O sexo era pecado, mesmo no seio do
matrimônio, mas o cristão casado que fizesse voto de castidade poderia ser
suspeito de heresia.
Entre os séculos XI e XII, as penas de morte para os hereges não eram
mais um fato inédito, mas a maioria do corpo eclesiástico ainda relutava em
aceitar a situação. Pier Damiani (1007-1072) afirmou orgulhosamente que os
santos estão dispostos a sacrificar a própria vida pela fé, mas não matam
hereges.
Em 1144, Wazo, bispo de Liège, salvou a vida de alguns cátaros que a
multidão queria jogar na fogueira.1 O arcebispo de Milão também protestou
contra a multidão que havia linchado alguns hereges. Bernardo de Chiaravalle,
que contribuiu para prender vários hereges, declarou, no entanto, que estes
deveriam ser conquistados com a razão, e não com a força. Em 1162, o papa
Alexandre III (1159-1181), julgando o caso de alguns cátaros, declarou que
"era melhor perdoar o culpado do que tirar a vida de um inocente". Em
1165, em Narbonne, um debate público pacífico explicou a diferença entre
católicos e cátaros.2 Em suma, na Igreja, observavam-se várias
tendências sobre como lidar com os hereges.
Na verdade, foi o próprio "clemente" Alexandre III que deu
um passo muito importante para o nascimento da futura Inquisição. Usando as
deliberações do Terceiro Concilio de Latrão, ele daria aos bispos ordens
expressas para investigar sobre os hereges, mesmo com base em meras suspeitas.
Ao poder leigo foi reservado o papel de subordinado do braço executivo da
instituição eclesiástica.3 Inocêncio III (1198-1216), com os
decretos Licetheli, de 1199, e Qualiter et quando, de 1206,
estabeleceu que a acusação de heresia podia ser formalizada mesmo com base em
"fama pública", ou seja, nos boatos que corriam sobre dada pessoa.4
Em 1229, um concilio reunido em Toulouse, em uma região que retomara a
"verdadeira fé" com as armas e o extermínio, criou oficialmente o
Tribunal da Santa Inquisição. Mais tarde, o papa Gregório IX (1227-1241) tirou
dos bispos o controle dos processos contra os hereges e os confiou a
comissários especiais escolhidos entre dominicanos e franciscanos.5
Justamente os membros das ordens mendicantes, que haviam sido acusadas de
heresia, tornaram-se os mais ferrenhos perseguidores de quem professava ideias
não ortodoxas. Muitos conventos franciscanos foram dotados de prisões para os
hereges, mas também para os frades culpados de rebeliões.
A partir desse movimento, a Inquisição adquiriu uma estrutura
autônoma, tornando-se uma verdadeira polícia da Igreja, com tarefas de
investigação e repressão. Os inquisidores tinham plenos poderes, inclusive o de
depor e mandar prender eclesiásticos que defendessem hereges.
O quadro foi completado por Inocêncio IV (1243-1254), que deliberou o
recurso à tortura para "promover a obra de fé de maneira mais
verdadeira".6 Esta deveria ser realizada por autoridade
secular, mas depois, por questões práticas, os inquisidores e seus assistentes
também receberam permissão para "sujar as mãos", com a possibilidade
de darem a absolvição uns aos outros.7
Além da política de repressão, a Inquisição usou também a de
"colaboração". Ainda Inocêncio IV, em 1426, autorizou que fosse
reduzido o período de noviciado para os cátaros convertidos que quisessem
entrar para a ordem dos dominicanos e se tornar inquisidores. Bonifácio VIII
(1294-1303) permitiu "que no processo inquisitório contra a maldade
herética se agisse de maneira simples e extrajudicial, longe da confusão dos
advogados e do procedimento judiciário".8
Os territórios da cristandade foram divididos em distritos,
correspondentes às Províncias das Ordens Mendicantes. Para cada distrito, era
designado um inquisidor junto com um séquito de policiais, espiões e
torturadores. Os tribunais da Inquisição eram itinerantes. O terreno era
preparado por um pregador, que percorria as várias cidades e povoados alguns
dias antes do inquisidor e concedia indulgências a todos que abjurassem a
eventuais convicções heréticas e dessem o nome de outros pecadores.9
Contemporaneamente, o poder temporal também contribuiu para a luta contra as
heresias. Além disso, um Estado cristão que tolerasse a heresia poderia receber
excomunhão, interditos, além de correr o risco de ser alvo de uma Cruzada.
Frederico Barba-Ruiva, em 1184, declarou os hereges ilegais. Em 1197, Pedro de
Aragão os condenou à fogueira.
Como já lembramos, o Tratado de Meaux, de 1229, que sucedeu a Cruzada
anticátaros, equiparava o crime de heresia ao de lesa-majestade, delito punível
com a pena de morte. O imperador Frederico II emanou, entre 1220 e 1239, uma
série de editos cada vez mais cruéis, com os quais condenou os hereges ao
confisco dos bens, ao exílio, à prisão perpétua e, finalmente, à fogueira.10
Na França, a condenação à fogueira, já aplicada de fato, tornou-se lei
para todos os efeitos em 1270. Na Inglaterra, só foi aprovada em 1401, com o
estatuto que tinha o estranho nome de Da haeretico comburendo.11
A aliança entre trono e altar para frear um fenômeno que ameaçava
tanto a autoridade civil quanto a religiosa se tornou um dos traços
constitutivos da Inquisição também nos anos seguintes à sua criação. Os
tribunais da Inquisição emitiam suas condenações, mas era o "braço
secular" que as executava.
Portanto, uma denúncia anônima ou a suspeita de heresia já eram
suficientes para ser investigado; suspeita essa que podia ser "leve",
"veemente" ou "violenta", de acordo com o juiz.12
Até mesmo a prática assídua demais da oração e do jejum podia levantar
suspeitas.
Diante dos tribunais da Inquisição, um suspeito era considerado
culpado, a menos que conseguisse provar a própria inocência. "Para a
Igreja, ser investigado equivale a ser legitimamente suspeito. O inquisidor
poderá (ou melhor, deverá) investigar e julgar, partindo sempre da presunção de
que o imputado — ou seja, o réu — [...] é culpado, e, consequentemente, deve
confessar a própria culpa, o que significa que o inquisidor não deverá julgar
com base no fato ou fatos provados, mas na suspeita; não no que retém dos atos,
mas no que suspeita ser." (Mereu, 1200, p. 187.) Esse procedimento se
contrastava bastante com o direito romano e com o germânico, de origem bárbara,
ambos de tipo acusatório (ou seja, o acusador deve fornecer as provas do que
afirma, e não o contrário) e baseados na presunção de inocência.
As provas e os depoimentos eram colhidos secretamente, sem o
conhecimento do imputado. A construção da acusação não era nada sutil: podiam
ser colhidos depoimentos de mulheres, crianças, hereges, excomungados,
"arrependidos", inimigos pessoais, mentirosos declarados e
criminosos. Os patrões podiam testemunhar contra os empregados, e os empregados
contra os patrões. Naturalmente, também eram válidas as declarações conseguidas
por meio de tortura.
O suspeito de heresia era convocado pelos inquisidores sem saber as
motivações, e quando se apresentava, antes de tudo, era-lhe perguntado se tinha
ideia da razão por que fora chamado. Então, as acusações eram lidas de forma
sumária. O réu não tinha direito de saber quem o acusava nem de confrontar os
acusadores ou ler todos os atos que lhe diziam respeito. Eventuais testemunhas
de defesa corriam o risco de, por sua vez, serem acusadas de cumplicidade.
Aqueles que colaboravam com os inquisidores, ajudando-os a pegar um suspeito,
por exemplo, obtinham, em compensação, as mesmas indulgências que os peregrinos
que iam à Terra Santa.
Os processos da Inquisição não acabavam nunca com a total absolvição.
Mesmo quando não era condenado, o imputado devia abjurar a heresia da qual era
acusado. Em todos os casos, a instrução contra ele podia ser aberta a qualquer
momento. O mero fato de ser suspeito de heresia o transformava automaticamente
em reincidente em caso de novo processo.
O Manual do inquisidor, de Eymerich, descreve uma série de
"malícias" dos acusados nos processos: dar respostas elusivas, dizer
que não sabe ou fingir-se de louco. Como diferenciar alguém verdadeiramente
louco de quem finge sê-lo? Eymerich não tem dúvidas: "Para ter certeza,
será preciso torturar o louco, seja ele falso ou real. Se não for louco,
dificilmente continuará sua farsa se tomado de dor."13 Por lei,
a tortura só podia ser infligida uma vez, mas na verdade era repetida enquanto
o inquisidor achasse necessário, com a desculpa de se tratar de uma única
sessão com vários "intervalos".
Se a instrução, a tortura e os debates aconteciam em segredo, a
sentença e a subsequente execução mereciam o máximo de publicidade. Como explica
um eclesiástico do século XVI: "É preciso lembrar que o principal escopo
do processo e da condenação à morte não é salvar a alma do réu, mas buscar o
bem público e aterrorizar o povo... Não resta dúvida de que instruir e
aterrorizar o povo com o proferimento das sentenças... seja uma boa ação."14
"As sentenças [...] eram executadas aos domingos, durante a
grande missa na catedral, com a participação das autoridades civis. Os
suspeitos confessavam seus erros e abjuravam publicamente antes de se submeter à
penitência (nunca chamada de pena ou punição), que podia ir de tempo de
reclusão à morte, passando pela flagelação ou a peregrinação sob coação.15
Aqueles que permanecessem obstinadamente fiéis a suas próprias posições ou que
recaíssem na heresia eram conduzidos para fora da igreja e entregues aos
magistrados com a recomendação de serem caridosos e não causarem derramamento
de sangue. A suprema hipocrisia de tudo isso estava no fato de que, se o
magistrado não mandasse as vítimas para a fogueira no dia seguinte, seria
processado de co-autoria em heresia."16
Todavia, nem sempre as execuções públicas conseguiam concretizar sua
intenção de intimidar o povo. Às vezes, obtinham até o efeito contrário. Em
1279, por exemplo, a multidão que assistia à execução da herege Olivia de
Fridolfi, em Parma, ficou tão revoltada com a crueldade do espetáculo (parece
que foi queimada "em fogo lento") que deu início a um tumulto. O
convento dominicano vizinho, que também hospedava o Tribunal da Inquisição, foi
invadido e saqueado. Os frades que lá se encontravam foram expulsos a pauladas.17
Nem os mortos escapavam da fogueira. Vários notáveis e eclesiásticos
(mais adiante falaremos do caso de Wycliffe) foram declarados hereges após a
morte, e seus corpos foram exumados e entregues às chamas. O primeiro ato da
Inquisição espanhola medieval, por exemplo, foi a execução póstuma do conde
Raymond de Forcalquier, em 1257. A prática da condenação póstuma não tinha
apenas um valor simbólico: a excomunhão era retroativa e previa o confisco dos
bens pertencentes aos condenados, prejudicando os herdeiros legítimos.
Em toda a história da Igreja, como já vimos, não faltaram
contradições, crimes, perseguições e até guerras por motivos de fé. Mas, muitas
vezes, eram decorrentes do fanatismo ou da ambição de soberanos ou pontífices,
do clima histórico de outras épocas ou da histeria coletiva. Podia-se falar de
"luzes e sombras" de um fenômeno complexo e articulado.
A organização da Inquisição determinou um verdadeiro salto de
qualidade dentro dos aparatos burocráticos: a estrutura interna eclesiástica se
moldou e adaptou para melhor realizar a obra dos que estavam encarregados de
revelar e destruir os hereges. Os bispos foram superados em suas prerrogativas;
a delação, a confissão extraída com tortura, o recurso a suplícios públicos e
execuções capitais "para dar o exemplo" se tornaram práticas
habituais e aceitas, se não abençoadas. E criticar ou obstar o trabalho dos
inquisidores era considerado diabólico.
Mas, além disso, aos poucos caiu uma pesada capa sobre todas as
práticas religiosas. Podia-se rezar em grupo, mas só nas formas e maneiras
consentidas pela Igreja. Podia-se ler o Evangelho, mas só com uma autorização
escrita. Podiam-se venerar os santos, mas apenas os "oficiais"; os mortos
com "cheiro de santo", não reconhecidos pela Igreja, podiam ser
exumados e queimados para evitar o nascimento de cultos populares
incontroláveis.18
O sexo era pecado, mesmo no seio do matrimônio, mas o cristão casado
que fizesse voto de castidade poderia ser suspeito de heresia. Em suma, tudo
que não era proibido era obrigatório. Ou melhor, às vezes o proibido e o
obrigatório coincidiam.
A Inquisição medieval chegou ao ápice de sua atividade na metade do
século XIV, para chegar a uma lenta decadência nos 150 anos sucessivos, em
especial na Itália.19 Os motivos do declínio residiam paradoxalmente
no sucesso de sua obra, mas também na vulnerabilidade das nascentes monarquias
nacionais a qualquer forma de interferência externa.
A história que causou o cisma de Lutero, por exemplo, é tratada por
canais diferentes dos inquisitoriais. Só depois da difusão da Reforma em toda a
Europa, a Cúria romana relançou a Inquisição, com a intenção de impedir a
difusão das ideias protestantes em todos os territórios que ainda permaneciam
sob o controle da Santa Sé.
A Inquisição espanhola
A Inquisição espanhola foi retomada por volta de 1482, por iniciativa
do rei Ferdinando. Sua principal característica era a criação de um organismo
central chamado "Conselho da Suprema e Geral Inquisição", que tinha a
tarefa de organizar e coordenar os vários tribunais distritais, rever os
processos presididos pelas cortes locais, julgar pessoalmente os casos mais
graves e investigar os próprios inquisidores.
Os membros da "Suprema" eram nomeados formalmente pelo papa,
mas quem os escolhia e dirigia era o rei da Espanha. O próprio nome de
"Conselho", dado ao novo organismo, já o caracteriza: na época, os
conselhos eram órgãos do governo que equivaliam aos nossos ministérios (existia
um Conselho de Estado, um da Economia etc.). O primeiro presidente da
"Suprema", Diego Espinoza, também era presidente do Conselho de
Castela.20 E ainda mais políticas do que religiosas eram as
finalidades da nova Inquisição: "O motivo (aparente) de defesa da fé nos reinos
espanhóis do século XVI estava perfeitamente conectado à questão (real e
verdadeira) da reconstrução da unidade política e social do território,
dividido em dois reinos (Castela e Aragão), perturbado pela presença invasora
muçulmana (que irá se encerrar com a retomada de Granada), transtornado com as
guerras civis financiadas pelos nobres e falido, por causa de tudo isso, sob o
ponto de vista econômico."21 A contaminação mútua entre Igreja
e Estado e o uso da religião como instrumentum regni se tornaram cada
vez mais evidentes.
O mais famoso inquisidor espanhol foi, sem dúvida, o dominicano Tomás
de Torquemada (1420-1498), filho de judeus convertidos, homem de vida exemplar
e irrepreensível cujo nome parecia já assinalar um destino (em espanhol, torque
significa "enforcado", e quemada, "queimada"). O
rei Ferdinando queria a Inquisição, mas foi Torquemada que a organizou
materialmente, instituindo um a um os tribunais das várias províncias do reino
e redigindo um verdadeiro código para disciplinas à ação.
O dominicano, no entanto, encontrou oposições violentas à sua obra.
Muitas vezes, nas cidades por que passava, autoridades e cidadãos se recusavam
a acolhê-lo, e a população o insultava durante seus sermões públicos. Foi, por
exemplo, expulso pela população de Barcelona e rejeitado das Cortes (conselhos
municipais) de Valência e Aragão.
Apesar desses incidentes de percurso, Torquemada mandou mais de dez
mil hereges à fogueira, a Inquisição se ramificou por toda a Espanha e as
"cortes" de itinerantes se tornaram estáveis: tribunais em todos os
sentidos.
Como já foi dito, ninguém estava a salvo das investigações da
Inquisição. Com certeza não os nobres, para os quais estavam previstas punições
específicas, como a proibição de se vestir com elegância, andar a cavalo e
portar armas. Nem os próprios inquisidores, contra os quais até pessoas por
eles mesmos condenadas podiam testemunhar. Qualquer um poderia utilizar a
estrutura da Inquisição para atingir eventuais rivais, mas também podia ser
vítima, em uma espécie de vingança sem fim. O inquisidor de Córdoba, Luis de
Capones, por exemplo, viu-se acusado de 106 delitos. Essa situação criou um
clima de medo e suspeitas gerais, em que um desconfiava do outro, dando
vantagem ao poder do rei, único árbitro de qualquer processo.
Ao contrário do que se poderia pensar, a Inquisição espanhola tratou
muito pouco das ditas "bruxas". O episódio mais significativo de
perseguição antifeminista dizia respeito às "ilusas", clarividentes itinerantes
que "se faziam passar por santas" e que eram punidas com o açoite nas
cidades em que pregavam.
Os processos por bruxaria muitas vezes se concluíam com o que hoje
chamamos de declaração de doença mental. Talvez tanta "benevolência"
escondesse uma subestimação da mulher, tão desprezada pela sociedade espanhola
da época que não era considerada um perigo real. "Assim, o Santo Ofício
espanhol fez da bruxa uma variedade de 'ilusa', não mais temida e poderosa, mas
louca e burra [...] e contribui habilmente para fazer que as mulheres sofram de
afasia histórica." (Benassar, 2005, p. 209.) Ou talvez existissem na
sociedade espanhola da época outras categorias de pessoas que já desempenhavam
muito bem o papel de bode expiatório no lugar das bruxas, como judeus
convertidos e mouriscos, os muçulmanos convertidos.
Os judeus convertidos e os mouriscos
Grande parte do território espanhol fora ocupada por muito tempo pelos
emirados muçulmanos, e apenas em 1492 o domínio cristão se estendeu por toda a
Península Ibérica. Dentro dos limites dos reinos cristãos, havia não só uma
quantidade significativa de muçulmanos, mas também uma grande comunidade
judaica, muito florescente do ponto de vista econômico e cultural. Na verdade,
os regimes islâmicos da época tinham por hábito dar aos judeus condições
melhores do que as dos cristãos. O sucesso econômico, o espírito empreendedor e
o prestígio de muitos expoentes da comunidade judaica (que se tornaram
conselheiros tanto nas cortes cristãs quanto nas muçulmanas) acabaram atraindo
contra eles o ódio da povo e a inveja da nobreza.22
Por volta do final de século XIV, a hostilidade popular contra os
judeus (chamados pejorativamente de "marranos", "porcos")
se manifestou através de verdadeiros pogrom (massacres indiscriminados).
Muitos se salvaram fugindo, outros se convertendo e praticando sua verdadeira
religião às escondidas. Os que ousavam fazê-lo viviam em um estado de ameaça
constante, assim como os cristãos, que rejeitavam publicamente a própria
religião, mas continuavam a celebrar seus ritos em segredo: eram acusados de crime
de apostasia e muitas vezes eram punidos com a morte.
Em 1391, em Sevilha, quatro mil judeus foram mortos em uma única
noite. Em 1412, houve vários casos de expulsão, alguns executados por
"convertidos" condenados pelo pontífice Nicolau V. Em 1477, dois
judeus convertidos foram queimados na fogueira em Llerena. Uma investigação
conduzida à época por um dominicano apurou que quase todos os judeus
continuavam praticando sua religião escondidos. Essa descoberta foi o pretexto
para novas perseguições anti-semitas e para a volta da Inquisição a Castela.
Em 1481, foi celebrado o primeiro auto-de-fé, no qual morreram seis
conhecidos convertidos. O auto-de-fé era uma condenação à fogueira executada em
público e o rito jurídico mais impressionante e solene usado pela Inquisição
espanhola. O condenado era arrastado por entre a multidão com os cabelos
raspados e vestido com sacos, era feita uma oração por ele e a sentença era
cumprida. As imagens nas vestes espelhavam a pena: uma cruz de Santo André, se
o réu houvesse se arrependido a tempo de evitar o suplício; meia cruz, se
também tivesse recebido uma multa; chamas se, arrependido in extremis, devesse
ser estrangulado e depois queimado; e diabos e dragões entre chamas se não
tivesse renegado a própria posição. Quem confessava recebia penas inferiores,
como peregrinações, penas pecuniárias, açoite em público ou a obrigação de
costurar cruzes em suas roupas. Os falsos acusadores eram obrigados a costurar
nas roupas duas línguas em tecido vermelho.
Em 1482, Xisto IV posicionou-se contra alguns excessos da Inquisição
espanhola, mas seus protestos permaneceram como palavras ao vento. Os
dominicanos haviam se tornado conselheiros da corte, conquistando um papel
muito parecido com o desempenhado pelos judeus em seu tempo. Em 1485, alguns
judeus convertidos assassinaram o inquisidor Pedro Arbués, o que causou um
recrudescimento da repressão. Em Saragoza, no período entre 1486 e 1490, 307
pessoas morreram na fogueira. Em Maiorca, nos anos entre 1488 e 1499, foram
executadas 129 sentenças de morte. Em Barcelona, em 1491, foram cominadas 129
sentenças, das quais 126 em contumácia.
Em 31 de dezembro de 1492, um edito real submeteu os judeus a uma
escolha drástica: o exílio ou a conversão. O provimento atingiu também um dos
patrocinadores da expedição de Cristóvão Colombo.
Tratamento similar foi reservado aos mouriscos, os muçulmanos
convertidos. Em 1492, um tratado firmado entre o reino cristão e o último
soberano muçulmano de Granada previa, em troca de sua retirada, a garantia de
liberdade de culto para os islâmicos. Dez anos depois, no entanto, a rainha
Isabel de Castela submeteu os muçulmanos ao mesmo dilema dos judeus: ou se
converte ou vai embora. Naturalmente, muitos árabes resolveram se converter e
sempre foram suspeitos de falsa conversão.
Em Granada, entre 1550 e 1580,780 mouriscos foram condenados a várias
penas. Em Hornachos (povoado de sete mil habitantes), no biênio 1590-1592,
foram julgados 133 processos. Em geral, os muçulmanos convertidos foram
condenados a penas relativamente mais leves do que os judeus. Eram na maioria
confiscos, multas ou decretos de expulsão. No geral, foi uma guerra étnica
ferrenha que expropriou bens de árabes e judeus abastados.
A Inquisição romana
Em 1542, o papa Paulo III (1534-1549), com a demonstração de eficácia
da Inquisição espanhola, decidiu imitá-la para impedir a difusão das doutrinas
protestantes.
Foram instituídos tribunais territoriais com jurisdição exclusiva para
todos os casos de heresia. Acima deles, foi fundado um organismo central com
sede em Roma composto de sete cardeais e sob o controle direto do pontífice,
que participava de todas as sessões. O organismo podia investigar também outros
prelados e tinha jurisdição em todo o território cristão, mas na verdade tratou
principalmente das questões italianas.
O papa Júlio III (1550-1555) mandou queimar as cópias do Talmude (um
dos textos sagrados do judaísmo. Ao contrário da Tora, o Talmude só é
reconhecido pelos judeus e consiste em uma coletânea de discussões ocorridas
entre sábios e mestres — rabinos — sobre os significados e as aplicações dos
passos da Tora) em mãos dos judeus de Roma23 e incluiu a blasfêmia
entre os crimes investigados pela Inquisição. Os plebeus blasfemos eram punidos
com a perfuração da língua, o açoite e os remos por três anos. Os blasfemos
nobres, ao contrário, recebiam uma multa, perdiam o título, dignidade e
benefícios; eram proibidos de fazer testamento e receber herança; eram
considerados incapazes de testemunhar; e exilados de Roma por três anos.
Paulo IV (1555-1559) tornou a propor o crime de "heresia
simoníaca", que consistia também em ordenar menores de idade em troca de
dinheiro, e utilizou a inquisição para mandar prender cardeais adversários
seus. Pio IV (1559-1565) mandou absolver os cardeais presos por seu antecessor
por decreto inquisitorial e ordenou a prisão de cardeais da facção contrária,
junto com seus colaboradores e familiares. Em seguida, os novos prelados presos
foram condenados à morte, naturalmente, após um processo.2'
Paulo IV, Pio IV e seu sucessor, Pio V (1565-1572), formaram o que os
historiadores chamam de "trindade do terror, não porque eram especialmente
'maus', mas porque utilizaram com muito zelo todos os expedientes necessários
para lutar sua batalha sem que nenhum golpe fosse excluído. De Pio V, será dito
que o zelo o fez ser proclamado santo [...] A santidade faz fronteira com os
métodos policiais, que se torna um mérito" (Mereu, 2000, p. 84).
Gregório XIII (1572-1585), ao contrário, conquistou junto aos
biógrafos a fama de pontífice "moderado", por ter permitido que os
condenados à fogueira usassem uma roupa comum, no lugar daquela com as chamas
que eram obrigados a usar.
Xisto V (1585-1590) dividiu a administração pontifícia em 15
congregações, cuja principal era a da Santa Inquisição da Herética Pravidade,
diretamente presidida por ele.
Homossexualidade
O papa Júlio III (1550-1555), amante dos banquetes, das festas, da
caça e das apresentações teatrais, ordenou cardeal um rapaz de 17 anos, que os
escritos da época definiam pudicamente como "desviado". A coisa
provocou protestos veementes de alguns altos prelados.25
O gesto de Júlio III certamente foi a gota d’água, principalmente por
ter ocorrido durante o Concilio de Trento, que tornou ainda mais rígida a moral
sexual da Igreja, mas é fato que, acerca da homossexualidade, havia, se não
doutrinas, ao menos práticas diferentes.
É preciso rever a cronologia do pecado da sodomia. Os conceitos do que
era "natural" ou "contra a natureza" sempre mudou de acordo
com a época e o lugar. O que parecia "natural" em uma civilização era
condenado por outra e vice-versa.
Segundo o mito grego exposto por Platão no Simpósio, em sua origem, a
humanidade era formada por três tipos de seres completos: o primeiro era
composto por dois homens fundidos em um só; o segundo, por duas mulheres; e o
terceiro, por um casal de homem e mulher. Para castigá-los, os deuses dividiram
esses seres superiores, dando vida à humanidade atual, formada por homens e
mulheres que vagam por aí incompletos em uma eterna busca pela
"cara-metade". De acordo com essa visão da natureza humana, portanto,
tanto as escolhas heterossexuais quanto as homossexuais são completamente
legítimas e "naturais". A rigor, o único comportamento que vai
"contra a natureza" é o celibato.
O cristianismo tirou seu desprezo pela homossexualidade do judaísmo. A
cultura judaica (assim como a grega e a romana) também era resultado de uma
sociedade patriarcal e guerreira, hostil às mulheres, consideradas inferiores,
e à feminilidade.
O homossexual, que se comportava "como uma mulher", era
digno de profundo desprezo e atentava contra a ordem do Universo desejada pelo
próprio Deus ("Deus criou o homem à sua imagem [...] criou-os macho e
fêmea.")26 Além disso, desperdiçar o sêmen para fins diferentes
ao reprodutivo era considerado um grave pecado, como mostra o episódio de Onan.
São Paulo, que considerava superadas as rigorosas proibições
alimentares judaicas, levou para o cristianismo os preceitos contra as mulheres
e os "sodomitas". Quando, no final do século IV, o cristianismo se
tornou a única religião de Estado do Império Romano, um dos primeiros efeitos
da nova época foi uma lei de 390 que previa a morte na fogueira para quem
praticasse o homossexualismo.27
O imperador do Oriente, Justiniano, mandou executar publicamente dois
bispos homossexuais. Mas a perseguição aos "sodomitas" só se acirrou
quando a Igreja Católica, após o século XI, reafirmou com vigor o princípio do
celibato eclesiástico. Era uma tentativa de assexualizar as relações entre os
homens de Deus em uma sociedade (a Igreja) totalmente masculina. Mas se a
Igreja tivesse imposto o celibato sem punir a sodomia, os fiéis teriam
entendido esse ato como a demonstração de que a instituição era composta de
misóginos homossexuais. De todo modo, por séculos, diferentes orientações
conviveram juntas dentro da Igreja.
Por outro lado, o penitencial de Gregório III (século VIII) impunha
uma penitência de 160 dias para o lesbianismo, de um ano para a sodomia e de
três anos para o padre que fosse à caça.28 No século XI, duas
tendências opostas se confrontam sobre esse argumento. De um lado, São Pedro
Damião criticou os clérigos que se entregavam às práticas homossexuais e lutou
(inutilmente) para que fossem banidos da Igreja. O abade Aelred de Rievaux, por
outro lado, tentou defender o amor entre os homens (ainda que, no final, tenha
recomendado a castidade).
A moral sexual da Igreja tomou uma direção mais clara com o Concilio
de Latrão de 1179, que determinou que os religiosos homossexuais fossem
reduzidos ao estado leigo ou à reclusão no mosteiro, para os clérigos, e à
excomunhão, para os leigos. De todo modo, nunca houve uma Cruzada contra os
homossexuais nem uma perseguição sistemática por parte da Inquisição, como
aconteceu com as heresias. A Igreja, na verdade, nunca reconheceu os
homossexuais como um grupo, limitando-se a condenar os comportamentos, mas
pedindo aos governos "leigos" que os punissem.
A partir do século XIII, vários países europeus adotaram legislações
muito severas contra as práticas homossexuais. Por exemplo, na França, um
código previa a fogueira para quem reincidisse no crime de sodomia, pena que
atingia também as mulheres. E parece que o termo "finocchio", que em
italiano significa funcho e é usado pejorativamente para designar homossexuais,
deriva do costume de queimar plantas aromáticas nas fogueiras, para encobrir o
fedor da carne. O confisco de bens em favor do soberano era uma das penas
acessórias, o que, em algumas épocas, encorajava os monarcas a fazer de tudo
para combater o homossexualismo.
Muitas vezes, o crime de sodomia era colocado no mesmo caldeirão que
os de heresia e bruxaria. Por essa razão, não é simples quantificar o número
exato de vítimas.
Um estudo recente29 sobre processos por sodomia julgados em
Bolonha no século XVI, revelou dados muito interessantes. De oito processos de
sodomia contra 11 acusados, cinco eram eclesiásticos. Dos oito acusados leigos,
três foram condenados à morte (por enforcamento ou decapitação), cinco foram
banidos pelo resto da vida. Dos cinco eclesiásticos, apenas um foi confinado no
convento por três anos. Para os outros quatro, o processo não seguiu em frente
ou foi encerrado sem condenação. Não se podia admitir que no interior do clero,
tão rígido na hora de regulamentar os costumes sexuais dos outros, houvesse
"sodomitas". Além disso, se o poder sagrado do clero se baseava na
castidade, colocá-la em questão ameaçava sua legitimidade.
FONTES DE ESTUDOS
1. Por isso foram introduzidas
as penas da fogueira e a dispersão das cinzas para as bruxas e os hereges.
"Antes que os cemitérios fossem levados para fora das muralhas, como era hábito
entre os romanos, os mortos repousavam sob o chão de suas casas. Eram os lares,
os protetores do lugar. Assim, o ritual da fogueira e da dispersão de hereges e
bruxas constituía, na época, um ato traumático, pois rompia a 'convivência'
entre vida e morte, entre 'corpo e alma'" Vanna De Angelis, Le Streghe
Roghi, processi, riti e pozioni, Casale Monferrato, Edizioni Piemme, 1999,
p. 155.
2. Todos os exemplos aqui
citados estão reportados em David Christie-Murray, I percorsi delle eresie, Milão,
Rusconi, 1998.
3. ítalo Mereu, Storia
della'intolleranza in Europa, Milão, Bompiani, 2000, p. 121.
4. Natale Benazzi, Matteo
D'Amico, Il libro nero dell'lnquisizione. La hcostruzione dei grandi
processi, Casale Monferrato, Edizioni Piemme, 1998, p. 40.
5. David Christie-Murray, op. cit, p.
156-7.
6. Ibid., p. 15.
7. Ibid.
8. ítalo Mereu, op. cit, p.
173.
9. David Christie-Murray, op. cit, p.
157.
10. Benazzi, D'Amico,
op. cit, p. 32.
11. David
Christie-Murray, op. cit, p. 158.
12. ítalo Mereu, op. cit, p. 124.
13. Nicolau Eymerich, Francisco Pena, Il Manuale dell'lnquisitore. Organizado
por Luis Sala-Molins, Roma, Fanucci Editore, 2000.
14. Nicolau Eymerich, Francisco Pena, op. cit
15. Uma das penitências que podia consistir na obrigação de usar pelo
resto da vida alguns sinais ou roupas especiais, os
"sanbenitos"(sacos), que visivelmente marcavam o pecador aos olhos da
comunidade.
16. David
Christie-Murray, op. cit, p. 157-158.
17. Rino Ferrari, Fra Gherardo Segarello libertário di Dio, Quaderni
dolciniani, Biella, Centro di Studi Dolciniani, p. 40.
18.G.G. Merlo, Eretici ed eresie medievali, Bolonha, Il Mulino,
1989.
19. Romano Canosa, Storia delllnquisizione in Itália, vol. 1,
Roma, Sapere 2000,1986, p. 7.
20. Benazzi, D'Amico, op. cit, p. 97.
21. Ibid.
22. Benazzi, D'Amico, op. cit, p. 101
23. ítalo Mereu, op. cit, p. 77 24./6/d,p.81-2.
25. ítalo Mereu, Storia delllntolleranza in Europa, Milão,
Bompiani, 2000, p. 75.
26. A Bíblia Sagrada, Gênesis, 2,27.
27. Uta Ranke-Heinemann, Eunuchiper il regno dei cieli, Milão,
Rozzoli.
28. Jean Verdon, Il piacere nel Medioevo, Milão, Editore
Baldini & Castoldi, 1999, p. 62.
29. Ugo Zuccarello, Processi per sodomia a Bologna tra XVI e XVII
secolo, monografia de conclusão do curso de História Moderna defendida em
25 de novembro de 1998 junto à Universidade de Bolonha, a quem agradecemos.