As diferenças entre Jesus e Javé,
na leitura do crítico Harold Bloom
Jerônimo
Teixeira
A
influência é o tema obsessivo de Harold Bloom. Desde A Angústia da
Influência, de 1973, o crítico literário americano vem construindo uma
elaborada teoria em que os embates titânicos entre um escritor em busca de
originalidade e seus grandes antecessores constituem a mola mestra que
impulsiona toda a literatura ocidental.
Jesus e Javé – Os Nomes Divinos (tradução de José Roberto O'Shea;
Objetiva; 276 páginas; 35,90 reais), que está chegando às livrarias
brasileiras, pode ser lido como um exame da matriz de todos os casos de
influência: a relação entre o Novo Testamento cristão e a Bíblia hebraica. Os
teólogos cristãos diriam que, nesse caso, não existem angústia nem influência:
o Novo Testamento é apenas a coroação natural do Antigo.
Grande
parte de Jesus e Javé é dedicada a derrubar essa idéia, a partir de
comparações entre os dois personagens do título. Embora a análise de Bloom se
prenda à letra do texto bíblico, suas implicações ultrapassam o campo estrito
da literatura – e até da religião. Com sua verve polêmica, o autor afronta um
arraigado lugar-comum: o de que existe uma "tradição judaico-cristã".
"Isso é um mito usado para fins políticos, e eu detesto intensamente a
política", disse o crítico a VEJA. "Não existe nenhuma continuidade
entre o judaísmo e o cristianismo."
O
cristianismo, afirma Bloom, reorganizou a Bíblia hebraica para transformá-la em
uma espécie de preâmbulo da salvação cristã – o Antigo Testamento. Os profetas,
por exemplo, foram deslocados do centro da Bíblia hebraica para o fim do Antigo
Testamento, imediatamente antes dos Evangelhos – e essa mudança simples
transformou-os em arautos da vinda de Jesus. Mas a junção dos dois Testamentos
é, segundo o crítico, artificial. Escrito em grego, o Novo Testamento – e em
especial as epístolas de São Paulo – tem dívidas com o pensamento helênico.
A
idéia de um Deus Pai etéreo e espiritual, que se consolidou na tradição cristã,
tem mais afinidade com a filosofia idealista de Platão do que com a imagem
hebraica da divindade. Javé, o Deus hebraico, era um personagem muito humano.
Seu poder é incomensurável, mas ele tem uma realidade corpórea muito palpável.
Divide uma refeição com Abraão na tenda desse patriarca e se apresenta para
Josué como um guerreiro de espada em punho.
Esse
Deus caprichoso e violento não é o objeto de estudo da teologia, disciplina
abstrata inventada pelos gregos. E tampouco é uma divindade amorosa como aquela
que os cristãos cultuam: em certas passagens da Bíblia, a distância que ele
mostra em relação ao seu povo escravizado por invasores estrangeiros justifica
o apelido que o poeta inglês William Blake – um dos favoritos de Bloom – lhe
deu: Nobodaddy, palavra composta que se traduziria mais ou menos como
"pai de ninguém".
É
claro que Jesus também tem uma personalidade muito humana, que em alguns pontos
até pode ser aproximada de Javé – especialmente no Evangelho de São Marcos. O
exame que Bloom faz desse livro revela um personagem muito diferente daquele
consolidado pela fé: um profeta enigmático, que cultiva o silêncio. Jesus
mostra muito pouco afeto por seus discípulos, que parecem escolhidos por sua
incapacidade de entender o que o mestre prega – em um dos lances mais
excêntricos e iconoclastas do livro, Bloom diz que o brutamontes Sylvester
Stallone seria o ator ideal para interpretar o apóstolo Pedro no cinema.
A
morte na cruz, porém, é o que separa definitivamente Javé e Jesus. O Deus
temperamental da Bíblia hebraica jamais teria essa disposição para o sacrifício
– ou, como diz Bloom, para o suicídio. Jesus e Javé, portanto, não são feitos
da mesma substância, como prega a doutrina cristã. E o cristianismo ainda se
afastaria da fé judaica ao instaurar o que seria de fato uma volta ao
politeísmo: Deus Pai divide seu poder com o filho, o Espírito Santo – e até com
a Virgem Maria. O judaísmo, portanto, estaria mais próximo do Islã, com sua
crença unívoca em Alá, do que do cristianismo. "Mas é claro que ninguém hoje,
seja muçulmano ou judeu, se sente disposto a falar em uma 'tradição
judaico-islâmica'", diz Bloom.
A
leitura de Jesus e Javé está destinada a incomodar os religiosos mais
ortodoxos, sejam eles judeus ou cristãos. No entanto, Bloom não contesta uma só
linha dos textos sagrados – apenas enfatiza certos aspectos que a fé normativa
negligencia. Ele admira pensadores anti-religiosos como Nietzsche e Freud, mas
não os segue até o fim na negação de qualquer idéia de divindade.
Bloom
se define com um paradoxo: um judeu que não confia na Aliança firmada entre
Deus e o seu povo. No epílogo do livro, ele se diz assombrado por pesadelos em que Javé aparece nas mais
diversas formas, inclusive com a cara e o charuto de Freud. Javé e Jesus são
figuras incontornáveis – respostas para uma sede de transcendência que nem
mesmo a literatura de Shakespeare, tão amada por Bloom, parece suficiente para
suprir.
Trecho de Jesus e
Javé – Os Nomes Divinos, de Harold Bloom
PARTE I JESUS
Capítulo 1
Quem Foi Jesus e o que Ocorreu com Ele?
Quem Foi Jesus e o que Ocorreu com Ele?
Não
há fatos comprovados acerca de Jesus de Nazaré. Os poucos fatos que constam da
obra de Flávio Josefo, fonte da qual todos os estudiosos dependem, são
suspeitos, pois o historiador era José ben Matias, um dos líderes da Rebelião
Judaica, que salvou a própria pele por ter bajulado os imperadores da Dinastia
Flaviana: Vespasiano, Tito e Domício.
Depois
que um indivíduo proclama Vespasiano como o Messias, ninguém deve mais
acreditar no que tal pessoa escreve a respeito da sua própria gente. Josefo,
mentiroso inveterado, assistiu, tranqüilamente, à captura de Jerusalém, à
destruição do Templo e à matança dos habitantes.
Os
especialistas afirmam que Josefo tinha pouco ou nada a ganhar com as
informações fragmentadas acerca do galileu Josué (Yeshuá, em hebraico, Jesus,
em grego), mas o historiador que traiu seu povo era tão sorrateiro que suas
motivações (se é que as tinha) permanecem enigmáticas. Josefo esclarece que
Jesus de Nazaré era filho de José e Maria (Míriam), e irmão de Jacó (Tiago),
foi batizado por João, e depois passou a atrair pupilos, atuando como mestre
sapiencial, sendo, finalmente, crucificado sob ordens do sátrapa romano, Pôncio
Pilatos.
A
leitura e reflexão sobre materiais aos quais tive acesso levam-me a duvidar que
Jesus constasse da multidão de vítimas de Pilatos. O carismático rabino de
Nazaré era perito em evasiva e equivocação, era também um hábil sobrevivente,
desde a infância, quando os pais lhe disseram que, embora artesão, sua
descendência o colocava em lugar de destaque na casa real de Davi, cuja prole
carregava consigo a bênção insofismável de Javé.
Primogênito
de pais davídicos, Jesus era candidato ao extermínio nas mãos dos seguidores de
Herodes e outras autoridades romanas. Entre os judeus, nunca existira um
Messias mais relutante e mais legítimo. A idéia de comandar uma guerra
nacionalista contra os romanos e os brutamontes mercenários que lhes serviam
contrariava, inteiramente, a natureza daquele gênio espiritual judaico, que,
involuntariamente e, sem dúvida, infeliz por sê-lo, era o rei legítimo dos
judeus.
Jesus
não integrou a resistência, ao contrário do que, inicialmente, fez Josefo,
embora viesse a abandonar os companheiros aguerridos, tais como Simão bar Giora
e João de Gischala, líderes da Guerra Judaica contra Roma, salvando a pele, à
custa da própria integridade e da estima dos judeus.
Tampouco
dispomos de fatos comprovados sobre os ensinamentos de Jesus; sequer sabemos se
ele teria nascido quatro anos antes do início da Era Comum, ou com que idade
teria sido crucificado, levando em conta o registro cronológico de 33 anos.
Conforme
reza a lenda, desconfio que fosse sábio o bastante para escapar da execução, e
que tenha se dirigido ao norte helenizado da Índia, limite extremo das grandes
conquistas de Alexandre, onde algumas tradições situam seu sepulcro.
Nesse
particular, sigo a tradição gnóstica, simplesmente porque os ditos gnósticos de
Jesus, no Evangelho de Tomé, parecem-me mais autênticos do que toda a gama de
pronunciamentos atribuídos ao rabino de Nazaré nos Evangelhos Sinóticos e no
mais-que-tardio Evangelho de João.
Não
há uma sentença a respeito de Jesus, em todo o Novo Testamento, composta por
alguém que tenha conhecido pessoalmente o relutante Rei dos Judeus, a menos que
(suposição improvável) a Epístola de Tiago seja, com efeito, de autoria de
Tiago, seu irmão, e não de um dos seguidores de Tiago, os ebionitas, ou
"homens pobres", alguns dos quais sobreviveram ao holocausto de
Jerusalém ao fugir para Pella, na Jordânia, obedecendo ao comando profético de
Tiago.
Segundo
os estudiosos, as epístolas de São Paulo datam de quarenta anos após a morte de
Jesus, os Evangelhos têm datação fixada em cerca de uma geração posterior, e o
sumamente helenístico (e quase gnóstico) Evangelho de João data de um século,
ao menos, após o possível desaparecimento do mestre itinerante dos pobres e dos
excluídos. Não há motivos razoáveis para se questionar o consenso dos
especialistas, mesmo que outra pessoa não tenha sido crucificada no lugar de
Jesus, conforme sugere, maliciosamente, a tradição gnóstica. Tiago, o Justo,
líder dos judeu-cristãos de Jerusalém, na verdade poderia ter sido filho, ou
até mesmo neto, de Jacó (Tiago), irmão do próprio Jesus.
Leitores
de hoje em dia, quer cristãos, judeus ou muçulmanos, quer céticos ou fiéis,
precisam voltar ao ponto de partida para decifrar a história secreta do
pregador carismático que, agindo com sabedoria, declinou de se tornar Rei dos
Judeus, mas que, ironicamente, talvez tenha sofrido como tal, nas mãos dos
romanos.
Capítulo
2 As Buscas e os que Buscam Jesus
A
menos que a pessoa atue como um profissional da busca de Jesus, cujo sustento,
auto-respeito e saúde espiritual sejam uma questão de vocação, convém alterar
quaisquer planos relativos à participação nesse estranho empreendimento. As
advertências sensatas sobejam; uma das minhas favoritas é expressa pela
sorrateira ironia expressa em um ensaio escrito por Jacob Neusner — homem
imensamente erudito — e incluído em um livrinho contumaz por ele publicado sob
o título Judaism in the Beginning of Christianity (O judaísmo no início do cristianismo, 1984).
No quarto capítulo, Neusner nos oferece "A Figura de Hillel: Contrapartida
à Questão do Jesus Histórico". O admirável Hillel, contemporâneo de Jesus,
foi um fariseu exemplar. Até mesmo uma obra honrosa, como o American Heritage
College Dictionary (terceira edição, 1993), apresenta duas definições de
"fariseu" absolutamente inúteis e inverídicas, e inaplicáveis a
Hillel:
1.
Membro de antiga seita judaica que enfatizava uma rígida interpretação e
obediência à Lei de Moisés.
2.
Pessoa hipócrita e moralista.
Não
culpo os editores do mencionado dicionário. À exceção de Paulo e Marcos, o Novo
Testamento difama, cruel e continuamente, os fariseus. No entanto, proponho que
a primeira definição descarte a palavra "rígida" e a substitua por
"santificante". Neusner demonstra que o grande Hillel, conquanto, sem
dúvida, tenha existido, para todos os efeitos, é uma invenção de rabinos que
viveram no século II da Era Comum (e mais tarde).
Hillel
é o Jesus do judaísmo, de vez que Yeshuá de Nazaré, sem sombra de dúvida,
existiu, mas, na prática, foi uma invenção do Novo Testamento. Recomendo o
livro de Charlotte Allen, The Human Christ
(O Cristo humano, 1998), relato judicioso e inteligente (escrito por uma
católica) da comédia humana que constitui "a busca do Jesus
histórico". Ao aludir à "comédia humana" e a Balzac, não o faço
por depreciação, apenas por lamentar que Balzac já não esteja conosco, para
compor uma saga ficcional capaz de superar a pitoresca e infinda aventura
retratada por Charlotte Allen e outros.
Temos
um enxame de cristãos, de todas as denominações, judeus mais diversos,
secularistas, romancistas (bons e ruins) e multidões que poderiam fazer parte
de uma obra-prima de Balzac, se pudéssemos ressuscitar o mago da narrativa
francesa, autor que eu, de todo o coração, aprecio mais do que Stendhal,
Flaubert e Proust, ainda que a vivacidade de Stendhal, o talento artístico de
Flaubert e a sabedoria de Proust superem Balzac.
A
busca incessante do Jesus "verdadeiro", "histórico", não
contaminado pelo dogma, é similar à minha incapacidade perpétua de apreender o
protéico Vautrin, o mais vivaz personagem de Balzac, na interminável procissão
de gênios que figuram na Comédia Humana. Vautrin é Balzac transformado em um
homoerótico mestre do crime, conhecido como "Esquiva-Morte", tanto
pela polícia quanto pelo submundo. Cada crítico/leitor vê o seu próprio
Vautrin, e cada pesquisador que busca o Jesus "histórico", invariavelmente,
descobre a si mesmo em
Jesus. Como poderia ser diferente? Isso nada tem de
deplorável, especialmente nos Estados Unidos, onde, ao longo dos últimos dois
séculos, Jesus tem atuado como um protestante sem denominação específica.
Se tal afirmação parece irônica, minha
intenção é, exclusivamente, literal, e não desaprovo a nossa tendência natural
de entabular conversas particulares com um Jesus nosso. Não penso que isso
torne os norte-americanos mais amáveis ou generosos, mas, somente em casos extremos,
os torna piores. A não ser pelo Hamlet shakespeariano, não me ocorre outra
figura tão volátil quanto Jesus; ele, de fato, pode ser tudo, para todos os
seres humanos.
Da
minha parte, por motivos literários e espirituais, prefiro o Evangelho de Tomé
a todo o Novo Testamento canônico, porque o referido Testamento apresenta-se
repleto de um ódio mal informado contra os judeus, ainda que seja composto,
quase na íntegra, por judeus que fogem de si mesmos, desesperados por agradar
as autoridades romanas que os exploravam.
Leio,
com admiração, a obra de estudiosos católicos, tais como padre Raymond Brown e
padre John P. Meier, mas me pergunto por que não admitem o quão pouco é
possível saber, de fato, acerca de Jesus. O Novo Testamento tem sido revirado por
séculos de estudo minucioso, mas de todo esse trabalho não resulta o mínimo de
informação que exigiríamos no caso de qualquer outra questão similar.
Ninguém
sabe quem escreveu os quatro Evangelhos, e ninguém é capaz de precisar quando e
onde foram compostos, tampouco que tipo de fontes lhes servem de base. Nenhum
dos autores conheceu Jesus; sequer ouviram-no pregar. O historiador Robin Lane
Fox defende a hipótese contrária, em favor do Evangelho de João, mas o
argumento constitui uma das raras aberrações de Fox. Até mesmo Flávio Josefo,
escritor brilhante e mentiroso inveterado, mostra-se muito mais interessado em João Batista do que
em Jesus, objeto de não mais que um punhado de menções supérfluas.
Raramente,
antigos profetas judaicos e supostos messias transformavam-se em anjos, e
jamais no próprio Javé, motivo pelo qual Jesus Cristo (e não Jesus de Nazaré) é
um Deus cristão, e não judaico.
A
grande exceção é Enoque, que caminhava ao lado de Javé, e foi por ele alçado ao
céu, sem ter de passar pelo incômodo da morte. Nas alturas, Enoque é Metatron,
anjo tão excelso que chega a ser "o Javé Menor", com um trono só para
si. Consta que o rabino Elisha ben Abuyah, o mais célebre dos antigos minim
(gnósticos) judaicos, tenha ascendido, a fim de verificar que Metatron e Javé
sentavam-se em tronos posicionados lado a lado. Ao retornar, o rabino gnóstico
(conhecido pelos oponentes como Acher, "o Outro", ou "o
Estranho") proclamou a heresia suprema: "Há dois Deuses no céu!"
No
livro The Human Christ, Charlotte Allen nos faz lembrar, corretamente, que os
Evangelhos estabelecem "Jesus Cristo acima da Torá". Uma vez que a
Torá é Javé, a noção situa Cristo acima e além de Javé, o que vai de encontro à
complexidade trinitária. Quem quer que tenha sido o Jesus histórico,
certamente, teria rejeitado tamanha blasfêmia (conforme ele o faz no Alcorão).
Parece um absurdo que Jesus, fiel apenas a Javé, assim como o foram Hillel e
Akiba, tenha usurpado Deus. Contudo, Jesus não é o usurpador, tampouco o foi
São Paulo (ao contrário do que pensavam Nietzsche e George Bernard Shaw). À
semelhança do mentor, João Batista, Jesus é oriundo dos judeus, e veio para os
judeus. O cristianismo se baseia na afirmação de que Jesus não foi recebido por
sua própria gente, mas todas as evidências apresentadas pelo cristianismo são
polêmicas, suspeitas e inadmissíveis em qualquer tribunal de justiça.
A
indústria acadêmica não tem por hábito se dispersar, e sempre haverá buscas do
Jesus verdadeiro. Por mais honrosas que sejam, aqui as dispenso. Até mesmo os
melhores especialistas (penso, primeiramente, em E. P. Sanders e
padre Meier) vêem-se forçados a aceitar como válidas determinadas passagens do
Novo Testamento, em lugar de outras, e as explicações dos critérios adotados
são sinuosas. Forçosamente, os resultados são confusos.
Desagrada-me
a argumentação proposta por padre Meier em favor da historicidade de Judas
Iscariotes, que, na minha visão e de outros — judeus ou gentios —, surge como
uma ficção maléfica que tem contribuído para justificar o extermínio de judeus
há dois mil anos. Sanders jamais me deprime, mas fico perplexo quando ele
exalta o carisma singular de Jesus, baseando-se na lealdade dos discípulos. Não
devemos esquecer a advertência do sociólogo Max Weber contra a "rotinização
do carisma". Carismáticos existem em abundância, e Hitler magnetizou toda
uma geração de alemães. É pífia a argumentação em prol da singularidade de
Jesus como conseqüência de seu carisma.
No
entanto, ao escrever este livro, que, absolutamente, não é para mim uma busca,
surpreendi-me tanto com Jesus quanto com Javé. Embora eu nele não confie nem o
ame, Javé não pode ser dispensado, pois, ausente ou presente, é indistinguível
da realidade, seja esta ordinária ou um arremedo de transcendência.
Ao
menos duas versões distintas de Jesus, que constam do quase gnóstico Evangelho
de Tomé e do extraordinariamente críptico Evangelho de Marcos, parecem-me
autênticas, embora amiúde sejam antitéticas. Javé é morte-nossa-morte e
vida-nossa-vida, mas não sei quem foi ou é Jesus Nazareno.
Não
o considero antitético nem comparável a Javé: os dois se encontram em sistemas
cósmicos distintos. Javé nada tem de grego: Homero, Platão, Aristóteles,
estóicos e epicuristas são, para ele, estranhos. Jesus, a exemplo do contemporâneo
Hillel e de Akiba, este surgido um século mais tarde, emerge de um judaísmo
helenizado, ainda que o grau de contaminação por elementos gregos seja
questionado e questionável.
Javé
é incognoscível, por mais que nos aprofundemos na Torá, no Talmude e na Cabala.
Será Jesus — comparado ao Jesus Cristo da teologia — cognoscível? O Jesus
norte-americano é conhecido intimamente, na qualidade de amigo e amparo, por
dezenas de milhões de pessoas.
O
Jesus norte-americano é por vezes mais orientado por Paulo do que pelos
Evangelhos: os batistas moderados baseiam-se na Epístola dos Romanos; os
pentecostais, que grassam por todos os Estados Unidos, na realidade, substituem
Jesus pela crença cinética no Espírito Santo; os mórmons, a mais
norte-americana e surpreendente das seitas, consideram o Livro do Mórmon, de
Joseph Smith (ou do Anjo Moroni), o Outro Testamento de Jesus Cristo, mas, em
Pérola de Grande Valor e Doutrina e Assembléias, dispõem de escrituras
inusitadas, das quais a atual hierarquia da Igreja se esquiva.
Atualmente,
considera-se que Joseph Smith tenha ascendido e se transformado em Enoque, e
talvez no maior dos anjos, Metatron, ou Javé Menor, uma visão cabalística. Não
conheço muito bem esses conceitos ora irradiados de Salt Lake City, mas Joseph
Smith e Brigham Young acreditavam na doutrina de que Adão e Deus são, em última
instância, a mesma pessoa. O humano e o divino se interpenetram na visão de
Joseph Smith de maneira muito mais radical do que na insistência da Igreja
Católica de que Cristo é, ao mesmo tempo, "homem verdadeiro" e
"Deus verdadeiro". Porque fiéis norte-americanos (inclusive espíritos
elevados, tais como Emerson e Whitman) acreditavam que o melhor e mais
primordial de si mesmos não era natural, e sim divino, é possível, para muitos
de nós, interagir livre e intensamente com Jesus. Talvez não seja esse o
"Jesus histórico", objeto das buscas dos estudiosos, mas, a meu ver,
está bem próximo ao "Jesus vivo" que fala no Evangelho de Tomé.
Fonte
Revista
Veja Edição 1944
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