Por Vinícius
Barros Leal, médico e historiador. Publicado na Revista
do Instituto do Ceará - ANNO LXXXIX - 1975
Através dos registros de casamentos e batizados pude identificar a
vinda para Aquiráz, de uma filha do casal mais inexoravelmente atormentado
pelos “familiares” inquisitoriais. Charmava-se Josefa Maria dos Reis. Nome
disfarçado de uma Fonsêca Rêgo, cristã nova pelos 4 costados.
Era filha de Manuel Henriques Fonsêca e de Joana Rêgo. Vale a pena
contar a história deste casal. No “Auto de Fé” de 17 de junho de 1731, em
Lisboa, aparece o pai de Josefa qualificando-se como cristão novo, de 53 anos
de idade, lavrador de canas, natural do Engenho Inhobim e morador no Riacho do
Meio, distrito da cidade da Paraíba, no Bispado de Pernambuco. (Rev. Inst.
Hist. Bras. Tomo 7 (1845)).
Foi comprovada a sua culpa; judaizava. Foi condenado a cárcere e hábito
perpétuo. E também perda de todos os seus bens. (Os marranos brasileiros, Isaac
Izeckson, 195). É provavel que jamais tenha voltado ao Brasil. Sua mulher,
Joana do Rêgo o acompanhou no infortúnio. Presa na Paraíba, foi levada para
Lisboa, figurando no mesmo Auto de Fé. Também natural da Paraíba, jamais voltou
a sua terra. Hábito e cárcere perpétuo. Este hábito significava que pelo resto
da vida teria que usar um “sambenito”, isto é, uma espécie de avental amarelo
com a estrela de David na frente.
O aparecimento em público de uma
pessoa com este vestuário era motivo para escárnio e manifestações de insultos
e, às vezes de violência por parte da multidão enfurecida, sobretudo, após uma
simples manifestação das forças da natureza, como tufões, sismos, etc. A eles
era atribuída a fúria divina.
Pois, deste casal, era filha Josefa, que
casou em Aquiráz a 22 de novembro de 1735. Ofereceu ao Padre ou sacristão que
documentou o sacramento, a sua filiação e naturalidade. Devia estar muito
segura de sí. Segurança que poderia ser motivada por sua total adesão a Fé
católica ou por gozar de proteção especial de parentes influentes na nova terra
de sua adoção. Os pais são dados como já falecidos.
O noivo Antônio de Freitas Coutinho, natural de Sergipe d’El Rey, é
fllho de Pedro de Freitas Faleiro e Margarida de Brito Coutinho. Este último
apelido é tipicamente judeu. E os Fonsêca Rêgo tinham já outras ligações com
esta família de cristãos novos. Os padrinhos foram o Tenente Cel. José Correia
Peralta e o Sarg.-mor Manuel de Brito. Presumo ser este o protetor de Josefa.
Os Britos do Ceará eram cristãos novos. Em documentos antigos eles são taxados
de mouros, mas, isto é apenas uma incompreensão muito corrente na época, em que
não se distinguia o árabe do judeu; ambos eram inimigos da fé.
Pois, deste casal, era filha Josefa, que casou em Aquiráz a 22 de
novembro de 1735. Ofereceu ao Padre ou sacristão que documentou o sacramento, a
sua filiação e naturalidade. Devia estar muito segura de sí. Segurança que poderia
ser motivada por sua total adesão a Fé católica ou por gozar de proteção
especial de parentes influentes na nova terra de sua adoção. Os pais são dados
como já falecidos. O noivo Antônio de Freitas Coutinho, natural de Sergipe d’El
Rey, é fllho de Pedro de Freitas Faleiro e Margarida de Brito Coutinho. Este
último apelido é tipicamente judeu. E os Fonsêca Rêgo tinham já outras ligações
com esta família de cristãos novos.
O primeiro aparecimento do nome de Josefa em documento eclesiástico foi
em Aquiráz, a 20 de julho de 1734, quando ela foi madrinha de um escravo de
Manuel de Brito. O casal não teve filhos; apenas adotou uma criança chamada
Joaquim, que teve por padrinho Luis Ribeiro Monção. Antônio de Freitas Coutinho
teve vida ativa, sobretudo após 1746 quando passou a figurar na lista dos
ocupantes de cargos públicos: alcaide, carcereiro e, mais demoradamente,
“tesoureiro do cofre dos órfãos”. Nesta função, sucedeu ao protetor Manuel de
Brito.
Num certo período ele desaparece
da cena pública. Coincide isto, com a nomeação para governador do Ceará de
Francisco da Costa. Costa era sobrinho de Antônio Borges da
Fonsêca, familiar do Santo Ofício que teve grande atuacão na Paraíba na
repressão ao surto de judaismo alí ocorrido no segundo decênio do século XVIII.
Foi este “familiar”, que verificou e ordenou as prisões dos hereges. A queixa
está bem explícita nas declarações de Antônio da Fonsêca Rêgo.
Na Revista de História n. 98, pág. 359,
em documentado trabalho de Anita Novinsky, podemos verificar que Antônio tinha
na época de sua prisão, na Paraíba, 47 anos, isto é em 22 de novembro de 1729.
Era lavrador de canas, não possuia bens de raíz, mas arrendava terras a
Baltazar da Rocha e a João Peixoto.
No inventário feito na ocasião, declarou possuir diversos bens móveis,
animais, escravos, jóias etc. Lamenta-se também da violência cometida pelos
policiais que a mando de Antônio Borges da
Fonsêca o prenderam. Quebraram toda a louça de barro de seu uso.
Tinha credores diversos e um
deles, Francisco Barbosa de Menezes, talvez fosse o deste mesmo nome residente
na época, em Aracati, e tronco da família Bezerra de Menezes naquela região.
Entre as seus sobrinhos citados,
está o nome de Miguel Henriques, que faz lembrar a seu homônimo. Miguel
Henriques Fonsêca que teve, em Portugal, em 1682, um trágico fim: foi queimado
vivo, “ouvindo o crepitar das próprias carnes e os uivos do populacho que o
apedrejava” (Lucio de Azevedo, História dos cristãos novos portugueses, 323).
Miguel, que era advogado, não abjurou de sua fé tradicional e arraigada.
Antes de ir para a fogueira,
entregou ao juiz uma declaração afirmando que voltaria, daí por diante, a
assinar o seu nome na maneira hebráica original, isto é: Misael Hisneque de
Fungoça. Aí a origem do apelido dessa família.
Voltando ao casal pai de Josefa. Tiveram
outros filhos. Três deles, pelo menos, tiveram contas a ajustar com a
lnquisição: José da Fonsêca Rêgo, Dionísia da Fonsêca e Izabel da Fonsêca Rêgo.
Estes 3 irmãos de Josefa estavam
presentes no Auto de Fé de Lisboa realizado a 6 de julho de 1732. Certamente, a
prisão havia ocorrido 2 ou 3 anos antes, motivada por denúncias dos próprios
pais e de mais uma outra testemunha. Era condição exigida pelos inquisidores:
duas testemunhas, duas denúncias. José, tinha 31 anos, era solteiro e já vivia
muito dentro do sertão, nas Piranhas, próximo às lindes com o Ceará. Izabel, de
26 anos, já era viúva de Antônio Nunes e Dionísia, a mais convicta na religião
de Moisés, tinha apenas 24.
Muitos outros parentes estavam também em Lisboa, presos e passando
pelas maiores agruras, na incerteza de seus destinos. Neste Auto, somaram 17,
todos da cidade da Paraíba. José morreu no cárcere e suas duas irmãs foram
condenadas a cárcere e hábito perpétuo, tal como seus pais. Dionísia foi
renitente. Mesmo nas garras do Santo Ofício, continuou a judaizar, voltando ao
banco de réus no auto de Fé de 18 de outubro de 1739 e mais uma vez condenada a
prisão perpétua e sambenito. E estranhável ter escapado da fogueira num Auto
onde foi condenado a esta pena, por renitência um seu contraparente, o célebre Antônio José da Silva,
filho de Lourença Coutinho.
Em que consistiam estes delitos tão graves que levavam estes infelizes
a sacrificarem suas vidas, tendo uma morte infame e, muito pior ainda, muitas
vezes, aqueles que não eram queimados e deveriam suportar pelo resto da
existência as masmorras infectas, os trabalhos forçados, o degrêdo para terras
inóspitas? Unicamente a fato de judaizarem; isto é, de, no recôndito de seus
lares, praticarem cerimônias rituais milenares, jejuando nos grandes dias,
deixando de trabalhar aos sábados, ou, algumas vezes, por um descuido, fazendo
transparecer opiniões pessoais a respeito do conceito em que tinham os
sacramentos ou atos da Religião oficial.
Ainda hoje perduram, sem que
ninguém se aperceba disto, no nosso dia a dia, hábitos e costumes que no
passado eram vedados aos católicos. Por exemplo, o resguardo de 40 dias é
prática tipicamente israelita: certos cuidados com os cadáveres antes do
sepultamento, a troca de roupas limpas nos sábados, a uso da lamparina, tão
comum no interior.
Vinicius Barros Leal, médico e historiador cearense, nos revela - Muito
esmiuçado pelos inquisitores eram os hábitos alimentares. A maneira de tratar a
carne e a escolha desta ainda perduram em muitas famílias. É claro, que
atualmente estas pessoas são incapazes de explicar esta ou aquela preferência
por determinado peixe ou por particular tratamento que recebem os alimentos em
suas cozinhas. Nos séculos das perseguições, sabiam. Sabiam, mas, diante dos
inquisidores faziam-se de inocentes. É muito divulgado nos livros que tratam do
assunto, as confissões das filhas de Branca Dias, em Olinda. Diogo Fernandes
e Branca fundaram uma Sinagoga em Camaragibe e lá reuniam frequentemente os
criptojudeus da região. (Revista do Instituto do Ceará - ANNO LXXXIX - 1975)
Muitos cearenses descendem deste casal, sobretudo, comprovadamente, os
provenientes de Agostinho de Holanda, um dos filhos do fundador da família,
Arnau de Holanda. Agostinho era casado com uma neta de Branca Dias, diz o médico
historiador Vinicius Barros Leal, que se chamava Maria de Paiva. Apesar de toda
a prosápia da família naqueles recuados tempos, este sobrinho neto do Papa
Adriano VI foi chamado para dar explicações de certos hábitos alimentares de
sua mulher que ali já procurara se justificar alegando idiossincrasias,
repugnancias e males do estômago.
Milhares de atuais cearenses são 8º, 9º e 10º netos de Maria de Paiva , que pelo
exposto devia estar muito impregnada da fé de seus avós, judeus convictos,
renitentes escapos da fogueira pela extemporaneidade da visita de Heitor
Furtado de Mendonça. Pelas monitorias da Inquisição, nestes casos de pertinácia
e de resistência por parte dos cristãos novos de praticarem a fé católica, os
descendentes destes casais, até a 10ª geração, eram execrados, vilipendiados e
sujeitos a outros vexames. Pombal se encarregou de cortar este cordão
umbilical.
Voltando ao casal de Aquiráz, Antônio de
Freitas Coutinho e Josefa Maria dos Reis. Josefa, unicamente naquele batizado
de um escravo de seu protetor teve seu nome anotado nos livros paroquiais.
Antônio aparece uma única vez, também, testemunhando um casamento. Na capela do
Forte, em 5 de agosto de 1761 presenciou o enlace de um filho de Paschoal Nunes
Pereira. É bem estranhável esta ausência aos atos religiosos de apadrinhamento,
sobretudo num casal de bastante projeção no incipiente meio social, onde ele
por diversas vezes ocupou cargos por eleição de seus coetâneos.
Antônio faleceu pouco depois desta
última data, pois, sua viúva, a 9 de julho de 1764 casava segunda vez com o
recém viúvo Jacinto Coelho Frazão. Josefa teria cerca de 50 anos e Jacinto mais
do que isto e fôra casado com Maria Lopes Leitão, irmã de Francisco de Brito
Pereira. Lopes, Brito e Pereira são nomes usuais entre os “da nação”.
Judaizaram também no Ceará? Não podemos
afirmar. Algum dia pode ser, tal como aconteceu agora no Pará, o “Livro” do
Ceará aparecerá, se é que a Inquisição tenha andado por aqui, o que é pouco
provável. E aí conheceremos os seus nomes e as suas convicções religiosas. Por
ora, resta-nos levar nossas conjecturas até aquela Casa Grande nas proximidades
de Baturité e chegar até o copiar, onde uma senhora de idade revive a sua
triste mocidade na Paraíba. Em suas lembranças e em seus sonhos estarão
presentes as cenas cruciantes da prisão de seus pais e irmãos e as noticias
inseguras, por algum correligionário, dos Autos de Fé em Lisboa.
Os confitentes e denunciantes que
compareciam à mesa inquisitorial eram obrigados a assinar um papel obrigando-se
a jamais revelar o que se passasse durante os interrogatórios. Apenas o que se
tornava público eram as procissões para a Praça onde deveria ocorrer a
publicação das sentenças e o cumprimento da pena, nas fogueiras previamente
preparadas.
Nessas ocasiões apenas era dado
encontrarem-se aqueles que durante anos permaneciam nas masmorras vigiados dia
e noite. Muitas vezes para um último olhar, uma despedida cruel. Nestas
circunstâncias estiveram parentes próximos de Josefa: Antônio da Fonsêca Rêgo e
Maria Valença, ambos queimados em praça pública. Seus pais, uma vez, juntamente
com os 3 filhos, para receberem a sentença de cárcere perpétuo. O casal de
velhos e o filho homem, suportaram pouco tempo; morreram na prisão. Dionísia
voltou a um 2º Auto, por relapsia.
Tudo leva a crer que Josefa tinha certa
inclinacão pela observância da Lei mosáica. O seu 2º marido, um Frazão, teve
ascendentes inteiramente integrados no judaismo durante a ocupação holandesa.
Um deles, Samuel Frazão chegou a ser eleito Rabino da sinagoga mauricia.
Mais difícil se torna hoje em dia a
identificacão destas pessoas, em vista da Carta Régia de 25 de maio de 1773,
quando se mandou proceder uma devassa em todos os livros das Misericórdias,
Irmandades, Companhias e Corporações, limpando-os de quaisquer notas maliciosas
que fizessem distinguir cristãos velhos e novos.
A lei era dura e foi cumprida, fazendo desaparecer para sempre as
preciosas informações que nos possibilitariam uma identificação correta e
segura dos marranos. Resta-nos, através de antigos genealogistas, e com o
seguimento ordenado, metódico e paciente, acompanhar o desenrolar das múltiplas
gerações. O trabalho é penoso, estafante, enfadonho, mas, compensa, pela
alegria de um achado interessante, pelo levantamento de uma cortina que esconde
um passado fascinante.
Por Vinícius
Barros Leal, médico e historiador. Publicado na Revista
do Instituto do Ceará - ANNO LXXXIX - 1975