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VOLTAIRE |
Os
infiéis de determinada época se transformam nos santos da época seguinte. Os
destruidores do velho são os criadores do novo. À medida que o tempo passa, o
velho se vai e o novo, por sua vez, torna-se velho. Há no mundo intelectual,
como no mundo físico, decadência e crescimento, e no túmulo dos que decaíram
nasce a juventude e a alegria.
A história do progresso intelectual é escrita na vida dos infiéis; direitos
políticos têm sido escritos por traidores, e liberdades de mentes, por hereges.
Atacar um rei era traição; disputar com um sacerdote, uma blasfêmia. Por muitos
séculos, a espada e a cruz foram aliadas. Juntas elas atacavam os direitos dos
homens. Elas se defendiam entre si. O trono e o altar eram abutres irmãos
gêmeos, vindos do mesmo ovo.
Jaime I disse: 'nenhum bispo, nenhum rei'. Ele deveria ter acrescentado:
'nenhuma cruz, nenhuma coroa'. O rei era o dono dos corpos dos homens. O
sacerdote era dono da alma. Um vivia de taxas coletadas pela força; o outro, de
esmolas coletadas pelo medo – ambos eram ladrões, ambos pedintes.
Esses ladrões e esses pedintes controlavam dois mundos: os reis faziam leis e
os sacerdotes faziam crenças. Ambas atribuíam sua autoridade a Deus. Ambos eram
representantes do Eterno.
Com as costas recurvadas, o povo carregava as obrigações de um, e com as bocas
abertas de espanto, recebia os dogmas do outro. Se o povo tentasse ser livre,
seria esmagado pelo rei, e todo sacerdote era um Herodes que esmagava as
crianças pensantes.
O rei governava pela força, e o sacerdote, pelo medo, e ambos dependiam um do
outro.
O rei dizia ao povo: "Deus vos fez servos, e me fez rei; ele vos fez para
o trabalho, e me fez para a alegria; ele vos deu trapos e ferramentas e me deu
palácios e roupas ricas; ele vos fez para obedecer e me fez para comandar. Esta
é a justiça de Deus".
E o sacerdote dizia: "Deus vos fez ignorantes e vis; ele me fez sábio e
santo; vós sois as ovelhas; e eu, o pastor; vossas peles pertencem a mim; se
não me obedeceis aqui, Deus vos punirá e vos atormentará para sempre num outro
mundo. Esta é a misericórdia de Deus".
"Não deveis usar a razão. A razão é uma rebelde. Não deveis contrariar – a
contradição é nascida do egoísmo. Deveis acreditar. Aquele que tiver ouvidos
para ouvir, que ouça". O céu era só uma questão de audição.
Felizmente para nós tem havido traidores e hereges, blasfemadores,
investigadores, pensadores, amantes da liberdade, homens de gênio, que deram
suas vidas para melhorar as condições dos seus semelhantes.
Isto pode ser suficiente para nos fazer perguntar: o que é a grandeza?
Um grande homem adiciona a o nosso conhecimento, amplia os horizontes do
conhecimento, liberta as almas das bastilhas do medo, cruza mares desconhecidos
e misteriosos, desbrava novas ilhas e novos continentes para o domínio do
conhecimento, novas constelações do firmamento para nossas mentes. Um grande
homem não busca aplauso e colocação. Ele busca a verdade. Ele busca a estrada
para a felicidade, e o que ele obtém ele compartilha com os demais.
Um grande homem joga pérolas aos porcos, e os porcos são freqüentemente
transformados em homens. Se
os grandes mantivessem para si as pérolas, grandes multidões seriam bárbaras
hoje.
Um grande homem é uma tocha na escuridão, um farol. Na noite da superstição, é
uma inspiração e uma profecia.
Grandeza
não é uma dádiva para a maioria; ela não pode ser de qualquer um; não pode ser
dada de um para outro homem; eles podem se dar poder e colocação, mas não
grandeza.
A posição não faz o homem, assim como o cetro não faz o rei. A grandeza vem de
dentro.
Os grandes homens são os heróis que libertaram os corpos dos homens; eles são
os filósofos e pensadores que deram liberdade para os espíritos dos homens;
eles são os poetas que mudaram os povos e encheram as vidas de milhões com
canção e amor. São os artistas que cobriram os muros nus da vida com triunfo e
gênio.
Eles são os heróis que mataram os monstros da ignorância e do medo; eles
desmoralizaram os gorgons e derrubaram os deuses cruéis de seus tronos. Eles
são os inventores, os descobridores, os mecânicos, os reis da utilidade, que
têm civilizado este mundo. E encabeçando este exército heróico, o maior de
todos, está Voltaire, cuja memória honraremos nesta noite.
Voltaire! Um nome que excita a admiração dos homens, a malícia dos sacerdotes.
Nome que, se pronunciar na presença de um clérigo, você verá que fez uma
declaração de guerra. Pronuncie este nome, e na face dele a máscara da mansidão
cairá, e da boca do perdão se derramará uma Niágara de impropérios e calúnias.
E no entanto, Voltaire foi o grande homem do seu século, e o que mais fez pela
liberdade do que qualquer outro dos filhos dos homens.
No domingo, em 21 de novembro de 1694 um bebê nasceu. Um bebê tão
demasiadamente frágil que sua respiração hesitou, e seus pais trataram de
batizá-lo o mais rápido possível. Eles estavam ansiosos em salvar a alma do seu
filho, e eles sabiam que se morresse antes do batismo, ele estaria condenado a
uma eternidade de dor. Eles sabiam que "Deus despreza uma criança
pagã". O padre que, com umas gotas de água lhe deu o nome de
François-Marie Arouet salvou sua alma – o pequeno que, enrolado em panos,
chorava debilmente, respirando com dificuldade, era aquele destinado a romper
da garganta da liberdade as garras assassinas e cruéis da "Besta
Triunfante".
Quando Voltaire veio para este grande palco de tolos, seu país havia sido
cristianizado – não civilizado – por aproximadamente quatrocentos anos. Por mil
anos a religião da paz e da boa vontade havia dominado. A lei havia sido dada
pelos reis cristãos. E sancionadas pelos 'sábios santos homens'.
Sob o benigno reino da misericórdia universal toda corte teve sua câmara de
tortura, e todo pastor usava o esmagador de polegares e a prancha de tortura.
Foi tão grande o sucesso do evangelho abençoado que toda ciência foi proscrita.
Exprimir honestamente suas idéias, ensinar seus semelhantes, investigar por
você mesmo, buscar a verdade, tudo isso eram crimes e a 'santa igreja'
perseguiam esses criminosos com a espada e a fogueira.
Os que acreditam num Deus do amor – um pai eterno – puniam milhares de ofensas
com a morte e a tortura. Pessoas suspeitas eram torturadas para confessar.
Pessoas indiciadas eram torturadas para dizer o nome dos cúmplices. Sob a
liderança da igreja a tortura se tornou a única força de persuasão.
Nesse ano abençoado de 1694 todos os escritores estavam sob a influência da
igreja e das coroas. A maioria deles eram jogados em prisões, ou empobrecidos
com taxas e impostos, exilados ou executados. O pouco tempo que os verdugos
tinham de folga era ocupado com a queima de livros. As cortes de justiça eram
armadilhas com as quais os inocentes eram apanhados. Os juizes eram quase tão
maliciosos e cruéis quanto os bispos e santos. Não havia julgamento com júri e
as evidências permitiam o indiciamento do suposto criminoso apenas pelas
suspeitas no depoimento. As testemunhas, correndo o risco de ser torturadas,
geralmente diziam aos juízes o que eles queriam ouvir.
O sobrenatural e miraculoso dominavam o mundo. Tudo era explicado, mas nada era
entendido. A igreja a líder. Os doentes compravam de monges pequenos amuletos
de papel que eram benzidos. Eles não procuravam um médico, mas um sacerdote. E
os padres vendiam aos doentes e moribundos esses amuletos. Esses pequenos
pedaços de papel curariam doenças com a ajuda de santos. Se fossem colocados
num berço, você poderia evitar que a criança fosse enfeitiçada. Se fossem
colocados numa despensa, os ratos não iriam devorar seu milho. Se fossem
colocados na sua casa, os maus espíritos não entrariam pelas portas, e se você
os enterrasse no campo, teria bom clima, as geadas atrasariam, as chuvas
chegariam quando necessário, e colheitas abundantes abençoariam seu trabalho. A
igreja insistia que todas as doenças poderiam ser curadas em nome de Deus, e
essas curas poderiam ser realizadas pela oração, pelo exorcismo, tocando ossos
de santos, pedaços da cruz sagrada, sendo salpicadas por água benta, ou com sal
santificado, ou tocados com santos óleos.
Naqueles dias os santos eram os melhores médicos. São Valentim curava a
epilepsia; São Gervásio era excelente para reumatismo; São Miguel, para câncer.
São Sebastião era bom para mordidas de cobra e picadas de insetos venenosos;
Santa Apolônia, para dor de dentes; Santa Clara, para problemas nos olhos; São
Huberto para hidrofobia; era comentado que os médicos diminuíam a confiança na
igreja; era o bastante: a ciência era inimiga da religião.
A igreja pensava que o ar era cheio de demônios; que o pecador era uma espécie
de casa habitada por maus espíritos; que os anjos estavam do lado dos homens,
enquanto que os diabos estavam contra; enquanto que Deus, quando as
recomendações e doações eram o bastante, expulsava os maus espíritos da área.
Satã tinha poder sobre o ar; conseqüentemente, ele controlava o congelamento, o
mofo, os relâmpagos e as tempestades; e a principal ocupação da igreja era com
sinos, com água benta, com incenso, com cruzes, para vencer o príncipe da força
do ar. Confiava-se muito na força dos sinos; eles eram salpicados com água
benta e seu som limpava o ar de impurezas e diabos. E os sinos protegiam as
pessoas de relâmpagos e tempestades. Naquela época a igreja costumava
anatemizar os insetos.
Processos eram instaurados contra ratos e existiam julgamentos; todo convento
possuía seu mago mestre, que vendia incenso, sal e sírio, e consagrava palmas e
relíquias. Toda ciência era vista como uma inimiga. Todo fato era mostrado pela
igreja com ironia. Investigadores eram vistos como perigosos. Pensadores eram
traidores; e a igreja exercia toda a sua força para evitar o progresso da
humanidade.
Não havia verdadeira liberdade, nenhuma real educação, nem filosofia, nem
ciência – nada além de credulidade e superstição. O mundo estava sob controle
da igreja e de Satã.
A igreja acreditava firmemente na existência de feiticeiras e demônios. Desta
maneira a igreja tinha todos os inimigos sob seu poder. Bastava acusá-lo de
feitiçaria que a malta ignorante o fazia em pedaços. Tão comum
esta crença, a crença no sobrenatural, que fazia com que as pessoas simples
fizessem qualquer acordo com os diabos e espíritos do mal. Esta terrível
doutrina fazia com que qualquer pessoa lançasse suspeitas sobre seus amigos;
ela fazia com que maridos denunciassem suas esposas, crianças, denunciassem
seus pais, e os pais denunciassem seus filhos.
Ela
destruiu as amenidades da humanidade; tirou a justiça dos julgamentos; quebrou
os laços de amizade; encheu de veneno a taça de ouro da vida; e transformou a
Terra numa perdição povoada de diabos maliciosos, abomináveis e traiçoeiros;
este era o resultado na crença no sobrenatural; este era o resultado de
desprezar as evidências dos nossos sentidos, e confiar em sonhos, visões e
medos; este era o resultado do ataque contra a razão humana; este era o
resultado de depender da imaginação, no sobrenatural; este era o resultado de
viver neste mundo para um outro vindouro; em depender de padres, em vez de
depender de nós mesmos.
Os protestantes competiam com os católicos; Lutero ficou lado a lado com os
padres e promoveu a crença em diabos e maus espíritos. Mas para o católico,
todo protestante era possuído pelo demônio. Para o protestante, todo católico
era a casa do diabo. Toda a ordem, toda a sucessão de causas e efeitos era desprezada;
o natural deixava de existir; o sábio e o ignorante estavam num mesmo nível; o
padre era apanhado na rede que ele mesmo preparara para o servo; e o
cristianismo se transformou num enorme hospício comandado pelos loucos.
Quando Voltaire nasceu a França era comandada pela igreja; era um período de
corrupção disseminada; os padres eram na maioria libertinos; os juizes, cruéis
e maus. Os palácios reais eram casas de prostituição. Os nobres eram
insensíveis, orgulhosos, arrogantes e cruéis até o último degrau; a igreja
passara mil anos até chegar a este estado de coisas.
As sementes da revolução estavam sendo semeadas inconscientemente por cada
nobre e clérigo; elas estavam germinando lentamente nos corações dos maus;
estavam sendo aguadas pelas lágrimas da agonia; havia um desejo de sangue;
trabalhadores bronzeados pelo sol, curvados pelo trabalho, deformados pela
pobreza, olhavam para as gargantas brancas das moças debochadas e pensavam em
cortá-las.
Naquela época os interrogatórios eram conduzidos com instrumentos de tortura; a
igreja era um arsenal de superstições. Milagres, relíquias, anjos e demônios
eram tão comuns como mentiras.
Para conhecermos um grande homem, precisamos conhecer seu ambiente; devemos ver
o palco no qual ele atuou; conhecer o ato em que ele representou; e devemos
também conhecer sua platéia. Na Inglaterra George I estava divertindo-se com o
"May Pole" e o "Elefante". Então, George II, ciumento e
colérico, odiando os ingleses e sua língua, fazendo de si, entretanto, uma imagem
de ídolo diante da qual os ingleses se orgulhavam de se curvar –
triunfantemente esnobe – fazendo o código penal a cada dia mais sangrento – 223
ofensas punidas com a morte – as prisões cheias e os patíbulos apinhados –
esforçava-se de toda maneira para reprimir a ambição do homem para ser homem,
enquanto a igreja se esforçava na cerimônia e na supertição para fazer o homem
bom – enquanto o estado dependia do couro, da corda e do machado para fazer os
homens patrióticos.
Na Espanha a inquisição detinha todo o controle – todos os instrumentos de
tortura eram usados para prevenir o crescimento da mente. A Espanha, que tinha
expulsado os judeus, ou por assim dizer, seu talento; que tinha expulsado os
mouros, ou seja, seu bom gosto e sua indústria estavam ainda lutando por todos
os meios religiosos para reduzir o país à imbecilidade da verdadeira fé. Em
Portugal eles estavam matando mulheres e crianças por comer carne nos dias
santos. E isto para agradar o mais misericordioso dos deuses.
Na Itália, o país se prostrava coberto por um enxame de cardeais e bispos e
padres e monges e freiras e todos os representantes do santo ócio. A inquisição
estava lá também - enquanto mãos se juntavam em oração ou se estendiam em busca
de esmolas, outras apertavam com alegria e decisão as alavancas das mesas de
tortura, ou acendiam as fogueiras das santas chamas.
Na Alemanha estavam matando pessoas acusadas de fazer um pacto com o inimigo do
homem. E no nosso bom país, perseguiam Quakers, roubando homens e crianças de outras
crenças, tirando crianças do seio das suas mães, e exigindo trabalho com o
chicote. A superstição dominava o mundo!
Só existe uma utilidade para a lei, só uma desculpa para o governo - a
manutenção de liberdade – para dar a cada homem o que é dele, para assegurar ao
fazendeiro o que ele produz no solo, ao mecânico o que ele inventa e fabrica,
ao artista o que ele cria, ao pensador o direito de expressar o que ele pensa.
Liberdade é a respiração do progresso.
Na França o povo era a diversão dos caprichos do rei. Em toda parte estava a
sombra da bastilha. Era sentida no sol mais forte, na casa mais feliz. Com o
rei caminhava o chefe da tribo; atrás do trono ficava a câmara de tortura; a
igreja recorria à mesa de torturas, e a fé era garantida com a fogueira; a
ciência estava proscrita, e a filosofia, assim chamada, era o reino da
superstição.
Nobres e padres eram sagrados. Servos eram vermes. A idolatria sentava no
banquete e a indústria reunia as migalhas e os restos.
OS
DIAS DE JUVENTUDE
Voltaire era do povo.
Na linguagem de hoje, ele não tinha nenhum ancestral. Seu nome verdadeiro era
François-Marie Arouet. Sua mãe era Marguerite d'Aumard. Sua mãe morreu quando
ele tinha sete anos de idade. Ele tinha um irmão mais velho, Armand, que era
crente, religioso e bastante diferente. Esse irmão costumava dar oferendas para
a igreja na esperança de compensar a descrença do irmão. Até onde sabemos,
nenhum de seus ancestrais era gente alfabetizada.
Os Arouet nunca escreveram uma linha. O abade de Chaulier era seu padrinho, e
apesar de abade, era um deísta que não dava importância alguma para a religião,
exceto com relação a seu salário. O pai de Voltaire queria fazê-lo um advogado,
mas ele não tinha nenhum interesse pelas leis. Com a idade de 10 anos ele
entrou no colégio Louis Le Grand. Era um colégio jesuíta e lá ele permaneceu
por sete anos, saindo aos dezessete, e nunca freqüentando outra escola.
De
acordo com Voltaire, ele não aprendeu nada nessa escola com exceção de um pouco
de grego, um pouco de latim, e uma grande quantidade de absurdos. Nesse colégio
Louis Le Grand não ensinavam geografia, história, matemática, ou qualquer outra
ciência. Era uma instituição católica controlada por jesuítas. Naquela época a
religião era defendida e apoiada pelo estado. Atrás de toda crença estava a
baioneta, o machado, a roda, a fogueira e a câmara de tortura.
Enquanto Voltaire estudava no colégio Louis Le Grand, os soldados do rei
perseguiam os protestantes nas montanhas de Cevennes, para pendurá-los nos patíbulos,
para torturá-los, para colocá-los na roda, para queimá-los na estaca.
Aos dezessete Voltaire decidiu dedicar-se à literatura. Seu pai disse,
referindo-se aos dois filhos François e Armand: "Eu tenho um par de filhos
tolos, sendo um em verso e o outro em prosa". Em 1713 Voltaire, tornou-se
diplomata. Ele viajou para Haia junto com um ministro francês e lá ele se
apaixonou. A mãe da garota o rejeitou e ele mandou as roupas para a moça para
que ela o pudesse visitar.
A trama
foi descoberta e ele foi expulso. Ele enviou para a moça uma carta, e nela você
percebe a característica de Voltaire: "Não se exponha à fúria de sua mãe.
Você sabe do que ela é capaz. Você já experimentou muito bem. Finja. É a sua
única chance. Diga a ela que você já me esqueceu e que agora me odeia; depois
de dizer-lhe isso, ame-me muito mais".
Depois deste episódio, Voltaire foi formalmente rejeitado pelo seu pai. Seu pai
enviou uma ordem de prisão e deu ao filho a escolha da prisão ou do exílio. Ele
finalmente consentiu em tornar-se um advogado e disse: "Tenho trabalhado
num escritório de um procurador que se detém em detalhes sem importância".
Nessa época ele concorreu a um prêmio, escrevendo um poema que falava sobre a
generosidade do rei que construíra o coro da catedral de Notre Dame. Ele não
ganhou. Trabalhando um pouco mais com o procurador ele passou a odiar a lei e
começou a escrever poesia e descrever a tragédia. Grandes questões estavam
agitando a opinião publica. Questões que colocaram uma enchente de luz naquela
época.
Em 1552 Dr. Baius começou a discutir certas questões que colocavam sob dúvida a
doutrina do livre-arbítrio. Os monges cordelianos selecionaram setenta e seis
dessas proposições e o denunciaram ao papa como herege, e do papa obtiveram
aquilo que era conhecido como uma bula. Esta bula continha uma passagem
duvidosa, cuja compreensão dependia da presença de uma vírgula. Os amigos de
Dr. Baius escreveram para Roma para saber onde deveria ser colocada a vírgula.
Roma, ocupada com outras questões, mandou outra bula na qual a sentença era
colocada sem a tal vírgula. E a disputa continuou.
Então surgiu uma grande controvérsia entre os jansenistas e os molinistas.
Molini era um jesuíta espanhol que sustentava a doutrina do livre-arbítrio com
uma sutileza sua: "O arbítrio do homem é livre, mas Deus vê exatamente
como ele o usará." Os presbiterianos de nossa época ainda estão enrolados
com este grande absurdo.
Jansenius era um jesuíta francês que levava ao extremo a doutrina da
predestinação, assegurando que Deus comanda coisas que são impossíveis e que
Cristo não morreu por todos.
Em 1641 os jesuítas obtiveram uma bula condenando cinco proposições de
Jansenius. Os jansenistas então negaram que qualquer dessas proposições tivesse
sido descrita por Jansenius.
Esta questão de molinismo e jansenismo ocupou a França durante uns duzentos
anos.
No tempo de Voltaire, a questão primordial era se as cinco questões condenadas
pelo papa haviam sido, de fato, escritas por Jansenius. Os jansenistas
provaram, então, que as cinco proposições não estavam no seu trabalho, porque
uma sobrinha de Pascal tivera uma doença no olho curada por um espinho da coroa
de Cristo.
A bula "Unigenitus" foi lançada em 1713, e então todas as prisões se
encheram de jansenistas. Esta grande questão de livre-arbítrio e predestinação,
meios e responsabilidade, ser salvo pela interferência divina, e condenado pela
glória de Deus, ocupara as mentes do chamado mundo civilizado por muitos
séculos. Todas estas questões eram debatidas na Suíça; e na Holanda durante
séculos; e na Escócia, e na Inglaterra, e na Nova Inglaterra, e milhões de
pessoas ainda estão ocupadas tentando harmonizar pré-ordenação e
livre-arbítrio, necessidade e moralidade, predestinação e responsabilidade.
Depois da morte de Luís XIV o regente tomou posse, e então as prisões foram
abertas. O regente pediu a lista de todas as pessoas, e dentre elas todas lá
estavam pela decisão do rei. Ele constatou que não se tinha sequer conhecimento
dos motivos que as levaram à prisão. Eles haviam sido esquecidos. Nem eles
próprios tinham a menor idéia dos motivos que os levaram à prisão. Um italiano
havia passado trinta anos na bastilha sem saber por quê. Logo após ter chegado
a Paris trinta e três anos antes ele foi preso e encarcerado. Ele já havia
envelhecido. Ele foi o único que sobrou da família. Quando os demais foram
libertados, ele pediu para permanecer, e lá ficou pelo resto de sua vida. Os
velhos presos haviam sido perdoados, mas em seu lugar outros foram colocados.
A essa época, Voltaire não estava interessado nas questões importantes – quase
nada sabia sobre governo e religião. Ele estava ocupado escrevendo poemas,
comédias e tragédias. Ele estava cheio de vida. Todos os seus gostos tinham
asas, como borboletas.
Ele estava sendo acusado por escrever algumas frases mordazes. Ele então se
refugiou em Tulles, a trezentas milhas de distância. Dessa distância ele
escreveu decidido: "Eu estou num castelo, um lugar que deveria ser o mais
agradável do mundo, se eu lá não estivesse refugiado, e onde não há nada
faltando para minha perfeita felicidade, exceto a liberdade de me retirar.
Seria delicioso ficar, se eu tivesse a liberdade de sair".
Por fim ele recebeu a permissão de retornar. E novamente ele foi preso; desta
vez foi levado à bastilha onde permaneceu durante quase um ano. Enquanto preso
ele mudou seu nome de François-Marie Arouet para Voltaire. E desde então passou
a ser conhecido com este nome.
Voltaire, tão cheio de vida quanto um verão é cheio de flores, dando opiniões
sobre todos os assuntos relacionados a príncipes e reis, foi expulso para a
Inglaterra. Da ensolarada França ele foi para a nevoenta Albion. Ele ficou
famoso como um dos grandes da Grã-Bretanha. Ele encontrou Pope, um maravilhoso
mecânico verbal, um fabricante de flores artificiais, muito semelhantes às
naturais, exceto quanto à ausência de perfume e sementes, ele tomou
conhecimento de Young, que escrevera "Pensamentos Noturnos"; Young,
um velho hipócrita com uma virtuosa imaginação.
Um
cavalheiro que trabalhara na eleição da senhora do rei, que poderia ser feito
um bispo. Ele conheceu Chesterfield, e Thompson, autor de "As
Estações", que adorava ver o sol nascer na cama e visitar o interior; com
Swift, cujas setas envenenadas estavam sendo lançadas na carne de Mr Bull –
Swift, que era tão mau quanto irônico, tão cruel quanto bem humorado; com
Swift, um deão e um diabo; com Congreve, quem Addison considerava superior a
Shakespeare, que nunca escreveu nada além de uma grande frase: "A catedral
procurando tranqüilidade".
A
MATURIDADE DO HOMEM
Voltaire começou a
pensar, a duvidar, a questionar. Ele estudou a história da igreja, das crenças.
Ele descobriu que a religião de sua época se apoiava na inspiração das
escrituras – a infalibilidade da igreja – os sonhos de eremitas insanos - os
absurdos dos Pais da igreja – os erros e falsidades dos santos – a histeria das
freiras – a astúcia dos padres e a estupidez dos povos.
Ele
descobriu que o Imperador Constantino, que levou o cristianismo ao poder,
assassinou sua esposa, Fausta, e seu filho mais velho, Crispus no mesmo ano em
que ele convocou o concílio de Niceia, para decidir se Cristo era um homem ou o
filho de Deus. O concílio decidiu no ano de 325 que Cristo havia sido
consubstanciado com o Pai. Ele descobriu que a igreja estava ligada a um marido
que assassinou sua esposa, um pai que matou o filho por ter colocado em dúvida
a questão embaraçosa da divindade do Salvador.
Ele
descobriu que Teodósio convocou um concílio em Constantinopla em 381 no qual
foi decidido que o Espírito Santo provinha do Pai. Que Teodósio, o jovem,
convocou um concílio em Éfeso, em 431, que declarou que a Virgem Maria havia
sido a mãe de Deus. Que o imperador Marciano convocou outro concílio em
Calcedon, em 451, que decidiu que Cristo tem dois arbítrios – e que em 1274 o
concílio em Lion decidiu que o Espírito Santo provinha simultaneamente do Pai e
do Filho.
Portanto, passaram-se 1300 anos para que se estabelecessem umas poucas questões
que haviam sido reveladas por um Deus infinito à sua igreja infalível.
Voltaire percebeu que essa crença insana havia enchido o mundo de crueldade e
medo. Percebeu que paramentos eram mais sagrados do que virtudes – que imagens
e cruzes – que fragmentos de ossos e pedaços de madeira eram mais preciosos do
que os direitos e vidas de homens, e que os guardadores dessas relíquias eram
inimigos da raça humana.
Com toda a energia de sua natureza, com toda a capacidade de sua mente, ele
atacou esta "Besta Triunfante".
Voltaire era o apóstolo do bom senso. Ela sabia que poderia não ter existido
uma língua primitiva da qual as demais derivaram. Ele sabia que cada língua era
influenciada pelo ambiente. Ele sabia que a língua do gelo e neve não era a
língua das palmeiras e flores. Ele sabia também que não havia milagre algum na
língua. Ele sabia que era impossível que a história da torre de Babel tivesse
acontecido. Ele sabia que tudo o que existe no mundo é natural. Ele era inimigo
da alquimia, tanto na língua como na ciência. Uma frase sua é suficiente para mostrar
sua filosofia a este respeito: "Para transformar ferro em ouro, duas
coisas são necessárias: primeiro, a aniquilação do ferro, e segundo, a criação
do ouro".
Voltaire nos deu a filosofia da história.
Voltaire era um homem de bom humor, de boa índole e alegre. Ele desprezava com
todo o coração a filosofia de Calvino, a crença da sombra, do rigor, do
sobrenatural. Ele tinha dó daqueles que necessitavam da religião para ser
honestos e para ser felizes. Ele tinha a coragem de aproveitar o presente para
prever o que o futuro traria.
E, no entanto, por mais de cento e cinqüenta anos o cristianismo tem combatido
esse homem e sujado sua memória. Em todo púlpito seu nome tem sido pronunciado
com escárnio, e todo púlpito tem sido um arsenal de ofensas. Ele é um homem do
qual nenhum clérigo tem dito a verdade. Ele tem sido combatido igualmente por
católicos e protestantes.
Padres, pastores e bispos e missionários, deões e papas têm enchido o mundo com
ofensas e calúnias contra Voltaire. Acho curioso que os pastores não digam a
verdade sobre o inimigo da igreja. Na verdade, por mais de mil anos quase todo
púlpito era uma fábrica onde eram cunhadas as difamações.
Voltaire usou sua mente para combater as superstições de sua época.
Ele lutou com toda arma e todo argumento que de que ele dispôs. Ele era o maior
de todos os caricaturistas e usava toda o seu divino veneno sem piedade. Em
pura e cristalina ironia ele não teve similar. A arte da ironia foi levada por
ele quase à categoria de ciência. Ele conhecia e praticava qualquer
subterfúgio. Ele combateu o exército da hipocrisia e pretensão, o exército da
fé e da falsidade.
Voltaire foi incomodado pelos mais baixos e insignificantes espíritos de sua
época, pelos covardes e bajuladores, por aqueles que desejavam ganhar os
favores dos padres, pelos apadrinhados dos nobres. Algumas vezes ele se deixou
ser incomodados por esses miseráveis; algumas vezes ele os atacava; mas por
esses ataques ele poderia ser perdoado há muito tempo. No âmbar de seu gênio,
Voltaire preservou esses insetos, essas tarântulas, esses escorpiões.
Ficou famosa a idéia de que ele não foi profundo. Isso porque ele não e era
estúpido. Na presença do absurdo ele ria, e era taxado de irreverente. Ele
pensava que Deus não condenaria nem um padre para sempre – e isso era
considerado uma blasfêmia. Ele lutou para que cristãos não se matassem entre
si, e fez o que pôde para civilizar os discípulos de Cristo.
Tivesse
ele fundado uma seita e controlado um território da nação, tivesse ele queimado
alguns hereges em fogo brando, iria ele conquistar a admiração, amor e respeito
do mundo cristão. Tivesse ele apenas fingido acreditar nas fábulas da
antigüidade; tivesse ele proferido rezas em latim, segurado um cordão de
contas, feito o sinal da cruz, devorado de vez em quando a carne de Deus, e
acendido fogueiras nos pés da filosofia em nome de Cristo, estaria ele agora no
céu, comprazendo-se com o tormento dos condenados.
Tivesse ele simplesmente adotado a crença dos seus contemporâneos, se ele
tivesse dito que Deus, o todo-poderoso havia criado milhões ou bilhões de seres
humanos para a condenação eterna - e todos pela honra de sua gloriosa justiça –
que ele havia concedido poderes de advogado para um astucioso papa italiano,
autorizando-o a salvar as almas das esposas e enviando viúvas honestas para o
céu – se ele tivesse oferecidos às ventas do seu Deus o aroma de carne queimada
– o incenso da fogueira – se ele tivesse preenchido seus ouvidos com o grito
dos torturados – a música da prancha de tortura, ele seria hoje conhecido como
São Voltaire.
Durante muitos anos este homem incansável encheu a Europa com o produto de sua
mente. Ensaios, discursos, poemas, tragédias, comédias, representando cada fase
da mente humana. Na mesma época ele se engajou em negócios com especulação,
fazendo fortuna como um milionário, ocupado com as fofocas da corte e com os
escândalos dos padres. Na mesma época, atento para as novas descobertas da
ciência e as teorias dos filósofos, e ao mesmo tempo, nunca esquecendo de atacar
o monstro da superstição. Dormindo ou acordado ele odiava a igreja. Com os
olhos de Argus ele observava, e com os braços de Briareus ele atacava.
Durante
sessenta anos ele levou adiante uma guerra contínua e incansável ora em campo
aberto, ora espreitando uma oportunidade – tomando o cuidado, durante todo o
tempo, para manter-se independente de todos os homens. Ele foi bem sucedido.
Viveu como um príncipe, tornou-se um dos poderosos da Europa e com ele, pela
primeira vez, a literatura foi coroada.
Tem sido alegado pelos críticos cristãos que Voltaire foi irreverente; que ele
examinou coisas sagradas sem a solenidade; que ele se recusou a retirar os
sapatos diante do incenso queimado; que ele riu da geologia de Moisés; das
idéias astronômicas de Josué; e que a biografia de Jonas lhe causou
gargalhadas. Eles dizem que essas histórias, essas sagradas impossibilidades,
essas falsidades inspiradas, devem ser analisadas por uma mente que crê, e por
um espírito humilde; que elas devem ser analisadas em oração, enquanto se pede
a Deus para triunfar sobre as conclusões da nossa razão.
Esses
críticos imaginam que uma falsidade pode ser velha o suficiente para ser
venerada e que ficar de chapéu diante de sua presença é um ato de desacato.
Voltaire abordou a mitologia cristã da mesma maneira com que abordou a
mitologia grega e romana, ou a mitologia chinesa ou dos índios iroquois. Nada
há neste mundo sagrado demais para não poder ser investigado, ou ser
compreendido. O filósofo não se esconde. O segredo não é amigo da verdade.
Nenhum homem pode ser reverente às custas da razão. Nada deve ser reverenciado
até que a razão se decida se aquilo é digno de reverência.
Contra todos os milagres, contra todas as santas superstições, afiado pela
ironia, envenenado com a verdade, sempre atingiu o centro.
Tem sido alegado por muitos que nada do mais santo e mais sagrado, pode ser
ridicularizado. Na verdade, aquele que tenta ridicularizar a verdade,
ridiculariza a si mesmo. Ele se torna o alimento da própria gargalhada.
A mente humana tem muitas facetas. A verdade deseja ser e deve ser testada
diariamente, testada por todos os sentidos.
Mas de que maneira o absurdo da "presença real" pode ser respondido,
exceto por irreverência, bom humor e ridicularização? Como você pode convencer
um homem que acredita que quando ele engole a hóstia ele está engolindo a
divina trindade, que um padre engolindo umas gotas de vinho está engolindo o
Todo Poderoso? Como usar a razão com um homem que crê que as hóstias, quando
não usadas, devem ser bem guardadas para que os ratos não devorem Deus?
Qual o efeito que a lógica poderá ter num homem que acredita que um Deus
misericordioso enviou duas ursas para devorar e despedaçar quarenta e duas
crianças por terem rido de um profeta calvo? Como essas pessoas podem ser
respondidas? Como elas podem ser chamadas a ter um sendo de absurdo? Elas devem
sentir na carne a flecha da ridicularização.
Então Voltaire foi chamado de escarnecedor.
De que ele escarnecia? Ele ridicularizava reis que eram injustos; reis que não
dava a mínima importância para o sofrimento de seus súditos; ele ridicularizava
os nobres idiotas do seu tempo. Ridicularizava a corrupção na corte; a
desonestidade, a brutalidade, a tirania dos juizes. As leis absurdas e cruéis;
os costumes bárbaros; ele ridicularizava papas e cardeais, bispos e padres e
todos os hipócritas da Terra. Ele ridicularizava historiadores que enchiam seus
livros com mentiras; e filósofos que defendiam a superstição. Ele
ridicularizava os que odiavam a liberdade, os perseguidores dos seus
semelhantes. Ele ridicularizava a arrogância, a crueldade, a desfaçatez, e a
indizível ignorância de sua época.
Ele tem sido atacado por usar a arma da ridicularização.
A hipocrisia tem sempre odiado a risada, e sempre o fará. O absurdo detesta o
humor, e a estupidez detesta a ironia. Voltaire foi um mestre na ironia. Ele
ironizou o absurdo, o impossível. Ele ridicularizou as mitologias, os milagres,
as vidas estúpidas e as mentiras dos santos. Ele encontrou a falsidade e o fingimento
coroados pela credulidade. Ele viu a maioria ignorante ser dominada por uma
minoria astuta e cruel. Ele viu os historiadores, saturados pela superstição,
enchendo os seus volumes com detalhes impossíveis. E encontrou cientistas
satisfeitos com a desculpa "dizem".
Voltaire tinha o instinto da probabilidade. Ele conhecia a lei da média, o
nível do mar; ele tinha idéia de proporção, então ele ria das monstruosidades e
deformidades mentais – os non sequitur – dos seus dias. Aristóteles
afirmava que mulheres têm mais dentes que os homens. Isto era dito e repetido
pelos cientistas católicos do século dezoito. Voltaire contou os dentes. Os
outros estavam satisfeitos com o 'dizem'.
Voltaire, por muito tempo, apesar de seu ambiente, apesar da tirania e opressão
quase universais, acreditava em Deus e falava numa religião da Natureza. Ele
atacava as crenças de sua época porque elas eram ofensivas a seu Deus. Ele
imaginava uma divindade como um pai, como fonte de justiça, misericórdia e
inteligência, enquanto que a crença da religião católica O transformou num
monstro de crueldade e estupidez. Ele atacava a bíblia com todas as armas de
que dispusesse. Ele atacava sua geologia, sua astronomia, suas idéias de
justiça, suas leis, seus costumes, seus milagres absurdos e inúteis, suas
maravilhas tolas, sua ignorância sobre todos os assuntos, suas profecias
insanas, suas ameaças cruéis e suas promessas extravagantes.
Ao mesmo tempo, ele venerava o Deus da Natureza, o Deus que nos dá chuva e
flores, luz e alimento, saúde felicidade - e que enche o mundo com juventude e
beleza.
Atacado de todos os lados, ele lutou com todas as armas que a ironia, a lógica,
a razão, o escarnecimento, o desprezo, a indignação podiam dispor, ele
freqüentemente pedia desculpas, e as desculpas eram uma ofensa. Ele às vezes se
retratava, e a retratação era milhões de vezes pior do que os motivos da sua
retratação. Ele retirava, dando mais. Em nome da grandiloqüência, ele destruía
suas vítimas. Na sua reverência havia veneno. Ele constantemente avançava
fazendo recuos e reafirmava, retirando-se.
Ele não queria dar aos padres o prazer de vê-lo queimando ou sofrendo. Sobre
cada questão que ele se retratava, ele escreveu:
"Eles dizem que eu devo me retratar. Espontaneamente. Eu irei declarar que
Pascal está sempre certo. Que se São Marcos
e São Lucas se contradizem entre si, esta é apenas mais uma prova da verdade da
religião para aqueles que entendem dessas coisas; e que uma outra bela prova da
religião é que ela é ininteligível. Eu irei declarar que todos os padres são
gentis e descompromissados; que os jesuítas são pessoas honestas; que os monges
nem são orgulhosos nem dados à intriga; e que o cheiro deles é agradável. E que
a inquisição é o auge da piedade e tolerância humanas. Enfim, direi que tudo o
que eles desejam de mim é, que eles me vejam repousar, porque eles não iriam
perseguir um homem que "não tenha feito nada de mal a alguém".
Ele deu cada dia de sua vida maravilhosa para socorrer os oprimidos, proteger
os indefesos, reverter os infames decretos, resgatar os inocentes, reformar as
leis da França, eliminar a tortura, abrandar os corações dos padres, iluminar
os juizes, instruir os reis, civilizar o povo, e banir dos corações dos homens
o desejo e o amor pela guerra.
Vocês podem pensar que eu já disse demais; que eu coloquei este homem muito no
alto. Vejamos o que Goethe, o grande alemão, disse sobre este homem:
"Se você deseja profundidade, imaginação, gênio, gosto, razão,
sensibilidade, filosofia, originalidade, natureza, retidão, imaginação,
flexibilidade, precisão, arte, abundância, variedade, fertilidade, calor,
magia, charme, graça, força, e uma visão com a agudeza de uma águia, vasto
conhecimento, instrução, excelência, urbanidade, suavidade, delicadeza,
correção, pureza, clareza, eloqüência, harmonia, brilho, rapidez, alegria,
sublimidade, universalidade, perfeição de fato, preste atenção em
Voltaire".
Ate mesmo Carlyle, aquele terrier escocês, com seu rosnado de urso marrom, que
atacava humilhando, como sempre supus, porque ele odiava os rivais, foi forçado
a admitir que Voltaire desferiu o golpe de morte na moderna superstição.
É o dever de cada homem destruir as superstições de sua época, e na verdade há
milhares de homens e mulheres, pais e mães que repudiam de todo o coração
crenças na superstição, e mesmo assim permitem que essas mentiras sejam
ensinadas aos seus filhos. Eles permitem que a imaginação dos filhos seja
envenenada pelo dogma da tortura eterna. Eles permitem que pessoas arrogantes e
ignorantes, professores mansos e tolos, semeiem as sementes da barbárie nas
mentes de seus filhos. Sementes que encherão seus corações de medo e dor. Nada
é mais importante para um ser humano do que viver livre e sem medo.
É muito melhor ser um homem mortal e livre do que ser um escravo eterno.
Pais e mães devem fazer tudo o que podem para manter seus filhos livres. Eles
devem ensiná-los a duvidar, investigar, questionar, e todo pai e mãe deve saber
que em cada berço de cada criança rasteja a serpente da superstição.
A ORDEM DA
NATUREZA
Naquela
época, os crentes em Deus fingiam que o plano ou a ordem na natureza não era
cruel; que os pequenos eram sacrificados em beneficio dos maiores; que enquanto
a vida vivia da vida, enquanto animais viviam de animais, e enquanto o homem
era o soberano entre todos, ainda assim o poderoso vivia do fraco.
Sendo
assim, uma vida inferior era sacrificada para que a superior sobrevivesse. Este
argumento satisfazia a muitos. Entretanto havia milhares que não entendiam por
que os fracos deveriam ser sacrificados, ou por que a felicidade teria de
nascer da dor. Mas desde o advento do microscópio, desde que o homem teve a
oportunidade de observar os seres muito pequenos, assim como os infinitamente
grandes, ele percebeu que estavam enganados quando pensavam que só os grande
viviam às custas dos menores.
Agora se sabe que as vidas de animais visíveis são passiveis de ser, e em
muitos casos são, destruídas por seres inferiores; que o próprio homem é
destruído por micróbios; os bacilos, os minúsculos seres; nós descobrimos que,
para salvar os pequenos germes causadores da febre amarela, milhões de seres
vivos morrem; e que países inteiros foram dizimados por essas minúsculas bestas
causadoras da cólera.
E nós
sabemos que existem animais, ou chamem como quiserem, que vivem do tecido
cardíaco humano, e outros que preferem os pulmões, e outros de paladar tão
requintado que dão preferência ao nervo óptico, e quando já destruíram a visão
num olho, têm habilidade suficiente de perfurar a cartilagem nasal e atacar o
outro olho. E então nós encontramos o outro lado da questão. À primeira vista,
o maior parecia viver às custas do menor, mas numa analise mais cuidadosa,
percebemos que os menores vivem às custas dos maiores.
Voltaire foi por muito tempo um crente no otimismo do papa: "Todo o mal é
passageiro; todo bem é perene". Esta é uma bela filosofia para os bem
afortunados. Adapta-se aos ricos. É perfeita para os padres e reis. Soa bem. É
uma bela pedra para jogar num mendigo. É um artifício que nos permite ver com
satisfação as desgraças dos outros.
Esta não é uma filosofia daqueles que sofrem – para a indústria vestida de
farrapos, para o patriotismo na prisão, para a honestidade na necessidade,.
Esta é uma filosofia de classe, para poucos, e os poucos bem afortunados. E
quando a desgraça os atinge, essa filosofia de desmancha e desaparece.
Em 1755 houve um terremoto em
Lisboa. Este desastre terrível transformou-se numa
interrogação.
Os otimistas foram levados a pensar: "O que meu Deus está fazendo? Por que
o Pai Universal esmagou impiedosamente milhares dos seus pobres filhos mesmo no
momento em que eles estavam de joelhos dando graças a Ele?".
O que poderia ser feito com esse horror? Se têm de haver terremotos, por que
não acontecem em áreas desérticas e inabitadas ou em áreas no meio do mar,
distantes? Este evento assustador mudou a teologia de Voltaire. Ele se
convenceu de que este não é o mais perfeito dos mundos possível. Ele descobriu
que o mal está aqui desde sempre, e para sempre.
Os teístas ficaram mudos. O terremoto foi uma negação da existência de Deus.
SUA
HUMANIDADE
Toulouse
era uma cidade privilegiada. Era rica em relíquias. O povo era
tão ignorante como imagens de madeira, mas eles guardavam consigo os corpos
ressequidos de sete apóstolos – os ossos de crianças mortas por Herodes, partes
do vestido da virgem Maria, e muitos crânios dos idiotas infalíveis conhecidos
como santos.
Nessa cidade o povo celebrava todos os anos, com grande alegria, dois eventos
santos: a expulsão dos Huguenotes e o abençoado massacre de São Bartolomeu. Os
cidadãos e Toulouse haviam sido educados e civilizados pela igreja.
Os poucos protestantes, discretos por serem minoria, viviam no meio desses
chacais e tigres.
Um desses protestantes foi Jean Calas, um pequeno comerciante de produtos
secos. Por quarenta anos ele esteve no seu negócio, e seu caráter era
irrepreensível. Era honesto, bom e agradável. Tinha uma esposa e seis filhos –
quatro rapazes e duas moças. Um dos filhos tornou-se católico. O filho mais
velho, Marc Antoin, não gostava do trabalho do pai e das leis estúpidas. Ele
não teve autorização de trabalhar na cidade, desde que se tornasse um católico.
Ele tentou conseguir autorização negando que fosse protestante. Foi descoberto
e ficou revoltado. Finalmente ele se desinteressou pela vida e cometeu
suicídio, enforcando-se numa noite, na loja do pai.
Os fanáticos de Toulouse inventaram a história de que seu pai o matou para
impedi-lo de se tornar um católico.
Com esta acusação terrível o pai, a mãe, um filho, uma serviçal e um hóspede de
sua casa foram presos.
O filho morto foi considerado um mártir e a igreja se apossou de seu corpo.
Isto aconteceu em 1761.
Isto é o que eles chamavam de julgamento. Não havia qualquer evidência, mesmo a
mais leve, com exceção do interrogatório. Todos os fatos eram favoráveis aos
acusados. A força de união dos acusados não poderiam ter feito o ato.
Jean Calas foi condenado à tortura e à morte na roda. Foi em 9 de marco de 1762
e a sentença deveria ser cumprida no dia seguinte.
No dia dez o pai foi levado à sala de tortura. O carrasco e seus assistentes
juraram na cruz cumprir a sentença de acordo com a lei.
Eles o prenderam nos pulsos por uma algema de ferro no muro de pedra quatro pés
do chão. Então eles apertaram a corda de tal modo que as articulações dos
braços e pernas foram deslocadas. Então ele foi interrogado. Ele se declarou
inocente. Então as cordas foram distendidas até que a vida se esvaía no corpo
distendido. Mas ele suportava.
Isto foi denominado "A questão ordinária".
Na boca da vítima era colocado um chifre contendo três quartilhos de água.
Desta maneira, trinta quartilhos de água eram forçados a entrar no corpo do
condenado. A dor era acima de qualquer descrição, mas Jean Calas permaneceu
firme.
Ele foi levado ao cadafalso num carro especial de levar prisioneiros. Ele foi
amarrado numa cruz de madeira que havia no patíbulo. Então os verdugos pegaram
uma barra de ferro e quebraram cada perna e cada braço em dois pedaços,
desferindo onze golpes, ao todo. Então ele foi deixado para morrer. Ele
sobreviveu ainda duas horas, declarando sua inocência até o último instante. Já
que ele demorava a morrer, o carrasco o estrangulou. Então, seu corpo
dilacerado, ensangüentado e quebrado foi levado para a fogueira e queimado.
Tudo isso era um espetáculo, uma festa para os selvagens de Toulouse. O que
eles teriam feito se seus corações não tivessem sido amolecidos pelo alegre
ensinamento – paz na terra aos homens de boa vontade?
Mas isso não foi tudo. As propriedades da família foram confiscadas; os filhos
foram deixados em condições que se tornassem católicos; a serviçal foi levada a
um convento; as duas filhas foram entregues a um convento; a viúva, de coração
partido, foi liberada para ir aonde quisesse.
Voltaire soube deste caso. Por um momento sua alma queimou. Ele adotou um dos
filhos. Escreveu uma história sobre o caso. Correspondeu-se com reis e rainhas,
com diplomatas e advogados. Se fosse necessário dinheiro, ele conseguiria. Por
anos ele encheu a Europa com os gemidos de Jean Calas. E foi bem sucedido. O
julgamento horrendo foi anulado – os pobres acusados foram declarados inocentes
e milhares de dólares foram levantados para apoiar a família.
Foi um trabalho de Voltaire.
A
FAMÍLIA SIRVEN
Sirven,
um protestante, vivia em Languedoc com sua esposa e três filhas. O empregado do
bispo quis fazer de uma das filhas uma católica. A lei dava permissão para que
um bispo retirasse um filho de uma família protestante para o bem da sua alma.
Esta pequena moça foi, então, levada a um convento. Ela fugiu e retornou para
seus pais. O pequeno corpo estava marcado pelas cordas do convento.
"Sofre, criancinha, para vir a mim".
A criança estava fora de si – subitamente ela desapareceu e seu pequeno corpo
foi encontrado dias depois a três milhas de casa. Então surgiu o boato de que
os pais a assassinaram com o intuito de impedir que ela se tornasse católica.
Isto aconteceu a apenas algumas milhas da cidade católica de Toulouse, onde Jean
Calais estivera preso. Os Sirvens sabiam que um julgamento acabaria em condenação. Eles
fugiram. Na sua ausência eles foram julgados à revelia, seus bens foram
confiscados, os pais condenados à morte na forca, as filhas condenadas a
permanecer em baixo da forca enquanto sua mãe era executada, e depois expulsas.
A família fugiu no meio do inverno; uma das filhas deu à luz nas neves dos
Alpes. A mãe faleceu, e o pai, chegando à Suíça, viu-se sem condições de
sustentar a família.
Eles foram até Voltaire. Ele abraçou sua causa. Ele tomou conta deles, deu-lhes
meios para sobreviver, e lutou para que a sentença fosse revogada durante nove
longos anos. Ele apelou aos reis por dinheiro, para Catarina II da Prússia, e
para centenas de outros. Ele conseguiu. O que ele disse deste caso: os Sirvens
foram julgados e condenados em duas horas em janeiro de 1762 e agora, em
janeiro de 1772 depois de dez anos de luta, eles recuperaram os seus direitos.
Este era o trabalho de Voltaire. Como podiam os adoradores de Deus odiar o
trabalho de quem amava seus semelhantes?
O
CASO ESPENASSE
Espenasse era um
protestante de boa estirpe. Em 1740 ele recebeu em sua casa um clérigo
protestante a quem ele ofereceu ceia e dormida. Na terra onde os padres
repetiam a parábola do bom samaritano, isto era um crime. Por esse crime,
Espenasse foi julgado, indiciado e condenado à prisão perpétua.
Quando ele estava preso havia vinte e três anos seu caso chegou ao conhecimento
de Voltaire, e então ele foi, com os esforços de Voltaire, libertado e
devolvido ao seio de sua família.
Este foi o trabalho de Voltaire. Não há tempo de falar do caso do general
Lally, do general inglês Byng, da sobrinha de Corneille, do jesuíta Adam, dos
escritores dramaturgos, atores, viúvas e órfãos que sob sua influência,
dinheiro e tempo ele beneficiou. Mas vou contar outro caso.
Em 1765, na pequena cidade de Abbeville, uma velha cruz de madeira numa ponte
foi mutilada – talhada com uma faca – um crime terrível. Dois pedaços de
madeira, desde que dispostos formando uma cruz, eram mais sagrados do que carne
e sangue. Dois homens jovens foram colocados sob suspeita. O Chavallier de la
Barre e D'Etallonde. D'Etallonde fugiu para a Prússia e se alistou como
soldado. La Barre ficou e foi julgado. Ele foi indiciado sem a menor evidência
e ambos foram condenados.
Primeiro, para ser torturados, de modo ordinário e extraordinário.
Segundo, para ter suas línguas arrancadas da raiz, com uma torquês de ferro.
Terceiro, para ter suas mãos direitas decepadas na porta da igreja.
Quarto, para serem presos numa estaca com correntes, e queimados na fogueira em
fogo brando.
"Perdoai as nossas ofensas assim como perdoamos a quem nos tem
ofendido."
Lembrando desta frase, os juizes diminuíram a pena, permitindo com que suas
cabeças fossem amputadas antes de serem colocados na fogueira.
Houve recurso e o caso foi parar em Paris; analisado por uma corte composta de
vinte e cinco juizes, a sentença foi confirmada. A sentença foi cumprida no
primeiro dia de julho de 1766.
Quando Voltaire soube desta infâmia judicial, ele manifestou a intenção de
deixar a França. Ele pretendeu deixar para sempre um país onde essas crueldades
eram praticadas.
Ele escreveu um panfleto escrevendo a história do caso.
Ele procurou saber sobre D'Etallonde, escreveu em seu beneficio para o rei da
Prússia; libertou-o do exército; trouxe-o para sua própria casa; manteve-o
durante um ano e meio; descobriu que ele era entendido de desenho, matemática,
engenharia, e teve por fim o prazer de vê-lo como capitão engenheiro do
exército de Frederico, o grande.
Assim era Voltaire. Era o herói dos oprimidos e dos desesperados. Era o César,
para quem as vítimas da igreja apelavam. Esteve do lado do intelecto e do
coração do seu tempo.
E, no entanto, por cento e cinqüenta anos, aqueles que amam seus inimigos
esgotaram seu vocabulário de ódio, da ingenuidade da malicia e enganação, para
salvar suas crenças estúpidas do gênio de Voltaire.
Por longo tempo ele sobreviveu. Seus horizontes eram amplos. Ele tinha defeitos
– e estes ele compartilhava com os padres – mas as virtudes eram só suas.
Ele era a favor de uma educação universal – do desenvolvimento da mente. A
igreja o desprezava. Ele desejava colocar o conhecimento da humanidade à
disposição de todos. Todo padre era seu inimigo. Ele queria expulsar dos
portões do éden os querubins da superstição, para que os filhos de Adão
pudessem voltar para comer o fruto da árvore do conhecimento. A igreja era
contra porque ela tinha à venda os frutos proibidos do conhecimento.
Ele foi um dos maiores amigos da Enciclopédia – de Diderot, e fez todo o
esforço para levar o conhecimento a todos. Até onde se possa considerar a
definição, ele foi o maior advogado de sua época. Eu não afirmo que ele
conhecesse os termos e decisões, mas que ele percebia claramente o que a lei
deveria ser, como também suas aplicações e administração. Ele compreendia a
filosofia da evidência, a diferença entre suspeita e prova, entre crença e
conhecimento, e ele fez mais para reformar as leis dos reis e os abusos dos
tribunais do que todos os advogados e estadistas de sua época.
Na escola ele leu e estudou os trabalhos de Cícero – o mago da linguagem,
provavelmente o maior orador que fez uso da palavra, e as palavras do romano
permaneceram na sua mente. Ele permaneceu, apesar do espírito de casta, um
crente na igualdade entre os homens. Ele disse:
"Todos os homens nascem iguais".
"Vamos
respeitar a virtude e o mérito".
"Vamos
considerar, de coração, que todos os homens são iguais".
Ele foi um abolicionista – um inimigo da escravidão, em todas as suas formas.
Ele achava que a cor de um homem não dava a ele o direito de roubar de outro
homem por motivo de cor. Era amigo dos servos e humildes, e fez o que pôde para
proteger animais, viúvas e crianças da fúria daqueles que amam seu semelhante
como a si mesmo.
Foi Voltaire quem semeou as sementes da liberdade nos corações de Franklin,
Jefferson e Thomas Paine.
Pudendorf lançou as bases da idéia de que a escravidão era, em parte, baseada
num contrato. Voltaire disse: "Mostre-me o contrato. Se ele contiver a
assinatura do escravo, eu acreditarei em você".
Ele achava absurda a idéia de que Deus afogaria seus filhos e depois voltaria
para morrer por eles. É como a observação de Diderot: "Se Jesus teve o
poder de se defender dos judeus, mas se recusou a fazê-lo, ele deve ser acusado
de suicídio".
Ele teve a sensibilidade de saber que as chamas da fogueira não iluminam a
mente. Ele odiava a crueldade e lamentava pelas vítimas da igreja e do estado.
Ele era amigo dos infelizes – ele auxiliava os lutadores. Ele ria da pompa dos
reis – da pretensão dos padres. Ele acreditava no natural e abominava o
miraculoso e o absurdo.
Voltaire não era um santo. Foi educado pelos jesuítas. Ele nunca se preocupou
com salvação da sua alma. Todas as discussões teológicas provocavam suas
gargalhadas; as crenças, sua piedade; e a conduta dos fanáticos, seu desprezo.
Ele era muito mais que um santo.
A maioria dos cristãos de sua época usava a religião não apenas para uso
diário, mas também para desastres, como os barcos levam botes salva-vidas para
o caso de acidente.
Voltaire acreditava na religião da humanidade – das ações boas e generosas. Por
muitos séculos a igreja pintou a virtude como algo tão fria, feia e soturna que
o vício era tido como belo. Voltaire ensinou a beleza do útil, e a desgraça e
ignomínia da superstição.
Ele fez mais para quebrar as cadeias da superstição - para expulsar os
fantasmas do medo de corações e mentes, para destruir a autoridade da igreja,
para dar a liberdade ao homem, do que qualquer outro dos filhos dos homens. No
sentido mais elevado e virtuoso, ele foi o mais profundamente religioso homem
de sua época.
Depois de um exílio de vinte anos, ocupando durante todo este tempo o mundo
civilizado, Voltaire retornou a Paris. Sua jornada foi uma marcha triunfal. Foi
recebido como um conquistador. A academia, os imortais vieram recebê-lo – um
cumprimento que jamais havia sido concedido a um membro da realeza. Sua peça
"Irene" foi apresentada. No teatro ele foi laureado e coberto com
flores; ele foi intoxicado com incenso e veneração. Ele foi o maior poeta
francês, colocando-se acima de todos os demais. Entre os literatos do mundo ele
estava no topo – um monarca pelo divino direito de gênio. Havia três forças
poderosas na França: o trono, a igreja e Voltaire.
O rei era inimigo de Voltaire. A corte nada podia fazer com ele. A igreja,
maligna e morosa, esperava sua vingança e, no entanto, tal era a reputação
desse homem – tal era o apoio que ele tinha do povo, que ele se tornou, apesar
do trono e apesar da igreja, um herói da França.
Tornou-se um homem idoso de oitenta e quatro anos. Estava cercado de conforto,
dos luxos da vida. Era um homem de muita saúde, o mais rico escritor que o
mundo conhecia. Entre os literatos do mundo, ele era o primeiro. Ele era um rei
intelectual – aquele que construíra sua própria coroa e que costurara a púrpura
com sua própria força. Era um homem de gênio. O Deus católico havia dado a ele
a aparência de sucesso. Seus últimos dias foram preenchidos pela veneração –
quase adoração. Ele estava entre os maiores de sua geração.
Os padres se tornaram ansiosos. Eles começaram a temer que Deus esquecesse,
estando muito ocupado, de dar uma terrível lição em Voltaire.
No final de maio de 1778 comentava-se em paris que Voltaire
estaria à beira da morte. Atrás das cercas da expectação aglomeravam-se as aves
sujas da superstição, aguardando pacientemente sua presa.
"Dois dias antes de sua morte um sobrinho seu foi buscar o curador do
santo suplício e o abade Gautier e o trouxe para o quarto do seu tio doente.
'Ah, bom', disse Voltaire. 'Dê a ele meus cumprimentos e meu agradecimento'. O
abade pronunciou umas palavras para ele pedindo-lhe paciência. O curador então
se aproximou, apresentou-se, e perguntou a Voltaire, elevando sua voz, se ele
reconhecia a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. O doente então empurrou
com sua mão a estola do abade, e gritou, virando subitamente para o outro lado:
"Deixe-me morrer em paz". O cura aparentemente considerou-se
desonrado e sua estola profanada pelo toque de um filósofo. Ele fez com que a
enfermeira o escovasse e se foi com o abade Gautier.
Ele expirou, disse Wagniere, no dia 30 de março de 1778 às onze horas e quinze
minutos da noite, com a mais perfeita tranqüilidade. Uns minutos antes de
morrer ele pegou na mão de Morand seu valet de chambre , que cuidava
dele, apertou-a e disse: " Adieu , meu querido Morand. Estou
indo". Estas foram suas ultimas palavras. Como um rio pacífico com as
beiras verdes e sombreadas, ele fluiu pacifico para um mar sem ondas, onde a
vida repousa.
De sua morte, tão simples e serena, tão filosófica, tão discreta, natural e
pacífica; de suas palavras, tão simples e destituídas de drama, todas as cenas
dramáticas, exclamações desesperadas, foram pintadas e construídas. Apenas
deste material, e só dele, e apesar desses fatos, têm sido construídos por
padres e bispos toda a espécie de calúnias e mentiras desavergonhadas sobre
este grande e maravilhoso homem. Um homem, que, comparados o qual, com todos os
seus caluniadores, vivos e mortos, não são nada mais que pó e parasitas.
Sejamos honestos. Teriam todos os padres de Roma elevado tanto a mente do homem
como alguém como Bruno? Teriam todos os padres da França contribuído tanto para
civilizar seu povo do que Diderot ou Voltaire? Teriam todos os pastores da
Escócia acrescentado mais conhecimento do que Hume? Teriam todos os clérigos,
pastores, bispos, monges, cardeais e papas, desde o dia de pentecostes até as
ultimas eleições feito mais pela liberdade do que Thomas Paine?
O que seria do mundo se não houvesse existido os infiéis?
Os infiéis têm sido os homens bravos e sábios; as flores de todo o mundo; os
pioneiros e heróis dos dias abençoados da liberdade e amor; os espíritos
generosos do nosso passado sujo; os semeadores e profetas da nossa espécie; os
grandes cavalheiros, os vencedores orgulhosos do pensamento; os credores dos
anos que virão.
Por que se deveria considerar que os que devotaram sua vida pela libertação de
seus semelhantes iriam silvar, na hora da morte, pela serpente da consciência,
enquanto que os homens que defendiam a escravidão – ou praticavam a poligamia –
e justificavam o roubo de crianças dos peitos de suas mães, e açoitavam as
costas nuas de trabalho não pago, iriam passar sorrindo desta vida na terra
para o abraço dos anjos?
Por que
deveríamos acreditar que os bravos pensadores, os investigadores, os homens
honestos, deveriam deixar esta vida mergulhados no medo e terror, enquanto que
os instigadores do massacre de São Bartolomeu; os inventores e usuários dos
esmagadores de dedos; das botas de ferro, das grades de torturas; os que
queimaram e rasgaram carne humana; os ladrões, os escravizadores e os que
aprisionavam os homens; os compradores e espancadores de mulheres, mães e
bebês; os fundadores da inquisição; os fabricantes de correntes; os
construtores dos calabouços; os caluniadores dos vivos; os profanadores dos
mortos; e até os assassinos de Jesus Cristo; todos morreram com o odor de
santidade, de branco, com as mãos cruzadas no peito, em sinal de paz, enquanto
que os destruidores do preconceito, os apóstolos da humanidade, os soldados da
liberdade, os quebradores de algemas, os criadores da luz, deveriam morrer cercados
dos diabos malignos de Deus?
Naqueles dias, os filósofos – ou por assim dizer, os pensadores, não eram
sepultados em solo sagrado. Temia-se que suas idéias pudessem contaminar as
cinzas dos justos. E se temia que na manhã da ressurreição eles poderiam, num
momento de confusão, entrar sorrateiramente no céu. Alguns eram queimados, e
suas cinzas espalhadas. E os corpos de alguns eram doados nus para as feras, e
outros eram enterrados num locar indigno.
Voltaire conhecia a história de Adrienne de Couvreur, uma linda atriz, cujo
sepultamento fora negado.
Afinal, nós sentimos interesse no destino que terão nossos corpos. Há uma
modéstia que pertence à morte. Sobre isso, Voltaire era extremamente sensível.
Que ele poderia ser enterrado sob a farsa da confissão, do arrependimento e dos
sacramentos. Os bispos sabiam que ele não levava a sério e Voltaire sabia que
não seria dada a permissão para ser sepultado em nenhum cemitério de Paris.
Sua morte foi mantida em
segredo. O abade Mignot fez os preparativos para o
sepultamento no cemitério de Romilli-no-Sena, mais de cem milhas de distância
de Paris. Na noite de domingo do último dia de março de 1778, o corpo de
Voltaire, envolvido em roupas de mulher, disfarçado em inválido, disfarçado de
vivo, passou numa carruagem; ao seu lado, um empregado cuja função era mantê-lo
na posição. A essa carruagem eram atrelados seis cavalos, de tal modo que as
pessoas pensassem que alguém rico viajava.
Outra
carruagem a seguia, na qual viajavam um sobrinho e dois primos de Voltaire.
Viajaram durante toda a noite, e no dia seguinte chegaram à freguesia de Abbey.
Os papéis necessários foram apresentados, a missa foi rezada em presença do
corpo, e Voltaire foi enterrado. Momentos depois, o prior, para quem 'por
caridade havia dado um pouco de terra', recebeu do bispo ameaças para não
enterrar Voltaire. Mas já era tarde.
Voltaire estava morto. As fundações do estado e do trono estavam enfraquecidas.
As pessoas haviam travado conhecimento com os verdadeiros reis e os reais padres.
Pessoas desconhecidas nascidas na miséria e necessidade, homens cujos pais e
mães haviam sido capacho para os ricos, estavam crescendo em direção à luz, e
suas faces sombrias estavam emergindo da escuridão. Trabalho e conhecimento se
tornaram amigos. Os monstros da noite e os anjos da manhã – os primeiros
pensando em vingança, e os demais sonhando em liberdade, igualdade e
fraternidade.
O
ARGUMENTO DO LEITO DE MORTE
Todos os tipos de
criminosos, exceto os infiéis encontram a morte com serenidade. Como regra,
nada há na morte de um pirata para colocar qualquer descrédito na sua
profissão. O assassino no patíbulo, com um padre ao seu lado, sorridente,
exorta a multidão a encontrá-lo no paraíso. O homem que foi bem sucedido em
fazer de seu lar um inferno encontra a morte sem um tremor, desde que ele, em
nenhum momento, tenha apresentado qualquer dúvida sobre a divindade de Cristo,
ou a eterna procissão do Espírito Santo.
O rei
que levou adiante uma guerra cruel e inútil, que tenha enchido um país de viúvas
e órfãos, com desamparados e doentes, e que tenha sido bem sucedido em oferecer
ao Moloch da ambição os melhores e mais bravos dos seus súditos, morre como um
santo.
Todos os reis crentes estão no céu – todos os filósofos descrentes, na
perdição. Todos os perseguidores descansam em paz. E as cinzas daqueles que queimaram seus
irmãos descansam em solo sagrado.
As
bibliotecas nem poderiam conter os nomes de cristãos que encheram o mundo com
violência e morte, para defender um livro e uma crença e, no entanto, eles
tiveram a morte dos justos, e nenhum padre, nenhum bispo, nenhum pastor
descreve a agonia do medo, do remorso, e a culpa que preenchiam suas almas nos
últimos momentos de suas vidas. Esses homens nunca tinham duvidado - eles nunca
haviam pensado – eles aceitavam a crença como aceitavam os desenhos de suas
roupas.
Eles não
eram infiéis – nem poderiam – eles haviam sido batizados e não haviam negado a
divindade de Cristo. Eles haviam participado da 'última ceia'. Eles respeitavam
os padres. Eles admitiam que Cristo tinha duas naturezas e o mesmo número de
arbítrios. Eles admitiam que o Espírito santo agia e de acordo com a mesa
multiplicada do céu, um em três, e três sendo um, e depois colocavam um
travesseiro sob sua cabeça, e repousavam em paz.
Eles admitiam que enquanto reis e padres não faziam nada de mais em trazer a
miséria a seus semelhantes, que mesmo que eles torturassem e queimassem os
inocentes e desamparados, Deus manteria a estrita neutralidade; mas quando
algum grande homem, alguma alma caridosa expressasse a dúvida sobre a verdade
das escrituras, ou rezasse para o deus errado, ou fizesse a coisa certa pelo
nome errado, então o verdadeiro Deus avançava furioso sobre sua vítima, e de
sua carne despedaçada ele arrancava sua alma.
Não há nenhum exemplo conhecido de que a mão levantada do carrasco tenha sido
paralisada – nenhum relato verdadeiro em toda a literatura do mundo, de que o
filho inocente foi escudado por Deus.
Milhares
de crimes são cometidos todos os dias – homens agora mesmo estão quietos
aguardando sua presa. Viúvas são exploradas e esmagadas, levadas à insanidade e
morte – criancinhas implorando por misericórdia – olhos cheios de lágrimas
fitando as faces brutais de pais e mães, doces meninas são enganadas, seduzidas,
violentadas, mas Deus não tem tempo de evitar esses crimes – nenhum tempo de
defender o inocente e proteger o puro.
Ele está
muito ocupado contando cabelos e observando os pardais. Ele ouve as blasfêmias;
procuram pessoas que riem dos padres; examina os registros de batismo; observa
os professores das universidades, que duvidam da geologia de Moisés, da
astronomia de Josué. Ele não faz objeções contra o roubo, se o ladrão não jurar
em falso. Muitas
pessoas caíram mortas por pronunciar o Seu Santo nome me vão. Mas milhões de
homens, mulheres e crianças têm sido arrancados de casa e usado como bestas de
carga, mas nenhum responsável por esta infâmia jamais caiu vitima da ira de
Deus.
De vez em quando surge um homem de gênio, de grandeza intelectual e honestidade.
Esses homens têm denunciado as superstições dos seus dias. Eles têm tido
piedade das multidões. Ver padres devorarem a essência das pessoas – padres que
fazem de mendigos uma profissão normal – preenchendo-os com preguiça e
desprezo.
Esses
homens eram honestos o suficiente para revelar seus pensamentos; bravos o
suficiente para dizer a verdade. Então eles eram denunciados, julgados,
torturados, mortos na prancha ou na fogueira. Mas alguns escapavam da fúria dos
demônios que amam seus inimigos, e morreram pacificamente no seu leito. Não
ficaria bem para a igreja admitir que eles morreram pacificamente. Seria
reconhecer que a igreja não é importante no momento final.
A
superstição consegue sua força a partir dos terrores da morte. Não ficaria bem
admitir que um homem negasse a bíblia – recusasse a beijar a cruz – afirmasse
que a humanidade é mais importante do que Jesus, e depois morresse tão
tranqüilo como fez Torquemada, depois de derramar chumbo derretido dentro dos
ouvidos de homens honestos; ou tão calmamente como Calvino, depois de ter
queimado Servetus; ou tão pacificamente como o rei David, depois de aconselhar
um filho a assassinar o outro.
A igreja tem demonstrado grande esforço para divulgar que os últimos momentos
de um grande infiel (aquele que a igreja não conseguiu queimar) foram
infinitamente dolorosos e desesperados. Alegavam que palavras não conseguiam
descrever os horrores por que passava um infiel à beira da morte. Todo bom
cristão deveria acreditar, e realmente acreditava nessas histórias. Isto era
afirmado e reafirmado em todo e qualquer púlpito deste mundo. Os pastores
protestantes repetiam as mentiras inventadas pelos padres, e os católicos, numa
espécie de comitê teológico, juravam as mentiras contadas pelos protestantes. Neste
ponto eles sempre estiveram juntos, e estarão, desde que esta falsidade possa
ser usada pelos dois.
Em vez de fazer estas coisas, Voltaire, pacificamente, fechou seus olhos para
os Evangelhos.
Avaliou a bíblia independentemente, defendeu a liberdade intelectual, expulsou
das mentes as correntes da fé arrogante, ajudou os fracos, gritou contra a
tortura dos homens, apelou para a razão,
lutou pela tolerância universal, socorreu os indigentes e defendeu os
oprimidos. Ele demonstrou que a origem de toda religião é a mesma – os mesmos
mistérios – os mesmos milagres – as mesmas imposturas – os mesmos templos e
cerimônias – os mesmos reis e fundadores, apóstolos e falsidades – as mesmas
promessas e ameaças – o mesmo fingimento de bondade e perdão, e as mesmas
práticas de perseguições e matanças. Ele provou que a religião fez inimigos –
filosofia fez amigos – e que acima dos direitos dos deuses estavam os direitos
dos homens.
Estes foram seus crimes. Um homem como este Deus não permitiria que morresse em paz. Se permitisse que ele
encontrasse a morte com um sorriso, outros poderiam seguir seu exemplo, até que
ninguém sobrasse para acender as fogueiras dos autos da fé. Não seria
admissível que tal bem sucedido inimigo da igreja pudesse morrer sem soltar
alguns gemidos de medo, alguns tremores de remorso, algumas desesperadas
orações de horror proferidas por lábios cheios de sangue e espuma.
Por muitos séculos os teólogos disseram que um descrente – alguém que tivesse
falado ou escrito contra suas crenças não poderiam encontrar a morte com
compostura; que no último momento Deus preencheria suas consciências com as
serpentes do remorso.
Por mil anos o clero tem criado fatos para se adaptarem à sua teoria – esta
concepção infame dos deveres do homem e da justiça de deus.
Os teólogos têm insistido que os crimes contra o homem eram ou são nada
comparados com os crimes contra Deus.
Sobre a questão do leito de morte o clero é eloqüente. Descrevendo os gemidos e
tremores do descrente moribundo, seus olhos brilham de deleite.
Eles não são mais homens. São hienas. Eles revolvem sepulturas.
E não
satisfeitos, eles pintam os horrores do inferno. Eles fitavam as almas dos
infiéis enroscadas com os vermes que nunca morrem. Eles as viam em chamas – em
oceanos de fogo – em gritos de dor – num abismo de desespero. E gritavam de
alegria. E aplaudiam.
Era um Auto da Fé presidido por um Deus.
O SEGUNDO
RETORNO
Por
quatrocentos anos a bastilha foi um destacado centro da opressão. Dentro dos
seus muros nobres pereceram. Havia uma ameaça perene. Lá estava o último, e às
vezes o primeiro argumento dos reis de padres. Suas masmorras úmidas e
sombrias, suas torres maciças, suas celas escondidas, seus instrumentos de tortura,
eram uma negação da existência de Deus.
Em 1789, em 14 de julho, o povo, a multidão, saturada de sofrimento, atacou e
ocupou a bastilha. A batalha, com gritos de "viva Voltaire". Em 1791
foi permitido que as cinzas de Voltaire fossem colocadas no Panteon. Ele havia
sido enterrado a 110
milhas de Paris. Sepultado às escondidas, agora ele era
exumado por uma nação. Uma procissão de cem milhas; todas as vilas exibindo
flâmulas e archotes; todo o povo ansioso para honrar o filosófo da França – o
salvador de Calas – o destruidor da superstição.
Chegando a Paris, a multidão chegou à rua St. Antoine. Ali ela parou, e durante
uma noite repousou o corpo de Voltaire nas ruínas da bastilha – repouso em
triunfo e glória. Descansou sobre os muros caídos e os arcos derrubados, em
restos de pedra úmidos de lágrimas, sobre correntes enferrujadas, ferrolhos
inúteis – sobre os calabouços escuros onde a vida era apagada das vidas dos
homens, e a esperança morria em corações partidos.
O conquistador descansando sobre os conquistados – entronizado sobre a
bastilha, a fortaleza decaída da noite, o corpo de Voltaire, de cuja mente
havia nascido a manhã.
Por uns instantes, suas cinzas devem ter sentido o fogo Prometeu, e o velho
sorriso deve ter iluminado novamente a face da morte.
A multidão se curvou em reverência, tocados pelo amor de respeito, ouviu estas
palavras proferidas por um padre: "Deus deverá ser vingado".
O grito do padre era uma profecia. Padres espreitando nas sombras com faces tão
sinistras como a noite. Rosnando em nome do evangelho, profanando o túmulo.
Eles levaram embora as cinzas de Voltaire.
A tumba agora está vazia.
O mundo está preenchido com sua fama que o homem conquistou.
Havia no século dezoito algum homem usando batina que se igualasse a Voltaire?
Que cardeal, que bispo, que padre na França levantou sua voz para defender os
direitos do homem? Que clérigo, que nobre, ficou do lado do oprimido, do servo?
Quem denunciou o odioso código penal – a tortura de pessoas suspeitas? Que
padre implorou pela liberdade dos inocentes? Que bispo teve pena das vítimas da
prancha? Haverá na França hoje o túmulo de um bispo sobre o qual um amante da
liberdade deixaria cair uma flor ou uma lágrima? Haverá um túmulo de santo do
qual poderá emergir um raio de luz?
Se houver uma outra vida – um julgamento final – nenhum Deus ousará torturar
quem lutou para acabar com a tortura neste mundo. Se Deus for o mantenedor da
penitenciária eterna, ele não ousará aprisionar aqueles que ousaram quebrar as
correntes da escravidão nesta vida. Ele não ousará fazer uma eterna condenação
de Voltaire.
Voltaire foi um mestre perfeito da língua francesa, conhecendo todos os seus
humores, tempos e declinações, e sua sensibilidade – jogando com ela tão
alegremente quanto Paganini com seu violino, conhecendo todas as expressões de
humor, discorrendo sobre os assuntos mais sérios com o humor de um Arlequim,
fazendo gracejos da ameaçadora face da morte, gracioso como uma plantação de
salgueiros, lidando com o duplo sentido que cobria o áspide com flores e
ironia.
Era um
mestre da sátira e cumprimento, constantemente misturando ambos numa mesma
linha, sempre defendendo seus interesses, e freqüentemente os interesses dos
outros, lidando com questões, pensamentos, e vários assuntos como um jogador
lida com uma bola, mantendo-a no ar com a maior facilidade, usando palavras
velhas com novos significados; charmoso, grotesco, patético, misturando risos
com lágrimas, ironia e sabedoria, e às vezes crueldade, lógica e risadas. Com o
instinto de uma mulher, conhecendo os nervos mais sensíveis – exatamente onde
tocar – odiando a arrogância e a estupidez da solenidade, tirando a máscara de
padres e reis, conhecendo as primaveras da ação e os fins da ambição – perfeitamente
familiar com este grande mundo – os íntimos dos reis e seus favoritos –
simpatizante dos oprimidos e dos encarcerados, com os pobres e desafortunados,
odiando a tirania, desprezando a superstição, e amando a liberdade com todo o
coração. Assim foram os trabalho de Voltaire, desde "Oedipus" aos
dezessete anos, até "Irene" aos oitenta e três. Estando entre as duas
tragédias a realização de mil peças.
Do seu trono, no pé dos Alpes, ele apontava seu dedo para todos os hipócritas
da Europa. Por meio século, sobrevivendo à prancha, à estaca, à masmorra, à
catedral, ao altar e à coroa, ele carregou com mãos sagradas a tocha da razão,
cuja luz, no final, iluminará o mundo.
ROBERT GREEN INGERSOLL
1894