.

Num encontro realizado na Universidade de Cambridge em outubro, porém, eles protagonizaram um novo round de um debate que divide a humanidade desde que o mundo é mundo: Deus existe? Morris, cristão convicto, afirmou na palestra promovida pela Fundação John Templeton (cuja missão é “explorar as fronteiras entre teologia e ciência”) que a “misteriosa habilidade” da natureza para convergir em criaturas morais e adoráveis como os seres humanos é uma prova de que o processo evolutivo é obra de Deus.

Já o agnóstico Dawkins disse que o poder criativo da evolução reforçou sua convicção de que vivemos num mundo puramente material. O debate entre Dawkins e Morris, como já foi dito, não é novo, longe disso. De um lado, é óbvio que sempre haverá bilhões de pessoas que acreditam em Deus. Ao mesmo tempo, dificilmente vamos viver para comprovar Sua existência (ou inexistência). Entender alguns laços que unem ciência e religião e mostrar como essa relação vem mudando ao longo dos tempos é o tema desta reportagem.

Durante muitos séculos, Deus (e só Ele) foi apresentado como o principal responsável pelo sucesso da aventura humana sobre o planeta – nas artes, nos livros, nas escolas e nas igrejas. Até que a ciência começou a mostrar que isso não era necessariamente verdade. Na década de 1860, a teoria da seleção natural e da evolução das espécies, de Charles Darwin, lançou as primeiras dúvidas consistentes acerca da influência divina sobre a ordem da vida na Terra.

Com o passar dos anos, mais e mais pesquisadores passaram a defender que o destino da humanidade era abandonar gradativamente a fé e a religião em nome da crença em explicações “objetivas” para os fenômenos naturais. “No fim do século 19, os cientistas acreditavam estar muito próximos de uma descricão completa e definitiva do Universo”, escreveu o físico britânico Stephen Hawking.

No século 20, Nietzsche, Marx, Freud, Sartre e outros chegaram a apostar na “morte” de Deus e no início de uma “era da razão”. Não é preciso ser um especialista para saber que esse triunfo não se concretizou. Ao contrário. O que se observa hoje é uma revalorização da fé, inclusive entre os cientistas, como Simon Morris.

“Ao longo da história, a relação do homem com o sagrado tem se mostrado um traço extremamente persistente”, diz Oswaldo Giacoia Júnior, professor de história da filosofia moderna e contemporânea da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp. “Nos regimes socialistas em que a religião era proibida as pessoas substituíam a fé por uma ideologia.”

Cabe, então, à ciência provar a existência de Deus?
O paleontólogo americano Stephen Jay Gould acredita que nenhuma teoria (nem mesmo a da evolução) pode ser vista como uma ameaça às crenças religiosas, “porque essas duas grandes ferramentas da compreensão humana trabalham de forma complementar, e não oposta: a ciência para explicar os fenômenos naturais e a religião como pilar dos valores éticos e da busca por um sentido espiritual para a vida”. É por pensar assim que ele sempre se colocou do lado dos pesquisadores que são contra misturar ciência com religião.


Quem é Deus?

O cabelo e a barba grisalhos denunciam a idade, mas o corpo é forte e musculoso. Os traços da face transmitem a autoridade de quem não hesitará em agir sobre o mundo caso seja necessário. Para bilhões de ocidentais, a pintura de Michelangelo no teto da capela Sistina, no Vaticano, é a síntese perfeita de Iavé, o Deus bíblico, aquele que “criou tudo em 6 dias”. Como diz o escritor americano e ex-jesuíta Jack Miles, autor de Deus, uma Biografia, mesmo quem não acredita continua moldando seu caráter por influência dessa imagem.

Miles faz uma análise surpreendente da Bíblia, ao tratar de Deus como um personagem literário. O resultado é que, como protagonista do livro mais influente da história, Iavé revela uma personalidade que oscila bastante em relação à sua criação – como no momento em que ordena o dilúvio, para tentar “consertar” tudo.

Mas esse Deus é apenas uma entre inúmeras concepções de divindades. Não há sequer consenso em torno do número de deuses. Para mais de 750 milhões de hindus, existem centenas deles, como Brahma, Shiva e Krishna, para ficar nos mais conhecidos. Em rituais xamânicos de origem indígena, os deuses incorporam até em plantas e animais. E para mais de 350 milhões de seguidores do budismo, não há sequer uma divindade a cultuar – apenas Buda, um homem que atingiu a iluminação e virou guia espiritual. Como, então, a ciência pode encontrar Deus?

Apesar disso, os estudiosos sabem que há algo em comum entre essas crenças. Sem exceção, elas acreditam que há uma ordem, uma espécie de propósito (ou, se você preferir, sentido) no Universo. Nenhuma religião trabalha com o pressuposto de que o acaso e a indiferença regem as nossas vidas. Curiosamente, foi a busca por essa ordem que acabou impulsionando o avanço da própria ciência.


Da geometria ao acaso

No século 18, a maioria dos filósofos e cientistas acreditava piamente que a humanidade estava prestes a decifrar (integral e definitivamente) a ordem do Cosmos. Na época, havia motivos de sobra para tamanho otimismo: fazia mais de 100 anos que Isaac Newton publicara Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, considerada até hoje a obra mais importante da história da física. Nela, Newton não apenas descreveu como os corpos se deslocam no espaço e no tempo, mas desenvolveu a complexa matemática necessária para analisar esses movimentos.

Segundo essa teoria, as leis do Universo eram estáveis e previsíveis, como se tivessem sido projetadas por um craque da geometria. Em 1794, o escritor, poeta e artista plástico inglês William Blake resumiu essa idéia ao desenhar Deus (um velho barbudo, como o de Michelangelo) criando o mundo com um compasso na mão. “A metáfora do Deus geômetra deriva da velha idéia platônica de um Universo dualista, em que há a necessidade de existir uma ordem, mas continua influenciando a ciência até hoje”, diz o brasileiro Marcelo Gleiser, autor de O Fim da Terra e do Céu e professor de física e astronomia da Faculdade de Dartmouth, nos EUA.

A imagem de Deus, nesse sentido, era perfeitamente compatível com a visão científica do mundo da época. Os problemas só surgiam quando alguém tentava juntar as mais recentes descobertas da ciência com a história bíblica da Criação. Afinal, o estudo das camadas geológicas que formaram a Terra já provava que nosso planeta tinha milhões de anos – e não 5 mil, de acordo com os cálculos de Santo Agostinho. Mas bastava esquecer “detalhes” como esse para que todos fossem dormir felizes, conscientes de que o Universo tinha sido mesmo obra do Criador. Até que...

Se havia uma ordem no Universo, nada mais natural que ela comandasse todas as forças da natureza. E o homem, é claro, era visto como o exemplo máximo da perfeição da vida sobre a Terra. Mas Charles Darwin apresentou sua teoria sobre a seleção natural das espécies e colocou em xeque a idéia de que Deus era o responsável por tudo isso que está aí. Vale lembrar que Darwin nunca disse que o homem descendia dos macacos – apenas que homens e macacos eram parentes evolutivos com um ancestral comum (os paleantropólogos estimam, hoje, que esse “tataravô” viveu em algum momento entre 4 milhões e 6 milhões de anos atrás).

Ainda assim, muita gente não aceitou a idéia de que as espécies vivas, incluindo a nossa, possam ter se desenvolvido graças apenas à seleção natural, tendo evoluído quase por acaso em meio a tantas outras espécies. O fato é que o estudo da história da vida em nosso planeta comprovou que, durante milhões de anos, outras espécies reinaram por aqui sem que houvesse nenhuma necessidade da existência dos homens. Como bem resume o cientista americano Carl Sagan no seriado de televisão Cosmos, recentemente relançado em DVD pela super, se a história do Universo fosse condensada em apenas um ano, o aparecimento da espécie humana teria ocorrido nos últimos instantes do dia 31 de dezembro.

E o avanço da física deixou claro que, se o Universo fosse um relógio, nem sequer o tempo marcado por ele seria preciso. Em 1905, Albert Einstein publicou seu estudo da Teoria da Relatividade que, resumidamente, pôs fim à idéia de tempo absoluto. A estabilidade perfeita das leis de Newton começou a se despedaçar para sempre. Logo em seguida, o estudo da mecânica quântica revelou que não é possível sequer prever a posição exata de partículas subatômicas, obrigando os cientistas a se contentar em trabalhar com probabilidades.

Apesar de ter ajudado a destruir a velha noção de ordem no espaço e no tempo, Einstein acreditava cegamente que a natureza funcionava (ou deveria funcionar) segundo regras bem definidas – e não de maneira aleatória, como num grande jogo de azar. Numa carta para o físico Max Born, Einstein escreveu: “Você crê em um Deus que joga dados e eu, na lei e na ordem absolutas.” Se para um cientista como Albert Einstein não era fácil lidar com o acaso e o caos, imagine para os que acreditam na religião.

Do ponto de vista da física pura, porém, é importante ressaltar que todo esse papo de criação do Universo tem pouca (ou nenhuma) importância. Não fosse pela descoberta da teoria do big-bang (segundo a qual ele surgiu após uma grande explosão), nem sequer haveria a necessidade de provar que houve uma “hora zero”, afinal o tempo e o espaço são mesmo relativos, não é mesmo?

Curiosamente, o big-bang passou a ser considerado por muitos fiéis a “evidência científica” de que a Bíblia está certa ao descrever o “início de tudo”. Talvez para tentar explicar a incompatibilidade existente entre a física das partículas subatômicas e a Teoria da Relatividade, muitos pesquisadores têm discutido atualmente a chamada Teoria das Supercordas, que propõe uma explicação unificada capaz de preencher essas lacunas. “De qualquer maneira, essa tese é mais um desejo de encontrar uma ordem do que algo validado cientificamente”, diz o físico Marcelo Gleiser.

E se a ciência conseguisse achar essa tal ordem no Universo, será que isso seria a prova da existência de Deus? Ou será que a busca pelo divino não passa de uma necessidade inventada pelo homem para colocar um sentido em tudo (afinal, até onde se sabe, somos os únicos animais que tentam entender por que existe a morte)? 

Nas últimas décadas, o que se tem visto é um acirramento das diferenças entre aqueles que acreditam que a complexidade da vida só pode ser explicada por uma inteligência superior e aqueles que defendem que a inclinação para acreditar em Deus é apenas um traço biológico da nossa espécie, ou seja, somos programados para ter fé. É o que veremos nas próximas páginas.

Deus vai à escola

Dover, no estado americano da Pensilvânia, é uma daquelas cidades tão pequenas que mal dá para avistar seu núcleo urbano da altura média de vôo de um jato comercial. A pacata vida de seus 1814 habitantes, a maioria descendente de alemães, quase nunca foi notícia nos grandes jornais dos EUA. 

Tudo mudou no dia 18 de outubro de 2005, quando teve início o julgamento sobre a grade curricular de uma escola pública local que decidiu dedicar parte das aulas de biologia ao estudo de uma teoria conhecida em inglês como intelligent design (algo como projeto ou desenho inteligente, numa tradução livre para o português). Seu principal cartão de visita é o fato de se contrapor à tese de Darwin sobre a seleção natural e a evolução das espécies. Como a Constituição americana garante a total separação entre a Igreja e o Estado, alguns pais acharam que a direção do colégio estava muito perto de misturar ciência e religião, apelaram para a intervenção da Justiça e o debate pegou fogo no país.

Nas salas de aula em questão, as crianças e jovens aprendem que várias tarefas altamente especializadas e complexas do organismo humano – como a visão, o transporte celular e a coagulação, entre outras – só podem ser explicadas pela ação de uma força maior ou, em outras palavras, pela intervenção de um ser superior, capaz de bolar o tal desenho inteligente do nosso corpo e da nossa mente. 

Para a maioria dos biólogos do planeta, contudo, essa tal inteligência não passa de um novo nome para um velho conceito: o criacionismo bíblico, segundo o qual estamos na Terra apenas porque saímos da prancheta (ou da imaginação) divina para nos reproduzir “à Sua imagem e semelhança”.

Se, como já foi dito no início do texto, há muitos cientistas que não vêem motivos para buscar as impressões digitais de Deus na história do Universo, outros tantos acreditam que as teses de Darwin têm falhas e, como tal, precisam ser ensinadas nas escolas “em toda sua amplitude”, ou seja, alertando os alunos para o fato de que há controvérsias a respeito das descobertas que o jovem naturalista inglês fez a bordo do navio Beagle. 

Os defensores do desenho inteligente juram que não têm nenhuma ligação com os criacionistas do século 19, que difundiam uma interpretação literal do Gênese para conter a rápida e eficaz disseminação das teorias darwinistas – apesar das críticas da maior parte dos colegas da comunidade científica.

“Uma coisa é você tentar justificar uma fé usando argumentos científicos, outra é descobrir uma teoria científica que pode ser compatível com a fé”, disse à Super o bioquímico Michael J. Behe, pouco depois de depor no julgamento em defesa da “nova tese”. 

Professor da Universidade de Lehigh, na Pensilvânia, e autor do livro A Caixa-Preta de Darwin, ele diz que, se toda formulação científica compatível com uma crença religiosa tivesse de ser descartada automaticamente pelos pesquisadores, os astrônomos jamais poderiam aceitar os estudos sobre o big-bang. “Estou apenas defendendo o direito dos estudantes de terem acesso a outras idéias sobre a criação do Universo”, afirmou Behe.

A discussão em torno do ensino de ciências – inclusive com a interferência do Poder Judiciário – não é nenhuma novidade nos EUA. No início dos anos 20, muitos estados americanos simplesmente proibiram os alunos de ter aulas sobre as teorias evolutivas de Darwin. Em 1925, teve início um julgamento que, num primeiro momento, levou à condenação de um professor do ensino médio do Tennessee simplesmente porque ele acreditava que somos parentes dos macacos (e dizia isso em classe). Após sucessivos recursos de ambos os lados, o processo só terminou em 1968, quando a Suprema Corte decidiu que qualquer iniciativa no sentido de definir o currículo escolar com base em crenças religiosas era inconstitucional.

É por isso que tantos vêem o desenho inteligente como uma espécie de cortina de fumaça para colocar Deus de volta nas salas de aula? Será que, do ponto de vista científico, o desenho inteligente tem consistência? “Por enquanto, não”, afirma Vera Volferini, professora de genética e evolução da Unicamp. Segundo a bióloga, não existem ainda argumentos científicos que sejam tranqüilamente aceitos pela maioria dos pesquisadores.

“Teorias como essa presumem que o ser humano é o resultado de um projeto perfeito, o que não é verdade. É consenso entre os especialistas que o design humano, apesar de eficiente, está longe de ser inatacável biologicamente. A próstata do homem, para ficar em apenas um exemplo, não segue um desenho anatômico ideal”, diz ela. E é justamente essa falha na concepção que provoca muitos problemas que afetam boa parte dos machos da espécie. Além disso, por que não poderíamos ter mais de 5 dedos em cada mão? Vera explica que, ao menos do ponto de vista biológico, temos esse número de dedos não porque seria um problema ter um ou dois a mais, mas porque fazemos parte de uma espécie cujo ancestral, há milhões de anos, tinha (por acaso) 5 dedos.

No Brasil, a teoria criacionista já desembarcou também – nos colégios públicos do Rio de Janeiro e, por enquanto apenas nas aulas de religião (em 2002, um lei proposta pelo governador Anthony Garotinho incluiu a disciplina “religião confessional” no currículo escolar). E a atual governadora do estado, a presbiteriana Rosinha Matheus (mulher de Garotinho), afirmou recentemente ao jornal O Globo que não acredita nas teses darwinianas. 

Apesar de o assunto não ser tratado nas aulas de biologia por aqui, o tema vem preocupando entidades como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que já se manifestou contra a disseminação do criacionismo nas escolas fluminenses. “O problema não é ter ou não uma crença pessoal”, diz Marcelo Menossi, professor de genética molecular da Unicamp. “O problema é tentar justificar e espalhar essa crença usando falsos argumentos científicos.”

Genética da religião

Nos anos 60, a britânica Jane Goodall afirmou que algumas espécies podem ter a religiosidade gravada nos próprios genes. A pesquisadora ficou famosa ao estudar o comportamento de chimpanzés na Tanzânia. Numa de suas numerosas observações, descobriu que os macacos agiam de maneira nada usual diante de uma cachoeira, demonstrando o que ela batizou de senso místico e de reverência. 

“Alguns permaneciam sentados numa rocha em frente à queda d’água, como se estivessem encantados. Outros ficavam sob a queda d’água por mais de 50 minutos, quando normalmente nem gostavam de se molhar.” 

Goodall concluiu que esse comportamento é um traço de religiosidade primitiva. E nós? Será que também nós humanos fomos “programados” para acreditar em Deus?

Para o biólogo Edward O. Wilson, um dos pioneiros da sociobiologia (ciência que se dedica a compreender o comportamento humano por meio da biologia), a predisposição para a religião é mesmo resultado da evolução genética do cérebro. Segundo ele, nossa inclinação para acreditar num ser superior pode ser resultado da submissão animal. 

Ele conta que entre macacos rhesus o macho dominante caminha com a cauda e a cabeça erguidas, enquanto os dominados mantêm a cabeça e a cauda baixas, em sinal de respeito ao líder – em troca, eles têm proteção contra os inimigos e acesso a abrigo e alimento. Segundo Wilson, a tendência de se submeter a um ser superior é herança dessas ações. “O dilema humano é que evoluímos geneticamente para acreditar em Deus, não para acreditar na biologia.”

Essa seria uma das razões pelas quais Deus é sempre invocado quando precisamos lidar com temas etéreos (e muitas vezes polêmicos, como a bondade, a solidariedade etc.). “Afinal, se Deus for apenas uma constante física, é óbvio que ele não terá nada a dizer sobre ética, certo e errado ou qualquer outra questão moral”, diz o britânico Richard Dawkins.

O radiologista Andrew Newberg e o psiquiatra Eugene D’Aquili (que morreu há 5 anos) resolveram buscar diretamente no cérebro a origem da experiência religiosa. Utilizando aparelhos de tomografia, eles revelaram as áreas mais ativadas pela meditação em 8 budistas e em um grupo de freiras franciscanas. A pesquisa, cujos resultados foram publicados no livro Why God Won’t Go Away (“Por que Deus não Vai Embora”, sem tradução no Brasil), mostrou que durante as orações havia uma diminuição da atividade no lobo parietal superior, a área do cérebro responsável pela nossa orientação de tempo e espaço, pela sensação de separação entre o corpo e o indivíduo e pela delimitação entre o “eu” e os “outros”. Ou seja, ao meditar criamos um bloqueio que provoca a sensação de unicidade típica do êxtase religioso.

Além disso, várias outras pesquisas comprovam que ter fé, independentemente de acreditar em um ou mais deuses, faz bem para o corpo e a mente, pois melhora as condições de saúde e aumenta a sensação de felicidade. A ciência ainda não conseguiu explicar se Deus criou o nosso cérebro com essa habilidade ou se foi a evolução que fez o cérebro criar esse portal para Deus. Mas nesta nova era de espiritualidade talvez isso não seja tão importante assim. O que conforta muita gente é acreditar que é possível melhorar o mundo pela fé.

"A relação do homem com o sagrado tem se mostrado um traço persistente."

Oswaldo Giacoia Júnior, professor de história da filosofia moderna e contemporânea da Unicamp.
"A metáfora do deus geômetra deriva da velha idéia platônica de um universo dualista, em que há a necessidade de existir uma ordem superior, mas continua influenciando a ciência até hoje."

Marcelo Gleiser, professor de física e astronomia da Faculdade de Dartmouth, nos EUA.
"Uma coisa é você tentar justificar uma fé usando argumentos científicos, outra é você descobrir uma teoria científica que pode ser compatível com a fé."

Michael J. Behe, bioquímico e um dos principais defensores da tese do “desenho inteligente”.

"Se Deus for só uma constante física, é óbvio que ele não terá nada a dizer sobre o que é certo ou errado em questões morais."

Richard Dawkins, zoólogo e professor da Universidade de Oxford, na Inglaterra.

A indiferença do universo

Para muitos pesquisadores, o que distingue a ciência de outras visões de mundo é exatamente sua recusa em aceitar cegamente qualquer informação e sua determinação de submeter qualquer tese a testes constantes até que novos dados possam confirmá-la ou refutá-la. 

Essa visão baseia-se, entre outras coisas, na obra do filósofo vienense Karl Popper, que morreu em 1994. Segundo Popper, a ciência só pode tratar de temas que resistam ao que ele chamou de “critério de falseabilidade”. 

Resumidamente, o papel do verdadeiro cientista é buscar, com persistência, erros em sua teoria – em vez de tentar achar dados que provem sua correção. Quanto mais genérica e exposta a falhas (ou seja, quanto mais “falseável”), menos provável ela é. 

Por outro lado, quanto mais resistente (menos falseável), maiores as chances de acerto, pelo menos até o próximo teste. É por isso que um grande número de estudiosos argumenta que não é papel da ciência provar a existência de Deus. 

“Não faz sentido alguém afirmar que, ao descobrir um mistério do Universo, está ajudando a decifrar a mente divina”, diz o zoólogo britânco Richard Dawkins. 

Apesar disso, ele reconhece que é fascinante encantar-se diante dos mistérios da natureza – e das limitações científicas para explicá-los. Esse sentimento foi batizado pelo físico brasileiro Marcelo Gleiser de “misticismo racional”. Em outras palavras, é uma espécie de declaração de amor pelos fenômenos naturais, que se concretiza por meio da pesquisa científica. Segundo ele, há um paradoxo por trás da incansável busca por uma ordem e um sentido no Cosmos. “Como o homem é o único ser capaz de amar, tem uma imensa dificuldade em aceitar que o Universo pode ser totalmente indiferente a ele”, afirma.

A ética num mundo sem "ele"

“Se Deus não existe, tudo é permitido.” A frase, que ficou célebre no livro Os Irmãos Karamazov, do russo Fiodor Dostoievski, resume uma das questões mais cruciais do mundo moderno: sem uma referência divina, passaríamos a viver numa espécie de vale-tudo moral?

“Não necessariamente”, diz o filósofo Oswaldo Giacoia Júnior, da Unicamp. “A busca de um código de valores sempre foi uma preocupação central da filosofia, sem necessidade de uma legitimação divina.” 

No século 18, por exemplo, os ideais de igualdade e justiça social, aceitos hoje como uma preocupação ética, surgiram de formulações dos filósofos iluministas – que acreditavam ser possível defendê-los com base na razão, não na religião (na época, esse tema não era nada popular no Vaticano). 

Em meados do século 20, o francês Jean Paul Sartre, o pai do existencialismo – segundo o qual de nada adianta buscar um propósito da existência para além da vida humana –, disse que a nossa própria condição de seres que vivem em sociedade é suficiente para justificar a prática de valores solidários.
E ainda hoje filósofos como o vienense Peter Singer (um dos mais ferrenhos defensores dos direitos dos animais) continuam defendendo uma série de condutas éticas baseadas na razão, não na fé. 

Mas será que a adoção pura e simples de uma ética sem Deus não pode nos levar a um racionalismo frio, capaz de ofuscar valores menos palpáveis, como a bondade? “A fé não se traduziu apenas em atos de paz e harmonia ao longo dos tempos”, lembra Giacoia. “Dos grandes conflitos religiosos do passado ao moderno terrorismo fundamentalista, já foram cometidas inúmeras atrocidades em nome da ética religiosa em todo o mundo.”

Para saber mais
Deus, uma Biografia - Jack Miles, Companhia das Letras, 2002
Desvendando o Arco-Íris - Richard Dawkins, Companhia das Letras, 2000
Consiliência - Edward O. Wilson, Editora Campus, 1999
O Romance da Ciência - Carl Sagan, Francisco Alves, 1982
Why God Won´t Go Away - Andrew Newberg e Eugene D·Aquili, Ballantine Books, 2002
A Caixa-Preta de Darwin - Michael Behe, Jorge Zahar Editor, 1997




domingo, 3 de março de 2013

DEUS - UMA BIOGRAFIA



Pesquisadores revelam que Javé, o grande personagem da Bíblia, não foi visto sempre como Deus único. Antes do Livro Sagrado, ele era só mais um entre muitas divindades. Saiba como Deus conquistou seu espaço no céu. E na Terra 

por José Lopes e Alexandre Versignassi 



Cada sociedade vê a figura do Criador à sua maneira. Cada indivíduo, até. Para Einstein, Ele era as leis que governam o tempo e o espaço - a natureza em sua acepção mais profunda. Para os ateus, Deus é uma ilusão. Para o papa Bento 16, é o amor, a caridade. "Quem ama habita Deus; ao mesmo tempo, Deus habita quem ama", escreveu em sua primeira encíclica.

Pontos de vista à parte, toda cultura humana já teve seu Deus. Seus deuses, na maioria dos casos: seres divinos que interagiam entre si em mitologias de enredo farto, recheadas de brigas, lágrimas, reconciliações. Os deuses eram humanos.

Mas isso mudou. A imagem divina que se consolidou é bem diferente. Deus ganhou letra maiúscula na cultura ocidental. Os panteões divinos acabaram. Deus tornou-se único. É o Deus da Bíblia, Javé, o criador da luz e da humanidade. O pai de Jesus. Essa concepção, que hoje parece eterna, de tanto que a conhecemos, não nasceu pronta. Ela é fruto de fatos históricos que aconteceram antes de a Bíblia ter sido escrita. 

O próprio Javé já foi uma divindade entre muitas. Fez parte de um panteão do qual não era nem o chefe. O fato de ele ter se tornado o Deus supremo, então, é marcante: se fosse entre os deuses gregos, seria como se uma divindade de baixo escalão, como o Cupido, tivesse ascendido a uma posição maior que a de Zeus É essa história que vamos contar aqui. A história de Javé, a figura que começou como um pequeno deus do deserto e depois moldaria a forma como cada um de nós entende a ideia de Deus, não importando quem ou o que Deus seja para você.

Criança
No princípio, Ele não sabia falar. Só chorava, grunhia e balbuciava. Deus era uma criança. Uma não, muitas: um deus era a chuva, outro deus, o Sol, mais outro, o trovão... Os deuses eram as forças por trás de uma natureza inexplicável para os primeiros humanos da Terra. Facetas de divindades borbulhavam em cachoeiras, galopavam com os cavalos selvagens, voavam com o vento, escondiam-se em cada rochedo, bosque ou duna do deserto. E do deserto veio a que daria origem ao Deus para valer.

Deuses nasceram do pôquer. A crença em divindades provavelmente vem da capacidade humana de detectar as intenções das outras pessoas. Somos muito bons nisso desde que surgimos, há 200 mil anos, e precisamos ser mesmo, porque o Homo sapiens sempre levou a vida social mais complicada do reino animal, sempre em comunidades cheias de intrigas, fingimentos, traições. Saber o que se passa na cabeça do outro era questão de sobrevivência - e até certo ponto ainda é.

E a melhor maneira de tentar se antecipar a um adversário nos jogos mentais do dia a dia é imaginar as intenções dele: "O que será que ele pensa que eu estou pensando?" Nosso cérebro é uma máquina de pôquer.

Pesquisadores como o antropólogo francês Pascal Boyer defendem que esse sistema de detecção de intenções pode acabar aplicado a coisas que não têm intenções de nenhum tipo - como a chuva, ou o Sol. A ideia de que há espíritos de toda sorte da natureza seria, assim, um efeito colateral do nosso sistema de detecção de mentes, tão hiperativo.

Por esse ponto de vista, a espiritualidade faz parte dos nossos instintos. É quase tão natural acreditar em divindades quanto comer ou dormir.

Cada fenômeno da natureza, então, representava as intenções de alguma divindade. É como ainda acontece nas tribos de caçadores-coletores de hoje. Entre os índios tupis, os trovões são a raiva do deus Tupã. E fim de papo.

Obras de arte de mais de 30 mil anos atrás dão outra pista sobre essa espiritualidade primitiva - que podemos chamar de "infância de Deus" (no caso, dos deuses). Elas mostram seres que misturam características humanas e animais - sujeitos com cabeça de leão ou de rena e corpo de gente, por exemplo.

Acredita-se que essas criaturas híbridas representem um tipo de crença que ainda é comum nas tribos indígenas: a de que não haveria separação rígida entre o mundo dos humanos, o dos animais e o dos espíritos. Seria possível transitar entre essas esferas se você possuísse o conhecimento correto, e, em tese, qualquer falecido, seja pessoa, seja bicho, pode ter um papel parecido com o que associamos normalmente a um deus.

Os deuses abandonam de vez as feições animais quando os bichos se tornam menos importantes no nosso cotidiano. Foi precisamente o que aconteceu quando a agricultura foi criada, há 10 mil anos, no Oriente Médio. Graças a ela, montamos as primeiras cidades. E a nossa espiritualidade progrediria junto: acabaria bem mais centrada nas pessoas que na natureza selvagem.

Há sinais de que ancestrais mortos eram as grandes entidades com status divino nessas primeiras cidades. Um exemplo arqueológico vem de escavações em Jericó, uma das mais antigas aglomerações humanas, que hoje fica no território palestino da Cisjordânia. Os habitantes de Jericó enterravam o corpo de seus mortos, mas guardavam o crânio, que era recoberto com camadas de gesso e tinta, simulando o rosto humano. Assim preparada, a caveira talvez servisse de oráculo doméstico - uma espécie de deus particular para cada família.

Os artesãos de crânios de Jericó não tinham escrita - aliás, passariam mais de 5 mil anos até que essa tecnologia fosse inventada. Quando isso finalmente aconteceu, em torno do ano 2000 a.C., os deus ficaram bem mais sofisticados.

Entraram em cena criaturas ao estilo dos habitantes do Olimpo na mitologia grega. Em parte, alguns deles até eram mesmo personificações das forças da natureza, mas agora eles ganhavam personalidades e biografias complexas.

É aí que está a origem do grande personagem desta história: Javé, uma divindade que provavelmente começou como um deus menor, cultuado por nômades. Bem antes de a Bíblia ser escrita.


Cabeça de leão
Estátuas e pinturas de povos caçadores, que viviam nas cavernas da Europa há 30 mil anos, mostram figuras que misturam formas de homens e de animais. Tudo indica que esses foram os primeiros deuses a habitar a mente humana.


Jovem
O rapaz era uma divindade dos desertos do sul. Junto com seus poucos súditos, chegaria à pulsante Canãa, domínio do deus El, o altíssimo. Ao lado do soberano, a mãe de divindades e homens, Asherah, senhora de tudo o que é fértil, e seu sucessor, Baal, o deus que dava chuvas àquelas paisagens àridas. Tudo na santa paz. Eles só não imaginavam que Javé tramava a destruição deles.

Ele começou de baixo. Era só mais um deus entre vários outros de sua região. Só que na Bíblia Javé é identificado como o Deus único. Hoje, cogitar a existência de outras divindades que teriam convivido com o Senhor da Bíblia é um absurdo do ponto de vista religioso. Mas não do ponto de vista científico. Pesquisadores de várias áreas - arqueólogos, linguistas, teólogos - estão encontrando pistas sobre uma provável "vida pregressa" de Javé. Uma vida mitológica que ele teve antes de seu nome ir parar na Bíblia como o da entidade que criou tudo.

Onde pesquisar isso? A própria Bíblia é uma fonte. O Livro Sagrado não foi feito de uma vez. Trata-se de uma coleção de textos escritos ao longo de séculos. O Pentateuco, os 5 primeiros livros da Bíblia, foi finalizado por volta de 550 a.C. Mas há textos ali de 1000 a.C., ou de antes. E nada disso foi editado em ordem cronológica - em grande parte, a Bíblia é uma junção de textos independentes, cada um escrito em tempos e realidades diferentes.

Como saber a que tempo e a que realidade cada um pertence? Pela linguagem. Pesquisadores analisam as expressões do texto original, em hebraico, e vão comparando com a de documentos encontrados em escavações arqueológicas, cuja datação é fácil de determinar. Com esse método, chegaram a uma descoberta reveladora. Alguns poemas da Bíblia dão a entender que Javé era uma divindade de lugares chamados Teiman ou Paran - dizendo literalmente que o deus veio dessas regiões. E esses textos estão justamente entre os mais antigos - se a língua do livro fosse o português moderno, eles estariam mais para Camões.

Teiman e Paran eram lugares desérticos fora das fronteiras onde viviam os homens que escreveram a Bíblia. Não se sabe exatamente que regiões eram essas, já que os nomes dos territórios vão mudando ao longo dos séculos. "Mas arqueólogos supõem que essa região seja no noroeste da atual Arábia Saudita", diz Mark Smith, professor de estudos bíblicos da Universidade de Nova York. E isso diz muito.

Os autores dos primeiros textos da Bíblia viviam na antiga Canaã - uma região do Oriente Médio onde hoje estão Israel, os territórios palestinos e partes da Síria e do Líbano. Ali se formaram algumas das primeiras civilizações da história, há 10 mil anos. E por volta de 1000 a.C. já era um território disputado (como nunca deixou de ser, por sinal). Estava dividido numa miríade de tribos, as dos israelitas, a dos hititas, a dos jebedeus...

Apesar das rivalidades, todas tinham culturas parecidas. Reverenciavam o mesmo panteão de deuses, por exemplo. Mas Javé, pelo jeito, não era um deles. Teria sido importado das áreas mais desérticas do sul.

Outra evidência disso é a associação de seu nome com os chamados shasu. Shasu é um termo egípcio que significa "nômade" ou "beduíno". Algumas inscrições egípcias mencionam um "Javé dos Shasu".

Uma possibilidade, então, é que nômades do deserto teriam se incorporado às tribos israelitas, trazendo o novo deus com eles. Essa divindade se embrenharia no meio da grande mitologia desse povo: o panteão de deuses cananeus. Mas quem eram essas divindades? As melhores pistas a esse respeito vêm de Ugarit, uma antiga cidade encontrada durante escavações arqueológicas na atual Síria. Ela foi destruída por invasores em 1200 a.C., quando os israelitas ainda eram um povo em formação. 

As inscrições encontradas ali, então, servem como uma cápsula do tempo. Revelam o contexto cultural em que nasceu a mitologia israelita, mostra como era a mitologia dos antepassados dos escritores da Bíblia. E os deuses em que eles acreditavam seriam fundamentais para a biografia de Javé. O panteão de Ugarit é bem grandinho, mas algumas figuras se destacam. Há o pai dos deuses e dos homens, o idoso, bondoso e barbudo El; sua esposa, Asherah, deusa da vegetação e da fertilidade; a filha dos dois, Anat, feroz deusa do amor; e o filho adotivo do casal, Baal, deus da guerra e da tempestade que morre, ressuscita e derrota as divindades malignas Yamm (o Mar) e Mot (a Morte).

Muitos estudiosos especulam que as tribos israelitas originalmente tinham El como seu deus supremo. Afinal, o nome do povo bíblico também termina com o elemento -el. "Esse tipo de nome próprio, conhecido como teofórico (‘portador de um deus’, em grego), costuma dar pistas sobre o ente divino que o dono do nome venera", diz Airton José da Silva, professor de Antigo Testamento da Arquidiocese de Ribeirão Preto.

Mas os indícios a respeito de El vão além da nomenclatura. O deus cananeu também tem uma relação especial com os chefes de clãs, prometendo-lhes uma vasta descendência - exatamente o que Deus faria depois na Bíblia ao selar uma aliança com os ancestrais dos israelitas, Abraão, Isaac e Jacó. "El é o deus desses patriarcas", diz Christine Hayes, professora de estudos judaicos de Yale.


Deus do deserto
Javé pode ter sido uma divindade trazida do deserto por nômades que se embrenharam nas tribos is-raelitas, quando elas ainda estavam em formação na região de Canaã. Aí ele se junta aos deuses cananeus, como Baal e El, o altíssimo.


Adulto
"Israel é a minha herança", brada o impetuoso deus do deserto. Diante dele, a assembleia dos deuses de Canaã se sente cada vez mais intimidada. E, numa escalada de poder sem precedentes, o guerreiro chega a ser considerado idêntico ao próprio El como criador e governador do mundo. A própria esposa do antigo senhor dos deuses passa às mãos do novato.

Uma ameaça pairava sobre os deuses de Canaã. Era a ambição de Javé. O novo deus começou a buscar seu lugar entre as antigas divindades cananeias. E teve sucesso. Com sua personalidade forte, foi ganhando espaço dentro da mitologia israelita, tomando o terreno dos deuses criados pelos povos cananeus.

A maior prova disso está em outro texto poético dos mais antigos da Bíblia, o Salmo 82. Ele nos apresenta o chamado "conselho divino": uma espécie de Câmara dos Deputados dos deuses, na qual eles se reúnem para discutir assuntos importantes - um indício de que o Salmo foi escrito antes do próprio início da Bíblia, que já começa apresentando Javé como Deus único. A ideia, ali, é que El preside o conselho e seus filhos ou subordinados discursam. Lá, Javé aparentemente perde a paciência: "Deus se levanta no conselho divino,/em meio aos deuses ele julga:/"Até quando vocês julgarão injustamente,/sustentando a causa dos injustos? (...) "Eu declaro: embora vocês sejam deuses,/e todos filhos do Altíssimo,/morrerão como qualquer homem". Trocando em miúdos menos rebuscados: "Quem manda aqui sou eu".

É difícil dizer a que período da história israelita corresponde esse momento em que, na imaginação religiosa das pessoas, Javé começou a impor sua vontade perante os deuses cananeus. Talvez o fenômeno tenha a ver com a consolidação de Israel como povo distinto dos demais cananeus: a adoração a uma divindade unicamente israelita pode ter emergido como um elemento-chave nessa consciência "nacionalista" dos ancestrais dos judeus.

Para completar essa nova fase na vida do Senhor, que poderíamos chamar de começo da vida adulta, falta ainda um elemento crucial. Lembre-se do impetuoso deus guerreiro Baal. O que parece ocorrer, segundo Mark Smith e outros especialistas, é que Javé se "baaliza", virando uma mistura de El e Baal, com ligeira predominância do segundo.

As evidências: Javé e Baal estão associados a tempestades, vulcões, fogo e terremoto; ambos são guerreiros invencíveis que habitam o alto de montanhas (Baal vive no lendário monte Zafon, Javé, no Sinai). E a semelhança fica ainda mais detalhada.

Na tradição mitológica de Canaã, quem tinha triunfado contra Yamm, o deus caótico do mar, era Baal, mas os textos da Bíblia atribuem essa vitória - adivinhe só - a Javé. Mais sugestivo ainda: alguns Salmos parecem ter sido originalmente hinos a Baal que acabaram adaptados para o culto ao Senhor dos israelitas. Só que Javé vai muito além das intervenções típicas de Baal no mundo. Na mitologia israelita, sua grande vitória não é contra o mar, mas, sim, usando o mar como arma contra o faraó que tinha escravizado o povo hebreu no Egito. Escolhendo o profeta Moisés como seu emissário, conforme conta o livro bíblico do Êxodo, o novo deus guerreiro puniu os egípcios com uma sucessão de pragas e, como grand finale, destruiu "carros de guerra e cavaleiros" do faraó afundando-os no mar.

A diferença em relação a Baal é que o Senhor seria capaz de agir não só num passado mítico mas na própria história dos israelitas. Ele é literalmente "o Senhor dos Exércitos de Israel", aquele que promete a vitória em batalha em troca da fidelidade religiosa do povo. Daí em diante, Deus nunca deixa de ser, em grande medida, um guerreiro.

Além de herdar o trono de El na mitologia israelita, Javé também pode ter levado Asherah, a mulher do velho deus. Eis aí uma possibilidade para a qual a Bíblia não prepara seus leitores. Os profetas bíblicos vivem chiando contra o fato de que os israelitas estariam se "prostituindo" (metaforicamente, e talvez literalmente também, via orgias rituais) nos altares de Asherah. Mas inscrições achadas ao longo do século 20, como as de Kuntillet Ajrud, um pit stop de caravanas no deserto do Sinai, poderiam indicar que o deus e a deusa não eram inimigos, e sim um casal.

As inscrições, datadas em torno do ano 800 a.C., dizem coisas como "a bênção para ti por Javé de Teiman e sua Asherah". Seja como for, mesmo se o casamento ainda existisse, Javé logo optaria por um divórcio - daqueles litigiosos, barra-pesada, nos quais o pai joga os filhos contra a mãe.

Casal maior
Inscrições do do século 9 a.C. dão a entender que Javé tinha se casado com Asherah, a maior divindade feminina de Canaã. Era uma interpretação israelita da mitologia da região: o deus daquele povo tomava para si a esposa de El.


Homem feito
A última resistência da antiga assembleia divina parte de Baal. Sem pestanejar, Javé o elimina. Asherah tem o mesmo destino trágico. Daqui por diante ele estará sozinho nos céus. E alcança a serenidade. Hora de fazer as pazes com a humanidade. E um sacrifício.

Seu grande momento estava chegando. Era a hora da virada para Javé. Ele deixaria de ser mais um deus. E viraria o Único. No mundo real, esse momento teve data: foi a reforma religiosa introduzida por Josias (649 - 609 a.C.), rei de Judá. Antes, porém, um interlúdio político.

Àquela altura, a nação das tribos israelitas de Canaã tinha sido dividida em dois reinos. Um ao norte, o de Israel, e um ao sul, o de Judá. E o de cima havia sido derrotado e conquistado pelo Império Assírio.

Josias não queria o mesmo destino. E parte de seus esforços para fortalecer a unidade interna de Judá e resistir aos invasores foi uma maior centralização da vida religiosa do reino. Para isso, ele começou a transformar Javé no único deus adorado por seus súditos. Por decreto: destruindo altares a outras divindades, como El, Baal... E Asherah. Esse foi o divórcio.

Também é possível que date do reinado de Josias o ataque final dos fiéis de Javé ao culto a Baal, muito criticado pelos profetas dessa época. Para a maior parte dos israelitas, não era problema adorar a Javé e a Baal ao mesmo tempo. É que outra especialidade do antigo deus cananeu era a agricultura - ele mandava chuva para regar as colheitas. Até então, embora Javé tivesse tomado conta das funções guerreiras de Baal, nada indicava que ele também pudesse bancar o regador de plantas. Mas os profetas israelitas passam, então, a afirmar que o mandachuva era ele.

Essa expulsão definitiva de Baal do panteão explica o episódio do bezerro de ouro durante a passagem dos israelitas pelo deserto. Para quem não se lembra: o povo de Deus, cansado de esperar que Moisés volte do monte Sinai, constrói uma estátua de ouro de um bezerro (emblema de Baal). Tanto Moisés quanto Javé ficam enfurecidos, e milhares de israelitas morrem como punição pela infidelidade do povo.

As ideias de Josias marcariam para sempre a visão que temos de Deus. E mais ainda depois que esse rei acabou morto. Na geração dos filhos do monarca reformista, o reino de Judá seria riscado do mapa e Jerusalém, a capital, acabaria conquistada pela Babilônia. Mas a adversidade do povo teve o efeito oposto em sua fé. No mundo mitológico, Javé se fortalecia como nunca. Com a nação agora indefesa militarmente, era a hora de reafirmar que o deus da nação, ao menos, era todo-poderoso. Nisso os profetas israelistas diziam que só Javé tinha existência, vida e poder; os outros deuses eram meras imagens de pedra, metal ou madeira.

Era nada menos que a inauguração do monoteísmo: um momento tão importante na história da espiritualidade quanto a adoção do cristianismo como religião oficial do Império Romano seria bem mais tarde. E era esse Javé único que iria para a Bíblia. E se tornaria a imagem de Deus no mundo ocidental.

Um Deus, agora, não só dos israelitas. Mas da humanidade inteira. O Deus que criou o mundo, que fez o homem à sua imagem e semelhança. E que, de certa forma, era a imagem e semelhança do Javé pré-Bíblia: o Deus guerreiro, militar, que pune com rigidez os erros de seus adoradores. 

O Velho Testamento está recheado de castigos divinos: dos mais leves, como transformar o fiel Jó, um milionário, em um mendigo, como um teste para sua fé, até o dilúvio universal - praticamente um restart no mundo depois de ter concluído que a humanidade não tinha mais jeito. A justificativa para tal comportamento está na própria história de Israel. A ideia era acreditar que os maus bocados pelos quais a nação passou nas mãos de assírios e babilônios eram provações divinas, que, se o povo mantivesse sua fé, tudo acabaria bem.

Mas Deus surge na Bíblia como algo mais complexo que um mero feitor. Usando os paralelos deste texto, seria como se Ele tivesse amadurecido depois que Josias e os profetas o aclamam Deus único. Javé fica menos humano, menos falível. Passa a ser uma entidade transcendental de fato. Começa a afirmar aos seres humanos que "os meus caminhos não são os seus caminhos" - a ideia hoje familiar de que Deus escreve certo por linhas tortas.

Mas o caráter divino só se completaria mesmo no século 1. O primeiro século depois de seu filho, quando o Novo Testamento foi escrito. É a metamorfose mais radical do guerreiro Javé. Encarnado na figura de Jesus, Deus apresenta uma nova solução para a humanidade. Em vez de castigar ou destruir os homens mais uma vez, decide purgar os pecados dos mortais com outro sacrifício: o Dele próprio. Morre o corpo do Deus encarnado, não o espírito divino. Este, agora mais sereno, continuou zelando por nós. E assim será. Até o fim dos tempos. E acaba assim a nossa história, certo?


Claro que não. A saga de Javé é só um dos reflexos de uma epopeia maior: a da humanidade buscando um sentido para a existência. Nesse aspecto, continuamos tão perdidos quanto os antigos que não sabiam por que o trovão trovejava ou o que as estrelas faziam pregadas no céu. Ainda não sabemos por que estamos aqui. E a única certeza é que vamos continuar buscando respostas. Seja o que Deus quiser.

Único
Javé chega ao auge conhecendo cada detalhe do passado e do futuro. Sua figura lembra El. Mas agora Ele está só.



Para saber mais
The Early History of God
Mark Smith, Wm. B. Eerdmans Publishing.

Deus, uma Biografia
Jack Miles, Companhia das Letras.