quinta-feira, 11 de junho de 2015

OS SOLDADOS DE CRISTO

Do banditismo aterrorizante e dos saques, vendas de meninos como escravos, pelos impiedosos cristãos que engrossavam os pelotões das Cruzadas.











E, como se não bastasse, foram os papas que ordenaram as Cruzadas e, posteriormente, a colonização das "terras novas" e os massacres que se sucederam.

Mas vejamos em ordem. Primeiro, foram as tentativas de invadir a Palestina, o Líbano e a Síria, com o pretexto de libertar o Santo Sepulcro. Em Storici arabi alle crociate, (1) Gabrieli reúne os testemunhos de vários cronistas medievais no Oriente Médio. Por meio dessas declarações, pudemos saber que, até depois da metade do século XII, ou seja, antes do começo das invasões dos franco-cruzados, milhares de cristãos visitavam livremente a Palestina e todos os lugares onde supostamente Jesus vivera e pregara.

As Cruzadas foram um projeto criminoso em todos os aspectos, e, mal nos questionamos sobre a sucessão de fatos que levaram à Terra Santa turbas desenfreadas aos gritos de "Assim quer Deus!", finalmente vemos aflorar a real motivação da campanha que levou São Francisco a tal indignação a ponto de exclamar: "Vim converter os infiéis e descobri que os que precisam de fé e noção de piedade não são os guerreiros muçulmanos, mas os soldados de Cristo e, antes de mais nada, os bispos que os conduzem!". (2)

Além do mais, os "exércitos de Deus" talvez tenham matado mais cristãos do que infiéis. Os exércitos cristãos que se dirigiam à Palestina tinham um longo caminho a percorrer, sem provisões ou acampamentos organizados. Portanto, tinham como costume obter o que precisavam saqueando as cidades cristãs pelas quais passavam durante a viagem. Por exemplo, a famosa "Cruzada dos Mendigos", em 1096, que causou o massacre de quatro mil pessoas apenas na cidade húngara de Zemun.

No mesmo ano, o contingente guiado pelo nobre alemão Gottschalck trucidou mais de dez mil pessoas culpadas de terem-se deixado dominar pelos saques. Alguns homens partiram para as Cruzadas seguindo os passos de um pato! Estes devotos acabaram se unindo a uma Cruzada guiada por um ilustre salteador chamado Emich, que nunca chegou à Terra Santa, limitando-se a um tour durante o qual massacrou milhares de judeus, espoliando-os de seus bens.

Mas outros cruzados, que participaram de expedições seguintes, também decidiram se preparar para a guerra contra os infiéis muçulmanos começando a massacrar infiéis judeus desarmados. Em 1212, trinta mil meninos da Europa Central partiram para as Cruzadas sozinhos e sem armas. A maior parte desse "exército" embarcou em Marselha acreditando partir para libertar o Santo Sepulcro. Em vez disso, os garotos (pelo menos os que sobreviveram aos contratempos da viagem) foram vendidos aos turcos como escravos.

A Quarta Cruzada, realizada em 1202, operou uma pequena devastação e, em vez de ir até a Terra Santa, tomou de assalto a perfeitamente cristã Constantinopla, conquistada por meio de saques e do massacre da população. No final das contas, quem ganhou com as Cruzadas, com certeza, não foram os soldados e seus capitães, e sim os mercadores das Repúblicas Marítimas italianas e a Igreja de Roma.

A volta das Cruzadas também foi uma aventura trágica. Os cruzados muitas vezes tinham que entregar aos transportadores todo o fruto de seus saques e roubos.

Sabe-se, também, que os cruzados, até pela forma como eram recrutados, não eram brilhantes em termos de disciplina e organização. Seus acampamentos eram erguidos sem nenhum cuidado estrutural. Em poucas palavras, eles não tinham áreas de higiene, não existiam enfermarias nem médicos organizados, e a cada chuva as barracas eram inevitavelmente carregadas pelas águas misturadas à urina e ao estéreo. Resumindo: Deus não estava com eles e os castigou matando vários de cólera, infecção gastrointestinal e doenças venéreas locais e exóticas.

A propósito, não podemos esquecer a grande quantidade de prostitutas que seguiam o exército. A isso acrescentemos o fato de que os cruzados não costumavam tomar mais do que dois banhos por ano e muitos fizeram a promessa de não tomar banho até a libertação do Santo Sepulcro.

Ignorando as leis alimentares dos povos que já viviam há anos naquele clima, enchiam-se de carnes de porco assada ou salgada e se embebedavam da manhã até a noite. O resultado foi que, às epidemias normais em voga, acrescentaram-se outras ainda mais devastadoras. Além disso, como já lembramos, os pobres coitados eram tratados por médicos e cirurgiões cuja ignorância só se igualava a seu fanatismo. O resultado era que ser ferido em batalha ou contrair uma doença grave garantia, depois do tratamento médico, a certeza da morte inevitável.

Sobre esse assunto, transcrevemos o comentário de um médico oriental cristão durante a consulta de um cavaleiro ferido e de uma mulher doente:

...Apresentaram-me um cavaleiro que tinha um abscesso em uma perna e uma dona aflita pelo definhamento. Fiz um emplastro no cavaleiro, e o abscesso abriu e melhorou; prescrevi uma dieta para a mulher, com pouco tempero. Quando eis que chegou um médico franco, que disse: "Esse aí não sabe curar ninguém". E, dirigindo-se ao cavaleiro, perguntou: "O que prefere, viver com uma só perna ou morrer com duas pernas?" Tendo este respondido que preferia viver com uma só perna, ordenou: "Tragam-me um cavaleiro corajoso e um machado afiado". Chegaram o cavaleiro e o machado, e eu estava ali presente. O médico colocou a perna sobre um pedaço de madeira e disse ao cavaleiro: "Desça-lhe uma machadada, para cortar de pronto!" E, diante de meus olhos, deu a primeira machadada e, não conseguindo arrancar a perna, deu a segunda; a medula da perna jorrou e o paciente morreu na hora.

Após examinar a mulher, ele disse: "Essa aí tem o demônio na cabeça, apaixonado por ela. Cortem-lhe os cabelos",. Foram cortados, e ela voltou a comer o alimento deles, com alho e mostarda, e o definhamento aumentou. "O diabo entrou na cabeça dela", sentenciou ele, e pegou a navalha e abriu a cabeça dela em forma de cruz, extirpando o cérebro até aparecer o osso da cabeça, no qual esfregou sal... e a mulher morreu na mesma hora. Naquele momento, perguntei: "Ainda precisam de mim?" Responderam que não e fui embora, depois de aprender o que ignorava da medicina deles. (3)

Acrescente-se a isso o fato de que muitos cruzados eram aventureiros dispostos a entregar armas e provisões ao inimigo em troca de dinheiro, a vender a mulher para pagar dívidas de jogo, a trucidar companheiros para derrubá-los. Muitos foram obrigados a partir para a Palestina, mais do que por um rompante de fé, pela lâmina que pendia sobre suas cabeças junto com uma sentença de enforcamento.

E as suas não eram cabeças quaisquer. Muitas vezes, tratava-se de nobres falidos e ambiciosos que tinham como único objetivo a riqueza pessoal e que não se detinham diante a nenhuma torpeza desde que concretizassem seus intentos. Viram-se batalhas entre exércitos de cruzados rivais pela posse de uma cidade, alianças entre príncipes cristãos e emires turcos. Muitos nobres cruzados permitiram que seus companheiros de armas fossem trucidados sem levantar um dedo, por questões de rivalidade.

O modelo das cruzadas tinha feito escola. E, assim, quando o papa Inocêncio III decidiu deter a heresia catara e valdense, decretou em 1209 uma verdadeira cruzada no sul da França, que durou vinte anos e massacrou dezenas de milhares de pessoas. Os cátaros eram culpados de propagar uma vida comunitária pacífica e solidária, respeitando os supostos ensinamentos de Jesus e recusando-se a reconhecer "o poder por vontade de Deus" da Igreja.

O pontificado de Inocêncio III marca também o auge do poder temporal do papado. O papa passava a ser um soberano para todos os efeitos, e o Estado da Igreja torna-se uma verdadeira potência europeia. Como todos os soberanos, o bispo de Roma possuía territórios e exércitos, declarava guerra e realizava alianças. Vários reinos se reconheciam como vassalos da Santa Sé e pagavam conspícuos tributos a Roma.

Além disso, o papa utilizava o próprio poder espiritual para orientar a política dos Estados a ele alinhados. Se um rei era excomungado, perdia automaticamente o direito de cobrar obediência dos súditos e vassalos. Pode-se concluir, assim, que os soberanos cristãos pensavam duas vezes antes de pisar no pé da Santa Sé. Em suma, o papado acolheu por completo a herança criminosa do Império Romano. Houve até um papa, Júlio II, que encomendou uma armadura para conduzir seus próprios exércitos nas batalhas.


NOTAS

1.   Francesco Gabrieli (coordenado por). Storici arabi alle Crociate. Einaudi, Turim, 2002.
2.   A cidade é Avaro. Júlio César, op. cit, parágrafo 28.
3.   Francesco Gabrieli (coordenado por). Op. cit, p. 76/77.





Recomenda-se a leitura dos livros e sites quando indicados como fontes. Os posts contidos neste blogger são pequenos apontamentos de estudos.


terça-feira, 9 de junho de 2015

MANUAL DO INQUISIDOR

O Tribunal Inquisitorial do Santo Ofício existe e está em plena atividade, apenas mudou e aperfeiçoou os métodos.


Leonardo Boff, pseudônimo de Genézio Darci Boff (Concórdia, 14 de dezembro de 1938), é um teólogo brasileiro, escritor e professor universitário, expoente da Teologia da Libertação no Brasil. Foi membro da Ordem dos Frades Menores (franciscanos). Atualmente dedica-se sobretudo às questões ambientais.

Leonardo Boff ingressou na Ordem dos Frades Menores em 1959 e foi ordenado sacerdote em 1964. Em 1970, doutorou-se em Filosofia e Teologia na Universidade de Munique, Alemanha. Ao retornar ao Brasil, ajudou a consolidar a Teologia da Libertação no país. Lecionou Teologia Sistemática e Ecumênica no Instituto Teológico Franciscano em Petrópolis (RJ) durante 22 anos. Foi editor das revistas Concilium (1970-1995) (Revista Internacional de Teologia), Revista de Cultura Vozes (1984-1992) e Revista Eclesiástica Brasileira (1970-1984).

Seus conceitos teológicos sobre a doutrina Católica com respeito à hierarquia da Igreja, expressos no livro Igreja, Carisma e Poder, renderam-lhe um processo junto à Congregação para a Doutrina da Fé, então dirigida por Joseph Ratzinger, depois Papa Bento XVI. O documento final desse processo foi assinado pelo próprio Cardeal Ratzinger e conclui que "as opções aqui analisadas de Frei Leonardo Boff são de tal natureza que põem em perigo a sã doutrina da fé, que esta mesma Congregação tem o dever de promover e tutelar" .

Em 1985, foi condenado a um ano de "silêncio obsequioso", perdendo sua cátedra e suas funções editoriais na Igreja Católica. Em 1986, recuperou algumas funções, mas sempre sob observação de seus superiores. Em 1992, ante novo risco de punição, desligou-se da Ordem Franciscana e pediu dispensa do sacerdócio. Sem que esta dispensa lhe fosse concedida, uniu-se, então, à educadora popular  e militante dos direitos humanos Márcia Monteiro da Silva Miranda, divorciada e mãe de seis filhos, com quem mantinha uma relação amorosa em segredo desde 1981. Boff afirma que nunca deixou a Igreja: "Continuei e continuo dentro da Igreja e fazendo teologia como antes", mas deixou de exercer a função de padre dentro da Igreja.

Sua reflexão teológica abrange os campos da Ética, Ecologia e da Espiritualidade, além de assessorar as Comunidades Eclesiais de Base(CEBs) e movimentos sociais como o MST.

Trabalha também no campo do ecumenismo.

Em 1993 foi aprovado em concurso público como professor de Ética, Filosofia da Religião e Ecologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde é atualmente professor emérito.


Foi professor de Teologia e Espiritualidade em vários institutos do Brasil e exterior. Como professor visitante, lecionou nas seguintes instituições: de Universidade de Lisboa (Portugal), Universidade de Salamanca (Espanha), Universidade Harvard (Estados Unidos), Universidade de Basel (Suíça) e Universidade de Heidelberg (Alemanha). É doutor honoris causa em Política pela universidade de Turim, na Itália, em Teologia pela universidade de Lund na Suécia e nas Faculdades EST – Escola Superior de Teologia em São Leopoldo (Rio Grande do Sul). Boff fala fluentemente alemão.

Sua produção literária e teológica é superior a 60 livros, entre eles o best-seller A Águia e a Galinha. A maioria de suas obras foram publicadas no exterior.

Atualmente, viaja pelo Brasil dando palestras sobre os temas abordados em seus livros, participando também de encontros da Agenda 21.

Vive em Petrópolis (RJ) com sua companheira, a educadora popular Márcia Miranda.





MANUAL DOS INQUISIDORES



Ao se terminar a leitura do Manual dos Inquisidores, a primeira reação é de perplexidade e de espanto: como é possível tanta desumanidade dentro do cristianismo e em nome do cristianismo? Os sonhos originais da proposta cristã são de ilimitada generosidade: Deus é pai com características de mãe; todos são filhos e filhas de Deus; o Verbo ilumina cada pessoa que vem a este mundo; a redenção resgata toda a humanidade; e o arco-íris da benevolência divina cobre todas as cabeças e o universo inteiro. Como se passa deste sonho para o pesadelo da Inquisição?

Não vale chorar nem rir. Importa compreender. É o que tentaremos sucintamente.


1. A pretensão da verdade absoluta leva à intolerância

Para entender o comportamento da Igreja através da Inquisição, entre outros elementos importantes, faz-se mister considerar a autoconsciência que a própria Igreja fez e, em setores de direção, ainda faz de si mesma. Como ela constrói religiosamente a realidade? Como se representa a história humana?

A leitura comum, que se encontra nos catecismos clássicos, é a seguinte: a humanidade foi criada na graça de Deus. A criação era um livro aberto que falava do Criador. Porém em Adão e em Eva ela decaiu. Perdeu os dons sobrenaturais (a graça) e mutilou os dons naturais (obscureceu a inteligência e enfraqueceu a vontade). As frases da criação se decompuseram em palavras soltas e sem nexo. Os seres humanos não conseguiam mais ler a vontade de Deus no alfabeto natural (revelação natural). Deus se compadeceu e nos entregou um outro livro, escrito por judeus e cristãos, as Escrituras sagradas, que contêm o alfabeto sobrenatural (revelação sobrenatural). Mediante ele, podemos refazer as frases da criação e assim ter acesso às verdades divinas sobre o ser humano e o universo. Nas Escrituras, como num depósito (depositum lidei), estão todas as verdades necessárias para a salvação.

Mas o livro pode ser lido de mil maneiras. Qual é a leitura correta? Deus, novamente, se apiedou da humanidade e criou o Magistério: o Papa e os bispos. Eles são os representantes de Deus e os vigários de Cristo. A missão do Magistério é guardar fielmente, defender ciosamente e interpretar autenticamente o depósito das verdades salvíficas.

Mas eles não são humanos, sujeitos a erros? Deus novamente se apiedou da fragilidade humana e concedeu ao Papa e aos bispos reunidos um privilégio único. Em questões que interessam a todos concernentes à fé e à moral, visando à salvação eterna, seus pronunciamentos gozam de infalibilidade. Eles não podem errar e por isso, na história, nunca erraram.

Eis o que reza a doutrina, uma verdadeira metafísica religiosa, quer dizer, uma interpretação da história a partir dessa determinada ótica religiosa.

As pessoas agora podem ficar tranquilas e gozar de plena segurança. Basta ouvir o que o Magistério ensina, vivê-lo coerentemente e já estão em conformidade com a vontade de Deus. O efeito é promissor: nada menos que a vida eterna.

O Magistério, portanto, é portador exclusivo de uma verdade absoluta. A verdade não é objeto de uma busca. Mas de uma posse agradecida. Por mil formas esta verdade é distribuída por parte do Magistério cada vez com graus diferentes de certeza, mas sempre sob a assistência divina no horizonte da infalibilidade: pronunciamentos, admoestações, encíclicas, declarações dos sínodos e dos concílios, proclamação de dogmas de fé etc.

Face à verdade absoluta, não cabem dúvidas e indagações da razão ou do coração. Tudo já está respondido pela instância suprema e divina. Qualquer experiência ou dado que conflita com as verdades reveladas só pode significar um equívoco ou um erro. A Igreja detém o monopólio dos meios que abrem o caminho para a eternidade.

Sendo as coisas assim só existe um perigo fundamental: a heterodoxia, a heresia e o herege. Em outras palavras, a grande oposição se dá entre o dogma e a heresia. Para essa compreensão, erro gravíssimo e radical não é tanto a injustiça, o assassinato, a espoliação de povos e a opressão de classe, o genocídio e o ecocídio.

 Esses são atos e atitudes morais perversos mas corrigíveis; o caminho da eternidade continua aberto pelo arrependimento e o perdão; a fé não é negada, nem as verdades absolutas questionadas. Erro radical é a heresia ou a suspeição de heresia. Aqui se negam as verdades necessárias e se fecha o caminho para a eternidade. A perda é total. O mal, absoluto. O herege é o arquiinimigo da fé. O ser perigosíssimo. Se o perigo é máximo, máximas devem ser a vigilância e a repressão.

Por isso, nessa visão, o portador da verdade é intolerante. Deve ser intolerante e não tem outra opção. Caso contrário a verdade não é absoluta. Só os que não possuem a verdade podem ser tolerantes. Consentir a dúvida. Permitir a busca. Aceitar a verdade de outros caminhos espirituais. O fiel, este é condenado á intolerância.

Os inimigos da verdade e da reta doutrina (ortodoxia), os hereges verdadeiros ou presumidos devem ser perseguidos lá onde estiverem e exterminados. Deve-se esquadrinhar suas mentes, identificar os acenos do coração, desmascarar idéias que possam levar à heresia. Contra o mal absoluto – a heresia – valem todos os instrumentos e todas as armas. 

Pois se trata de salvaguardar o bem absoluto – a salvação eterna, apropriada pela adesão irrestrita à verdade absoluta como vem proposta, explicada e difundida pela Igreja. Fora da Igreja não há salvação, porque fora dela não existe revelação divina e por isso verdade absoluta. Podem existir verdades fragmentadas, não sicut opponet ad salutem consquendam (“como devem ser para se conseguir a salvação”, como repetem os textos dos concílios), mas incapazes de abrir caminho pelo matagal das confusões humanas e aceder à destinação eterna. Por isso a Igreja é imprescindível.


2. Uma lógica férrea e irretorquível

Ao instaurar a Inquisição, a Igreja produz e habita esse discurso totalitário e intolerante. Quem quiser entender o presente Manual dos Inquisidores deverá imbuir-se dessa mentalidade e visão das coisas. Só assim fará justiça a seus autores. Então tudo aparece lógico e coerente. O inquisidor é extremamente fiel e imbuído da melhor das intenções. A arquitetônica de sua argumentação é irretorquível. É obra de mestre.

Assim como quem quiser entender a repressão e a tortura dos regimes militares latino-americanos deverá entender a leitura da sociedade feita a partir da ideologia da segurança nacional e repassada às mentes dos torturadores e de seus mandantes. Da mesma forma as câmaras de gás e a limpeza genética perpetradas pelo nazifascismo. Ou, num nível maior, a cultura ocidental, que foi incapaz de acolher a diferença e alteridade e que por isso, historicamente, cometeu toda sorte de genocídios e exclusões, ainda hoje, no processo de sua mundialização. Em todos esses antifenômenos há uma lógica irretorquível. Em nome dela se excluem outros, eventualmente até são mortos.

Uma vez aceito o sistema de idéias, tudo flui de forma férrea e coerente. É a verdade intra-sistêmica. Evidentemente, cabe analisar o sistema. A boa intenção dos torturadores certamente não é boa, pois produz a morte. O sistema é sacrificialista, pois exige mais e mais vítimas para se manter. Como pode, como pretende, ter o aval divino? Mas isso já é outra questão, não mais analítica, mas ética e teológica.






3. Os autores do Manual dos Inquisidores

Trata-se de dois dominicanos, um do século XIV e outro do século XVI, peritos em jurisprudência e teologia: Nicolau Eymerich e Francisco Peña. A importância deles reside no fato de ambos procederem a uma grandiosa codificação das práticas e das justificativas (teologias e ideologias) acerca do controle das doutrinas na Igreja que culminaram na instituição da Inquisição.

Sabemos que desde cedo a Igreja se viu ás voltas com doutrinas divergentes daquelas comumente estabelecidas pela tradição. O problema dos hereges perpassa toda a história da Igreja. O herege é aquele que se recusa a repetir o discurso da consciência coletiva. Ele cria novos discursos a partir de novas visões da realidade religiosa. Por isso está mais voltado para a criatividade e o futuro do que para a reprodução e o passado.

Com efeito, refletindo bem, a verdade, por mais absoluta que se apresente, não pode se fundir numa única fórmula. Uma coisa é a verdade nela mesma. Outra coisa são as suas várias formulações históricas. A verdade, como se vê nas várias culturas, permite várias linguagens. E as várias linguagens comunicam novas significações. Por isso a definição da verdade não pode cair sob o domínio da posse exclusiva de alguém, detentor de algum código. Mesmo participando da verdade e, de certa forma, possuindo-a, o ser humano pode buscá-la sempre de novo e sob mil formas.

Mas eis que emerge o conflito. Como sobrevivem aqueles que buscam a verdade no meio daqueles que presumem havê-la encontrado? Pergunta-se: buscar a verdade não significa que ela ainda não foi encontrada? E se não a encontramos, estamos no erro e então não estamos em risco de perdição eterna? A conseqüência é previsível: o rompimento da comunhão entre um e outro. E aí começam os processos de exclusão.

Nos primeiros séculos, os portadores de pensamento divergente eram punidos com a excomunhão, vale dizer, eram excluídos da comunidade eclesial. Portanto, era uma questão meramente intra-eclesial. Mas, quando o cristianismo se transformou em religião oficial do Império, a questão virou política. O cristianismo era considerado o fator principal de coesão e união política. Então, qualquer doutrina divergente colocava em risco a unidade política. Os representantes das novas doutrinas eram tidos por hereges. A punição era a excomunhão, o confisco dos bens, o banimento e mesmo a condenação à morte.

A perseguição aos divergentes já ocorreu nos séculos IV e V com a crise do donatismo (os rigoristas no norte da África que não concediam o perdão aos que fraquejaram nas perseguições e não reconheciam os sacramentos administrados por eles). O controle e a repressão das novas doutrinas ganharam força no final do século XII e inicio do século XIII com a eclosão do movimento popular dos cátaros e valdenses no sul da França. Eram movimentos rigoristas, de volta ao espírito simples dos Atos dos Apóstolos, com a pregação itinerante do evangelho na linguagem do povo, levada a efeito, em sua grande maioria, por leigos.

A Inquisição propriamente surgiu quando em 1232 o imperador Frederico II lançou editos de perseguição aos hereges em todo o Império pelo receio de divisões internas. O Papa Gregório IX, temendo as ambições político-religiosas do imperador, reivindicou para si essa tarefa e instituiu inquisidores papais. Estes foram recrutados entre os membros da ordem dos dominicanos (a partir de 1233), seja por sua rigorosa formação teológica (eram tomistas), seja também pelo fato de serem mendicantes e por isso presumivelmente desapegados de interesses mundanos.

A partir de então se foi criando uma prática de controle severo das doutrinas, legitimadas com sucessivos documentos pontifícios como a bula de Inocência IV (Ad extirpanda) de 1252, que permitia a tortura nos acusados para quebrar-lhes a resistência. Até que em 1542 o Papa Paulo III estatuiu a Sagrada Congregação da Inquisição Romana e Universal ou Santo Ofício como corte suprema de resolução de todas as questões ligadas à fé e à moral.

O mérito de Nicolau Eymerich foi elaborar o Directorium inquisitorum (Diretório dos inquisidores), um verdadeiro tratado sistemático em três partes:

(1) o que é a fé cristã e seu enraizamento; 
(2) a perversidade da heresia e dos hereges; 
(3) a prática do ofício de inquisidor que importa perpetuar.

Trata-se de um manual de “como fazer”, extremamente prático e direto, baseado em toda a documentação anterior e na própria prática inquisitorial do autor Nicolau Eymerich. Pouca coisa do seu manual é obra de reflexão pessoal. Tudo é remetido a textos bíblicos, pontifícios, conciliares, imperiais. A astúcia teológica (e os inquisidores eram mestres nisso) vem sempre justificada pelos teólogos mais eminentes. Em casos controversos, expõe todas as teses correntes com seus prós e contras e suas convergências e divergências. Numa palavra: nele encontra-se tudo, como ele mesmo reconhece, o que é necessário para o bom exercício da Inquisição.

Sua importância é tão grande que, depois da Bíblia (o Livro dos Salmos é de 1457), foi um dos primeiros textos a serem impressos, em 1503, em Barcelona. E quando o Vaticano quis reanimar a Inquisição para fazer frente à Reforma protestante mandou reeditar o livro como manual para todos os inquisidores, primeiro em Roma, em 1578, 1585 e 1587, e depois em Veneza, em 1595 e 1607. Quem são os autores?

Nicolau Eymerich nasceu em 1320 em Gerona, no reino de Catalunha e Aragão. Fez-se dominicano, com excelente formação jurídica e teológica. Em 1357 já é inquisidor-geral do reino até 1392, com duas interrupções mais ou menos longas. Pelo excesso de zelo inquisitorial, foi exilado dos territórios de Catalunha e Aragão. Mas foi compensado em 1371 com o convite para ser o capelão do Papa Gregório IX (o criador da Inquisição) quando ainda estava no exílio em Avinhão e depois em Roma. Em 1376, ainda em Avinhão, escreveu o Manual que o tornou famoso. Morreu em Gerona em 1399.

Devido ao surgimento de novas heresias no século XVI, fazia-se urgente atualizar o manual de Nicolau Eymerich. Foi quando o comissário geral da Inquisição romana, Thoma Zobbio, em nome do Senado da Inquisição Romana, solicitou a outro dominicano, o canonista espanhol Francisco Pefia transcrever e completar o manual de Eymerich com todos os textos, disposições, regulamentos e instruções aparecidos depois de sua morte, em 1399. Penã redigiu uma obra minuciosa de 744 páginas de texto com 240 outras de apêndices, publicada em 1585.

Não obstante as inquisições locais com suas singularidades e privilégios, o autor fortalece “o direito comum inquisitorial” como norma geral a ser seguida, o quanto possível, por todos os inquisidores em todas as partes. Sabemos que havia duas Inquisições oficiais, a romana e a espanhola. Peña consegue uma síntese processual e doutrinária tal que se transformou em referência necessária e comum para as duas e para todos os inquisidores.

A obra de Peña é uma transcrição e complementação de Eymerich. Por isso, segue-lhe o mesmo esquema em três partes, referidas acima. Não seria viável nem legível publicar tudo. Ascenderia a quase mil páginas. Nesta edição, se aproveitou apenas a terceira parte, que trata dos procedimentos do inquisidor. Como o leitor irá perceber, somos informados, de saída, o que é a heresia, quem são os hereges e, depois sim, quem é o inquisidor e como trabalha.

A obra é retilínea e severa. Não se perde em relatos circunstanciais para não perder o rigor da argumentação. A prática da Inquisição está aí com toda a sua inclemência, O autor possui um sentido prático formidável. No final da obra, faz um inventário das 22 rubricas mais recorrentes que o inquisidor pode consultar rapidamente como se fosse um fichário. Aí estão as respostas claras para serem aplicadas sem qualquer titubeio.


4. Como funciona a lógica inquisitorial

Vejamos rapidamente como funciona a lógica inquisitorial. Como já consideramos, a centralidade está na verdade absoluta revelada para nossa salvação, a ser sempre defendida a todo preço.
Herética, segundo o manual, é “toda proposição que se oponha:

(a) a tudo o que esteja expressamente contido nas Escrituras; 
(b) a tudo que decorra necessariamente do sentido das Escrituras; 
(c) ao conteúdo das palavras de Cristo, transmitidas aos apóstolos, que, por sua vez, as transmitiram à Igreja; 
(d) a tudo o que tenha sido objeto de uma definição em algum dos concílios ecumênicos;
(e) a tudo o que a Igreja tenha proposto à fé dos fiéis;
(f) a tudo o que tenha sido proclamado, por unanimidade, pelos Padres da Igreja, no que diz respeito à reputação da heresia; 
(g) a tudo o que decorra, necessariamente, dos princípios estabelecidos nos itens c, d, e, f” (parte 1, A, 2).

Como se depreende, nenhum desvio da doutrina era permitido.

A Bíblia e a doutrina tradicional somente podiam ser apresentadas como verdade divina e Palavra de Deus, sob a condição de tudo nelas ser verdadeiro. A concessão de algum erro, em alguma frase da Bíblia, ou em algum ensinamento da Igreja, seria fatal. Destruiria a base da afirmação de que a Igreja seria a portadora da verdade absoluta que se encontra na Bíblia e na tradição. Ela tem que afirmar como verdade, indistintamente, tudo, que o Sol gira ao redor da Terra e a burra de Balaão falou de verdade. 

Assim, no século XIV, a Inquisição condenou o médico e filósofo Pietro d’Abano e seu conterrâneo Cecco d’Ascoli porque afirmavam a existência dos antípodas. Partiam da acepção de que a Terra era uma esfera redonda; portanto, os que viviam do outro lado dela eram antípodas. Os inquisidores argumentavam: segundo a Bíblia, a Terra não é uma bola redonda, mas uma chapa redonda e chata. E a Bíblia, porque é Palavra de Deus, não pode ensinar erros. 

Aceitar a Terra como uma esfera seria assumir a visão pagã e admitir que a Bíblia está errada e a Igreja não é infalível. Ambos foram condenados à fogueira, não por terem proferido uma heresia ou negado alguma verdade de fé, mas porque afirmavam uma verdade física do mundo que, indiretamente, entrava em conflito com a visão cosmológica da Bíblia.

Como se depreende, praticamente tudo cai sob a suspeita de heresia. Portanto, todos são condenados à repetição do discurso oficial.

o império da monotonia do status quo. O congelamento da história. Todos se tornam suspeitos. Razão por que a Inquisição vem sendo considerada uma instituição perene e os bispos, junto com o poder pastoral, devem exercer, em sintonia com o inquisidor, o poder inquisitorial de “investigar, interrogar, convocar, prender, torturar e sentenciar

Por que o rigor da detectação da heresia? Pelas consequências funestas que ela comporta. Os autores, quase obsessivamente, elencam as perniciosas: “por causa da heresia, a verdade católica se enfraquece e se apaga nos corações, os corpos e os bens materiais se acabam, surgem tumultos e insurreições, há perturbação da paz e da ordem pública, de maneira que todo povo, toda nação que deixa eclodir em seu interior a heresia, que a alimenta, que não a elimina logo, corrompe-se, caminha para a subversão e pode até desaparecer; a história dos antigos prova isso, e o presente também, mostrando-nos o exemplo de prósperas regiões e remos em franco desenvolvimento atingidos por grandes calamidades por causa da heresia” (parte 1, A, 1).

Em razão desses malefícios se entende a severidade na repressão do pensamento divergente e da mais leve suspeita, perseguição dos seguidores dos hereges, de quem os hospeda ou de qualquer forma os favoreça. Como se percebe, persiste a visão antiga (a partir do século IV): a heresia é tida como um crime político de lesa-majestade.

Consoante o Manual, em primeiro lugar, o inquisidor se apresenta com poder apostólico, investido da autoridade papal; outras vezes se apresenta como “um enviado especial de Deus” (parte II,A,I). 

Em seguida mobiliza todas as forças eclesiais. Num determinado domingo na catedral, todos são obrigados a ouvir o sermão geral proferido pelo inquisidor. AI ouve que “se alguém souber que alguém disse ou fez algo contra a fé, que alguém admite tal ou tal erro, é obrigado a revelar ao inquisidor”, sob pena de excomunhão. Os delatores são animados a delatar, pois a delação os faz obedientes à fé divina (parte II,B,6).

Mobiliza também todas as autoridades civis para que prestem juramento, sob pena de excomunhão, caso não dêem “assistência em tudo ao inquisidor, aplicando todas as leis canônicas contra os hereges, seus defensores, filhos e netos” (parte II,A,2).

Começa ai o trabalho de recepção das denúncias a partir das delações ou da apresentação espontânea dos que se consideram em erro de doutrina. Há três tipos de processo: por acusação, por denúncia (delação), por investigação. A mais longa e complicada cabe aos interrogatórios dos hereges e das testemunhas.

Curiosíssimos são os “dez truques dos hereges para responder sem confessar” e os “dez truques do inquisidor para neutralizar os truques dos hereges”. A malícia da mente do inquisidor é completa. A astúcia, refinadíssima. Como faziam os interrogadores militares da repressão política, deve-se, diz o Manual, dar a impressão de que se sabe de tudo: “Confessa logo, porque, como estás vendo, sei de tudo” (parte II, E, 23, 4).

Os acusados são submetidos a todo tipo de pressão, são induzidos à confusão, os amigos são obrigados a pressioná-los, até a dormir com eles na cela, para obrigá-los a falar. Mas “colocam-se as testemunhas, além do escrivão inquisitorial, num bom lugar, na escuta, com a cumplicidade da escuridão” (parte II,E,23,9). E então são apanhados em confissão e condenados. Tudo sem maiores escrúpulos éticos. E, quando surgem, vale a acribia da sofistica teológica para justificar o que, no bom senso, é injustificável.

Por exemplo: o inquisidor não deve prometer perdoar o acusado de heresia caso este confesse. O inquisidor sabe que não pode prometer perdão, porque a heresia não conhece perdão. Perguntam-se os autores do Manual: “Isto não é simplesmente uma desonestidade?” A resposta é rabulística: “reduzindo, mesmo numa proporção mínima, a pena atribuída a um delito (e é raríssimo que o culpado não tenha cometido vários delitos), o inquisitor que tiver prometido ‘perdoar’ terá mantido sua palavra” (parte II,E,23,1O). Portanto, não é desonestidade. O inquisidor mantém a boa consciência, porque, como se explica pouco antes no Manual, “tudo o que se fizer para a conversão de hereges é perdão; e as penitências são perdão e remédio” (parte II,E,23,8).

Outro exemplo clamoroso é o processo contra mortos denunciados de heresia. Para isso “não há limite de tempo”, diz o Manual. O morto é processado. Se condenado, lança-se o anátema sobre sua memória: “os filhos dos hereges serão declarados infames e inaptos a qualquer cargo público ou privilégio” (parte 111,22). E a efígie do condenado já falecido é queimada publicamente. Outras vezes, como os próprios autores do Manual contam, exumavam-se os cadáveres e abriam-se os processos contra eles. Sob o Papa Clemente VI (1342-1352), por exemplo, em Béziers, foi exumado, por ordem deste papa beneditino, o cadáver de frei Pedro João, dos franciscanos menores. Acusado publicamente de herege, o frade já morto foi condenado, quebraram-lhe os ossos e os queimaram (parte 1, 12). Os autores justificam: “Trata-se de uma sentença perfeitamente de acordo com o Direito, se bem que acabe, lamentavelmente, punindo quem não cometeu crime nenhum” (os filhos dos hereges).

Mas continuam com escrúpulos e perguntam-se a si mesmos: “Como proceder contra um morto? Uma questão difícil, porque será que se pode abrir um processo contra quem, por definição, não pode comparecer? Não seria melhor falar claramente de ‘condenação da memória de Fulano’ do que ‘processo’? Sim, em direito civil. Mas evidente que não, em se tratando de um delito de lesa-majestade divina” (parte 111,22).

Em vários lugares do Manual os autores concedem que são mais rigorosos que qualquer outro tribunal humano. Mas justificam: tratam dos crimes mais hediondos e terríveis, aqueles que ameaçam a salvação eterna que são as heresias.

Lugar à parte ocupa o capítulo das torturas. Há precauções, pois os autores têm consciência dos abusos; nem o inquisidor sozinho deve torturar; precisa da permissão do bispo local. Mas praticamente todos os suspeitos e acusados passavam por vários tipos de tortura. “Tortura-se o acusado que vacilar nas respostas”; “o suspeito que só tem uma testemunha contra ele é torturado” (parte I1I,F,28), e por ai vai. 

A regra básica é esta: “É bom lembrar, antes de proceder à tortura, de que sua finalidade é menos provar um fato do que obrigar o suspeito a confessar a culpa que cala...; a tortura serve apenas como paliativo na falta de provas” (parte III,F,28,7). 

Por isso, para a Inquisição não há pessoas não-torturáveis. “Este é um direito que não conta nas questões de heresia: nenhuma das pessoas isentas de tortura a propósito de qualquer delito não o será, tratando-se de heresia”, embora, de fato, se prevejam exceções a membros da alta hierarquia e da nobreza superior. Nem escapam os velhos e as crianças: “Pode-se torturá-los, mas com uma certa moderação; devem apanhar com pauladas ou, então, com chicotadas” (parte II,H).

A confissão é tudo na Inquisição, não as provas, contrariamente ao senso do direito universal, pois, sabemos, a confissão pode ser extorquida sob coação. Os autores do Manual dos Inquisidores, num outro lugar, esclarecem: “Diante do tribunal da Inquisição basta a confissão do réu para condená-lo. O crime de heresia é concebido no cérebro e fica escondido na alma: portanto, é evidente que nada prova mais do que a confissão do réu. Eymerich tem razão (glosa do compilador e atualizador Peña) quando fala da total inutilidade da defesa” (parte lI,G,31).

Com efeito, a defesa tem uma função meramente nominal, diria até perversa, pois não trata de defender o réu, mas de agilizar a sua condenação. O Manual ensina que “o papel do advogado é fazer o réu confessar logo e se arrepender, além de pedir a pena para o crime cometido” (parte II,G,3 1). 

O estatuto do defensor não é assegurado, como em qualquer legislação de Hamurabi (século XV a.C.) a Stalin ou Hitler. O lugar do defensor é no capitulo sobre “obstáculos à rapidez de um processo”. Os autores começam o capítulo acerca da “admissão de um defensor” com esta sentença: “O fato de dar direito de defesa ao réu também é motivo de lentidão no processo e de atraso na proclamação da sentença; essa concessão algumas vezes é necessária (no sentido de agilizar a sentença, porque o acusado não confessa: aclaração minha), outras não” (quando confessa: parte II,F,31).

Ademais, o inquisidor deve ter o campo totalmente aberto à sua ação. Por isso “pode punir quem coloque entraves ao exercício da Inquisição; deve excomungar qualquer leigo que publicamente ou não discuta questões teológicas; ‘procederá’ (abrirá processo) contra qualquer advogado ou escrivão que der assistência a um herege” (parte 111,18). Como, em condições dessas, haver lugar para um advogado de defesa?

O medo da heresia era tanto que implicava violação das comezinhas regras do sentido do direito universal e também a estupidificação dos leigos, que jamais podiam se ocupar com a teologia. A fé devia ser aceita, jamais pensada. A reflexão religiosa era monopólio exclusivo da hierarquia. Quem pensasse a fé, e pensar a fé significa discutir questões teológicas, era já suspeito de heresia, portanto, objeto da repressão. Não pensavam assim os agentes da repressão militar em regime de segurança nacional: quem discutir publicamente política é já suspeito de subversão e, logo, de sequestro, de tortura e de cárcere? Mudem os sinais, mas não a lógica de um sistema totalitário e por isso repressivo de toda e qualquer diferença.

As punições variavam consoante o grau de adesão do acusado às doutrinas consideradas heréticas ou suspeitas de heresia, que vão desde a simples abjuração, expiação canônica, pagamento de multas, expropriação dos bens, excomunhão, prisões e a fogueira pelo braço secular. 

Os leitores verão a severidade das penas e também os processos psicológicos para demover os hereges convictos de suas doutrinas. Vão dos flagelos das prisões escuras, das torturas, das humilhações, tudo para “acordar a inteligência” e desdizer o que diz (parte II,H).

Se este método não funcionar, então se utiliza a bondade, a presença da esposa e dos filhos. Se nada adiantar, será entregue ao braço secular e irá para o auto-de-fé. 

O Manual é claro ao subordinar o bem individual ao bem da Igreja: é preciso lembrar que a finalidade mais importante do processo e da condenação à morte não é salvar a alma do acusado, mas buscar o bem comum e aterrorizar os outros (ut alii terreantur); ora, o bem comum deve estar acima de quaisquer outras considerações sobre a caridade visando ao bem de um indivíduo” (parte 11,22,10).

Efetivamente, o mundo da Inquisição é marcado de medos, sermões aterradores dos inquisidores, delações, suspeitas, vinditas, perseguições e sobretudo autos-de-fé macabros, com condenados à fogueira in conspectu omnium. Que sobrou aqui do cristianismo como boa e alvissareira notícia de libertação, de fraternidade e sororidade universais, de amor ilimitado?


5. O que tornou possível a Inquisição e a continuação de seu espírito

A Inquisição foi possível na Igreja romano-católica com processos de exclusão, torturas e condenações porque nas relações internas dela existem violências. A Inquisição é ponto de cristalização de uma violência anterior. A violência interna da Igreja romano-católica se dá na forma como o poder sagrado é distribuído. Ele sofre uma profunda dissimetria. Um pequeno grupo (é menos que 0,3% de toda a Igreja), a hierarquia (papa, bispos e padres), detém todos os meios de produção simbólica de forma excludente. Os demais não participam, não devem nem podem participar. São dependentes e meros beneficiários desses portadores exclusivos de poder.

Não cabe aqui detalhar essa questão, feita por nós em outras obras (Igreja, carisma e poder; E a Igreja se fez povo; Leigos e ministérios). Basta a indicação de algumas pistas.

Inicialmente o cristianismo era uma comunidade fraternal e sororal. A comunidade inteira se sentia herdeira de Jesus e portadora de seu poder. Este poder se diversificava em vários serviços e ministérios, consoante as necessidades da comunidade. Mais que ministérios institucionalizados e institucionais, havia ministros, pessoas geralmente com características carismáticas. A autoridade era moral, portanto, autoridade no sentido originário da palavra (aquilo que faz crescer os outros e que reforça e não tira o poder dos outros) e quase nada jurídica, embora essa dimensão estivesse também presente como em todas as comunidades que buscam certa ordem e funcionamento de sua vida interna. Mas o jurídico de forma alguma era hegemônico e era vivido dentro do espírito evangélico do poder como serviço desinteressado à comunidade. A Igreja se definia como comunidade dos seguidores de Jesus; a rede de comunicações formava o novo povo de Deus, em solidariedade com os demais povos.

Com a transformação do cristianismo em religião do Império (séculos IV e V), novas responsabilidades tiveram que ser assumidas pelos cristãos (eram menos que 1/6 dos habitantes). Estes sentiram a necessidade de organizar-se e institucionalizar certas funções. Foi então que o aspecto jurídico ganhou corpo, assimilando a da tradição jurídica romana, que sempre foi fascinante. 

Surgiu o corpo clerical, distinto do corpo laical. Emergiu um corpo de peritos do sagrado que acumulou toda a responsabilidade pelo espaço da fé: produziu o discurso, o ethos e o rito. E articulou o poder religioso com o poder político dominante. O que se criou foi considerado oficial. Lentamente se impôs à produção mais espontânea das expressões da fé, das celebrações e dos costumes cristãos, feitos pelos fiéis, homens e mulheres, no quotidiano de suas vidas.

O conceito dominante de Igreja agora é de hierarquia, o grupo dos consagrados pelo sacramento da ordem e que detém o poder sagrado na comunidade. De tal forma que a Igreja ficou sendo simplesmente sinônimo de hierarquia, presente ainda hoje na compreensão comum. Quando se diz: que pensa a Igreja, que diz ela sobre a família, o socialismo e o mercado mundial, se pensa: que diz o Papa, que ensinam os bispos acerca dessas questões?

A partir do século X, se configurou de forma severa a divisão na Igreja entre o corpo clerical e o corpo laical. A primeira codificação jurídica da Igreja, o Código de Graciano (século XII), consagra definitivamente essa visão como direito divino. E isso veio pelos séculos afora. Não admira que, na crise do pensamento cristão em confronto com a modernidade, o Papa Gregório XVI (1831-1846) tenha reafirmado para toda a Igreja: “Ninguém pode desconhecer que a Igreja é uma sociedade desigual, na qual Deus destinou a uns como governantes, a outros como servidores. Estes são os leigos, aqueles são os clérigos.” 

Pio X, em 1904, o repete de forma quase grosseira: “Somente o colégio dos pastores tem o direito e a autoridade de dirigir e governar. A massa não tem direito algum, a não ser o de deixar-se governar qual rebanho obediente que segue seu Pastor.”

Por mais que a teologia posterior e o Concílio Vaticano II (1962-1965) tenham enfatizado a natureza comunitária da Igreja, prevalece ainda na doutrina e na mente do Magistério e dos fiéis (e em textos importantes do próprio Vaticano II) a noção de que Igreja é fundamentalmente a Hierarquia. O direito canônico de 1983 reafirma de novo que é de instituição divina a existência entre os fiéis dos que são clérigos e os outros também denominados leigos (cânon 207).

Ora, essa divisão traz desigualdades. E as desigualdades são sempre odiosas, porque implicam relações tensas e, de certa forma, injustas. Por que o leigo, por mais inteligente e sábio que seja na sociedade civil, na sua vida profissional de reconhecido cientista, notável escritor, notório jurista, deva crer, pelo fato de ser leigo, que no interior da Igreja-comunidade pouco ou nada vale, que tenha que estar sempre e inapelavelmente submetido a um grupo que alega um poder recebido de cima e por isso infenso a qualquer crítica e correção?

Essa divisão entre os clérigos que tudo têm e os leigos despojados de tudo criou incontáveis polêmicas, rebeliões e rupturas do corpo eclesial, primeiramente entre Igreja grega ortodoxa e Igreja romano-católica, depois as Igrejas da Reforma com suas sequelas até os dias de hoje, e em seguida o enfrentamento cada vez mais rígido e tenso entre os cristãos e os portadores de poder sagrado, na medida em que universalmente cresce o espírito de participação, de co-responsabilidade, de maturidade e autonomia de cada pessoa humana com seus direitos e deveres pessoais e sociais.

Para fazer frente a essa crise, já há séculos, os clérigos criaram um discurso de legitimação. Dogmatizaram-no. Atribuíram origem divina ao seu poder. Elaboraram uma visão do mundo, da revelação de Deus, em que eles constituem o pivô de todas as questões. Eles são decisivos para a salvação da humanidade. A leitura da história que referimos no início destas reflexões constitui a peça de legitimação do corpo clerical e de seus poderes. 

É um discurso ideológico, porque todo discurso ideológico é um discurso do interesse real ou escuso do ator à custa do interesse dos outros. Este discurso é apresentado como intocável e inquestionável porque de origem divina. Todos os professantes da fé cristã devem aceitá-lo humildemente e jamais colocá-lo sob qualquer dúvida. Na verdade, trata-se de um discurso humano, demasiadamente humano, legitimador dos direitos, privilégios e interesses históricos dos detentores de poder na Igreja.

Hoje ele já se fez um discurso inconsciente, tal é o nível de imposição e internalização da maioria dos cristãos e nos próprios portadores de poder.

A característica desse sistema de poder é o autoritarismo. Autoritário é um sistema quando os portadores de poder não necessitam do reconhecimento livre e espontâneo dos membros da comunidade para se constituir e exercer. Por isso temos a ver com um sistema de dominação. Quando há aceitação livre e espontânea de uma pessoa ou instituição de direção por parte dos membros da comunidade, então estamos diante da legitima autoridade. Separada desse reconhecimento, a autoridade decai para autoritarismo. É o que vigorou e vigora na Igreja romano-católica já há séculos.

Para se entender no nível estrutural um fenômeno como este da dominação clerical, não se deve partir daquilo que os clérigos pensam e dizem de si mesmos (a origem divina de seu poder etc), mas daquilo que eles efetivamente fazem no seu processo real de vida eclesial. O que eles fazem é manifesto: conservam em suas mãos, de forma corporativo-privada, os meios de produção simbólica, controlam sua distribuição, hierarquizam as formas de participação subordinada (mas em nenhum caso em termos de decisão; esta é reservada somente aos clérigos. 

As mulheres, que constituem mais da metade da Igreja e são mães ou irmãs da outra metade, vêm excluídas, e os leigos, atrelados), limitam as formas de consumo religioso-simbólico. Fundamentalmente se dá esse dualismo, reforçado enormemente sob o Pontificado de João Paulo II: de um lado está o ordenado, homem, celibatário que pode produzir, celebrar, fazer o discurso oficial, decidir; do outro está o não-ordenado que assiste e é convidado a se associar ao projeto e à visão do ordenado, devendo sempre obedecer. 

Dessa forma, toda a capacidade de criar, de produzir, de decidir dos não-ordenados, dos leigos, deixa de ser aproveitada, ou o é de forma atrelada. O corpo eclesial aparece depauperado, formalizado, marcadamente machista, enrijecido e mandonista. A dimensão da anima, pela exclusão das mulheres e pelo recalque da dimensão feminina nos homens de poder, subtrai ao corpo clerical de qualquer irradiação benfazeja e humanizadora. O excesso de poder mostra dimensões necrófilas em quase tudo o que pensa, diz e faz. Não há um interesse real e ousado pelos problemas dos homens e das mulheres, mas uma preocupação quase neurótica pelos interesses da Igreja-hierarquia, de sua identidade, de sua preservação, de sua imagem.

A leitura doutrinária da revelação de verdades absolutas mascara o real conflito subjacente à Igreja: o poder de uns sobre outros. Alguns detém o poder de decidir sobre a verdade, dar-lhe uma formulação única, de definir qual é o caminho necessário para a eternidade. Decretam que a sua verdade é absoluta. E a impõem aos outros. Por isso o discurso do outro é um discurso impossível. Deve ser silenciado, perseguido, estrangulado. Daí se entende o rigor da Inquisição. O que está em jogo, realmente, é o poder do corpo clerical, que não tolera nenhum concorrente ou nenhum confronto. Ele quer se manter como o único. É ele que se entende como absoluto e terminal. Não a verdade e a revelação, pois estas, por serem realidades divinas, são sempre abertas e passíveis de novas achegas e novas leituras, sem jamais esgotar sua riqueza interior.

O espírito que fez surgir a Inquisição perdura na Igreja romano-católica, pois persiste a predominância do corpo clerical sobre toda a comunidade e a visão piramidal de Igreja, centrada no poder sagrado. Enquanto perdurar esse tipo de prática com a sua correspondente teologia (ideologia), haverá sempre condições psicológicas, espirituais e materiais para a ativação do espírito inquisitorial e dos instrumentos de sua implementação (controle, repressão, silenciamento, condenações etc.).

Ele continua na mentalidade e nos métodos da atual Congregação para a Doutrina da Fé. As modificações históricas, ao nível estrutural, são praticamente nulas. Evidentemente, não se condena mais à morte física, mas claramente não se evita a morte psicológica. Pressiona os acusados até o limite da suportabilidade psicológica. São desmoralizados, faz-se perder a confiança em sua pessoa e palavra; por isso proíbe-se que sejam convidados para conferências, assessorias e retiros espirituais; muitos são transferidos para outros países, são forçados a tomar “anos sabáticos” eufemisticamente, quer dizer, devem deixar as cátedras; pressionam-se as editoras a não publicar seus escritos e proíbem-se as livrarias religiosas de expor e de vender seus escritos. 

Praticamente a maioria das vítimas da ex-Inquisição, para poderem sobreviver humanamente, se vê obrigada a abandonar suas atividades ministeriais e teológicas. Mas sejamos sensatos: porém, mais vale um herege vivo e feliz em sua fé, que um teólogo ortodoxo infeliz, castrado e recastrado pelo ex-Santo Ofício.

Ainda perdura o processo de delação, a negação ao acesso às atas dos processos, a inexistência de um advogado e a impossibilidade de apelação. A mesma instância acusa, julga e pune. Isso é uma perversidade jurídica em qualquer Estado de direito, pagão, ateu ou cristão. Não há a salvaguarda suficiente do direito de defesa.

As punições impostas são ainda compreendidas como benevolência e misericórdia da Igreja. Após a punição que o autor desta introdução recebeu da ex-Inquisição em 1984 (deposição como editor da Editora Vozes, deposição de redator da Revista Eclesiástica Brasileira, proibição de dar aulas, de falar publicamente, de dar entrevistas, de publicar qualquer texto e por fim a imposição de um “silêncio obsequioso” por tempo indeterminado, portanto punições nada banais para um intelectual cujo único instrumento e arma é a palavra falada e escrita), o atual Pontífice, através de seu Secretário de Estado, Cardeal Agostino Casaroli, me escreveu com data de 29 de julho de 1985:

“Aquilo que, efetivamente, é requerido ao Rev. Padre, ou seja, ater-se a algumas limitações, entre as quais o obsequjosum silentium, visa como finalidade ajudá-lo a ter um período de pausa para repensar diante de Deus problemas que são de grande importância para um teólogo e para refletir nas suas responsabilidades diante dos irmãos de fé” (cf. Roma locuta: documentos sobre o livro Igreja: Carisma e Poder, CDDH, Petrópolis 1985, p.l52).

A subjetividade das pessoas que sentem, que desenvolveram um sentido de justiça e de equidade dentro da Igreja, que militam, com riscos pessoais, até de ameaça de morte, na defesa e promoção dos direitos humanos pisoteados nas sociedades autoritárias do Terceiro Mundo, nada conta. Conta a objetividade da doutrina (fruto da subjetividade coletiva do corpo clerical que a impõe como objetiva aos Outros), que deve ser salvaguardada a preço do escândalo dos mais simples, daqueles que sofrem a contradição de uma Igreja que se compromete na observância dos direitos humanos na sociedade e não consegue fazer valê-los nas relações internas dela mesma.

Não cabe refutar a lógica do sistema. Mas questionar o sistema mesmo. Dispensamo-nos desta tarefa, pois transcende o sentido da introdução deste Manual dos Inquisidores. Mas não será difícil o próprio leitor fazê-lo, pois:

a) A Inquisição contradiz o bom senso das pessoas. Como se pode, em nome da verdade e ainda mais da verdade religiosa, perseguir, torturar, matar tanto e de forma tão obsessiva? Importa enfatizar que, mediante a Inquisição, a Igreja hierárquica introduziu os sacrifícios humanos. O auge do sacrificialismo furibundo da Inquisição no século XVI na Europa corresponde aos sacrifícios humanos perpetrados pelos colonizadores espanhóis chegados ao nosso Continente contra as culturas originárias dos astecas, maias, incas, chibchas e outras. Quando Hernán Cortez penetrou em 1519 no planalto de Anahuac no México, havia no Império asteca 25.200.000 habitantes. Menos de 80 anos, em 1595, só restaram 1.375.000 habitantes. 

A dizimação global, por guerras, doenças, excesso de trabalho-escravo na encomiendas, desestruturação cultural, nos dois primeiros séculos da colonização-invasão, foi da ordem de 25 por 1. Quem oferecia mais sacrifícios humanos: os astecas, que faziam sacrifícios rituais ao deus Sol para que sempre voltasse a nascer e assim garantisse a vida para todos os povos e para o universo, ou os espanhóis, que sacrificavam ao deus Mamona para serem ricos e fidalgos na Espanha? E sobre isso os bispos reunidos no Concílio de Trento (1545-1563), contemporâneo a todos esses fatos, não dizem sequer uma palavra. Estavam ocupados com questões internas da Instituição em confronto com a Reforma de Lutero.

A verdade possui, em si, uma dimensão de libertação e humanização. Na Inquisição ela é afogada. Repugna à inteligência assumir uma pretensa verdade à força do terror.

b) A Inquisição contradiz o sentido da verdade religiosa, da verdade simplesmente e a natureza da religião. A verdade é como o sol. Ele ilumina a todos e a todos se dá. Pode dizer a montanha à planta que está ao seu pé: por que sou mais alta e sou a primeira a ser bafejada pelo sol, você, plantazinha ao meu pé, não tem direito de receber sol nenhum? E a luz que tens não é luz e não vem do sol? Seria absurdo o discurso da montanha. E seria menos absurdo o discurso da teologia (ideologia) da verdade absoluta que subjaz aos órgãos de controle e repressão das doutrinas na Igreja romano-católica que nega verdade às outras religiões e a outras confissões cristãs?

Todos estamos em algum nível da verdade. Como também todos estamos a caminho de uma verdade mais plena. A verdade não está apenas nas frases verdadeiras. Ela está fundamentalmente na vida, na profundidade do coração, nas relações entre as pessoas, no curso da história. Ela pode ser expressa de mil formas, num poema, numa música, numa catedral, numa parábola e num discurso.

Na história, nossas formulações exprimem a verdade absoluta que está em todos, mas não logram exprimir todo o absoluto da Verdade. No dito fica sempre o não-dito. E todo ponto de vista é sempre a vista de um ponto. Por isso haverá sempre possibilidade de se dizer a verdade e a fé em doutrinas expressas em marcos inteligíveis de uma outra cultura, de uma outra tradição espiritual e, por que não dizê-lo também, no código de uma outra classe social. A Inquisição é contra a natureza da religião. Esta trabalha o sagrado que está na profundidade de cada pessoa, na história e no cosmos. O efeito da prática religiosa é a potenciação do sentido da vida, do sentimento de salvação, da formulação de uma esperança contra toda esperança e do apreço e salvaguarda da vida e do menor sinal de vida. Uma religião que produz morte e exige sacrifícios humanos desnatura a religião e se transforma num aparelho de controle social.

c) A Inquisição nada tem a ver com Cristo, nem com o seu Evangelho. Se tem a ver, é contra eles. O próprio Cristo foi vitima da inquisição judaica de seu tempo. Como em seu nome instaurar uma inquisição? Não esqueçamos que o Grande Inquisidor de Dostoievski acabou condenando Jesus Cristo. Nem tem a ver com a Igreja em sua compreensão maior, teológica e sacramental. Pois a Igreja como comunidade dos professantes procura manter viva a memória de Jesus, do seu sonho, da irradiação do seu Espírito, na profunda alegria de sermos todos filhos e filhas de Deus e por isso irmãos e irmãs de toda humana criatura e de cada ser do universo. A Inquisição tem a ver sim com a patologia como distorção dessa convicção, e com o pecado como negação prática dessa proposta, carregada de promessa e de utopia. Mas sejamos realistas: quem é são pode ficar doente. E quem está na graça pode pecar.

A “Santa” Inquisição é expressão de um componente neurótico-obsessivo do corpo clerical e cristaliza a dimensão de pecado que existe nas relações internas da Igreja. Pois, a própria Igreja-comunidade de fiéis se confessa santa e pecadora. Se assim é então aqui é o pecado Institucional que ganha a cena e a ocupa durante séculos. Seu espírito vaga assustador até os dias de hoje. E devemos nos precaver contra ele. Antes, ajudar a própria instituição eclesial a ser fiel à sua utopia originária e a ser um lugar de exercício de liberdade e de experimentação da graça humanitária de Deus. E isso se fará na medida em que os professantes da fé romano-católica se reapropriarem daquilo de que foram historicamente despojados: sua capacidade de experimentar o sonho de Jesus, de dizê-lo de forma criativa e responsável no interior da comunidade, de confrontá-lo solidariamente com outras experiências do evangelho de Deus na história e articulá-lo com o curso do mundo, onde se revela também e principalmente o desígnio de benquerença e de amor de Deus.

A comunidade cristã viveu séculos sem a Inquisição. Isto significa que não precisou dela para viver e sobreviver. Portanto, ela é supérflua. Sua existência mantém o mesmo escândalo, denota uma patologia e concretiza um pecado. Nunca teve direito a existir. Não deve mais existir. Por amor a Deus, por fidelidade a Jesus Cristo e por respeito às opiniões religiosas diferentes nas sociedades humanas.


LEONARDO BOFF Prof. de ética e Teologia na UERJ Rio de Janeiro, Sexta-feira Santa da Paixão de 1993.