sábado, 14 de novembro de 2015

A PERSEGUIÇÃO AOS "ANTIGOS CRENTES".











No século XVII, na Rússia, era preciso prestar muita atenção ao fazer o sinal-da-cruz. Quem errasse corria o risco de acabar na fogueira.

O período entre 1598 e 1613 é conhecido na história russa como o "Tempo das Dificuldades". No breve espaço de 15 anos, sucederam-se levantes populares, invasões, guerras civis, escassez. A própria Igreja Ortodoxa Russa viu-se ameaçada pelo proselitismo dos missionários católicos e luteranos.

As "dificuldades" chegaram ao fim com uma revolta popular que libertou Moscou dos estrangeiros e com a ascensão da dinastia Romanov ao trono.




Em 1619, Filaret, pai do czar Mikhail Fedorovich, que cuidou da reorganização administrativa da Igreja, foi nomeado patriarca da Igreja de Moscou (ou seja, líder da Igreja Russa). Essa centralização familiar do poder político e espiritual não foi casual. Na verdade, a própria concepção da religião e da sociedade russas previa um Estado e uma Igreja unidos em simbiose. "O Estado moscovita — ou seja, seu soberano, o czar — era inconcebível fora da moldura eclesiástica, sem a companhia da hierarquia da Igreja e, em mais alto grau, de seu patriarca."1

Os anos que se sucederam aos "difíceis" também testemunharam o nascimento de um novo movimento religioso, o dos "Amigos de Deus", liderado pelo pope (termo russo que significa sacerdote) Ivan Nerovov. Outro expoente de relevo do movimento foi o arcebispo Awakum, autor de uma famosa autobiografia.

Os "Amigos" eram um grupo de padres que pregavam em russo, mesmo fora das igrejas; lutavam pela moralização do clero e da vida pública; opunham-se aos costumes importados do exterior (como raspar a barba), e às diversões "pagãs".

A confraternidade queria impor "um cristianismo de uma austeridade monástica que [...] banisse qualquer alegria e qualquer distração. Em vez de adaptar o serviço divino dos súditos monges às necessidades dos leigos, impunha a militares, camponeses, a toda uma população, ritos de quatro ou cinco horas na igreja".2 

Os popes da confraternidade dos "Amigos" tiveram muitos desentendimentos com as autoridades locais fortemente contrárias à sua obra de moralização. O próprio Awakum fala, em sua autobiografia, que um poderoso atirou contra ele por "exasperação pela demora excessiva da liturgia".

O povo mais humilde também se desesperava com o rigor e mais de uma vez os expulsou das paróquias. Mas os "Amigos" sempre conseguiam se safar, entre outras coisas, porque contavam com a amizade e proteção tanto do czar quanto do patriarca de Moscou.

Em 1652, Nikon, graças também ao apoio dos "Amigos de Deus", foi eleito patriarca de Moscou. Mas ele acabou logo com as expectativas de seus partidários. Os reformistas sonhavam com uma regeneração espiritual da Rússia que envolvesse todo o clero e grupos sociais.

Mas Nikon, que os historiadores compararam a uma espécie de Inocêncio III russo, queria criar uma Igreja teocrática, submissa às vontades do patriarca, que impusesse sua própria autoridade ao czar e estendesse sua influência às outras Igrejas ortodoxas do Oriente.

E talvez para dar à Igreja uma imagem mais "ecumênica" e autoritária, ele tenha decidido eliminar da liturgia russa alguns elementos nacionais e torná-la mais parecida com as outras crenças de rito grego, em especial a de Jerusalém.

Nikon manteve boas relações com o patriarca ortodoxo de Jerusalém, Paisios, não obstante o seu envolvimento no assassinato de seu rival fosse conhecido na corte e apesar de ele ter personagens duvidosos entre seus emissários a Moscou, como o religioso Arsênio, um aventureiro internacional que trocara de religião três ou quatro vezes durante suas peregrinações.

As diferenças mais evidentes entre os costumes gregos e russos estavam no sinal-da-cruz (os gregos o faziam com três dedos, os russos, com dois), no batismo (os gregos o realizavam por infusão, como os latinos, os russos, por imersão tripla) e na contagem dos anos a partir da criação do mundo (5500 para os gregos, 5508 para os russos).





Nikon decidiu adotar os ritos gregos, erradamente considerados mais "puros" e antigos. Também foram introduzidas outras mudanças, como a grafia do nome Jesus, que mudava de Isus para lisus. Muitos não a aceitaram, pois para eles parecia que Cristo era substituído por outra divindade ou até mesmo pelo anticristo.

O patriarca de Moscou introduziu suas reformas de maneira brutal e autoritária, sem nenhuma mediação ou gradualismo. Suas inovações provocaram angústia nos fiéis russos, que de um dia para o outro se viram proibidos de praticar o que lhes pareciam as manifestações "naturais" de religiosidade, substituindo -as por costumes estranhos à sua cultura e tradição.

Naturalmente, os "Amigos de Deus" foram os primeiros a protestar contra as mudanças, mas Nikon respondeu com a repressão.

Em 1653, mais de sessenta opositores às reformas, dentre os quais Neronov e Awakum, foram presos. Este último foi trancado no mosteiro de Sant'Andronico, em Moscou, onde tentaram subjugá-lo, inutilmente, pela fome. Neronov, ao contrário, cedeu ao suplício e abjurou.

Awakum (graças à intervenção do czar, que o poupou de penas bem piores) foi exilada na Sibéria com toda a família por dez anos.

Em 1654, Nikon convocou um concilio em Moscou para ratificar sua reforma. O arcebispo de Kolomna Pavel, que contestou as conclusões da assembléia, foi deposto, preso secretamente e, ao que parece, queimado na fogueira.

No mesmo ano do concilio, eclodiu na Rússia uma epidemia de peste, que muitos fiéis tradicionalistas interpretaram como uma punição pela traição com a qual o clero russo se sujara.

Em 1655, Nikon proibiu o sinal-da-cruz; com dois dedos e, no ano seguinte, passou a punir com a excomunhão quem continuasse a fazê-lo. "Aquele sinal-da-cruz, que a grande maioria dos russos havia visto os pais e avós fazendo, agora era considerado heresia, e quem insistisse em realizá-lo era afastado da Igreja." (Pia Pera, 1986, p. 36.)

Foi naqueles anos que surgiu o cisma dos "antigos crentes" na Igreja russa, que perdura até hoje. Uma Igreja popular, próxima às classes humildes e presa às tradições se contrapunha a uma autoritária e voltada para as classes altas.

Em 1657, três artesãos de Rostov, inimigos das inovações, foram torturados e exilados por ordem do czar.

Muitos "antigos crentes", que rejeitavam tanto a autoridade do Estado quanto a da Igreja, fugiram dos vilarejos e das cidades para se estabelecer nos espaços abandonados e quase inabitados do Baixo Volga, do Don, dos Urais e da Sibéria. Alguns extremistas, convencidos de que o mundo estava dominado pelo anticristo, deixaram-se morrer de fome ou atearam fogo ao próprio corpo.

Os monges do mosteiro de Solovki se rebelaram contra a nova liturgia e foram atacados pelas tropas do czar, que só conseguiram tomar o convento após um assédio de oito anos.

"No geral, a reforma de Nikon teve o efeito de afastar da Igreja uma parcela considerável do povo russo." (Pia Pera, 1986, p. 37.)

Em 1666, um novo concilio depôs Nikon, mas confirmou todas as suas inovações doutrinárias (que tinham a aprovação do czar).

Awakum, que participara dos trabalhos do concilio para defender a causa da "verdadeira" fé russa, foi declarado deposto e preso. Três discípulos seus tiveram um pedaço da língua cortado.

A sessão se concluiu em 2 de julho, com a condenação solene da antiga fé e a de seus adeptos.

Em 1667, Awakum foi exilado em Pustozërsk junto com alguns seguidores. De lá, continuou guiando os "antigos crentes" que permaneceram na Rússia.

Em 1670, foram realizadas outras perseguições sanguinárias. Alguns discípulos de Awakum foram enforcados, e sua mulher e seus filhos (que ele não via há quatro anos) foram presos em um calabouço. Três amigos seus, que com ele compartilhavam a experiência do exílio, tiveram um pedaço da língua cortado e foram presos em um calabouço junto com seu pai espiritual.

Em 1682, foi realizado um enésimo concilio, que ordenou que as autoridades civis e religiosas procurassem ativamente os antigos crentes e acirrassem as perseguições. Também foi dada ordem para queimar vivos os quatro sacerdotes irredutíveis.

E, assim, em 14 de abril de 1682, os quatro crentes Awakum, Lazar, Epifanij e Fédor foram martirizados por insistirem em fazer o sinal-da-cruz com dois dedos, em vez de três.

Antes da execução, Awakum escrevera, no cárcere, uma autobiografia que entrou para a história com o título de A vida do arcebispo Avvakum, e circulou de forma clandestina e manuscrita por cerca de dois séculos, antes de ser impressa.

FONTE DE ESTUDO

1.   É a tese do historiador Marc Raeff, citado em: Pia Pera (organizado por), Vita deii'arciprete Avvakum scritta da lui stesso. Milão, Adelphi, 1986.
2.   Pierre Pascal citado em Pia Pera, op. cit., p. 22.




sexta-feira, 13 de novembro de 2015

HEREGES


Por David Bailly





Os Arminianistas

De todos os hereges, os arminianistas eram de longe considerados os piores. Afirmavam que qualquer um tinha o direito de professar a religião em que mais acreditasse, sem ser perseguido.

Jacó Armínio (1560-1609), professor de Teologia na Universidade de Leida, era um defensor do livre-arbítrio e da tolerância para com as minorias religiosas. Além disso, refutava totalmente a doutrina calvinista da predestinação. Um sínodo internacional de reformistas, na maioria calvinistas, realizado em Dort, em 1618-1619, condenou o arminianismo.

Poucos dias depois, um de seus líderes foi decapitado e outro foi condenado à prisão perpétua.

Na Holanda, os arminianistas, também chamados de arminianos, criaram uma Igreja separada.






Os quacres

Também chamados de "amigos", eram conduzidos pelo apóstolo John Foxe, homem inculto, mas pacifista, que pregava a presença de Deus em todos os homens e acreditava ser possível aproximar-se Dele sem sacramentos, sacerdotes ou celebrações espetaculares.

O quacrismo promovia um novo estilo de vida que tendia a favorecer a simplicidade das relações e a igualdade de sexo, raça e classe. Foxe difundiu o movimento especialmente em Gales e na Inglaterra, enquanto outros fiéis pregaram na Holanda, na Polônia e em Massachusetts. A repressão puritana ocorrida durante o Commonwealth (1649-1659) matou cerca de 3.170 quacres.








Giordano Bruno

Tendo vivido entre 1548 e 1600, foi o herege mais famoso do século XVII. Sacerdote e frei dominicano, formado em Teologia em 1575, fugiu da prisão "apertada e negra do convento" e adotou uma vida nômade pela Europa.

Tornou-se "mago", astrólogo e escritor. Reivindicou para si a teoria heliocêntrica de Copérnico (é a Terra que gira em volta do Sol, e não o contrário) e afirmou que as estrelas do firmamento também são sóis em volta dos quais orbitam mundos parecidos com o nosso.

Entregue à Inquisição em 1592, sofreu um processo que durou oito anos. Acabou abjurando parte de suas convicções. Mas quando o obrigaram a condenar todas as suas idéias, inclusive as que não foram analisadas como heréticas pelo tribunal, Giordano Bruno negou-se, resistindo até à tortura, e em 20 de janeiro de 1600 foi condenado à morte.

"Talvez vocês tenham mais medo de pronunciar minha sentença do que eu tenho de recebê-la!" foram as palavras com que ouviu o veredicto.

Em 17 de fevereiro de 1600, a execução foi finalmente realizada. O filósofo foi queimado vivo em Roma, no Campo del'Fiori. Antes, foi-lhe enfiada na boca uma mordaça, instrumento de madeira que impedia que o condenado mexesse a língua, por causa dos "palavrões que dizia, sem querer ouvir quem o confortasse ou outras pessoas".






Galileu Galilei

Viveu entre 1564 e 1642. Foi um dos pais da ciência moderna. Por ter reivindicado as teorias de Copérnico, mas principalmente por ter afirmado que as Escrituras eram infalíveis nos assuntos de fé, mas não nos científicos, Galileu acabou na mira na Inquisição. Submetido à prisão e à tortura, mesmo sendo idoso e estando gravemente doente, no final, o cientista abjurou todas as suas convicções.

A SENTENÇA DE GALILEU







Paulo Sarpi

Historiador e teólogo veneziano (1552-1623). Entrou para a Ordem dos Servitas em 1566, e tornou-se seu procurador-geral em 1585. Após uma estada em Roma, onde esteve em contato com a Cúria (1585-1588), estabeleceu-se em Veneza.

Consultado como especialista sobre uma questão jurídica que opunha a República de Veneza à Santa Sé, Paulo Sarpi defendeu Veneza com uma série de escritos que lhe proporcionaram grande fama, mas também a excomunhão e uma tentativa de assassinato por parte dos jesuítas.

Em 1619, publicou em Londres a história do Concilio de Trento, com o pseudônimo de Pietro Soave Polano.

A obra defendia a tese segundo a qual o Concilio de Trento representou o ápice de um processo secular de decadência moral da Igreja e que suas deliberações foram resultados de embates políticos, e não conseqüência de autênticos debates sobre a fé. Sarpi também jogava sobre o papado a grave responsabilidade de ter tornado irrevogável o cisma com os protestantes.


Os reformadores católicos

Antes mesmo do cisma de Lutero, houve intelectuais e eclesiásticos que tentaram reformar a Igreja Católica de dentro. Teólogos estudaram com escrúpulo e rigor filológico a Palavra de Deus. Filósofos e eclesiásticos tentaram difundir, com sermões e tratados, um cristianismo mais maduro também junto ao povo, procuram evitar que práticas religiosas como o culto aos santos e às relíquias se transformasse em superstições e idolatria. Finalmente, alguns fundaram novas ordens religiosas que tentavam restaurar as regras primitivas de pobreza e simplicidade.


O muro da Contra-Reforma

O sucesso da Reforma Protestante na Europa criou na Igreja Católica muitos problemas de cunho político, econômico, administrativo e doutrinário. Os próprios prelados católicos haviam se dividido a respeito do comportamento a adotar com relação aos reformistas: alguns buscavam a reconciliação, ao menos com os luteranos "moderados", outros defendiam uma posição intransigente e antiluterana.

Era preciso um momento de clareza que levasse a uma profunda reorganização da instituição eclesiástica. Por essas razões, o papa Paulo III convocou um concilio ecumênico que teve início em Trento em 13 de dezembro de 1545. Os trabalhos da assembléia se estenderam, entre interrupções e transferências de sede, por quase vinte anos, sendo concluídos apenas em 14 de dezembro de 1563.

Qualquer possibilidade de diálogo encontrava obstáculos por parte dos papas, que temiam que o concilio tomasse uma feição "democrática" demais, o que prejudicava sua autoridade.

A corrente intransigente e antiluterana acabou triunfando, aliada a setores que reivindicavam uma reforma moral do clero e uma maior disciplina. O concilio se encerrou com a aprovação de algumas afirmações doutrinárias: a tradição histórica (ou seja, o conjunto de dogmas, regras e ritos introduzidos ao longo dos séculos e que não tinham nenhuma relação com as Escrituras) tinha o mesmo peso que a Bíblia; a única versão autorizada dos textos sagrados era a Vulgata de São Jerônimo; a única interpretação correta das Sagradas Escrituras era aquela dada pela Igreja; todo ser humano nascia trazendo em si a mácula do pecado original, que só podia ser apagada com o batismo, celebrado nas formas estabelecidas pela Igreja; também foram confirmados o número e a validade dos sacramentos; e a característica sagrada do ministério sacerdotal, que não podia se estender a todos os fiéis.

Na prática, foram refutados todos os argumentos de fé protestante.

As afirmações do concilio constituíam a verdade da fé e eram formuladas de forma a não deixar margem a dúvidas ou ambigüidades. O funil da ortodoxia se tornava cada vez mais estreito. Também foram tomadas medidas de reorganização e moralização do clero. Os bispos foram obrigados a residir no território das próprias dioceses, foi proibido o acúmulo de benefícios eclesiásticos e confirmado, com vigor, o celibato. Foram criados os seminários diocesanos, que deveriam formar um clero mais instruído, capaz de fazer frente aos pregadores hereges.

Nasceu o Índex, uma lista, atualizada continuamente, de publicações condenadas pela Igreja, que um católico só poderia ler com autorização.


Foi reconhecida a faculdade do papa de aprovar e ratificar as decisões dos concílios, o que confirmava o princípio da autoridade absoluta do pontífice.

SABER MAIS:

O Que é Heresia

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

BEGUINAS E BEGARDOS



As beguinas eram prevalentemente mulheres leigas caracterizadas por um forte espírito religioso. Mesmo não sendo afiliadas a nenhuma ordem reconhecida, levavam uma vida monástica em suas residências nas periferias das cidades e criaram verdadeiras comunidades, as "beguinarias".

A primeira surgiu em 1170, em Liège, espalhando-se então por toda a França, Alemanha e Países Baixos. É provável que o primeiro núcleo fosse formado por mulheres de extratos sociais mais baixos rejeitadas pelos conventos, onde tinham prioridade as noviças de família nobre.

Orientadas por alguns religiosos, as mulheres pobres criaram, então, uma "ordem faça-você-mesmo" que acabou por se tornar uma comunidade dedicada a levar sustento e caridade a outras mulheres sozinhas não aceitas nos conventos. Como não eram freiras, as beguinas podiam voltar às suas vidas normais a qualquer momento. Além disso, não pediam esmolas; cuidavam de suas propriedades ou trabalhavam.




Os begardos, ao contrário, eram um grupo de pregadores errantes que denunciavam as corrupções do clero e pregavam uma vida fiel ao Evangelho e à experiência dos primeiros apóstolos. A autonomia do movimento foi vista com grande preocupação por parte das autoridades eclesiásticas, em especial depois que se aliaram aos Irmãos do Espírito Livre e aos Franciscanos Espirituais.*

Os inquisidores deixaram de distinguir entre os grupos, apesar de uma primeira tentativa de separar os "bons" dos "maus". Clemente V, primeiro, e João XXII, posteriormente, perseguiram-nos e os condenaram em um único processo como hereges a partir de 1311. Muitos terminaram na fogueira, homens e mulheres.


Fonte de Estudo
*.   David Christie-Murray, I percorsi delle eresie. Milão, Rusconi, 1998, p. 166.


quarta-feira, 11 de novembro de 2015

AS DOUTRINAS CRISTÃ NA ÉPOCA DA REFORMA - Inovações Doutrinárias










Lutero movera uma montanha, e dela irrompeu um rio em cheio. Teólogos e sacerdotes aderiram à Reforma, às vezes inserindo nela suas próprias inovações doutrinárias, outras vezes dando vida a Igrejas autônomas. Pensadores originais encontraram coragem para expor as próprias teses. Antigas minorias religiosas, como os valdenses, encontraram novo vigor.

A seguir, damos uma lista em nada exaustiva das várias doutrinas e correntes de pensamento, remetendo-nos à bibliografia para os aprofundamentos.







Huldreich Zwingli

Sacerdote suíço, demonstrava fortes tendências democráticas e uma grande admiração pelo humanismo. Em 1520, pregou a necessidade de abolir as nomeações vitalícias e fez circular os escritos de Lutero. Declarou-se contra a vida monástica, o celibato do clero, a interferência dos santos, a existência do Purgatório e o aspecto sacrificatório da missa; mas diferentes concepções da Eucaristia o separavam de Lutero. 

O papa ofereceu a Zwingli "qualquer coisa, com exceção do trono papal", para que ele se submetesse a Roma, contudo a tentativa de corrupção não teve sucesso. Zwingli tentou formar uma aliança entre os cantões suíços reformados para obrigar os católicos a cessar as perseguições aos protestantes, porém a tentativa falhou exatamente por causa das divergências entre ele e Lutero. Quando o cantão católico de Schwyz mandou para a fogueira um pregador de Zurique, não hesitou em declarar a guerra, sendo o primeiro a pegar em armas para defender a própria fé. Morreu na batalha de Kappel (1531).1







Brownistas ou barrowistas

Eram seguidores de Robert Browne e de seu discípulo Barrow. Afirmavam que qualquer tipo de estrutura eclesiástica representava uma abominação e que o sistema da Igreja era uma falácia.

Para eles, até mesmo a Igreja Anglicana ainda conservava muitos resíduos do papismo católico.

Por suas teorias e pela irredutibilidade contra o poder da Igreja Anglicana, Browne foi preso 32 vezes. Finalmente, aos 80 anos, foi submetido à autoridade do arcebispo de Canterbury. Barrow, seu colaborador, compartilhava com ele muitas idéias, mas ambos divergiam em um ponto específico: o da voluntariedade do fiel. Para Barrow, levar a palavra de Deus aos profanos era dever dos príncipes. Foi acusado de ser autor de alguns libelos anônimos antianglicanos e executado junto com dois seguidores. Em 1583, outros dois barrowistas foram mortos por publicar os escritos de Browne.







Os anabatistas

Para alguns cristãos, os batismo era uma coisa séria, e por isso só podia ser celebrado em adultos conscientes que sabiam o que faziam, como acontecia nos primórdios da Igreja apostólica. Os mais extremistas também pretendiam viver em paz em suas comunidades, onde praticavam a comunhão dos bens.

Os grupos e movimentos que rejeitavam o batismo das crianças, ainda que bem diferentes entre si, foram chamados de "anabatistas".

Um de seus expoentes mais famosos foi o holandês Menno Simons (1496-1561). Padre católico, ficou tão impressionado com o martírio de um pregador anabatista que começou a estudar a Bíblia e acabou virando, ele próprio, um pastor anabatista, sendo perseguido por católicos e luteranos. Seu movimento se espalhou pela Alemanha, Países Baixos e Suíça.

Em 1553, a cidade de Münster se rebelou contra o bispo-feudatário e aderiu à Reforma.

Lá, o pastor anabatista Bernhard Rothmann, então padre católico, saiu vencedor de uma disputa pública com católicos e luteranos a respeito do batismo dos adultos. A partir daquele momento, a cidade se tornou refúgio dos anabatistas, que instauraram um regime teocrático.

Luteranos e católicos espalharam por Mimster os mais fantasiosos boatos, na tentativa de desacreditar os anabatistas: que o instituto da propriedade privada seria abolido, que os moradores se tornariam polígamos, e que os anabatistas matariam sem piedade os fiéis de outras crença?. No Final, os luteranos luteranos e o arcebispo católico se aliaram para reconquistar a cidade pelas armas, e os líderes contrários foram executados.

Jacob Hutter fundou uma seita que praticava a comunhão dos bens. Foi executado em 1536. Havia muitos huteritas na Morávia, mas o movimento sofreu grandes perdas durante a Guerra dos Trinta Anos. Os que sobreviveram se refugiaram na Hungria e, mais tarde, na Rússia.

O italiano Bernardino Ochino (1487-1546), superior da Ordem dos Capuchinhos, recebera do papa a permissão para estudar os livros protestantes, a fim de refutá-los. Mas, ao contrário, foi convertido e aderiu ao calvinismo. Após inúmeras travessias e peregrinações, terminou seus dias na Morávia, como hóspede de uma comunidade huterita.

O ex-monge beneditino Michael Sattler, em 1527, trabalhou para criar uma federação de congregações anabatistas autônomas. Foi torturado e morto cruelmente.

Muitas congregações anabatistas só encontraram refúgio contra as perseguições com a emigração para a América, onde se encontram até hoje.







Thomas Müntzer, o teólogo da revolução

O protestante radical Thomas Müntzer também recebeu o rótulo de anabatista. Ele fundou a Liga dos Eleitos, uma comunidade sem padres ou propriedade privada. A Liga logo assumiu o aspecto de um grupo subversivo contra o poder dos padres e da Igreja. Müntzer era um autêntico profeta d revolução e assumiu a liderança da revolta camponesa criticada por Lutero. Participou da batalha de Frankenhausen, em 15 de maio de 1525, na qual as tropas aliadas de príncipes católicos e luteranos cercaram e massacraram com a artilharia um exército de oito mil camponeses. Foi capturado, torturado e executado.2







Unitaristas ou antitrinitários  
             
É o nome dado a uma miríade de movimentos que negavam o dogma da Trindade e a divindade da pessoa de Cristo.

O movimento antitrinitário de maior influência talvez tenha sido o socianismo, que deve seu nome ao advogado Lélio Socini, natural de Siena, e de seu sobrinho, Fausto. Lélio Socini levou uma vida errante, entre a Itália e a Suíça, que, graças à Reforma, se tornara um refúgio para os antitrinitários italianos. Posteriormente, as teses unitaristas também foram declaradas ilegais.

Os socianistas eram a favor da liberdade de culto e rejeitavam tanto a idéia de impor a própria idéia aos outros quanto a busca deliberada do martírio. O socianismo fez adeptos na Transilvânia (onde o movimento antitrinitário era muito influente), na Ucrânia, Holanda e Polônia, onde ganhou grande importância e sofreu perseguições por parte dos soberanos Sigismundo III (1566-1632) e João Casimiro (1609-1672), jesuíta e cardeal.

Os unitaristas também encontraram refúgio na América.   

  


  

                
Miguel Serveto e as fogueiras protestantes     

Outra doutrina antitrinitária foi a de Miguel Serveto, nascido em Villanueva, Espanha, por volta de 1510. Filósofo, teólogo, médico, geógrafo, astrólogo, filólogo de grande cultura clássica, crescido no clima de grande fervor cultural do Renascimento, ele aspirava a uma religião universal que unificasse não só os cristãos, mas também os outros "povos do Livro": os judeus e os muçulmanos. Para obter esse resultado, propôs uma solução aparentemente simples: a abolição dos dogmas da Trindade, que não está nas Escrituras.

Em alguns escritos, chegou a afirmar que, no primeiro Concilio de Nicéia, a Igreja traiu a si própria e ao Evangelho. Suas idéias atraíram para si o ódio dos protestantes suíços e dos católicos.

Apesar das perseguições e de um processo no qual foi condenado, Serveto ainda passou vários anos viajando pela Europa com nome falso, estudando, escrevendo e publicando tratados anônimos.

Em 1546, começou a se corresponder com Calvino, prática que logo foi interrompida em meio a insultos recíprocos.

Em 1553, o intelectual espanhol foi preso e processado pelo tribunal da Inquisição de Vienne (França). Para escapar da morte, tentou esconder a própria identidade, dizendo se chamar Miguel Villanovanus. Mas Calvino enviou à Inquisição católica materiais comprometedores, o que permitiu sua identificação. Serveto conseguiu fugir e se refugiou em Genebra, sempre usando nome falso. Lá foi reconhecido e, acusado publicamente, sempre por Calvino, sofreu um processo muito parecido com o da Inquisição.

Condenado à fogueira em 1553, foi executado no dia seguinte ao proferimento da sentença.

Alguns meses depois, foi encerrado também o processo católico, com uma condenação póstuma por heresia. Sua efígie foi estrangulada e queimada em fogo lento.







 FONTES PARA ESTUDO
1.   David Christie-Murray, I percorsi delle eresie. Milão, Rusconi, 1998, p. 197-8.
2.   Ernst Bloch, Thomas Müntzer teólogo delia rivoluzione. Feltrinelli, Milão, 1980, p. 78-86.