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sábado, 9 de setembro de 2017

DEUS E O DIABO NA TERRA DE JÓ (JOB)


A TEOLOGIA DO SOFRIMENTO

JOB

JÓ TENTADO POR DEUS E PELO DIABO, NO FINAL A VITÓRIA DE JÓ


Desde que há homens e que eles pensam, idéias religiosas





Jó, quem o tentou?

A Onipotência em meio à tempestade contra o verme humano esmagado e rastejante

Salma Ferraz







Resumo: O presente artigo pretende discutir alguns aspectos do polêmico Livro de Jó, do Antigo Testamento: quem tentou realmente Jó? Quem foi tentado no Livro de Jó? Quem é o vencedor e quem é o perdedor no livro de Jó? Como Camões, Miguel Torga e Saramago vêem o drama do sofrimento de Jó?

* Profª Adjunta de Literatura Portuguesa no Departamento de Língua e Literaturas Vernáculas (DLLV) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Membro da Associa- ção Latino Americana de Literatura e Teologia (ALALITE); Coordenadora do Núcleo de Estudos Comparados entre Teologia e Literatura (Nutel), com sede na UFSC. E-mail: salmaferraz@gmail.com




1. Jó: a teologia do sofrimento O Livro de Jó é um dos livros mais sensivelmente filosóficos de todo o Antigo Testamento porque tenta responder a uma difícil pergunta: afinal, quem é o responsável pela existência do mal? Trata-se na realidade de uma espécie de big brother celestial. Deus provoca Satanás – o qual nesse livro é identificado como “um dos filhos de Deus” que frequentava o céu com muita intimidade e liberdade - para uma disputa, na qual os dois observariam tudo do camarote.

Jung, em Resposta a Jó (2001, p. 16), afirma que “Satanás talvez seja um dos olhos de Deus que perambula sem rumo certo pela terra”. Jó vai duas vezes para o paredão sem clemência alguma. Na primeira, Deus permite que Satanás tire tudo que ele tem: fazendas, filhos, servos, bens, e Jó vence o Diabo. Não satisfeito, Deus pela segunda vez o envia para a beira do abismo e permite que Satanás toque em sua carne, mas Jó não renega a Deus e triunfa novamente. A alma de Jó é oferecida numa bandeja para Satanás, há um pacto entre Deus e Satanás, e não seria exagero dizer que o mito de Fausto, muito antes de Marlowe, Shakespeare, Goethe, Tomas Mann, Paul Valéry, Guimarães Rosa, nasceu aqui, com uma diferença: Jó não sabia de pacto algum.

 Dezenas de livros e teses já foram escritas sobre Jó e a partir delas nos permitimos fazer algumas considerações. O Livro de Jó consiste em uma teologia do sofrimento, pois nele, pela primeira vez, o caráter e a justiça de Deus são questionados por um pobre mortal que sofre muito além de suas forças. Em verdade o confronto não se dá entre Satanás e Jó, mas sim entre Deus e Jó, uma vez que Satanás é apenas um instrumento para realizar a vontade de Deus. Aqui se acentua o caráter destrutivo de Javé.

Jó questiona a justiça divina e Deus não responde ao que ele pergunta, considera isso uma ousadia, sente-se embaraçado e o esmaga, mostrando não sua justiça, mas seu poder, com discurso arrasador. Se Deus era onisciente, por que provocou Satanás? Afinal, nem este pode ser tentado além do que pode resistir... Retomamos nossa ideia, anteriormente já exposta: essa aposta funda o pacto e o mito de Fausto, enfim, revela-nos um mundo regido por dois deuses orgulhosos, e a partir daí o caráter nada santo do Senhor Deus.

Com o desenvolvimento dos estudos comparados entre Teologia e Literatura, muito se tem escrito sobre Deus, Madalena e o Diabo como personagens literários, sem desconsiderar a importância destes 75 no campo da Teologia.

Jó não poderia ficar de fora.

Também sobre ele, um dos mais instigantes personagens da Bíblia, muito se tem escrito. Iniciemos nossas considerações com Jack Miles que, em seu livro Deus, uma Biografia, dedica o capítulo Confronto para tratar da epopeia de Jó.

Deus: o grande tentador e perdedor

Quando inicia seu livro, no qual faz uma leitura pós-crítica ou pós- moderna dos elementos míticos, ficcionais e históricos da Bíblia, Miles (1997, p. 17) já adverte: “É estranho dizer, mas Deus não é nenhum santo.” E é justamente isso que o autor tentará provar no capítulo dedicado a analisar o Livro de Jó.

Miles cita Frost, para quem Jó se emancipa de Deus, e Willian Safire, que denomina Jó de primeiro dissidente. Enumeraremos a seguir as várias teses defendidas por Miles acerca do livro de Jó (Miles, 1997, p. 341- 368):

1) O que se questiona fundamentalmente no livro não é questão do pacto, mas sim o verdadeiro caráter de Deus;

2) O livro do Jó constitui uma genuína teologia do sofrimento;

3) O livro revela o lado obscuro do caráter de Deus, o lado demoníaco, perverso e destrutivo de sua personalidade;

4)O embaraço de Deus diante do sofrimento e das perguntas de Jó;

5)A justiça distributiva de Deus (os bons são recompensados e os maus são punidos) não funciona para Jó;

6)Deus considera uma ousadia de Jó pedir satisfação das atitudes divinas, e por isto no meio do redemoinho se enfurece;

7) Se Gênesis revela o lado criador de Javé, o livro de Jó revela seu lado destruidor – portanto o caráter de Deus é ambivalente;

8) Deus é uma presa fácil para Satanás;

9) O discurso de Deus é ineficaz, já que Jó quer saber sobre a justiça divina e Deus responde mostrando sua força e poder;

10) É o Diabo que determina as ações de Deus, Deus não se arrepende explicitamente de suas atitudes, mas ao devolver em dobro os bens de Jó fica implícita uma certa (re)compensação e um certo arrependimento;

11) Na realidade Deus não vence a aposta, mas desiste dela.

Para Miles (1997, p. 346), “apostar faz parte do esporte, e o Senhor foi tentado a fazer uma aposta com o inimigo da humanidade [...] Para nós basta saber que o Senhor foi suscetível às sugestões de um ser celestial hostil ao ser humano.” Assim, conforme esse autor o grande tentado não é Jó, mas sim Deus e, o grande tentador não é Satanás, mas Deus. Deus se transforma em tentado e tentador. Deus se deixa tentar por Satanás, Deus cai em sua armadilha e passa a abusar de Jó. Para o crítico, provocado por um ser demoníaco o lado demoníaco do Senhor aflora de uma maneira espantosa e Deus se torna muito mais um adversário do homem que o próprio Satanás.

Não satisfeito com o tempo normal da partida, na qual Jó vence, Deus aceita a prorrogação. Deus cai na armadilha do Adversário duas vezes. Acrescentamos que talvez Deus fosse à decisão por pênaltis se necessário. Para Miles, O mundo em que ele (autor do livro de Jó) imagina Jó sofrendo é um mundo governado por um deus que faz apostas com o demônio, manipulado e controlado por um demônio.

O lado demoníaco do Senhor Deus, que nunca esteve ausente, tem, de repente, um aliado demoníaco. (Miles, 1997, p. 347). Miles alerta para o fato de que a tradição transformou o empate retórico entre Jó e Deus, numa desequilibrada vitória do Senhor, mas ressalta que esta vitória vem no pior momento, quando o Senhor é parceiro num jogo com o Diabo.

Para o crítico, esta vitória é uma derrota. Termina suas considerações afirmando que Jó é inocente e não tem do que se arrepender. Deus sim tem do que se arrepender, já que foi longe demais ao se deixar, por orgulho, tentar por Satanás e abusar da paciência de Jó. Jó queria o Deus justo e não o Deus trovejador. O silêncio de Jó condena Deus.

Miles afirma ainda que “[...] o diabo é personagem deste livro, personagem em cujas mãos o Senhor entregou o corpo de Jó, ao mesmo tempo entregando-se a si mesmo nas garras morais

Todos os negritos das citações são de autoria da articulista. do Diabo.” (Miles, 1997, p. 361).

O crítico termina esclarecendo que a inocência de Deus nunca mais será a mesma depois de Jó.  

O bingo celestial O escritor argentino Alejandro Maciel corrobora o pensamento de Miles em seu artigo, misto de crítica e ficção, intitulado Job, o la depravación de La Justicia (2007). Maciel afirma que em Jó a observação das leis divinas não lhe garantiu uma vida ditosa, pelo contrário, em seu caso, essa observação mais do que correta das leis funcionou como uma armadilha, já que justamente isto proporcionou uma aposta entre Deus e o Diabo.

A seguir apresentamos as principais colocações de Maciel:

1) É muito estranho que a criatura perversa entre tranquilamente nos céus e faça apostas, negocie com o Altíssimo;

2) Satanás é identificado com um dos filhos de Deus, e tinha franco acesso aos céus, este ambiente lhe era familiar;

3) Parece que a disputa no céu é eterna;

4) Deus e o Diabo jogam um jogo de azar, esclareça-se: de azar para Jó. (

Maciel, 2007. http://alebovino.blogspot.com) Citando Maciel, Pero de repente leemos el Livro de Job donde Satanás y Yaveh apuestan como se estubiesen em el bingo y no em um livro edificante. Si hay algo que se opone a la idea de ordem es la idéia de azar y para nuestra perplejidad en el cielo ordenado también cuenta el azar. (Maciel, 2007).

Para Maciel, se alguém leu Deus, este alguém foi Jó, e no livro deste a justiça divina é completamente depravada, pois Deus aceita jogar um jogo de azar com Satanás e Jó é o mais azarado de todos.

Maciel aponta ainda que “Se Cristo es Dios como afirmam los trinitaristas, la apuesta vuelve a repetirse en el desierto... A quién ofrece el poder temporal sobre la Tierra Don Satanás? A um hombre, abusando de su codicia desmesurada? A Dios, que ya lo tiene? Ignora que Cristo es Dios?...” (Maciel, 2008).

 Homens da face da terra. Alberto Cousté, em sua Biografia do Diabo (1996, p. 158) complementa as idéias de Maciel ao apontar que Jeová não aparece surpreso com a presença de Satanás, pelo contrário, constata uma extrema familiaridade entre os dois, companheiros de antigos e futuros tempos.

Aponta o papel explícito do Diabo como Coadjutor divino e que seu papel é muito mais importante do que a degradação que o Cristianismo operou sobre sua imagem.

Satã – um revisor de Deus A vida do italiano Giovanni Papini (1881 - 1956) nos revela a trajetória de um dos intelectuais mais polêmicos e contraditórios de seu tempo, tendo ele participado de diatribes de toda sorte, sido excomungado e tido dois livros no Index do Vaticano, e concluído seus dias, em 1956, como um católico devoto.

Foi jornalista, crítico, teólogo à sua maneira, poeta e novelista. Seu livro O Diabo foi tema de grandes discussões e controvérsias. Esse livro, publicado em 1953, apresenta na contracapa o subtítulo Apontamentos para uma futura Diabologia.

Em sua obra, Papini elabora uma espécie de Summa Diabológica. Entre tantas outras ideias polêmicas, defende o Anjo Fulminante, afirma que os cristãos nunca foram cristãos para com Lúcifer e que se o sacrifício de Jesus tivesse sido realmente suficiente, Lúcifer estaria perdoado.

Sobre o livro de Jó defende o que ele denomina de três verdades:

1) Deus, na Sua infinita misericórdia conservava uma paterna indulgência a Lúcifer;

2) Satã agia, num certo sentido, como inspector, revisor de Deus em meio dos homens e que Deus escutava benignamente os seus relatos, os seus juízos, as suas acusações55;

3) [...] o Senhor estava pronto, em determinados casos, a conceder a Satã poderes iguais aos seus: tudo o que é possível está em teu poder.

É um privilégio enorme, que o Pai concedeu só ao Filho quanto este encarnou na Terra. (Papini, 1953, p. 80-81). No meio de seu livro, Papini afirma ainda que o Diabo é uma espécie de Anti-Deus, e se Deus se define como Eu sou o que sou, o Diabo deveria definir-se como Eu sou o que não sou.
Eu sou o nada que sou.

 (Papini, 1953, p. 86-87). 5. Jung e sua Resposta a Jó: a onipotência contra o verme humano semi-esmagado Não poderíamos passar por Jó sem analisar Carl Gustav Jung e sua Resposta a Jó (2001). Já na introdução o autor adverte que o Livro de Jó pode reduzir o leitor a pedaços, alerta para o caráter inefável, transcendente e metafísico da Fé, do Numinoso, do mistério tremendo, e que estes fundamentos emocionais são inacessíveis à razão crítica.

Esclarece que analisa Jó do ponto de vista de um médico que perscruta as profundezas da alma humana, portanto analisa o enredo subjetiva e emocionalmente. Elencamos a seguir suas principais teses sobre Jó:

1) Deus, colérico e ciumento, mostra-se excessivo em suas emoções, portanto amoral e selvagem;

2) Jó é aniquilado e transforma-se não mais num homem, mas num verme rastejante;

3) O Deus de Jó não se preocupa com julgamentos morais, possui os atributos do bem e do mal, parece mais um Deus grego do que hebraico, e está preocupado com poder e não com justiça;

4) Deus em Jó não gosta de críticas;

5) Javé cede às tentações de Satanás com espantosa facilidade, deixa-se aliciar por Satanás, mostrando-se inseguro em relação à fidelidade de Jó;

6) São completamente obscuros os reais motivos que levaram Deus a fazer uma aposta com o Satanás;

7) O estreito parentesco existente de Deus e do Diabo;

8) Deus dependendo da opinião de um mísero vaso de terra: o humano Jó;

9) A batalha é monstruosamente desproporcional: a onipotência em meio à tempestade contra o verme humano esmagado e rastejante;

10) Jó foi submetido a um ato de violência sobrehumana;

11) Ao final do episódio Jó passa a conhecer Deus  mais do que Deus;

12) Jó é um espelho cruel para Deus;

13) Não é Satanás quem perde a aposta, não é Deus quem vence, é Jó quem derrota Deus;

14) Deus precisa da opinião de Jó sobre ele, precisa que Jó reconheça seu poder, e esta importância dada a Jó o transforma quase num deus, pois Jó é elevado à condição de juiz da divindade;

15) Deus, ao humilhar Jó, o exalta, e Jó, ao exaltar Deus, o humilha. (Jung, 2001)

Pó e cinza contra um Deus cósmico Moshe Greenberg, no capítulo intitulado Jó, do livro Guia Literário da Bíblia (1997) afirma que Jó, ao mesmo tempo paciente e impaciente, é o porta-voz de todos os desgraçados da terra. Primeiramente analisa Jó do ponto de vista estrutural: a narrativa poética, a prosa e a poesia, o monólogo interior, os diálogos, a ironia e o sarcasmo dos discursos de Jó.

Depois parte para a análise da temática do livro, e explora as seguintes questões:

1) Os sofrimentos de Jó resultam de uma aposta e ele não entende por que está sofrendo;

2) A completa falha da chamada justiça distributiva de Deus, já que aqui os bons não são recompensados, pelo contrário, sofrem além do humanamente possível;

3) A linguagem é carregada de termos jurídicos e parece que Jó, Deus e Satanás se encontram num tribunal;

4) A assombrosa e desnecessária exibição de força por parte de Deus;

5) Os amigos de Jó são rabugentos, querem que ele peça perdão a Deus, e isto multiplica os sofrimentos de Jó;

6) O sarcasmo, a cólera, a lamentação e o desespero se alternam e se mesclam no discurso de Jó;

7) Jó reivindica a justiça divina e Deus mostra-lhe sua força;

8) Deus caprichosamente molesta Jó;

9) Jó sofre tanto que se transforma num bipolar, seus discursos vão da euforia extrema ao clímax da depressão;

10) Em seus imensos solilóquios, Jó quer saber onde está a sabedoria divina e não obtém resposta;

11) Ocorre no livro de Jó uma aliança às avessas, é o homem acusando Deus e não mais Deus acusando Israel;

12) Jó quer que o litigante Deus apresente uma nota de acusação contra ele;

13) Quando Deus fala, se defende;

14) No discurso de Deus, diferentemente do que aparece em Gênesis, o homem é um mero detalhe da criação, apenas uma criatura em meio a tantas outras, e ao fazer isto o autor do livro rejeita o caráter antropocêntrico do restante do Velho Testamento;

15) Em seu discurso Deus aponta a impotência, a ignorância de Jó, que como um verme não pode questionar Deus nem o caráter exótico de toda criação;

16) O que fica claro no discurso divino é que nenhum homem pode entender Deus, já que ele é inescrutável (Greenberg, 1997, p. 305-326). Greenberg termina sua análise afirmando que Jó é pó e cinza, e Deus é cósmico, inescrutável e imperscrutável.

Jó na Literatura Portuguesa:

 Camões, Miguel Torga e Saramago O primeiro poeta português a mencionar Jó em seus poemas foi o grande vate Camões (1520-1580), escritor de Os Lusíadas e de centenas de sonetos, além de vasta obra teatral. Mantendo constante diálogo com a Bíblia em vários de seus sonetos, reapropriou-se da matéria bíblica, quer fosse parodiando, quer fosse dando uma nova luz ao episódio bíblico e, assim, Camões não poderia ter deixado Jó de fora de sua lírica, conforme podemos observar no soneto a seguir, tipo de poema com forma fixa que se caracteriza pela extrema concisão:

O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao Mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.
A luz lhe falte, o Sol se [lhe] escureça,
Mostre o Mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.
As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao Mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!

(Camões, 1980, p. 84) Camões cita textualmente, no primeiro verso do Soneto, a primeira frase do discurso bíblico de Jó, capítulo 3, versículo 3: Pereça o dia em que nasci. A respeito dessa intertextualidade, Vitor M. Aguiar e Silva, em sua obra Maneirismo e Barroco na poesia Lírica Portuguesa (1971, p. 275), afirma que “nenhum poeta, porém, logrou exprimir como Camões os paradoxos da dor que explode em gritos, a angústia de uma existência despedaçada, a melancolia de um viver sem lume de esperança.

” E quem mais Camões poderia tomar como exemplo de dor e angústia do que Jó? O soneto sintetiza o discurso desesperado daquele que teve a vida mais desgraçada que jamais se viu.

Miguel Torga57 (1907-1995), pseudônimo de Adolfo Correia Rocha, foi um dos grandes escritores portugueses do século XX. Estudou em seminário, tinha familiaridade com os textos bíblicos e acabou se formando em medicina. Colaborou na Revista Presença, que agregava.

 Apresenta 14 versos, sendo 2 estrofes de quatro versos (quartetos) e 2 estrofes de 3 versos (tercetos). Esta é a forma do soneto italiano/petrarquiano. Adolfo Correia Rocha autodefine-se pelo pseudônimo que criou, “Miguel” e “Torga”. Miguel, em homenagem a dois grandes vultos da cultura ibérica: Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno. Já Torga é a designação nortenha da urze, planta brava da montanha, que deita raízes fortes sob a aridez da rocha, de flor branca, arroxeada ou cor de vinho. Em torno de si escritores modernistas de Portugal, depois rompeu com os modernistas, e foi preso várias vezes por suas ideias políticas.

De sua imensa obra de caráter humanista nos interessa O outro livro de Jó, publicado em 1936. Os capítulos se dividem em Lamentações: Primeira Lamentação, Segunda Lamentação etc. Torga concede a Jó o direito se lamentar, sem ter que dialogar ou replicar com ninguém, conforme podemos observar nestes trechos da segunda e terceira lamentações:

Segunda Lamentação (...)
Por tão pouco Mudaste o saibo de Pão e a cor do Vinho E cobriste o meu caminho De tojos e de sombras de pavor! (...) Por tão pouco Dos bens que tinha nem um só deixaste, nem um só!... Por tão pouco Com tua ordem e por teu orgulho, tocou-me Satanás com sua mão; e diante de ti as chagas supuraram, e as moscas me devoraram, e os meus gritos te chamaram em vão!... (...) Por tão pouco Sai de minhas cinzas o que sou: O Homem do Bem e do Mal Que nunca pôde valer Ao esqueleto descarnado Que está no chão desenhado A apodrecer...

Terceira Lamentação Injustamente, Senhor, injustamente A fúria do teu açoite Me corta pela raiz...  (...) Eu ainda não era o Homem, e tu já eras o Deus... (...) Não tenho culpa de a Obra Cair, por causa da Cobra Das tuas mãos sem firmeza Interessante também observarmos que O outro livro de Jó termina com um poema denominado Mensagem: Agora, que eu dei provas de humildade cantando o teu corpo velho, agora, que te beijei, que me despi no teu quarto, agora não ouças a minha voz porque não falo contigo... (Torga, 1958, p. 29-37):

Humanista radical, Torga defende o homem como criação máxima da natureza. Para Torga os deuses são indignos de qualquer louvor, se há algum deus que merece ser engrandecido esse deus é o homem: [...] hinos aos deuses, não os homens é que merecem que se lhes cante a virtude bichos que cavam no chão actuam como parecem sem um disfarce que os mude.

Saramago, em seu Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) faz, além da revisão dos Evangelhos, uma releitura profana e carnavalizadora de diversos episódios do Antigo Testamento. Sobre Jó, na mesma direção dos escritores Camões e Miguel Torga, dos críticos Miles e Maciel, o autor ironicamente revê a trajetória do miserável leproso: [...] ou o Senhor já teria mandado castigo, sem pau nem pedra, como é seu costume, haja vista o caso de Job, arruinado, leproso, e mais sempre havia sido varão íntegro e recto, temente a Deus, a sua pouca sorte foi ter-se tornado em involuntário objecto de uma disputa entre Satanás e o mesmo Deus, cada qual agarrado às suas idéias e prerrogativas.

E depois admiram-se que um homem desespere e grite, Pereça o dia em que nasci e a noite em que fui concebido, converta-se ele em trevas, não seja mencionado entre os dias do ano nem se conte entre os meses, e que a noite seja estéril e não se ouça nela nenhum grito de alegria, é verdade que a Job o compensou Deus restituindo-lhe em dobro o que em singelo lhe tirara, mas aos outros homens, aqueles em nome de quem nunca se escreveu nenhum livro, tudo é tirar e não dar, prometer e não cumprir. (Saramago, 1991, p. 133-134, negrito nosso).

Observamos que o discurso do narrador saramaguiano cita textualmente o discurso bíblico de Jó 3:3. Parece que os inescrutáveis desígnios de Deus apontados pelos teólogos não foram bem entendidos nem pelos críticos até aqui citados, nem pelos autores de literatura portuguesa: Camões, Torga e Saramago.

Por tão pouco O imenso discurso de Deus de nada serve. O silêncio de Jó é o silêncio dos vencedores e o silêncio de Deus é o silêncio dos perdedores. A partir de então Deus não fala mais no restante do Antigo Testamento. E a pergunta “Mas onde se achará a sabedoria?” formulada em Jó 28:12 continua sem resposta. Como pode ser o livro de Jó um livro que contém sapientia?

No meio da Bíblia tinha uma pedra, tinha o Livro de Jó. No meio do caminho de Jó ele topou com uma pedra, ou melhor, uma montanha cósmica: Deus. Se até antes do Livro de Jó o homem buscava Deus nas montanhas, nesse livro Deus desce a terra no meio do redemoinho para buscar o homem. Mas, no meio do caminho de Deus, também tinha uma montanha: Jó.

Apesar de todo o discurso defensivo de Deus no meio do redemoinho, ao final permanece um silêncio inquietador: o silêncio de Deus, o silêncio de Jó, o silêncio de todos nós... O livro de Jó revela um sedutor e perigoso jogo, um jogo labiríntico de espelhos e sombras.

Quem afinal espelha quem? A pergunta sobre quem é responsável pelo mal continua, continua sem resposta, não sabemos quem é espelho e quem é sombra...


Referências
AGUIAR E SILVA, Vitor M. Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa. Coimbra: Centro de Estudos Românicos, 1971. ALTER, Robert; KERMOND, Frank. Jó. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. In: Guia Literário da Bíblia. São Paulo: UNESP, 1997. CAMÕES. Lírica, Redondilhas e Sonetos. Introd. Geir Campos. Rio de Janeiro: Ediouro, 1980. COUSTÉ, Alberto. Biografia do Diabo: O Diabo como a sombra de Deus na História. Trad. Luca Albuquerque. Rio de Janeiro: Record; Rosa dos Tempos, 1996. GREENBERG, Moshe. Jó. In: Guia Literário da Bíblia. São Paulo: UNESP, 1997. JUNG, C. G. Resposta a Jó. Trad. Pe. Dom Matheus Ramalho Rocha. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2001. MACIEL, Alejandro. Job o la depravación de la justicia. Disponível em: . Acesso em 02 jun. 2008. MILES, Jack. Confronto. In: Deus: Uma biografia. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. NEGRI, Antonio. Jó, a força de um escravo. Trad. Eliana Aguiar. São Paulo: Record, 2007. PAPINI, Giovanni. O Diabo: apontamentos para uma futura Diabologia. Trad. Fernando Amado. Lisboa: Livros do Brasil, 1953. QUEIROZ, Júlio de. O Preço da Madrugada. Florianópolis: Insular, 2007. SARAMAGO, José. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. São Paulo: 89 Companhia das Letras, 1991. SOUSA, Fewrimar Dantas. O Livro de Jó na poética de Hilda Hilst e Adélia Prado. Disponível em: . Acesso em 02 jun. 2008. TORGA, Miguel. O Outro livro de Job. 4ª ed. Coimbra: 1958.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

O que Substituiria a Bíblia como um Guia Moral?

Robert Ingersoll


 
Perguntam-me o que “substitui a Bíblia como guia moral”. 


Sei que muitas pessoas têm a Bíblia como o único guia moral e acreditam que somente nesse livro se encontra o verdadeiro e perfeito padrão de moralidade. 


Existem muitos preceitos bons, muitos provérbios sábios e muitas regras e leis excelentes na Bíblia — mas estão misturados com preceitos péssimos, provérbios tolos, regras absurdas e leis cruéis. 


Porém, temos de nos lembrar que a Bíblia é uma coleção de muitos livros escritos durante séculos, e que representa e conta, em parte, o desenvolvimento e a história de um povo. Precisamos nos lembrar também que seus escritores tratam de uma ampla variedade de assuntos. Muitos desses escritores não têm nada a declarar sobre o certo e o errado, sobre o vício e a virtude. 


O livro do Gênesis não contém nada sobre moralidade. Não há nele nenhuma linha calculada para iluminar o campo de nossa conduta. Ninguém pode chamar este livro de um guia moral. Ele constitui-se de mitos e milagres, de tradição e lenda. 


No livro do Êxodo encontramos uma explicação de como Jeová libertou os judeus da escravidão dos egípcios. 


Nós atualmente sabemos que os judeus jamais foram escravizados pelos egípcios, que a história toda é uma ficção. Nós sabemos disso porque não há no hebraico qualquer palavra de origem egípcia, e não foi encontrada na língua egípcia qualquer vocábulo de origem hebraica. Assim sendo, inferimos que os hebreus e os egípcios não poderiam ter convivido durante séculos. 


Certamente o livro do Êxodo não foi escrito para ensinar moralidade. Neste livro é impossível encontrar qualquer palavra contra a escravidão humana. De fato, Jeová era conivente a esta instituição. 


A matança do gado com peste e granizo, o assassinato dos primogênitos — de modo que em todos os lares houve morte porque o rei recusou-se a deixar os hebreus partirem — certamente não foi algo moralmente correto: foi algo demoníaco. O autor deste livro considerava todo o povo do Egito — suas crianças, suas manadas e seus rebanhos — como propriedades do Faraó. Esse povo e esse gado foram mortos, não porque fizeram algo de errado, mas simplesmente com o objetivo de punir o rei. É possível extrairmos alguma lição moral desta história? 


Todas as leis encontradas no Êxodo — incluindo os Dez Mandamentos —, que estão tão longe do que é realmente bom e sensato, estavam naquele tempo sendo impostas à força a todos os povos do mundo. 


O assassinato é, e sempre foi, um crime, e sempre o será enquanto a maioria da população negar-se a ser assassinada. 


A diligência sempre foi e sempre será a inimiga do latrocínio. 


A natureza do homem é tal que ele admira aquele que diz a verdade e despreza o mentiroso. Entre todas as tribos, entre todos os povos, o “dizer a verdade” tem sido considerado uma virtude, e um juramento ou pronunciamento falsos, um vício. 


O amor dos pais pelos filhos é natural, e este amor pode ser encontrado entre todos os animais vivem. Deste modo, o amor dos pais pelos filhos é natural — não foi e não pode ser criado por lei. O amor não surge do senso de dever e tampouco floresce curvado em obediência a comandos. 


Assim, neste sentido, os homens e as mulheres não são virtuosos por causa de algum livro ou de alguma crença. 


De todos os Dez Mandamentos, os que eram bons eram antigos, eram resultado da experiência. Os mandamentos originais de Jeová eram tolos. 


A adoração “qualquer outro Deus” não poderia ter sido pior do que a adoração de Jeová, e nada poderia ser mais absurdo do que a santidade do Sabá. 


Se os mandamentos concedidos fossem contra a escravidão e a poligamia, contra guerras de invasão e extermínio, contra a perseguição religiosa sob todas as formas, de modo que o mundo pudesse ser livre, de modo que a mente pudesse ser desenvolvida e o coração civilizado, então poderíamos, com propriedade, chamar tais mandamentos de um “guia moral”. 


Antes de podermos dizer que os Dez Mandamentos constituem realmente um guia moral, devemos adicionar e subtrair alguns deles — devemos jogar alguns fora e escrever outros em seus lugares. 


Os mandamentos que possuem alguma aplicação conhecida aqui, neste mundo, que tratam de compromissos humanos, são sábios; os outros não se fundamentam em fatos ou experiências. 


Muitos dos regulamentos encontrados no Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio são bons. Entretanto, muitos são absurdos e cruéis. 


As cerimônias de adoração são completamente insanas. 


A maior parte das punições prescritas para violações de leis são irracionais e brutais. O fato é que o Pentateuco justifica praticamente todos os crimes, e chamá-lo de um guia moral é tão absurdo quanto dizer que ele é misericordioso ou verdadeiro. 


Nenhuma moral natural pode ser encontrada em Josué ou em Juízes. Estes livros estão repletos de crimes — com massacres e assassinatos. Em boa parte, são como a história real dos índios Apache. 


A história de Rute não é particularmente moral. 


Em Samuel I e II não há uma palavra calculada para desenvolver o cérebro ou a consciência. 


Jeová matou setenta mil judeus porque Davi fez um censo do povo. David, segundo o relato, era o único culpado, porém somente inocentes foram mortos. 


Em Reis I e II não pode ser encontrada qualquer coisa de valor ético. Todos os reis que se recusaram a obedecer aos sacerdotes foram denunciados, e todos os vilões coroados que ajudaram os sacerdotes foram declarados como os favoritos de Jeová. Nestes livros não se pode encontrar uma única palavra em favor da liberdade. 


Há alguns Salmos bons e alguns infames. A maioria dos Salmos é egoísta. Muitos deles são apelos passionais à vingança. 


A história de Jó choca o coração de qualquer homem de boa índole. Neste livro há alguma poesia, algum sentimento e alguma filosofia, mas a história deste drama chamado Jó é desalmada ao mais alto grau. As crianças de Jó foram assassinadas devido a uma pequena aposta entre Deus e o Diabo. Posteriormente, tendo Jó permanecido firme, outras crianças foram colocadas no lugar das assassinadas. Todavia, nada foi feito pelas crianças que foram assassinadas. 


O livro de Éster é completamente absurdo, e a única coisa boa nele é o fato de que o nome de Jeová não é mencionado. 


Aprecio o Cântico dos Cânticos porque fala sobre o amor humano, e isso é algo que posso compreender. A meu ver, este livro é melhor que todos aqueles que o precedem e, de longe, é um guia moral superior. 


Há alguns provérbios sábios e compassivos. Alguns são egoístas e outros são superficiais e triviais. 


Gosto do livro de Eclesiastes porque lá podemos encontrar alguma sensatez, alguma poesia e alguma filosofia. Excetuando-se as interpolações, trata-se de um bom livro. 


Obviamente, não há nada em Neemias ou Esdras para tornar o homem melhor; não há nada em Jeremias ou em Lamentações cujo objetivo é atenuar vícios, e somente poucas passagens de Isaías podem ser utilizadas em prol boas causas. 


Em Ezequiel e Daniel encontramos somente delírios de insanos. 


Em alguns dos profetas menores, aqui e acolá encontramos um bom verso, aqui e acolá um pensamento elevado. 


Podemos, através de uma seleção de trechos de diferentes livros, obter uma crença excelente. Entretanto, através de uma seleção de trechos de outros livros, podemos obter uma péssima crença. 


O problema é que o espírito do Velho Testamento — sua disposição, seu temperamento — é maldoso, egoísta e cruel. As coisas mais atrozes comandadas, recomendadas e aplaudidas. 


As estórias contadas de José, de Eliseu, de Daniel e de Gideão — e de muitos outros — são hediondas, diabólicas. 


Na sua íntegra, o Antigo Testamento não pode ser considerado um guia moral. 


Jeová não foi um Deus moral. Ele possuía todos os vícios e carecia de todas as virtudes. Ele geralmente executava suas ameaças, mas nunca cumpriu fielmente uma promessa. 


Ao mesmo tempo, devemos ter em mente que o Antigo Testamento é uma produção natural, que foi escrito por selvagens que estavam caminhando, lentamente, em direção à civilização. Devemos dar-lhes crédito pelas coisas nobres que disseram e devemos ser compreensivos o suficiente para desculpá-los por suas faltas, e mesmo pelos seus crimes. 


Sei que muitos cristãos consideram o Velho Testamento como o “alicerce” e o Novo como a “superestrutura”. Por outro lado, muitos admitem que há falhas e erros no Antigo Testamento, mas insistem que o Novo Testamento é uma flor, um fruto perfeito. 


Admito que há muitas coisas boas no Novo Testamento e, se retirarmos deste livro os dogmas da dor eterna, da vingança infinita, da expiação, do sacrifício humano, da necessidade de derramamento de sangue; se colocarmos de lado a doutrina da não-resistência — de amarmos os inimigos —, se colocarmos de lado a ideia de que a prosperidade é consequência da perversão, que a miséria é uma preparação para o Paraíso. Enfim, se deixarmos isso tudo para trás e selecionarmos apenas as passagens sensatas e bondosas, que são aplicáveis à nossa conduta, então poderíamos construir um guia moral razoavelmente bom — estreito e limitado, mas moral. 


Neste caso, evidentemente, muitas coisas importantes ficariam de fora. Não haveria qualquer coisa quanto aos direitos humanos, nada em favor da família, nenhuma palavra sobre a educação, nada em favor do espírito investigativo, do pensamento e da razão — mas, ainda assim, teríamos um guia moral razoável. 


Por outro lado, se selecionarmos apenas as passagens tolas — as mais extremas —, então poder-se-ia construir uma doutrina capaz satisfazer um manicômio inteiro. 


Se pegarmos as passagens cruéis, os versos que inculcam o ódio eterno, os versos que rastejam e sibilam como serpentes, então poder-se-ia construir um doutrina que chocaria até o coração de uma hiena. 


Talvez nenhum livro contenha passagens melhores que as do Novo Testamento — mas certamente nenhum livro contém piores. 


Sob o desabrochar da flor do amor encontra-se o aguilhão do ódio; nos lábios que beijam encontra-se o veneno da serpente. 


A Bíblia não é um guia moral. 


Qualquer homem que seguir fielmente todos os seus ensinamentos é um inimigo da sociedade — e provavelmente irá terminar seus dias numa prisão ou num manicômio. 


Que é moralidade? 


Neste mundo, precisamos de certas coisas. Possuímos muitos desejos. Somos expostos a muitos perigos. Precisamos de alimento, combustível, vestimentas e abrigo; além desses desejos, há o que poderíamos denominar nossa “fome mental”. 


Somos seres condicionados e, por isso, nossa felicidade depende de condições. Há coisas que reduzem e há coisas que aumentam nosso bem-estar. Há certas coisas que o destroem e outras que o preservam. 


A felicidade — também em suas formas mais elevadas — é, em última instância, a única coisa boa. Portanto, todas as coisas cujo objetivo é produzir ou assegurar a felicidade são boas, ou seja, morais. Tudo que destrói ou diminui o bem-estar é ruim, ou seja, imoral. Em suma, tudo que é bom é moral, tudo que é ruim é imoral. 


Então o que é — ou poderia ser denominado — um guia moral? A resposta mais curta possível consiste de apenas uma palavra: inteligência.


Queremos a experiência da humanidade, a verdadeira história de nossa raça. Queremos a história do desenvolvimento intelectual, do fortalecimento da ética, da ideia de justiça, da consciência, da caridade, do altruísmo. Almejamos conhecer as estradas e os caminhos que foram percorridos pela mente humana. 


Esses fatos em geral, o esboço dessas histórias, os resultados obtidos, as conclusões alcançadas, os princípios envolvidos — tudo isso, tomado em conjunto, consistiria no melhor guia moral concebível. 


Não podemos nos apoiar nos assim chamados “livros inspirados” ou nas religiões do mundo. Estas religiões são fundamentadas no sobrenatural e, de acordo com elas, estamos obrigados a adorar e a obedecer algum ser ou seres sobrenaturais. Todas essas religiões são incompatíveis com a liberdade intelectual. São inimigas do pensamento, da investigação, da honestidade intelectual. Elas despojam do homem sua própria humanidade. Prometem recompensas eternas para a crença, para credulidade — para aquilo que denominam “fé”. 


Essas religiões ensinam virtudes que escravizam. Transformam coisas inanimadas em coisas sagradas e falsidades em dogmas sacrossantos. Criam crimes artificiais: comer carne na sexta-feira, divertir-se aos sábados, comer nos dias de jejum, ser feliz na Quaresma, debater com um sacerdote, buscar evidências, rejeitar uma crença, expressar seu pensamento honestamente — todos esses atos são pecados, são crimes contra algum deus. Emitir sua opinião sincera sobre Jeová, Maomé ou Cristo é muito pior do que caluniar maliciosamente seu próximo. Questionar ou duvidar de milagres é muito pior do que rejeitar fatos conhecidos. 


Somente os obedientes, os crédulos, os bajuladores, os ajoelhadores, os submissos, os que não questionam — os verdadeiros crentes —, são considerados morais, virtuosos. Não basta ser honesto, generoso e prestativo; não basta seguir as evidências, os fatos. Além disso, é necessário crer. Essas doutrinas são inimigas da moralidade, elas subvertem todas as concepções naturais de virtude. 


Todos os “livros inspirados”, ensinando que os mandamentos sobrenaturais são corretos — corretos porque foram ordenados —, ensinando que aquilo que o sobrenatural proíbe é errado — errado porque foi proibido —, são absurdamente antifilosóficos. 


E todos os “livros inspirados”, ensinando que somente aqueles que obedecem aos mandamentos sobrenaturais são — ou podem ser — verdadeiramente virtuosos, e que uma fé inquestionada será recompensada com a eterna bem-aventurança, são grosseiramente imorais. 


Declaro novamente: a inteligência é o único guia moral.