I
Afirma-se
que um Deus infinito criou todas as coisas, que governa todas as coisas e que
suas criaturas devem ser obedientes e gratas ao criador; que tal criador exige
certas coisas, e a pessoa que concorda com tais demandas é religiosa. Este tipo
de religião tem sido substancialmente universal.
Por
muitos séculos e em muitos povos existiu a crença que tal Deus exigia
sacrifícios – que lhe agradava quando pais derramavam o sangue de seus bebês.
Posteriormente, supôs-se que ficava satisfeito com o sangue de bois, cordeiros
e pombas, e que, em troca ou em consideração a tais sacrifícios, Deus dava a
chuva, o sol e a colheita. Também se acreditava que se os sacrifícios não
fossem feitos, este Deus enviaria pestilência, fome, inundação e terremotos.
A
última fase desta crença no sacrifício foi, de acordo com a doutrina cristã,
que Deus aceitou o sangue de seu filho – que, depois de seu filho ter sido
assassinado, ele, Deus, satisfez-se e deixou de desejar sangue.
Durante
todos esses anos e em todos esses povos, havia a crença de que este Deus ouvia
e respondia orações, que perdoava pecados e salvava as almas dos verdadeiros
fiéis. Isso, de um modo genérico, é a definição de religião.
Agora,
as questões são estas: será que a religião foi fundamentada em qualquer fato
conhecido? Será que este tipo de ser – Deus – existe? Será que foi ele quem nos
criou? Será que alguma oração já foi respondida? Será que algum sacrifício de
bebês ou bois assegurou a mercê deste Deus invisível?
Primeiro:
Um
Deus infinito criou os homens?
Por
que criou os intelectualmente inferiores?
Por
que criou os deformados e os desvalidos?
Por
que criou os criminosos, os dementes, os loucos? O poder e a sabedoria
infinitas podem apresentar qualquer justificativa para a criação dessas falhas?
Tais
falhas estão sob a obrigação de seu criador?
Segundo:
Um
Deus infinito é o governador deste mundo?
É
o responsável por todos os chefes, reis, imperadores e rainhas?
É
o responsável por todas as guerras que foram travadas, por todo o sangue
inocente que foi derramado?
É
o responsável por séculos de escravidão, pelas costas que foram feridas pelo
flagelo, pelos bebês que foram vendidos ainda no seio de suas mães, pelas
famílias que foram separadas e destruídas?
Este
Deus é o responsável pela perseguição religiosa, pela Inquisição e por todos os
instrumentos de tortura?
Este
Deus permitiu que os cruéis e vis destruíssem os bravos e os virtuosos?
Permitiu que tiranos derramassem o sangue de patriotas?
Permitiu
que seus inimigos torturassem e queimassem seus amigos?
Quanto
vale um Deus dessa espécie?
Um
homem decente, tendo poder para evitá-lo, permitiria que seus inimigos
torturassem e queimassem seus amigos?
É
possível concebermos uma malevolência suficiente para dar preferência aos
inimigos em vez dos amigos?
Se
um Deus bondoso e infinitamente poderoso governa este mundo, como podemos
justificar os ciclones, os terremotos, a pestilência e a fome?
Como
podemos justificar o câncer, os micróbios, a difteria e o milhar de outras
doenças que atacam durante a infância?
Como
podemos justificar as bestas selvagens que devoram seres humanos e as serpentes
cujas mordidas são letais?
Como
podemos justificar um mundo onde a vida alimenta-se da vida?
Será
que os bicos, garras, dentes e presas foram inventados e produzidos pela
infinita misericórdia?
A
bondade infinita deu asas às águias para que suas presas fugazes pudessem ser
arrebatadas?
A
bondade infinita criou os animais de rapina com a intenção de que eles
devorassem os fracos e os desamparados?
A
bondade infinita criou as inumeráveis criaturas inúteis que se reproduzem
dentro de outros seres e se alimentam de sua carne?
A
sabedoria infinita produziu intencionalmente os seres microscópicos que se
alimentam do nervo óptico?
Pense
na idéia de cegar um homem para satisfazer o apetite de um micróbio!
Pense
na vida alimentando-se da própria vida! Pense nas vítimas! Pense no Niagara de
sangue se derramando no precipício da crueldade!
Tendo
em vista tais fatos, o que é, afinal, a religião?
É
o medo.
O
medo constrói altares e oferece sacrifícios.
O
medo erige catedrais e curva a cabeça dos homens em adoração.
O
medo dobra os joelhos e profere as orações.
O
medo finge amar.
A
religião ensina virtudes escravizantes – obediência, humildade, autonegação,
perdão econformismo.
Lábios
– religiosos e tementes – repetem, tremulantes, esta passagem: “Ainda que ele me mate, nele confiarei”
(cf. Jó – 13:15). Isso é um abismo de degradação.
A
religião não ensina autoconfiança, independência, hombridade, coragem,
autodefesa. A religião faz de Deus o mestre e do homem seu servo. E tal mestre
não consegue ser suficientemente grandioso para fazer da escravidão algo
aprazível.
II
Se
Deus existe, como podemos saber se ele é bom? Como podemos provar que é
misericordioso, que se importa com sua criação?
Se
tal Deus existe, então viu, em muitas ocasiões, milhões de suas pobres
criaturas arando os campos, semeando grãos, e quando os viu, sabia que
dependiam da colheita para sobreviver e, ainda assim, esse bondoso Deus, esse
ser compassivo, não lhes proveu chuva. Fez o sol nascer, roubando da terra toda
a umidade, e não enviou chuva. Viu as sementes que os homens plantaram murchar
e perecer, mas não enviou chuva.
Viu as pessoas olharem, com tristeza, a terra
estéril, e não enviou chuva. Viu-os, lentamente, devorar o pouco que tinham, e
viu-os quando vieram os dias de fome – viu-os definhando lentamente, viu-os famélicos,
com seus olhos combalidos; ouviu suas preces, viu-os devorar os miseráveis
animais que tinham, viu pais e mães, ensandecidos pela fome, matando e comendo
seus bebês depauperados – e, apesar de o céu sobre eles ser como bronze e a
terra abaixo como ferro, não enviou qualquer chuva. Podemos dizer que, no
coração deste Deus, havia a flor da piedade? Podemos dizer que se importa com
sua criação? Podemos dizer que sua piedade é eterna?
Constitui
uma prova de que este Deus é bondoso o fato de ele enviar ciclones que destroem
vilarejos e cobrem os campos com corpos desfigurados de pais, mães e bebês?
Constitui uma prova de sua bondade ver que ele abriu precipícios na terra que
engoliram milhares de crianças indefesas? Ou será que ele é bom porque vulcões os
devastaram em rios de fogo? Podemos inferir que Deus é bondoso a partir dos
fatos que conhecemos?
Se
essas calamidades não ocorressem, suspeitaríamos que Deus não se importa com os
seres humanos? Se não houvesse fome, pestilência, ciclones ou terremotos,
pensaríamos que Deus não é bom?
De
acordo com os teólogos, Deus não fez todos os homens iguais. Fez raças que
diferem em inteligência, estatura e cor. Há algum traço de bondade, de
sabedoria nisso?
Deveriam
as raças superiores agradecer a Deus pelo fato de não serem inferiores? Se
dissermos que sim, então faço outra pergunta: deveriam as raças inferiores
agradecer a Deus por não serem superiores, ou talvez deveriam agradecer a Deus
por não serem bestas selvagens?
Quando Deus fez essas raças diferentes, sabia que as superiores escravizariam as inferiores, sabia que os inferiores seriam conquistados e, finalmente, destruídos.
Quando Deus fez essas raças diferentes, sabia que as superiores escravizariam as inferiores, sabia que os inferiores seriam conquistados e, finalmente, destruídos.
Se
Deus fez isso, se sabia do sangue que seria derramado, das agonias que seriam
enfrentadas, se viu os incontáveis campos repletos de cadáveres, se viu as
costas ensangüentadas dos escravos, todos os corações partidos das mães cujos
bebês foram roubados – se Deus viu e sabia disso tudo, será que conseguiríamos
conceber um demônio mais malevolente?
Por
que, então, deveríamos dizer que Deus é bondoso?
As
paredes úmidas dos calabouços contra as quais os bravos e os generosos viram-se
definhar, os patíbulos manchados e glorificados com sangue nobre, os escravos
sangrando e sem uma gota de esperança, os mártires que foram envolvidos em
chamas, os virtuosos estirados em aparelhos de tortura, vendo suas juntas e
músculos desfazendo-se, os corpos feridos e sanguinolentos dos justos, os olhos
que foram extintos por buscarem a verdade, os incontáveis patriotas que lutaram
e pereceram em vão, as esposas exploradas, espancadas e infelizes, os rostos
esquálidos de bebês desprezados, os milhões de assassinados no passado, as
vítimas de vendavais, inundações e incêndios, as forças aprisionadas da Terra,
os trovões e raios, as torrentes de lava escaldante, a fome, a praga e as dores
intermináveis, as bocas pingando sangue, as presas que envenenam, os bicos que
ferem e dilaceram, o triunfo da escória, as leis e o poder dos corruptos, as
coroas que a crueldade vestiu, os hipócritas de batina, com suas mãos ensangüentadas
e unidas em oração, agradecendo seu Deus – este fantasma demoníaco – pela
liberdade ter sido banida do mundo: essas recordações de um passado
amedrontador, esses horrores ainda existem.
Tais
fatos aterrorizantes negam a existência de qualquer Deus que deseja e possui
poder para proteger e abençoar a raça humana.
III
A
maior parte das pessoas se apega ao sobrenatural. Se abandonarem um Deus, logo
em seguida imaginam outro. Tendo posto Jeová de lado, falam sobre o poder que
trabalha pelo bem.
O
que é este poder?
O
homem avança, e necessariamente avança através da experiência. Um homem,
desejando ir a um certo local, chega a um ponto onde a estrada bifurca-se. O
homem segue pelo caminho da esquerda, acreditando ser esse o caminho certo, e
continua a viajar até descobrir que tomou o caminho errado.
Então
redefine seu percurso e toma o caminho da direita, chegando, assim, ao local
desejado. A próxima vez em que o homem quiser ir àquele lugar, não seguirá pelo
caminho da esquerda, pois já fez essa trajetória e sabe que é errada. Assim,
ele segue pelo caminho da direita, e por isso os teólogos dizem: “Há um poder
que trabalha pelo bem”.
Uma
criança, encantada pela beleza de uma chama, tenta pegá-la com a mão. A mão é
queimada, e após isso a criança mantém sua mão longe do fogo. O poder que
trabalha pelo bem ensinou uma lição à criança.
A
experiência acumulada do mundo é o poder e a força que trabalha pelo bem. Essa
força não é consciente, não é inteligente. Não tem vontade, não tem objetivo. É
somente um resultado.
Milhares
também tentaram estabelecer a existência de Deus pelo fato de termos aquilo que
se denomina senso moral; isto é, uma consciência.
Teólogos
e muitos dos assim chamados “filósofos” insistem que este senso moral, este
senso de dever, de obrigação, veio de fora, e que a consciência é algo
especial. Partindo da idéia de que este senso moral não foi produzido aqui, que
não foi produzido pelos homens, então imaginam um Deus do qual isso proveio.
O
homem é um ser social. Vivemos juntos em famílias, tribos e nações.
Os
membros de uma família, de uma tribo ou de uma nação que aumentam a felicidade
da família, da tribo ou da nação são considerados bons membros. São elogiados,
admirados e respeitados. São considerados bons, isto é, morais.
Os
membros que produzem miséria na família, na tribo ou na nação são considerados
maus membros. São acusados, desprezados e punidos. São considerados imorais.
A
família, a tribo, a nação, criam padrões de conduta, de moralidade. Não há
qualquer coisa de sobrenatural nisso.
O
mais grandioso dos seres humanos disse: “A
consciência nasce do amor”.
Este
senso de obrigação, de dever, foi produzido naturalmente.
Entre
selvagens, as conseqüências imediatas das ações são levadas em consideração. Na
medida em que os povos avançam, as conseqüências mais distantes são percebidas.
O padrão de conduta tornasse mais elevado. A imaginação é cultivada. O homem
torna-se capaz de colocar a si mesmo no lugar do outro. O senso de dever
torna-se mais forte, mais imperativo. O homem passa a julgar a si próprio.
O
homem ama, e o amor é o princípio, a fundação das mais elevadas virtudes. Se
fere alguém que ama, então vem o remorso, o arrependimento, a tristeza, a
consciência. Nisso tudo não há nada de sobrenatural.
O
homem enganou a si próprio. A natureza é um espelho no qual o homem vê sua
própria imagem, e todas as religiões sobrenaturais se embasam na pretensão de
que a imagem, que parece estar por detrás deste espelho, foi alcançada.
Todos
os metafísicos espiritualistas, de Platão a Swedenborg, manufaturaram seus
fatos, e todos os fundadores de religião têm feito o mesmo.
Suponhamos
que um Deus infinito exista. O que podemos fazer por ele? Sendo infinito,
também é incondicional; sendo incondicional, não pode ser beneficiado ou
prejudicado. Deus não pode querer: ele tem.
Pense
no egotismo de um homem que acredita que um ser infinito deseja suas preces!
IV
O
que nossa religião produziu? Obviamente, os cristãos admitem que todas as
outras religiões são falsas, e conseqüentemente precisamos examinar apenas a
nossa.
O
cristianismo deu luz a algo bom? Tornou o homem mais nobre, mais compassivo, um
pouco mais honesto? Quando a Igreja tinha o controle, isso tornou os homens
melhores e mais felizes?
Qual
foi o efeito do cristianismo na Itália, na Espanha, em Portugal e na Irlanda?
O
que a religião fez pela Hungria ou pela Áustria? Qual foi o efeito do
cristianismo na Suíça, na Holanda, na Escócia, na Inglaterra, na América?
Sejamos honestos. Esses países poderiam ter sido piores sem religião? Poderiam
ter sido piores se tivessem qualquer outra religião, que não o cristianismo?
Torquemada
teria sido pior se tivesse sido um seguidor de Zoroastro? Calvino teria sido
mais sanguinário se tivesse acreditado na religião dos habitantes das Ilhas do
Sul? Os holandeses teriam sido mais tolos se tivessem negado o Pai, Filho e
Espírito Santo e, em vez disso, adorassem a sagrada trindade da salsicha, da
cerveja e do queijo? John Knox teria sido pior se tivesse deserdado Cristo e se
tornado um seguidor de Confúcio?
Peguemos
nossos caros e compassivos patriarcas puritanos. O que o cristianismo fez por
eles? Os fez odiar o prazer. Na porta da vida penduraram as vestimentas da
morte. Eles silenciaram todos os sinos da alegria. Faziam berços embalando
caixões. No ano puritano havia doze dezembros. Tentaram fazer desaparecer a
infância e a juventude, o canto de bebês e a melodia da manhã.
A
religião dos puritanos era uma pura maldição. Os puritanos acreditam que a
Bíblia é a palavra de Deus, e esta crença sempre fez aqueles que a portaram
cruéis e vis. Os puritanos teriam sido piores se tivessem adotado a religião
dos índios da América do Norte?
Permitam
que eu me refira a apenas um fato que demonstra a influência da crença na
Bíblia em seres humanos: “No dia da
coroação da rainha Elizabeth, ela foi presenteada com uma Bíblia por um velho
homem representando o Tempo, com a verdade sentada ao seu lado como uma
criança. A rainha recebeu a Bíblia, beijou-a, e empenhou-se em lê-la
diligentemente. Em dedicação a esta Bíblia abençoada, a rainha foi piamente
exortada a passar todos os papistas pelo fio da espada”.
Neste
incidente vemos o real espírito dos protestantes que amam a Bíblia. Em outras
palavras, é tão demoníaco, tão infame quanto o espírito católico.
A
Bíblia fez com que o povo da Geórgia se tornasse gentil e compassivo? Os
linchadores seriam mais ferozes se adorassem deuses de madeira e pedra?
V
A
religião foi utilizada e, em todos os países, em todos os tempos, ela falhou.
A
religião nunca tornou o homem misericordioso.
Lembre-se
da Inquisição.
Que
efeito teve a religião na escravidão?
A
religião sempre foi inimiga da ciência, da investigação e do livre-pensamento.
A
religião nunca tornou os homens livres.
Nunca
tornou o homem moral, moderado, laborioso e honesto.
Os
cristãos são mais moderados, sequer mais virtuosos, sequer mais honestos que
selvagens?
Entre
selvagens não percebemos claramente que seus vícios e crueldades são fruto de
suas superstições?
Para
aqueles que acreditam na uniformidade da natureza, a religião é impossível.
Podemos
afetar a natureza e as características da matéria através da oração? Podemos
apressar ou atrasar as marés através da oração? Podemos mudar a direção dos
ventos oferecendo sacrifícios? Se nos ajoelharmos, isso nos trará saúde? Podemos
curar uma doença através da súplica? Podemos enriquecer nosso conhecimento
através de uma cerimônia? Podemos receber virtude ou honra como esmolas?
Não
são os fatos do mundo mental produzidos de um modo tão necessário quanto os
fatos do mundo material? Deste modo, aquilo que chamamos de mente não é
precisamente tão natural quanto aquilo que chamamos de corpo?
A
religião apóia-se na idéia de que a natureza tem um Mestre, que este mestre
ouve preces e orações, que este mestre pune e recompensa, que ama a adoração e
a lisonja e odeia os bravos e os livres.
O
homem obteve, alguma vez, qualquer ajuda do céu?
VI
Se
temos uma teoria, precisamos de fatos para fundamentá-la. Precisamos de
embasamento empírico. Não podemos construir nosso conhecimento através da
intuição, de fantasias, de analogias ou inferências. A estrutura precisa de uma
fundamentação. Se pretendemos construir, devemos começar pelo alicerce.
Tenho
uma teoria e tenho quatro fundamentos para ela.
O
primeiro fundamento é que a matéria – a substância – não pode ser destruída,
não pode ser aniquilada.
O
segundo é que a força não pode ser destruída, não pode ser aniquilada.
O
terceiro é que matéria e força não podem existir separadamente – nenhuma
matéria à parte da força e nenhuma força à parte da matéria.
O
quarto é que aquilo que não pode ser destruído também não pode ser criado – que
o indestrutível é incriável.
Se
essas quatro proposições são fatos, segue-se necessariamente que a matéria e a
força são eternas, que não podem ser aumentadas ou diminuídas.
Segue-se
que nada foi ou pode ser criado, que nunca houve ou pode haver um criador.
Segue-se
que não pode haver qualquer inteligência, qualquer intenção por detrás da
matéria e da força.
Não
há inteligência sem força. Não há força sem matéria. Conseqüentemente, não há
qualquer possibilidade de ter existido uma inteligência, uma força por detrás
da matéria.
Logo,
o sobrenatural não existe e não pode existir. Se essas quatro proposições são
fatos, a natureza não tem qualquer mestre. Se a matéria e a força são eternas,
segue-se necessariamente que Deus não existe, que nenhum Deus criou ou governa
o Universo, que nenhum Deus existe para responder às orações, que nenhum Deus
socorre os oprimidos, que nenhum Deus se compadece com o sofrimento dos inocentes,
que nenhum Deus se importa com os maus tratos dispensados aos escravos ou com
as mães que perderam seus bebês, que nenhum Deus resgata os torturados, que
nenhum Deus salva os mártires das chamas. Em outras palavras, isso prova que o
homem nunca recebeu qualquer ajuda do céu, que todos os sacrifícios foram em
vão e que todas as preces foram proferidas ao vento, sem ninguém para ouvi-las.
Não finjo saber – apenas digo o que penso.
Se
matéria e força são eternas, segue-se que tudo que foi possível já aconteceu,
que tudo que é possível está acontecendo e que tudo que será possível
acontecerá.
No
Universo não há acaso, não há caprichos. Todos eventos têm seu antecedente.
Aquilo
que nunca aconteceu não poderá acontecer. O presente é o produto necessário de
todo o passado, a causa necessária de todo o futuro.Na cadeia infinita de
eventos não há – e não pode haver – qualquer elo quebrado, qualquer elo
faltando. A forma e o movimento de cada estrela, o clima do mundo todo, todas
as formas de vida animal e vegetal, todos instintos, a inteligência e a
consciência, todas as afirmações e negações, todos os vícios e virtudes, todos
os pensamentos e sonhos, todas as esperanças e medos, são necessidades. Nenhuma
das incontáveis coisas e relações no Universo poderia ser diferente.
VII
Se
a matéria e a força são eternas, então podemos dizer que o homem não teve um
criador inteligente, que o homem não foi uma criação especial.
Sabemos
– se é que sabemos qualquer coisa – que Jeová, o oleiro divino, não misturou e
moldou barro na forma de homens e mulheres e então lhes soprou o sopro da vida.
Sabemos
agora que nossos primeiros pais não eram “estrangeiros” neste mundo. Sabemos
que eram nativos, que foram produzidos aqui, que suas vidas não foram criadas
pelo sopro de qualquer divindade. Sabemos agora – se é que sabemos qualquer
coisa – que o Universo é natural e que os homens e as mulheres surgiram
naturalmente. Atualmente, sabemos quais são nossos ancestrais, podemos fazer
nossa árvore genealógica.
Temos
todos os elos da corrente – e não obtivemos tais informações de livros
inspirados. Temos fatos: fósseis e formas vivas.
Das
criaturas mais simples, de uma sensação cega, de uma forma viva rudimentar, de
um desejo vago, até uma única célula com núcleo, até uma estrutura cheia de fluido,
até uma estrutura com paredes duplas, até um verme achatado, até algo que já
respira, até um organismo que possui uma medula espinhal, até um elo entre os
invertebrados e os vertebrados, até um que possui um crânio – uma casa para o
cérebro –, até uma forma dotada de barbatanas e, em seguida, outra com
barbatanas posteriores e anteriores, até os répteis, até os mamíferos, até os
marsupiais, até os lêmures habitantes de árvores, até os simiescos e,
finalmente, até o homem.
Conhecemos
os caminhos que a vida percorreu. Conhecemos as pegadas da evolução – elas
foram traçadas. O último elo foi encontrado. Por isso, estamos em débito, acima
de tudo, ao maior dos biólogos, Ernest Haeckel.
Acreditamos
agora que o Universo é natural; negamos a existência do sobrenatural.
VIII
Por
milhares de anos homens e mulheres têm tentado reformar o mundo. Criaram deuses
e demônios, paraísos e infernos; escreveram livros sagrados, realizaram
milagres, construíram catedrais e calabouços; coroaram e destronaram reis e
rainhas; maltrataram e aprisionaram, torturaram e queimaram pessoas vivas;
pregaram e rezaram; valeram-se de promessas e ameaças; adularam e persuadiram;
apregoaram e ensinaram; de diversos modos, empenharam-se em tornar as pessoas
honestas, temperadas, laboriosas e virtuosas; construíram hospitais e asilos,
universidades e escolas. Parecem ter feito o máximo que estava ao seu alcance
para tornar a humanidade melhor e mais feliz, e ainda assim falharam.
Por
que falharam? Vou dizer o porquê.
Ignorância,
pobreza e vício estão povoando o mundo. A sarjeta transformou-se num berçário.
Pessoas
incapazes de sustentarem a si próprias enchem lares, casebres e choupanas de
crianças, ficando à mercê do “Senhor”, da sorte e da caridade. Não são
suficientemente inteligentes para pensar sobre as conseqüências ou sentir
responsabilidade. Ao mesmo tempo, não querem crianças, pois estas são uma
maldição – para os pais e para si próprias.
O
bebê não é bem-vindo porque, na verdade, constitui um fardo. Essas crianças
inconvenientes abarrotam prisões, asilos, creches, hospitais, e também lotam os
patíbulos. Poucas se salvam pelo acaso ou pela caridade, mas a grande maioria
constitui um malogro. Elas se tornam viciosas, ferozes. Vivem através da fraude
e da violência, e posteriormente transmitem seus vícios aos seus filhos.
Contra
esta inundação de vícios, as forças reformistas são inúteis, e a própria
caridade se converte em uma forma inconsciente de promover o crime.
O
insucesso parece ser a “marca registrada” da natureza. Por quê? Porque a
natureza não possui um projeto e tampouco inteligência. A natureza produz sem
objetivo, sustenta sem intenção e destrói sem pensamento. O homem possui uma
pequena inteligência, e deveria usá-la. O intelecto é a única coisa capaz de
elevar a humanidade.
A
verdadeira questão é esta: podemos evitar que os ignorantes, os pobres e os
viciosos continuem abarrotando o mundo com seus filhos?
Podemos
evitar que esse Missouri de ignorância e vício deságüe no Mississipi da
civilização?
Precisamos
ser as eternas vítimas de uma paixão ignorante? O mundo pode ser civilizado a
um ponto em que as conseqüências serão levadas em consideração por todos?
Por
que homens e mulheres concebem filhos dos quais não podem cuidar, que são um
fardo e uma maldição? Por quê? Porque possuem mais paixão do que inteligência,
mais paixão do que consciência, mais paixão do que razão.
Não
é possível reformar estas pessoas com panfletos ou conversas. Não é possível
reformar essas pessoas com orações e credos. A paixão é – e sempre foi – surda.
As armas da reforma são substancialmente inúteis. Criminosos, prostitutas,
mendigos e malogros aumentam em número diariamente. As prisões, os asilos e os
abrigos para pobres estão lotados. A religião está com as mãos atadas. A lei
pode punir, mas não pode reformar criminosos e tampouco prevenir o crime. A
maré do vício está subindo. A guerra que está sendo atualmente travada contra
as forças do mal é tão vã quanto a guerra dos vaga-lumes contra a escuridão da
noite.
Há
apenas uma esperança. A ignorância, a pobreza e o vício precisam parar de
povoar o mundo. Isso não pode ser feito pela moral. Isso não pode ser feito
através discursos ou exemplos. Isso não pode ser feito pela religião ou pela
lei, por padres ou por carrascos. Isso não pode ser feito através da força,
seja esta física ou moral.
Para
alcançar tal objetivo há apenas um modo. A ciência deve tornar a mulher a dona,
a senhora de si mesma. A ciência é a única possível solução, ela deve conceder
à mulher o poder de decidir por si mesma se deseja ou não se tornar uma mãe.
Isso
soluciona toda a questão. Isso liberta a mulher. Os bebês que nascerem serão
bem-vindos. Serão embalados com toda a felicidade. Encherão os lares de luz e
felicidade.
Indivíduos
que acreditam que escravos são mais puros e verdadeiros que os homens
emancipados, que acreditam ser o medo um guia mais seguro que o conhecimento,
que apenas os que obedecem ordens alheias são verdadeiramente bons e que a
ignorância é o solo no qual a perfeição, a cheirosa flor da virtude cresce, irão
cobrir suas faces chocadas com suas mãos em protesto.
Indivíduos
que pensam que a luz é inimiga da virtude, que a pureza jaz na escuridão, que é
perigoso que os seres humanos conheçam-se a si mesmos e os fenômenos naturais
que afetam seu bem estar ficarão horrorizados com a idéia de fazer da
inteligência o mestre da paixão.
Contudo,
anseio pelo dia em que homens e mulheres, guiados pela sua noção das
conseqüências futuras, pela moralidade nascida da inteligência, se recusarão a
perpetuar aflições e dores, se recusarão a abarrotar o mundo com malogros.
Chegado
este tempo, cairão as paredes das prisões, os calabouços serão inundados de luz
e a sombra do patíbulo não mais amaldiçoará a Terra. A pobreza e o crime não se
perpetuarão. As mãos magras da necessidade não mais se estenderão por esmolas.
Tudo isso se tornará poeira. O mundo será inteligente, virtuoso e livre.
IX
A
religião nunca poderá reformar a humanidade porque religião é escravidão.
É
muito melhor ser livre, abandonar os fortes e as barricadas do medo, erguer-se
com firmeza e encarar o futuro com um sorriso.
É
muito melhor, às vezes, dar a si mesmo momentos de desprendimento, para divagar
e navegar segundo a maré com a força cega do mundo; pensar e sonhar, esquecer
as correntes e limitações da vida, esquecer propósitos e objetivos e viajar
pela galeria de imagens em nossa mente; sentir novamente os abraços e beijos do
passado, relembrar a manhã de nossas vidas; ver novamente os falecidos, as suas
faces; pintar um quadro sensato do futuro, esquecer todos os deuses, suas
promessas e ameaças; sentir novamente em nossas veias o fluir da felicidade e
ouvir a música marcial, o bater rítmico de um coração destemido.
E
então se colocar a serviço de todas as coisas úteis e, através do pensamento e
da ação, alcançar o seu ideal; dar asas aos seus sonhos para que eles, como
abelhas, possam realizar a arte de encontrar néctar nas coisas mais comuns;
buscar, com olhos treinados e decididos, pelos fatos; encontrar as sutis
ligações que conectam o distante e o agora.
Aumentar
o conhecimento, aliviar o fardo dos fracos, desenvolver o cérebro, defender a
justiça, construir um palácio para nossa alma. Isso é a verdadeira religião,
isso é a verdadeira adoração.
Autor:
Robert G. Ingersoll
Escrito
em 1899