Paulo Bento Bandarra (*)
A reserva de mercado para o jornalismo na imprensa, como
ocorre em outras áreas de outras profissões, deixa o leitor algumas vezes
desprotegido. Principalmente em assuntos científicos, com que muitas vezes o
jornalista mais simpatiza do que realmente tem base sólida para bem informar e
criticar. Por exemplo, preocupante, para a seriedade da medicina, o crescimento
da pré-hipocrática associação da prática clínica com a religião. Grande mérito
histórico de Hipócrates, que por isso serve de modelo médico até hoje.
No entanto, presenciamos um retrocesso na realização, na
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, do 1º Simpósio de Medicina
e Espiritualidade, organizado pela Associação Médico-Espírita de São Paulo,
conforme publicação da revista IstoÉ, edição 1.576 (28/5/03), na seção
sobre saúde.
Estão estes profissionais, mais uma vez, tentando repetir
os erros do passado já tão refutados pela ciência e pela história. Além, é
claro, do desconforto que causa a pacientes e colegas de outras crenças esta
prática e este proselitismo anticientíficos. A medicina dos maus espíritos,
maus-olhados, das obsessões e dos endemoninhados.
Imaginemos os médicos afastando-se da ciência como
parâmetro ético e promovendo a formação de associações de médicos católicos,
judeus, teosóficos, islâmicos, da Igreja Universal, seguidores do reverendo
Moon, umbandistas, satanistas, bruxomaníacos, adoradores de Isis e outros que
tais, na defesa de tratamentos segundos suas "verdades", tão válidas
e críveis como esta que se nos propõem agora.
Além de a clara rivalidade fratricida das religiões ser
transferida para o seio da medicina, o abandono da lógica do conhecimento
científico pela crença levaria ao retorno do obscurantismo no ensino, na
pesquisa e no trato dos pacientes. Sem contar que no próprio espiritismo há
rivalidades, vaidades e lutas entre as várias correntes, entre os seguidores de
Ismael e os de Roustang. O escritor Salmon Rushdie já nos alerta sobre a
inconveniência da condução dos homens pela religião, da qual é um exemplo
vívido. Quanto mais em ciência.
Não se trata, como na visão do jornalismo, de um avanço,
mas de uma volta ao pensamento mágico. Já no fim do século 18 o médico Franz
Anton Mesmer abandonara a medicina em prol da idéia de "passes" pelo
"magnetismo animal", estabelecendo-se na França e criando uma rica
clínica desta prática. Em pesquisa da Academia Francesa de Ciências, formada
por comissão de distintos doutores e acadêmicos, incluído Jean-Sylvain Bailly
(1736-1793), Antoine-Laurent Lavoisier (1743-1794), Joseph-Ignace Guillotine
(1738-1814), Benjamin Franklin (1706-1790), chegou-se à conclusão de que não
havia cura alguma – além da auto-sugestão dos pacientes (hoje, o chamado efeito
placebo). Mesmer, então, 1785, abandonou Paris.
Em 1835, famosos pesquisadores ligados à Faculdade de
Medicina de Paris, como Puységur, d`Eslon, Deleuze, Du Potet e Millet, voltam à
carga, dedicando tempo ao sonambulismo (adivinhação) e outros fenômenos
provocados pela ação do agente magnético de Mesmer. Novamente, deram em nada as
pesquisas, sobrando apenas a parte religiosa da crença.
A Kardec o que é de Kardec
Em 1840, o Dr. Benoit Mure trouxe ao Brasil a homeopatia,
e estas práticas de mesmerismo e passes mediúnicos, aprendidas com Hahnemann em
Paris, viriam a ser o esteio da prática do espiritismo no país nestes 160 anos.
Mas sua "escola vitalista" em Montpellier fechou, assim como diversas
escolas e hospitais homeopatas através do mundo entraram em colapso no início
do século 20.
Quem lê a Revista Espírita editada por Allan Kardec
vê descrições da vida em Marte, Vênus, Júpiter, explicações científicas que
caem por terra com a evolução. Todas as informações trazidas pelos espíritos
são comprovadamente falsas.
Profetiza-se o fim derradeiro da medicina científica na Revista
Espírita de 1863, pág. 258, para o nascimento da verdadeira medicina antes
do fim do século 19 – a espiritual. Disso sobraram obras doutrinárias, como o Livro
dos espíritos e o Evangelho segundo o espiritismo – apenas obras de
ficção religiosa e moral, inverificáveis – como todas as boas obras religiosas.
Tivemos Chico Xavier e Hercílio Maes no século 20, que
profetizaram a vida no planeta Marte, a vida em Atlântida, praticaram
homeopatia, escreveram livros incríveis de imaginação, nada além de
conhecimento publicado previamente.
Nenhum remédio novo foi revelado pelos espíritos. André
Luiz não nos revelou qualquer fórmula medicamentosa para aliviar o sofrimento na
psicografia talentosa de Chico: só páginas e páginas de mundos delirantes e
improváveis que tanto deleitam o leitor sectário. Afinal, o improvável Dr.
Fritz não voltou para operar. desesperadamente, pterígios – com qualquer um que
quisesse incorporá-lo? André Luiz poderia ter-nos dado uma formulazinha. Nenhum
centro arqueológico revelou-nos estas almas lá viventes ou morrentes em sessões
espíritas, só vidas inexistentes em planetas, como o relato da mãe de Chico em
1935. Dá para se acreditar agora?
Esperemos que o Conselho Federal de Medicina e a
universidade brasileira retomem o rumo certo, para que não percam a visão
responsável da prática médica e façam uso de recursos públicos com
inteligência. Que a imprensa tenha mais senso crítico ao divulgar "novos
avanços". Principalmente quando não são novos.
Não voltemos ao tempo das roupas pretas e capuzes de bico
de pássaro. Dai a Hipócrates o que é de Hipócrates, e a Kardec o que é de
Kardec.
Sugestão de Leitura
- Vacina de Deus Contra a Lepra
A medicina medieval nos dias de hoje, ensinada por padre Paulo Ricardo.