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quinta-feira, 12 de novembro de 2015

BEGUINAS E BEGARDOS



As beguinas eram prevalentemente mulheres leigas caracterizadas por um forte espírito religioso. Mesmo não sendo afiliadas a nenhuma ordem reconhecida, levavam uma vida monástica em suas residências nas periferias das cidades e criaram verdadeiras comunidades, as "beguinarias".

A primeira surgiu em 1170, em Liège, espalhando-se então por toda a França, Alemanha e Países Baixos. É provável que o primeiro núcleo fosse formado por mulheres de extratos sociais mais baixos rejeitadas pelos conventos, onde tinham prioridade as noviças de família nobre.

Orientadas por alguns religiosos, as mulheres pobres criaram, então, uma "ordem faça-você-mesmo" que acabou por se tornar uma comunidade dedicada a levar sustento e caridade a outras mulheres sozinhas não aceitas nos conventos. Como não eram freiras, as beguinas podiam voltar às suas vidas normais a qualquer momento. Além disso, não pediam esmolas; cuidavam de suas propriedades ou trabalhavam.




Os begardos, ao contrário, eram um grupo de pregadores errantes que denunciavam as corrupções do clero e pregavam uma vida fiel ao Evangelho e à experiência dos primeiros apóstolos. A autonomia do movimento foi vista com grande preocupação por parte das autoridades eclesiásticas, em especial depois que se aliaram aos Irmãos do Espírito Livre e aos Franciscanos Espirituais.*

Os inquisidores deixaram de distinguir entre os grupos, apesar de uma primeira tentativa de separar os "bons" dos "maus". Clemente V, primeiro, e João XXII, posteriormente, perseguiram-nos e os condenaram em um único processo como hereges a partir de 1311. Muitos terminaram na fogueira, homens e mulheres.


Fonte de Estudo
*.   David Christie-Murray, I percorsi delle eresie. Milão, Rusconi, 1998, p. 166.


sábado, 7 de novembro de 2015

OS APOSTÓLICOS





Eram seguidores de Geraldo Segalello de Parma (1240-1300, aproximadamente). Este, como São Francisco anos antes, renunciou a todos os bens e, após ser rejeitado pela Ordem Franciscana, começou a pregar sozinho por volta do ano 1260. Em pouco tempo, um amplo movimento se formou ao seu redor (do qual ele, no entanto, nunca quis ser chamado de "líder") e se difundiu não só na Itália setentrional e central, más também na Dalmácia, Áustria, França, Alemanha e Inglaterra.2

Os apostólicos tendiam a se organizar em comunidade: povoados onde trabalhavam e possuíam a terra coletivamente, constituindo reservas comuns de alimentos e outros bens, as chamadas "credências".

Como os franciscanos, praticavam a pobreza e pregavam em qualquer lugar: nas praças, nas ruas, mas também nas igrejas cedidas por eclesiásticos simpatizantes. Ao contrário dos primeiros, no entanto, contestavam o dízimo (pagamento obrigatório que os fiéis deviam pagar à Igreja e que oneravam bastante a renda dos camponeses pobres) e o poder do clero, consideravam a Igreja de Roma irremediavelmente profanada, praticavam o batismo dos adultos, não juravam nem pregavam a solidão.3 Além disso, declaravam que era melhor viver sem votos do que pregá-los apenas de maneira formal.4

Dentre os seguidores de Segalello, estavam várias mulheres, que assumiam o posto de "irmãs" dos apostólicos ou, até mesmo, "profetisas".

Anedotas e lendas das mais variadas surgiram em torno dos feitos de Segalello e de seus seguidores, e hoje é praticamente impossível diferenciar o que é verdadeiro do que é falso. Para o povo, Segalello era um santo que realizava milagres, um "Francisco ressuscitado", capaz de caminhar sobre as águas como São Pedro. Para seus detratores, como o franciscano Salimbene de Parma,'era apenas um leigo de meras origens camponeses, um "iletrado", um "idiota", e seus seguidores nada mais eram que "pastores de porcos e bois", "obtusos", "bárbaros e patifes".

Salimbene atribuía a Segalello e a seus seguidores várias "burrices": o profeta apostólico teria o hábito de dormir com uma moça nua para testar a própria castidade e teria ingressado na vida pública ao aparecer sobre uma charrete mamando dos seios de uma seguidora, como se fosse uma criança. Mas as massas não consideravam as palavras de frei Geraldo tão rudes assim, já que o próprio Salimbene foi obrigado a admitir que, na Emília, os pregadores apostólicos tinham um séquito bem maior do que os franciscanos.

Até mesmo as crianças pregavam, e, dentre elas, havia um verdadeiro menino-prodígio que, quando colocado sobre o trono de uma catedral, atraía um grande público e conseguia várias conversões. Quando pregou em Ferrara, aconteceu o seguinte:

Um dia, o frei Boaventura pregava no convento dos Frades Menores em Ferrara e percebeu que alguns de seus ouvintes se levantaram de repente e saíram correndo. Ele ficou muito surpreso... Perguntou, então, por que saíam correndo. Aqueles que ficaram responderam: "Por que um infante dos apostólicos está pregando na igreja mãe do beato Jorge. É lá que o povo se reúne. E é por isso que vão embora correndo: para conseguir pegar lugar.5

Em 1280, na região de Reggio Emilia, houve um verdadeiro levante popular contra o clero por causa dos dízimos. A culpa por ter incitado o povo recaiu sobre Segalello e seus seguidores, que proferiam discursos com o seguinte teor:

"Ai de vocês, que exigem o dízimo da colheita e negligenciam a justiça e a caridade... Ai de vocês, guias cegos, pois dizem e não fazem, e exigem os primeiros lugares e os cumprimentos nas praças, mas sobrecarregam os outros de um fardo insuportável nos quais nem encostam um dedo..."

Frei Geraldo foi preso e encarcerado pelo bispo de Parma, Obizzo Sanvitali. Inicialmente, foi para uma cela do bispado, depois lhe foi concedida uma espécie de liberdade condicional dentro do palácio bispai (o bispo se divertia ouvindo suas palavras, como se fosse um jogral).

Após quatro anos de cárcere, foi solto. É provável que o bispo o considerasse um personagem inócuo, e não foi aventada a suspeita de que o herege se tivesse feito de louco para conseguir a liberdade.

Mas a corda da estrutura eclesiástica se apertava cada vez mais em volta dos apostólicos. Em 1285, o papa Honório IV ordenou que depusessem o hábito característico (um manto acinzentado ornado de uma capa branca) e entrassem nas ordens regulares da Igreja Católica. Poucos aceitaram o convite. Os apostólicos foram, então, expulsos das igrejas da cidade de Parma.

Em 1290, vieram as fogueiras: quatro apostólicos, dois homens e duas mulheres, foram executados em Parma. Outros os seguiram nos anos seguintes. Em 18 de julho de 1300 (ano do primeiro jubileu da Igreja Católica), o próprio Geraldo Segalello foi queimado na fogueira.

FONTE PARA ESTUDOS

1.   G.G. Merlo, Eretici ed eresie medieval!. Bolonha, Il Mulino, 1998, p. 116. Notem também que, em hebraico, o termo "ruah", por nós traduzido como "espírito santo", é feminino.
2.   Rino Ferrari, Fra Gherardo Segalello Libertário di Dio, Quaderni dolciniani. Biella. Centro Studi dolciniani, p.33.
3.   Evangelho Segundo São Mateus, 6, 6.
4.   Rino Ferrari, op. cit., p. 25.
5.   G.G. Merlo, op. cit., p. 72.



terça-feira, 8 de setembro de 2015

AS HERESIAS ANTIGAS

O que é uma heresia?

"Um cínico poderia definir a heresia como a opinião expressa por um grupo minoritário que uma maioria suficientemente poderosa para poder puni-lo considera inaceitável [...] Deus [...] está do lado da maioria: a ortodoxia, pode-se acrescentar, é aquilo que dizem Dele [de Deus]."1

O significado que hoje damos ao termo "heresia", ou seja, "opinião errada", é uma inovação tipicamente cristã. O primeiro a usá-lo com esta acepção foi o apóstolo Paulo, em Gaiatas, 5, 20.

O termo "heresia" deriva do grego hàiresis, "escolha",2 e designava aqueles que pertenciam a uma escola filosófica por escolha. Hereges eram, portanto, os estóicos, os céticos, os epicuristas, mas também, no mundo hebraico, os fariseus, os saduceus e os essênios.3

A Igreja, desde o início, prestava uma atenção doentia à terminologia religiosa. Muitos eram os que se sentiam os únicos depositários da verdade. E, assim, um termo que indicava a pluralidade das escolas de pensamento assumiu o significado negativo que conhecemos hoje.

Mas não é fácil manter uma verdade. Durante a história, houve contínuas revisões e correções. Uma afirmação declarada herética por um concilio era derrubada por outro e vice-versa. O exemplo mais conhecido talvez seja o de Joana d'Arc, queimada na fogueira em 1431 e santificada em 1920. O bispo Teodoro de Mopsuéstia, que morreu em 428 em paz com a Igreja, foi declarado herege e condenado 125 anos depois de sua morte. Os bispos Estêvão, de Roma (254-257), e Cipriano, de Cartago (248-258), ferrenhos adversários sobre questões doutrinárias quando em vida, são ambos venerados como santos.


Argumentos religiosos que custaram milhares de mortos    

Os primeiros séculos do cristianismo registram disputas intermináveis para estabelecer se Cristo era "da mesma substância do Pai" ou apenas "muito parecido", ou quantas naturezas coexistiam em Jesus Cristo. Disputas essa nas quais as opiniões consideradas equivocadas não eram apenas um erro, mas um pecado. Quem se obstinava em defender as próprias opiniões cometia um crime atroz, digno de uma pena severa.

Sobretudo quando o cristianismo se tornou religião de Estado, os "perdedores" nas disputas teológicas podiam ser punidos com o exílio, a tortura e a morte, a menos que se transformassem em perseguidores, quando o vento soprava a seu favor.

As tentativas de impor à força a "doutrina verdadeira" a populações inteiras podiam ensejar rebeliões, vinganças, massacres e guerras.

Mas divergências teológicas acerca da Trindade justificam conflitos que duraram séculos e fizeram milhares de mortos? Quantos dos participantes do Concilio de Nicéia, por exemplo, tinham real capacidade de compreender todas as nuances filosóficas do embate entre arianos e trinitários? Com certeza, os primeiros pensadores cristãos se encontravam diante de problemas teóricos nada pequenos: precisavam conciliar o rígido monoteísmo herdado dos judeus com sua fé em Deus feito homem, sem se confundir nem com as tradicionais mitologias pagãs (lembremos das transformações de Júpiter), nem com os cultos místicos concorrentes e as doutrinas agnósticas, segundo as quais cada homem que ultrapasse um determinado percurso iniciático pode se tornar deus.

Os bispos não pagam impostos

Mas havia questões doutrinárias que diziam respeito a elementos de importância concreta para a vida quotidiana das primeiras comunidades cristãs: por exemplo, era preciso definir se os fiéis que haviam renunciado à fé nas perseguições deveriam ser readmitidos ou se os sacramentos celebrados por sacerdotes indignos deveriam ser validados.

E, naturalmente, havia também os bastante concretos interesses materiais das nascentes elites cristãs.

Pouco mais de cem anos após a suposta morte de Jesus, já existiam movimentos que lamentavam a corrupção e a decadência da Igreja, como os montanistas. Estes pertenciam a um movimento que nascera na Frígia no século II. Eles se consideravam puros, privilegiavam a relação direta com o Espírito, e as mulheres figuravam em primeiro plano. O próprio Montano, em sua missão, era ladeado por duas mulheres: Priscila e Maximília. 

Os montanistas foram perseguidos por séculos.4

Constantino, que transformou os bispos em funcionários do Império e lhes isentou do pagamento de impostos, apenas acelerou uma tendência já em curso no próprio corpo de Igreja. Os bispos há muito tinham deixado de ser simples porta-vozes das comunidades cristãs eleitos pelas Igrejas, ou seja, pelas assembleias de fiéis, tornando-se verdadeiros senhores que administravam a seu bel-prazer os bens da Igreja, ordenavam o clero menor de acordo com as próprias conveniências e, muitas vezes, "transmitiam" seu título aos filhos e irmãos. O cargo de bispo acabou se tornando muito desejado por membros das famílias abastadas.5

Apesar das disposições contrárias do Concilio de Nicéia, alguns homens foram nomeados bispos antes mesmo de serem batizados, como o filósofo neoplatônico (adepto de uma corrente de pensamento incompatível com o cristianismo) Sinésio de Cirene. O próprio Santo Ambrósio, já funcionário imperial, foi nomeado bispo poucos dias depois de ser batizado.6

Quando o cristianismo se tornou religião de Estado, as acusações de heresia e as disputas teológicas se tornaram pretextos para jogos de poder nos quais a aposta era muito terrena: o controle de dioceses "ricas", o monopólio de recursos e matérias-primas importantes, a eliminação de rivais e adversários, e a divisão dos postos nas cortes imperiais.

Por vezes, de maneira ainda mais perversa, quem acreditava de maneira fanática na própria verdade podia usar o poder e a influência de que dispunha para impô-la aos outros. Alexandre, bispo de Alexandria, por exemplo, foi acusado de sabotar as provisões de trigo em Constantinopla para levar o imperador a assumir uma posição decisiva contra o arianismo.7

No espaço e no tempo, a mesma doutrina daria cobertura a projetos políticos bem diferentes entre si. Dentre os seguidores de Ário, estavam imperadores romanos que perseguiam os rebeldes e o rei godo Totila, libertador dos escravos.

Vários imperadores bizantinos aderiram à doutrina monofisista, mas muitos outros incentivaram rebeliões populares contra a autoridade de Constantinopla. E as aparentes contradições poderiam continuar.
                         
Naturalmente, a muito complexa aventura do cristianismo não se explica apenas com fatores políticos, sociais e econômicos; há também elementos imponderáveis do ponto de vista racional.

Em épocas de grande taxa de analfabetismo, quando não existiam telecomunicações e as pessoas se locomoviam no lombo de um burro por estradas mal conservadas, um único pregador dotado de coragem e energia podia conseguir, com seu carisma e eloqüência, a conversão de populações inteiras.

Quando as teses de Lutero se difundiram no norte da Europa, muitos países as acolheram, conservando, no entanto, costumes católicos, como a confissão, que eram totalmente estranhos à doutrina luterana.

É provável que os bravos cristãos suecos e islandeses não se importassem com as divergências teóricas, que só quisessem ter ao seu lado padres que falassem sua língua, que fossem capazes de lhes explicar as Escrituras, que pregassem a moralidade sendo os primeiros a dar bom exemplo e não os dessangrassem com dízimos.


Começa a caça aos hereges

Talvez o primeiro caso de controvérsia religiosa dirimida por intermédio da lei tenha sido o de Paulo de Samósata, bispo de Antioquia (260-272). Ele era um monarquianista, ou seja, seguidor das doutrinas que não reconheciam a trindade de Deus.

Um sínodo de bispos convocado em 268 condenou suas doutrinas e o depôs. Em seguida, os bispos pediram ao imperador  Aureliano que executasse suas decisões, estabelecendo, assim, o perigoso precedente da intervenção do poder temporal nas questões eclesiásticas. Tudo isso acontecia em uma época em que os cristãos ainda eram periodicamente perseguidos.

O imperador decretou a deposição de Paulo, que continuou em seu posto graças aos favores de Zenóbia, rainha de Palmira, sob cuja influência se encontrava a diocese de Antioquia, que impusera uma política anti-romana.   '

Só em 272, quando o exército de Zenóbia foi derrotado pelo do imperador Aureliano, Paulo precisou abandonar sua cadeira.8


O arianismo depois de Constantino

O Concilio de Sárdica (Sofia), em 343, que se encerrou com a reiteração do que foi deliberado em Nicéia, foi abandonado pelos bispos orientais, que organizaram um contraconcílio em Filipópolis.

Em Constantinopla, durante o episcopado de João Crisóstomo (345-407), irromperam-se violentos conflitos entre arianos e niceianos 9  que deixaram um saldo de vários mortos.

Em 353, Constâncio II, único imperador, impôs as doutrinas filo-arianas em todo o território do Império. Os arianos, então, passaram a defender a tese de que a Igreja deveria se submeter ao Estado, enquanto os niceianos lutavam por autonomia.

Em 357, o bispo ortodoxo Ósio, já centenário, foi obrigado, por meio de tortura, a subscrever as teses arianas do Concilio de Sírmio.

Em 361, com a ascensão ao trono de Juliano, o Apóstata, que tentou restaurar o paganismo, foi dada anistia geral a todos os cristãos perseguidos acusados de heresia, provavelmente emitida com o objetivo de enfraquecer o cristianismo.

O imperador Teodósio I, que subiu ao trono em 378, logo condenou as doutrinas arianas nos territórios do Oriente. No Ocidente, entretanto, onde de fato reinava a ariana Justina, a tolerância foi garantida.

Em 386, o bispo de Milão, Ambrósio, após negar a Justina a cessão de uma igreja para realizar o culto ariano, organizou uma vigília em sua própria basílica para defendê-la dos ataques dos emissários imperiais.

Os próprios arianos, por sua vez, estavam divididos em várias correntes. Em 362, em Antioquia, havia cinco comunidades cristãs separadas, cada qual com seu próprio bispo e hostil às demais. Quando Teodósio ampliou seus domínios aos territórios ocidentais, o arianismo foi banido por completo do território do Império, e o cristianismo niceiano se tornou a religião oficial do mundo romano.

Naturalmente, o decreto não significou a extinção automática da heresia ariana, que sofreria, mais de um século depois, perseguições por parte de Justino e, depois, de Justiniano.10

O cristianismo, em sua versão ariana, foi difundido entre os povos "bárbaros" do norte graças às preleções de Áudio, bispo de vida exemplar, e, sobretudo, de Wulfila (345-407), o bispo que, por volta de 375, traduziu para o godo o Antigo e o Novo Testamentos.

Foi graças a essa tradução que a crença ariana conseguiu se difundir entre os visigodos, os ostrogodos, os suevos, os vândalos, os burgúndios e os lombardos.

"Ao contrário dos povos que viviam na Itália e que praticamente não se expressavam em latim, os bárbaros tinham a grande vantagem de aprender o Evangelho em sua língua falada. Os godos, assim, estavam mil anos à frentede Martinho Lutero."11

Em 525, o rei ostrogodo Teodorico interveio em defesa dos arianos de Constantinopla, oprimidos pelo imperador Justino. Para tanto, enviou à cidade um embaixador extraordinário, o papa João I, obrigado a apresentar ao imperador suas solicitações. Como o papa voltou a Roma no ano seguinte sem nada ter conseguido, Teodorico mandou prendê-lo, e João I morreu poucos dias depois.12

É óbvio que muitas vezes os soberanos arianos perseguiam os niceianos. Por exemplo, durante a dominação dos vândalos na África, estes sofreram vários tormentos. O auge foi no período entre 483 e 484, quando uma lei obrigou todos os católicos do reino vandálico a se converterem ao arianismo. Milhares de clérigos foram exilados no deserto junto com seus bispos. Muitos católicosforam condenados a torturas ou à pena de morte.'3

No entanto, até as populações bárbaras acabaram se convertendo ao catolicismo. No final do século VIII, o arianismo já havia desaparecido, e a crença niceiana triunfou como única Igreja verdadeira.     

                               
Os bispos pedem a cabeça dos hereges

É notório que os imperadores não eram muito sutis quando se tratava da eliminação dos dissidentes, mas, em determinado momento da história cristã, foram os próprios bispos que solicitaram a condenação à morte dos hereges.
O primeiro a sofrer as conseqüências do novo costume foi o bispo espanhol Prisciliano, em 385. Condenado e banido por dois concílios regionais, Prisciliano, que tinha um grande séquito popular, foi torturado e condenado pelo imperador Máximo, a pedido dos próprios bispos. Junto com ele, morreram seis de seus discípulos, dentre os quais uma mulher.

Na realidade, as acusações infundadas de heresia e a condenação à morte pareciam servir a propósitos essencialmente políticos.14 O episódio causou horror em vários prelados católicos que não concordavam com as heresias doutrinárias. O papa Sirício condenou as mortes.

O bispo Martino de Tours (321-401) excomungou todos os bispos que sujaram as mãos com aquele sangue. Só mais tarde aceitou se reconciliar com eles, a pedido do imperador, e apenas para salvar a vida de outros "priscilianistas" condenados à morte. Até mesmo o bispo Ambrósio, de Milão, recusou-se a ter contato com os bispos envolvidos na morte de Prisciliano.

Naquela época, "a consciência da Igreja ainda não estava acostumada a considerar o derramamento de sangue uma expressão do amor pregado por Jesus Cristo".15

O assassinato de Prisciliano não pôs fim ao movimento, pelo contrário. Seus seguidores passaram a venerá-lo como mártir, dando vida a um movimento "priscilianista" que duraria mais de um século.16


A heresia nestoriana e o concilio que terminou em rixa

O nestorianismo deve seu nome a Nestório, bispo de Constantinopla que, por volta de 428, contestou a qualidade de "Mãe de Deus" atribuída a Maria.17 Na época, o culto mariano já era muito difundido, e as teses de Nestório deram vida a verdadeiros tumultos. Contra ele se opôs com violência até mesmo Cirilo, bispo de Alexandria (diocese que lutava contra a de Constantinopla pelo controle do Oriente).

Em 431, o imperador Teodósio II convocou um concilio ecumênico em Éfeso para dirimir a questão.

Naquela época, viajar era muito difícil, e, por essa razão, os bispos chegaram em momentos diferentes. Primeiro, foram os adversários de Nestório, aproximadamente duzentos bispos liderados pelo de Alexandria, Cirilo. Decidiram dar logo início ao concilio, sem esperar os que apoiavam a parte contrária ou os enviados do papa. Nestório foi obrigado a se apresentar e, como se recusou a entrar antes que seus seguidores chegassem, teve de depor "in contumacia". O bispo de Éfeso, Mêmnon, chegou a incitar a multidão contra Nestório. Poucos dias depois, chegaram cerca de quarenta bispos nestorianos, guiados por João de Antioquia, que formaram um contraconcílio no qual declararam hereges e excomungaram Cirilo e Mêmnon.

Chegaram, então, os enviados do papa, que reabriram o concilio "oficial" e excomungaram João de Antioquia.

Os trabalhos do concilio se complicaram ainda mais com a intervenção de alguns funcionários imperiais, as tentativas de corrupção e os embates populares entre partidários das duas facções. No final, o imperador Teodósio II encerrou a assembléia criticando duramente os participantes e exilou tanto Nestório quanto Cirilo.18

Derrotado no território imperial, o cristianismo nestoriano difundiu-se na Ásia, chegando à China, à índia e à Mongólia. Em 486, os cristãos da Pérsia adotaram as teses nestorianas e empreenderam uma feroz perseguição contra os católicos. Para o rei da Pérsia, era muito cômodo apoiar uma "Igreja nacional" que não dependesse de autoridades religiosas de um país adversário, como o bispo de Constantinopla.19


A heresia monofisista e o "latrocínio de Éfeso"

A doutrina monofisista deve seu nome ao grego monos, único, ephisis, natureza, e nasce como uma reação ao nestorianismo. Os monofisistas afirmavam que Jesus Cristo possuía uma única natureza divina e nenhuma natureza humana.

O líder da doutrina foi Eutiques, monge de Constantinopla que, por suas idéias, sofreu violentos ataques, sendo proibido de realizar os ritos sacerdotais. Graças a seus conhecimentos na corte imperial do Oriente, no entanto, suas doutrinas  ganharam o apoio do imperador Teodósio II, que, em 449, convocou um concilio ecumênico em Éfeso para discutir a questão.

A assembléia foi fortemente direcionada de modo a dar ganho de causa às teses mononsistas. As tropas imperiais se lançaram com força contra os adversários de Eutiques, que não tiveram permissão nem para tomar a palavra. Um documento enviado pelo papa nem foi lido, e até mesmo o remetente foi excomungado. O bispo de Alexandria, Flaviano, levou uma surra tão grande que morreu pouco tempo depois.

O papa Leão Magno deu ao evento o nome de "latrocínio de Éfeso".20

Naturalmente, foi apenas o início de uma longa história. Por várias vezes, em uma intrincada trama de complôs, homicídios, alianças entre facções, ascensões ao trono de imperadores anti ou pró-eutiquianos, os católicos e os monofisistas se revezaram nos papéis de perseguidores e perseguidos, de vítimas e carrascos.21

As perseguições não deteriam a propagação do monofisismo. Ao contrário, graças às preleções de Tiago ou Jacó Baradai, bispo de Edessa, em 542, e fundador da Igreja Jacobita, países como Egito e Síria deram vida a Igrejas nacionais próprias, em contraposição à autoridade imperial. Mas nem Tiago conseguiu impedir a cisão de sua própria Igreja. Por exemplo, em 556, a sede episcopal de Alexandria tinha cinco pretendentes: quatro monofisistas de diversas correntes e um católico.

A Igreja etíope é até hoje monofisista. No século XVI, a Igreja romana contou com os portugueses para levar a ortodoxia à Etiópia, mas a operação falhou em razão de uma forte reação nacionalista que causou a expulsão de todos os missionários e a ruptura das relações com Roma. Mais recentemente, a Itália fascista tentou impor o catolicismo às suas colônias, mas a Igreja etíope resistiu. Ainda hoje, no Egito, existem duas Igrejas monofisistas: a copta e a melquita. Na Síria e na Mesopotâmia, ainda existem jacobitas, e na Armênia se professa uma confissão monofisista.

Os paulicianos                                                  

Seita de provável origem maniqueísta ou agnóstica,22 que surgiu na Ásia Menor por volta do século VII Tinha essa designação por causa da peculiar veneração aos escritos de São Paulo.2'

Sua doutrina diferenciava claramente um Deus criador do espírito e um Deus senhor e criador da matéria. Os paulicianos negavam a Encarnação e consideravam Cristo um anjo de Deus. Aceitavam como textos sagrados apenas os Evangelhos e as Cartas de Paulo e recusavam os sacramentos, as imagens sagradas, a hierarquia eclesiástica e a vida monástica. Em vez da missa, celebravam o ágape (festa do amor).24

Os paulicianos também formavam um movimento de protesto político, social e de revolta contra o despotismo bizantino e búlgaro.


Sofreram várias perseguições por parte do Império Bizantino, que os condenou oficialmente em 687. Eles, então, se organizaram como Estado independente e empunharam armas em sua defesa, até a derrota militar definitiva, em 752. Mas a derrocada não significou o fim do movimento. Há provas de que foram perseguidos pelo Império de Constantinopla ainda em 840. Alguns deles acabaram se mudando para as terras do emir de Melitene e lutando entre os árabes.

Outro ramo do movimento, sediado na Trácia, teria sobrevivido até o século XIII e inspirado o movimento herético búlgaro dos bogomilos.


Os bogomilos

Movimento dualístico que surgiu nas primeiras décadas do século X e que ganhou este nome graças às profecias do padre búlgaro Bogomil.

Para os bogomilos, havia uma clara antítese entre Deus, criador do espírito, e o demônio, criador da matéria. Eles acreditavam nas mesmas teorias que os paulicianos e pregavam a igualdade social e o afastamento dos pobres do domínio do clero e da nobreza. O bogomilismo se difundiu nos séculos seguintes nos Bálcãs e até as fronteiras de Bizâncio. Fortemente perseguidos pelos soberanos búlgaros e pelos imperadores bizantinos, os bogomilos se espalharam por toda a Europa Central e Ocidental, onde foram alvo de repressão das autoridades católicas.25

Em 1203, o rei da França, Roberto, o Pio, a pedido da Igreja, mandou queimar na fogueira, em Orleans, uma dezena de hereges "maniqueístas", provavelmente bogomilos mais avançados ou, talvez, os primeiros cátaros.26 Um episódio análogo ocorreu em Milão por volta de 1208.27

Na Bósnia, o bogomilismo chegou a se tornar religião de Estado. Em 1203, no entanto, o soberano Kulin só conseguiu se manter no poder ao concordar em trocar a doutrina bogomilista pela católica romana e acatar a tutela húngara.28




Fontes

1.   David Christie-Murray, I percorsi delle heresie, Rusconi, Milão, 1998, p. 21.
2.   Até nos Atos dos Apóstolos 5,17 e 26,5, tais termos conservam seu significado original.
3.   É preciso lembrar, a esse respeito, que, no mundo judaico, era admitida uma divergência de opinião impensável nas futuras sociedades cristãs. Por exemplo, fariseus e saduceus discutiam de forma inflamada sobre uma questão importantíssima: se existia ou não ressurreição depois da morte. Mas nenhuma das duas facções se sentia no direito de excomungar a outra.
4.   Vide Apêndice.
5.   Ambrogio Donini, Storia del cristianesimo - dalle orígini a Giustiniano, Teti editore, Milão, p. 261.
6.   Ibid, p. 261.
7.   Ibid.
8.   David Christie-Murray, op. cit, p. 75.
9.   Com este termo, são designados os defensores das decisões do Primeiro Concilio de Nicéia.
10. Para uma história completa do arianismo, cf. David Christie-Murray, op. cit, p. 77-91; Ambrogio Donini, op. cit, p. 258-275.
11. Dario Fo, La vera storia di Ravenna, Franco Cosimo Panini Editore, Modena, p. 78.
12. Cronologia universal, UTET, Turim, 1979. Cf. também Ambrogio Donini, op. cit, p. 324.
13. AAW, Storia dei cristianesimo, vol. 3, Borla/Città Nuova, Roma, 2002, p. 256-257.
14. David Christie-Murray, op. cit, p. 128.
15. Ambrogio Donini, op. cit, p. 251.
16. Ibid, p. 251-252.
17. Vide Apêndice.
18. David Christie-Murray, op. cit, p. 102-103; Ambrogio Donini, op. cit, p. 318.
19. Ibid, p. 104-106. Para um aprofundamento sobre o nestorianismo, vide Apêndice.
20. David Christie-Murray, op. cit, p. 108-109.
21. Vide Apêndice.
22. Vide Apêndice.
23. Segundo outras fontes, porque se remetiam aos ensinamentos dos escritos de Paulo de Samosata.
24. David Christie-Murray, op. cit, p. 121.
25. Ambrogio Donini, op. cit
26. Vide Capítulo 7.
27. Vide parágrafo sobre os hereges de Monforte, no Capítulo 7, sobre as heresias medievais.
28. David Christie-Murray, op. cit, p. 121.

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O Que é Heresia