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terça-feira, 10 de novembro de 2015

SEQUESTRO DE CORPOS POR CRISTÃOS CATÓLICOS






Anarquia sexual nos conventos. Evangelização forçada na Casa dos Catecúmenos, inclusive com prisões de adultos e crianças. Batismo contra a vontade dos pais. Perda da guarda dos filhos e até sequestro de crianças batizadas a revelia dos pais. Escândalo internacional com intervenção da comunidade judaica, Inglaterra e França.



A partir do século XI, a Igreja Católica deu início a um poderoso esforço de moralização da população, para tentar mudar a visão da sexualidade, ainda muito ligada à concepção paga da vida.

Os alvos centrais dessa tentativa foram os banhos públicos. Eram lugares formados por banheiras de água quente, saunas e salas onde se cortavam cabelos, arrancavam-se dentes ou se faziam massagens. Nos banhos públicos medievais (ao contrário do que acontecia na Roma Antiga), a cada domingo homens e mulheres se banhavam juntos. Todos se vestiam apenas com roupas rústicas e velhas, fossem pobres (porque não tinham outra coisa) ou ricos, por medo de que lhes roubassem as roupas melhores.

Essa promiscuidade social e sexual era agravada pelo fato de que, em algumas regiões, todos se banhavam juntos nus, enquanto eram servidas bebidas.

O clero se preocupava com tanta promiscuidade e decidiu intervir. Não foi fácil convencer os europeus de que as termas públicas eram algo ruim. A idéia da Igreja foi simples: impedir que mulheres honestas frequentassem os banhos, transformando-os em verdadeiros bordéis. Assim foi possível separar o bem do mal de forma clara.

Foram necessários pelo menos três séculos para transformar boa parte dos banhos em casas de tolerância e fechar os outros. Mas afinal foi feito. As termas eram frequentadas apenas por prostitutas e seus clientes, e se mostrar nu tornou-se cada vez mais vergonhoso.

E finalmente a Igreja conseguiu realizar o que tentava pregar há um milênio. No século XIV, São Jerônimo já aconselhava que as jovens nobres não fossem aos banhos quando crescidas e que não se banhassem com eunucos ou mulheres grávidas, pois os primeiros conservariam o instinto masculino, e as segundas ofereceriam um espetáculo "torpe". E, chegando à fase adulta, as mulheres deveriam renunciar completamente aos banhos, ter vergonha de si mesmas e não suportar se verem nuas.1 Os únicos que resistiram foram os povos nórdicos, para os quais renunciar à sauna era impossível, por causa do frio.

Os primeiros frutos desse "achado" papal não demoraram a ser colhidos: a prostituição aumentou, junto com as doenças venéreas e todos os males que a sujeira e a desnutrição trazem.2 Estas últimas contribuíram para espalhar as epidemias de peste negra que, a partir de 1347, devastaram a Europa com recorrência cíclica até a segunda metade do século XVII. O balanço estimado foi de uma perda repetida de 30 a 40% da população européia sobre um total de oitenta milhões de habitantes. Só no século XVI, a população voltou ao nível numérico que tinha em 1340. E quando a peste desapareceu, foi substituída por outras doenças, como o tifo.


O clero concubinário

Uma decisiva medida de moralização foi a imposição definitiva de celibato ao clero. Mas como muitas vezes acontece quando a moral é imposta por força de lei, em vez de aumentar a moralidade, aumentou a hipocrisia.

As mulheres foram substituídas por concubinas ou prostitutas, e foram necessários séculos de duras imposições antes que o clero assumisse uma aparência de castidade. Os altos prelados da Cúria romana eram os primeiros a não dar bom exemplo. Para entender melhor como era a situação, basta ler os testemunhos que chegavam de dentro da corte pontifícia. O secretário apostólico do papa Bonifácio IX, Poggio Bracciolini (1380-1459), foi uma figura de extrema importância, encarregado, entre outras coisas, de escrever os discursos do pontífice. Quando queria relaxar, ia com os amigos para uma sala do palácio apostólico chamada de "Bugiale" (da mentira), onde se contavam as últimas piadas e fofocas do clero. Bracciolini deu-se o trabalho de anotar algumas historinhas e, ao se mudar para o campo, em 1450, escreveu um livro com os "feitos", o qual seria traduzido em toda a Europa.

São 273 anedotas que contam fatos e boatos de cunho sexual. O volume é uma espécie de "besteirol eclesiástico". Por exemplo, um padre de Tívoli, falando do adultério, tomado pelo calor do sermão, gritou do púlpito que "este pecado era tão grave que ele preferia amar dez virgens a amar uma única mulher casada".

Há, ainda, a história do frei Paulo, que, durante um sermão contra a luxúria, denunciou, escandalizado, que havia maridos que, para sentir mais prazer durante o coito, colocavam um travesseiro sob o traseiro da mulher: "É inútil dizer que a posição, desconhecida para alguns, agradou e que, em casa, foi logo colocada em prática."3

Das histórias de Bracciolini, emerge o retrato de um alto clero muito mais ocupado com a política e a luta pelo poder do que com a guerra e a luxúria. Os próprios funcionários da Cúria eram homens "do mundo", pessoas cultas e requintadas que riam elegantemente do bigotismo sexual do clero menor. Nada os diferenciava dos diplomatas dos governos "leigos". De resto, entre os séculos XV e XVI, era freqüente ver cardeais (alguns ordenados na adolescência) com "mulheres", filhos (muitas vezes também destinados à carreira eclesiástica) e amantes.

Nem os papas eram campeões de castidade. Pio II (1458-1464), intelectual "neopagão", quando jovem era conhecido por escrever poesias e contos eróticos. É verdade que, quando pontífice, ostentou grande sobriedade, mas absolutamente duvidada por seus contemporâneos.4 Dentre seus sucessores, havia personagens como Alexandre IV Bórgia, cuja crueldade era bem conhecida, ou Júlio II, o papa guerreiro, que dizem ter tido três filhos antes de ascender ao trono pontifício.

Quando falamos de promiscuidade e transgressão às regras do celibato, temos de tomar cuidado para não confundir fenômenos bem diferentes. Uma coisa é a transgressão individual do homem solteiro que não consegue se adaptar à moral imposta e que talvez viva sua condição de "pecador" com um sentimento de culpa. Outra é uma concepção bem diferente da sexualidade veiculada a algumas doutrinas heréticas.




Mais ou menos durante toda a história do cristianismo, movimentos heréticos de conteúdo similar nasceram em períodos cíclicos. Havia quem afirmasse que a pureza era um estado inferior e que todas as ações externas de uma pessoa pura, incluindo as relações sexuais, também eram puras por definição. Outros movimentos, como os Irmãos do Espírito Livre, inspiravam-se em concepções panteísticas e diziam que o Reino dos Céus já havia descido sobre a Terra, tornando lícito tudo o que antes era proibido. Fala-se até de grandes mosteiros transformados em comunidades orgiásticas, provavelmente seguindo a onda dessas doutrinas e se tornando uma ameaça não só para a Igreja, mas também para a ordem social. 

Um caso conhecido foi o da Abadia de Montel'Abate, perto de Perúgia, onde pouco depois do ano 1000 monges e freiras viviam em tal estado de promiscuidade que o papa nomeou um prior com autoridade de bispo e uma companhia de homens armados para cuidar do assunto. A ordem foi restabelecida, mas o prior-bispo precisou construir um castelo e manter uma guarnição para garantir o controle da situação.




Com a Contra-Reforma, tudo mudou. Os mosteiros e conventos deixaram de ser lugares de anarquia sexual. Pouco se sabe de como se realizou essa moralização interna, pois a Igreja não deixou que ninguém se infiltrasse, mas com certeza deu resultado, pois os excessos se tornaram exceção à regra.

A loucura da Inquisição também influiu nesse processo. Ao tornarem-se ferozes repressores dos comportamentos heréticos, satânicos e pagãos, os padres se viram voltando seu zelo persecutório contra os próprios colegas.


Os batismos forçados  



Na Idade Média e da Idade Moderna, os judeus da Europa eram considerados cidadãos de segunda classe. Quem professava a religião judaica não podia exercer profissão liberal nem possuir bens, nem escolher livremente onde viver, sendo obrigado a morar nos guetos, muitas vezes superpovoados, e a usar sinais de reconhecimento que os distinguissem dos cristãos.

Os rituais judaicos deviam ser celebrados de maneira reservada, sem nenhuma solenidade e sem a presença de nenhum cristão, e muitas vezes as cópias do Talmude, a compilação histórica de comentários sobre as Escrituras, eram objeto de apreensão e destruição. 

Os judeus também eram proibidos de discutir sobre a própria religião com os cristãos, e suas relações com estes eram limitadas por leis rígidas, sobretudo com os ex-correligionários convertidos. As autoridade leigas e eclesiásticas promoviam de maneira decisiva a conversão deles ao cristianismo, com todos os meios possíveis.

Os judeus dispostos a se batizar tinham a garantia de facilidade para encontrar trabalho, subsídios em dinheiro, isenções tributárias, a remissão das dívidas e a anulação de eventuais condenações penais. Para muitos, a conversão representava a única alternativa possível à morte de fome.

Em 1543, foi criada em Roma a Casa dos Catecúmenos, um instituto destinado a acolher (muitas vezes contra a vontade) "infiéis" convertidos ou a serem convertidos, cujas despesas de manutenção eram descontadas da comunidade judaica.

Dentre os hóspedes do instituto, havia crianças judias batizadas às escondidas ou contra a vontade dos pais, subtraídas às famílias para que recebessem uma educação cristã. Ainda hoje, o cânone 868 do Código de Direito Canônico traz o parágrafo 2: "O filho de pais católicos e até não católicos que esteja em risco de vida será batizado licitamente mesmo contra a vontade dos pais."

Outro tipo de hóspedes eram os judeus "denunciados". A denúncia era a "prática social com que cristãos ou convertidos denunciavam formalmente às autoridades aqueles que, segundo seu testemunho, ainda que suspeito ou interessado, tenha expressado, em público ou particular, a vontade de se converter, sozinho ou com toda a família."5 Os denunciados eram levados à força à Casa dos Catecúmenos, onde eram incessantemente submetidos a coerções psicológicas para se converter. Teoricamente, não poderiam ser presos por mais de 12 dias, mas na verdade a permanência durava muito mais. Os que se demonstrassem "irremediavelmente obstinados" eram mandados de volta ao gueto e condenados a pagar os custos de todo o tempo passado no instituto.

Um caso marcante foi o do rabino-chefe de Roma, Josué Ascarelli: "Em novembro de 1604, ele foi preso nos Catecúmenos com a mulher e os quatro filhos.

Após 43 dias, o rabino Ascarelli, 'obstinado' com sua profissão de fé, foi liberado junto com a mulher. Outro destino foi reservado a seus filhos: Camila, de 12 anos, após dez dias de segregação, converteu-se; Belluccia, de 8 anos, cedeu após oito dias; e Manoello, de apenas 4 anos, após quatro dias, 'disse que queria ser batizado'. Os quatro logo foram feitos cristãos e tirados dos pais, que nunca mais os viram."6

Os que fugiam da Casa dos Catecúmenos eram punidos com cinco anos de prisão, se fossem homens, ou o açoite e o confisco dos bens,, se mulheres. No século XVIII, foram cominadas penas severas também para os judeus que se aproximassem do instituto, por temer-se que influenciassem negativamente os batizandos.7

Dentre os catecúmenos, havia também os "oferecidos": um judeu convertido podia "oferecer" à Igreja os parentes sob sua guarda. Por exemplo, o pai ou a mãe podiam levar à Casa dos Catecúmenos os filhos, ainda que o outro progenitor fosse contrário à ideia.

O papa Bento XIV (1740-1758) aprovou uma legislação que interpretava de maneira amplamente extensiva o conceito de "tutela". Por exemplo, o avô ou avó paterna convertido podia oferecer os netos, mesmo contra a vontade dos pais legítimos; o tio paterno podia oferecer os sobrinhos órfãos de pai, mesmo contra a vontade da mãe; e daí por diante.8

Até o marido podia oferecer a mulher. Se esta, após uma estadia forçada na Casa dos Catecúmenos, não aceitasse seguir o cônjuge na nova fé, perdia a guarda dos filhos, e o vínculo matrimonial era declarado extinto. Mas o casamento continuava sendo considerado válido na comunidade hebraica, já que o marido convertido não podia mais repudiar a esposa de acordo com os costumes judaicos, e a mulher era condenada a uma vida de solidão.

Alguns neófitos (judeus convertidos) conseguiam obter também a segregação de mulheres com quem não tinham qualquer laço de parentesco, declarando terem se casado em segredo.9

As discriminações anti-semitas duraram toda a Idade Moderna. Só em 1791, a França revolucionária reconheceu a plena igualdade jurídica aos cidadãos de religião judaica. Em seguida, os exércitos napoleônicos "exportaram" a igualdade de direitos para o resto da Europa. Mas com o Império Napoleônico e a sucessiva restauração, as medidas discriminatórias tornaram a vigorar.

No Estado Pontifício, as leis anti-semitas foram restabelecidas com peculiar rigidez: os judeus foram mais uma vez relegados aos guetos e obrigados a usar símbolos amarelos nas roupas. Também foram expulsos do serviço público e das universidades, espoliados dos bens imóveis localizados fora do bairro judeu e obrigados a fechar as lojas que haviam aberto fora do gueto.10

Nos anos sucessivos, foram adotadas medidas ainda mais severas. O papa Leão XII (1823-1829) reintroduziu o Edito sobre os judeus, emanado por Pio VI em 1775: "Trata-se [...] de 'um monstruoso código de rejeição a qualquer dignidade humana composto de 48 artigos que prevêem, dentre outras coisas, a proibição de ler e explicar o Talmude e a obrigação, para a autoridade religiosa, de permitir qualquer outro livro [...] a obrigação de só celebrar os ritos fúnebres na sinagoga ou no cemitério, sem que nenhum cortejo fúnebre seguisse o caixão e nenhuma lápide marcasse a tumba. Era proibido qualquer contato com os convertidos, e os judeus não podiam chegar a menos de 150 metros da Casa dos Catecúmenos. Qualquer licença de exercício profissional foi revogada, com exceção da de vendedor de pano. 

Eles foram lembrados de que eram proibidos de pedir ajuda a parteiras ou amas, servas ou lavadeiras cristãs. Era proibido convidar ou permitir o acesso de cristãos na sinagoga, conversar com eles na rua, comer com eles em qualquer lugar, pernoitar fora do gueto e ir a outra cidade sem uma permissão específica.

 Era proibido usar carroça, e os rabinos não podiam usar roupas que os distinguissem. 

Também foi restabelecido o odioso costume dos sermões forçados, antigo tormento celebrado por padres dominicanos na igreja de San'Angelo em Peschiera, aos quais todos os judeus de mais de 18 anos deveriam assistir." (Scalise, 1997, p. 31.) Os judeus eram proibidos de se tratar em hospitais, os moribundos não podiam receber o conforto de um rabino, e toda a comunidade era obrigada a homenagear periodicamente o magistrado e o senador de Roma diante das zombarias e insultos da população.

As condições do bairro judaico desmentiam claramente o estereótipo do "judeu rico". O gueto de Roma era um lugar escuro, sujo, sufocante no verão e gélido no inverno. Dos 3.500 judeus ali reunidos, quase metade vivia em um estado de completa indigência, e apenas quatro tinham renda suficiente para pagar os impostos. O bairro era cercado por muros com oito portões que eram fechados por um guardião cristão cujo salário era cobrado da comunidade judaica.

Em 1843, a Santa Inquisição emanou um edito bastante rígido.

Nenhum israelita residente em Ancona e Sinigaglia poderá mais dar casa ou comida aos cristãos ou receber cristãos para trabalhar em sua casa, sob pena de ser punido de acordo com os decretos pontifícios.

Todos os israelitas do Estado têm três meses para vender seus bens móveis e imóveis, do contrário serão vendidos em leilão.

Nenhum israelita poderá morar em qualquer cidade sem a autorização do governo; em caso de contravenção, os culpados serão reconduzidos a seus respectivos guetos.

Nenhum israelita poderá passar a noite fora do gueto.

Nenhum israelita poderá ter relações amigáveis com os cristãos.

Os israelitas não poderão comercializar ornamentos sagrados ou livros de qualquer espécie, sob pena de cem escudos de multa e sete anos de prisão.

Os israelitas, ao sepultar seus mortos, não devem celebrar qualquer cerimônia. E não podem usar velas, sob pena de confisco.

Os que violarem as disposições acima sofrerão os castigos da Santa Inquisição.

A presente medida será comunicada aos guetos e publicada nas sinagogas."


O papa Pio IX (1846-1878), que inicialmente gozava da simpatia dos ambientes liberais, adotou uma política oscilante e sem preconceitos com relação aos judeus, alternando gestos de relativa clemência com ferrenhas repressões. Por exemplo, em 1846, permitiu que algumas famílias judaicas mudassem temporariamente para fora do gueto de Roma por causa do risco de transbordamento do Tibre.

Em 1849, em compensação, para punir os judeus, que figuravam entre os responsáveis pelos levantes que no ano anterior instauraram a República de Roma, mandou as tropas francesas demolirem o bairro hebreu. Por dois dias, as casas foram devastadas, muitos homens foram presos, os médicos e as parteiras foram impedidos de assistir os doentes e parturientes e nenhum judeu pôde descer às ruas para comprar comida.

No século XIX, a política do batismo forçado não foi alterada, tendo aumentado na primeira metade do século. Calcula-se em pelo menos 196 os casos de "conversão" entre 1813 e 1869, na maioria crianças batizadas às escondidas e tiradas de suas famílias ou jovens afastados de casa em circunstâncias misteriosas e presos nos Catecúmenos, sem voltar mais para seu lar.








O caso de batismo forçado mais famoso foi o de Edgardo Mortara, nascido em Bolonha (cidade que, na época, fazia fronteira com o Estado Pontifício), em 1851. Na noite de 23 de junho de 1858, alguns guardas se apresentaram à casa da família Mortara com uma ordem firmada pelo padre inquisidor de Bolonha para realizar "a prisão e seqüestro do rapaz Edgardo Mortara Israelita". O menino passou a noite em casa, vigiado pelos guardas papais. Assim que amanheceu, foi tirado da família e levado de carro até Roma, para a famigerada Casa dos Catecúmenos. Lá, seu batismo foi "aperfeiçoado" e foi-lhe dado o nome de Pio, em homenagem ao papa regente.

Só depois do sequestro, o pai descobriu que meses antes, à total revelia dos interessados, obviamente, fora julgado um processo regular da Inquisição, no qual os pais foram representados por um jurista. Durante a fase de instrução, Anna Morisi, cristã que trabalhara para a família Mortara e fora demitida, declarou ter batizado o pequeno Edgardo, à época gravemente doente, sem que os pais soubessem.

O pai de Edgardo dirigiu-se a Roma e tentou inutilmente recorrer junto à Santa Sé. Um memorando enviado pelo secretário de Estado, cardeal Giacomo Antonelli, tirou-lhe qualquer esperança:"[...] existe prova canônica do batismo, não havendo mais razão ou direito para chamar o filho ao pátrio poder [...] A Igreja, mãe, mestra e soberana dos homens não ofende nenhum direito, não carrega nenhum tipo de vergonha, mas cumpre sua missão Divina ao tutelar seus filhos batizados, tirando-os do perigo da apostasia."

O que ficaria na história como o "caso Mortara" logo se tornou um escândalo internacional. As comunidades judaicas piemontesa, francesa e inglesa tomaram providências para que o caso fosse conhecido pela opinião pública e se conseguisse a libertação de Edgardo, pressionando os respectivos governos. A imprensa liberal e anticlerical também se interessou pelo fato, dando um grande destaque a ele.

Os jornais católicos, por outro lado, defenderam as decisões da Santa Sé, protestando contra a intrusão das autoridades civis em uma questão religiosa, culpando os pais do garoto pelo "crime" de ter contratado uma mulher cristã, causa de todos os seus problemas seguintes, ou defendendo a notícia, totalmente falsa, de que as autoridades eclesiásticas tinham tentado um acordo com a família Mortara, tendo decidido pegar o menino apenas quando os pais se recusaram a educá-lo segundo a religião cristã. Os diplomatas franceses, piemonteses e ingleses pressionaram o governo pontifício para obter a libertação de Edgardo Mortara, mas seus esforços foram em vão.

O próprio Pio IX defendeu com vigor a escolha do sequestro. Chegou até a se declarar publicamente "pai e protetor" de Pio Edgardo Mortara, que fora destinado à carreira eclesiástica e confiado ao Colégio da Ordem dos Canônicos de Latrão.

Em 20 de setembro de 1870, os atiradores do Reino da Itália entraram em Roma e puseram um fim ao poder temporal do papa. Poucos dias depois, chegaram à cidade o pai e um dos irmãos de Edgardo, já com 19 anos, para levá-lo para casa. Mas os anos de doutrinamento e coerção psicológica deram resultado, e o rapaz se recusou a acompanhá-los. Pior, temendo ser sequestrado pelos familiares, em 22 de outubro fugiu de Roma à paisana, ajudado pelos membros de sua Ordem, e se refugiou em Bressanone. Dois anos depois, mudou-se para a França, para Beauchêne, onde foi ordenado.





Pio Edgardo Mortara nunca abjurou a religião católica, tornando-se um missionário zeloso e honrando sempre a memória de Pio IX. Durante toda sua longa vida, foi atormentado por graves crises depressivas e estados de verdadeira paranóia, que repetidas vezes prejudicaram sua relação com os irmãos de Ordem. Morreu com quase 89 anos, no dia lº de março de 1940, na Abadia de Bouhay, na Bélgica.



FONTES PARA ESTUDO

1.   Mariella Carpinello, Libere donne di Dio. Figure femminili nei primi secoli cristiani. Milão, Mondadori, 1997.
2.   Livi Bacci Massimo, Storia minima delia popolazione del mondo. Società editrice II Mulino, Bolonha, 1998.
3.   Poggio Bracciolini. Facezie di Poggio Florentino. Città di Castello (PG), Barabba, 1911.
4.   Cario Falconi, I papi sul divano. Milão, Sugarco Edizioni, 1975.
5.   Marina Caffiero, Battesimi forzati: storie di ebrei, cristiani e convertiti nella Roma dei papi. Roma, Viella, 2004, p. 203.
6.   Daniele Scalise, // caso Mortara: Ia vera storia dei bambino ebreo rapito dal papa. Milão, Mondadori, 1997,p.65.
7.   Ibid., p. 63.
8.   Marina Caffiero, op. cit, p. 74-104.
9.   Ibid., p. 206-7.
10. Daniele Scalise, op. cit, p. 31.
11. Edito da Santa Inquisição contra os judeus dos Estados Pontifícios, emanado em 1843, por Achille Gennarelli. Il governo pontifício e Io Stato romano: documenti, citado em Denis MackSmith, Il Risorgimento italiano, storia e testi. Roma-Bari, Laterza, 1999, p. 73.