Mãe Merinha
foi bem rápida, amarrou um pano branco na roupa e colocou alguns colares
fios-de-conta coloridosno pescoço. ‘‘O mais triste disso tudo é saber que
eles não param’’, disse, enquanto prendia um tecido também branco na cabeça.
Estava pronta, com sua vestimenta de mãe-de-santo. Sinalizou que poderia
começar a entrevista e se apresentou, ‘‘sou Mãe Merinha de Oxum, fui iniciada
no Candomblé há 36 anos, sou filha de Mima de Oxossi, do Ilê Axé Obá Ketu’’. Há
um ano e meio, Rosimere Lucia dos Santos abriu um terreiro de
Candomblé em Belford Roxo, município do Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense,
onde também começou um trabalho social com crianças da região. No dia 27 de
setembro, quarta-feira, completou 51 anos e, naquele mesmo dia, seu
terreiro foi invadido e incendiado.
Os vizinhos,
quando perceberam as chamas, chamaram o irmão de Mãe Merinha, que mora perto,
para ajudar a apagar o fogo. O incêndio foi controlado a tempo de não
afetar a edificação principal, mas, no dia seguinte, Mãe Merinha percebeu que
colocaram fogo bem na casa do meio, onde ficavam os donativos, roupas de santo
e os orixás. Os criminosos furtaram também uma TV, celular e rádio. O Registro
de Ocorrência foi feito uma semana depois, já na segunda tentativa: ‘‘A
delegacia estava muito cheia, fiquei umas três horas lá, tava muito
enfraquecida, chocada com tudo, fui buscando força, aí retornei na
quinta-feira’’.
Mãe Merinha
segura uma das fotos que sobrou do incêndio (Foto: Dado Gadieri e Pilar
Olivares/Hilaea Media)
Queimaram
também livros sobre religiões de matriz africana e as fotos da história da
família no Candomblé. ‘‘O que mais me entristece é o material de trabalho
e as fotografias. Eu tenho toda uma história de santo, de quando era dirigido
por minha mãe’’. Mãe Merinha é descendente de negros e indígenas, e a religião
veio pela avó materna que foi para o Rio de Janeiro fugindo do marido violento,
no Espírito Santo. Lavadeira, a avó conseguiu comprar um terreno em Belford
Roxo e destinou parte para o orixá da filha. ‘Tinha até algumas fotos da minha
mãe com trouxa na cabeça quando elas chegaram no município de Belford Roxo’’,
relembra. ‘‘Levei tudo que eu tinha no decorrer desses anos para esse local, é
toda uma história de vida do sagrado’’.
Mãe Merinha é
uma das vítimas mais recentes da violência contra adeptos das religiões de
matriz africana no Estado do Rio de Janeiro. De acordo com os dados do Centro
de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir), das 52 denúncias
de intolerância religiosa ao Ceplir – de dezembro de 2016 a agosto de 2017-,
34 foram de pessoas do Candomblé, Umbanda e outras denominações de
religiões de matriz africana no Estado do Rio.
Em cinco anos,
as denúncias de discriminação por motivo religioso no Brasil
cresceram 4960%. Foram de 15, em 2011, para 759, em 2016, de acordo
com os dados do Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República (SDH). Em 2016, 69 eram candomblecistas (9,09%),
74 eram umbandistas (9,75%) e 33 são descritas como “religião de matriz
africana” (4,35%), totalizando 23,19%.
Segundo relatório da
Pew Foundation, o país deixou de ser um dos países mais populosos com menor
taxa de Hostilidade Social por motivações religiosas, em 2007, para um dos
países com alta taxa em 2014, passando da 2ª posição para a 9ª neste
período.
Em agosto e
setembro deste ano, uma nova onda de ataques a terreiros de Candomblé e Umbanda
na Baixada Fluminense comprovou que os crimes de ódio por motivo religioso
estão crescendo no estado que tem, pela primeira vez, um bispo evangélico
governando a sua capital – em janeiro, Marcelo Crivella (PRB), bispo de Igreja
Universal do Reino de Deus, assumiu a prefeitura do Rio de Janeiro.
Em resposta à
violência, a Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDHMI) lançou o Disque
Combate ao Preconceito para facilitar as denúncias.
Nos meses de
agosto e outubro foram feitas 43 denúncias: uma de um espírita kardecista, uma
de um evangélico, dois islâmicos e 39 umbandistas e candomblecistas,
representando 90% do total. Foram seis tipos de violações identificadas, entre
eles invasão/atentado a instituições religiosas (11), discriminação/difamação
(10), agressão física (6), incitação ao ódio (6), agressão verbal (6), ameaça
(4).
Inquisição do
tráfico na Baixada
Dentre as
denúncias contra religiosos de matriz africana, 12 ocorreram na Baixada
Fluminense. A região reúne 13 municípios do Rio de Janeiro reabriga ao
menos 274 terreiros, do total de 847 no Estado, de acordo com a pesquisa Mapeamento
das Casas de Religiões de Matrizes Africanas,realizada pela PUC-Rio com o apoio
da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(SEPPIR/PR), entre 2008 e 2011.
A SEDHMI
recebeu quatro denúncias de ataques a terreiros realizados por traficantes de
agosto a outubro, três delas de ocorrências na Baixada Fluminense – duas em
Nova Iguaçu e uma em Itaguaí. Segundo a secretaria, as quatro vítimas
informaram que por ordem da facção criminosa é proibida a prática de religiões
de matriz africana na área dominada pela facção. Todas as pessoas que denunciam
casos de intolerância religiosa são orientadas a fazer o registro na delegacia
da região, mas algumas vítimas não o fazem por medo.
Em
setembro, o terreiro da mãe de santo Carmen de Oxum foi atacado
em Nova Iguaçu. O traficante, que ainda registrou o crime com a
câmera de um celular, dá ordens para destruir os objetos sacralizados: ‘‘quebra
tudo, apaga as velas, pelo sangue de Jesus tem poder… Todo mal tem que ser
desfeito em nome de Jesus’’. Segundo o diretor-Geral da Polícia da Baixada
Fluminense, Sérgio Caldas, o caso está sendo investigado pela
58ª DP e já foram identificados, como executores, dois traficantes do
Terceiro Comando Puro, facção criminosa conhecida por ameaçar candomblecistas e
umbandistas. ‘‘Essa pessoa veio de uma outra comunidade para pressionar os
terreiros de candomblé’’, disse Caldas à Pública, acrescentando
que as condições “não são favoráveis” para a investigação. “Quando ocorre
em comunidade conflagrada, a vítima fica com medo de se expor’’.
Os indiciados
deste caso serão penalizados pela Lei 7.716, de 1989, conhecida como “Lei
Caó’’, que determina a punição para os crimes resultantes de discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, como
crime inafiançável e imprescritível. A pena é de dois a cinco anos
de reclusão.
O babalaô
Ivanir dos Santos, fundador da Caminhada em Defesa da Liberdade
Religiosa e porta-voz da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, diz
que as primeiras ações de destruição de terreiros por
traficantes aconteceram na década de 1990, no Morro do Urubu, em Pilares, Zona
Norte do Rio. Depois, outros casos ocorreram no Morro do Dendê (localizado na
Ilha do Governador), no Lins de Vasconcelos e na Cidade Alta. “É um fenômeno
compreensível. Toda religião que cresce vai influenciar algumas esferas
sociais’’, diz. Ivanir acredita que a presença de igrejas evangélicas nos
presídios do Rio é um fator de influência para o surgimento do que chama de “tráfico
evangelizado’’. ‘‘O cara tá lá preso, vira evangélico e vai sair por bom
comportamento, isso diminui a pena do sujeito… Quando sai da prisão, nem todo
mundo muda de vida”, diz.
As igrejas
evangélicas devem se tornar ainda mais presentes nos presídios fluminenses. Em
fevereiro, a Igreja Universal do Reino de Deus firmou acordo com o Governo
do Estado para a construção de templos em unidades penitenciárias, custeados
pela instituição religiosa. O acordo permite que a Universal construa
ou reforme templos ecumênicos nas 51 unidades prisionais do
Estado, dependendo de autorização do diretor da unidade. Até o
momento, graças ao convênio, 15 templos foram inaugurados ou reformados, nos
Complexos de Gericinó, Campos, Resende e Água Santa.
A Promotoria
de Justiça de Tutela Coletiva do Sistema Prisional e Direitos Humanos do Rio de
Janeiro visitou as unidades prisionais onde foram construídos os templos
religiosos para apurar a validade do acordo. Segundo o promotor de Justiça
Murilo Nunes de Bustamante, os espaços não deveriam ser vinculados à
religião específica, mas o padrão arquitetônico encontrado por eles se
assemelha ao usado pela Igreja Universal. ‘‘Apesar da previsão de ser ecumênico
de ter o livre uso pra qualquer um, os próprios internos só admitiriam que
algumas religiões realizarem seus cultos no local’’. A investigação
da Promotoria ainda não foi concluída. “Os indicativos são no sentido
da identidade arquitetônica dos espaços, o que será debatido com as igrejas
atuantes no sistema prisional’’, esclareceu.
Em resposta
à Pública, a Igreja Universal do Reino de Deus informou que o
programa social Universal nos Presídios (UNP) atende 80% da população
carcerária do Brasil, aproximadamente 500 mil pessoas, do total de 622 mil
detentos, segundo o Infopen de 2014,‘‘oferecendo cursos e apoio aos
detentos e seus familiares, realizando um trabalho de ressocialização que é
reconhecido pelas autoridades em todos os estados da Federação, inclusive no
estado do Rio de Janeiro’’.
Oito
homicídios por intolerância religiosa
Os dados
disponíveis no Relatório de Intolerância e Violência Religiosa, da
Secretaria Especial de Direitos Humanos,detalha o que ativistas pela liberdade
religiosa chamam de ‘‘Guerra Santa’’. O Relatório mostra que, entre 2011 e 2015,
27% das denúncias feitas nas ouvidorias do país eram de pessoas da religião de
matrizes africana, 16% de evangélicos, 8% de católicos e a 7% de espíritas. Em
relação à religião dos agressores, informada pela vítima, as informações
indicam que 17% eram evangélicos. Católicos aparecem em segunda posição, porém
muito distantes, com 3%, seguidos de Testemunhas de Jeová (1%) e
Espíritas(1%), Matriz Africana (1%). Em 73% dos casos não foram registradas
informações sobre a religião do agressor.
Também foram
identificados no Relatório oito homicídios por motivo religioso, segundo
investigações da polícia civil ou do Ministério Público. Quatro mortes
envolveram lideranças de candomblé, em Londrina (PR) e em Manaus (AM), e quatro
foram mortes de uma mesma família de evangélicos, em Itapecerica da Serra (SP).
Todos os assassinatos foram realizados por uso de facas, e os agressores
e vítimas eram próximos.
O professor
Jayro de Jesus, coordenador da Escola Livre Ubuntu de Filosofia e Teologia
Afrocentrada, explica que os neopentecostais entendem que a fé traz saúde, bem
estar e prosperidade material. Já as doenças, desemprego e pobreza resultam do
‘‘mal’’ e de uma vida em pecado. ‘‘É o mal que prejudica a vida alheia. E o mal
é tipificado nas religiões afro’’, explica. ‘‘Os neopentecostais, hoje, contam
com a ajuda da própria população que encontra justificativa para acabar com o
mal que é o seu vizinho, o seu entorno.’’
Jayro, figura
histórica na luta contra a violência às religiões de matriz africana, coordenou
nos anos 80 o Projeto Tradição dos Orixás, que visitava os terreiros
na Baixada para ouvir relatos de intolerância, e encaminhava para as
delegacias. ‘‘Eram 20 jovens que saiam por toda a Baixada. Levantamos 3 mil
terreiros com queixa de invasão, xingamentos, apedrejamentos, surras de
bíblia’’, relembra. “A perseguição vinha essencialmente da Igreja Universal’’,
diz.
Os relatos ao
grupo foram reunidos no Dossiê ‘‘A Guerra Santa Fabricada’’, primeiro entregue
ao Governo Federal sobre o assunto, protocolado na Procuradoria-Geral da
República em 1989. Mas nada foi feito, garante Uilian Portella, advogado do
grupo. ‘‘O dossiê denunciou reiteradas atitudes agressivas das igrejas
evangélicas neopentecostais, notadamente a denominada Universal do Reino de
Deus… Os adeptos dos cultos de Matriz Africana vinham sendo apedrejados,
espancados e surrados com Bíblias ‘para expulsar capetas’”.
Em 2015, as
emissoras de televisão Rede Record e a Rede Mulher (comprada pela Record), de
Edir Macedo, fundador e líder da Igreja Universal, foram condenadas pela
Justiça Federal a exibir quatro programas de televisão como direito de resposta
às religiões de matriz africana por ofensas contra elas no programa “Mistérios”
e no quadro “Sessão de Descarrego”.
Procurada pela
reportagem, a Universal afirmou que a acusação de que seus membros
perseguiam outros cultos na década de 80 é “mentirosa”. “A Igreja Universal do
Reino de Deus defende, de modo intransigente, a liberdade de pensamento, de
crença e de culto, conforme assegurado por nossa Constituição Federal”. A
Igreja diz que prega o contrário. “Orientamos nossos adeptos a respeitarem as
convicções das outras pessoas, pois são exatamente os bispos, pastores e
milhões de simpatizantes da Universal as maiores vítimas do preconceito
religioso no Brasil”, afirmou, por nota.
‘‘É como se
tivessem arrancado um filho”
Às 22h do dia
4 de outubro deste ano, Mãe Vivian de Souza estava em casa, em Nova Sepetiba,
quando recebeu a ligação de um vizinho do seu terreiro, em Seropédica, na
Baixada. Por telefone, ele disse que entraram na casa dela e, até aquela hora,
muitas imagens e objetos já deveriam estar quebrados. O vizinho repassou a
ameaça de que se ela não retirasse os pertences o mais rápido possível, iriam
destruir tudo. Mãe Vivian entrou em desespero. Sua casa fica a uma hora de
distância de carro.
Há quase dois
anos, Mãe Vivian se mudou com a família para Nova Sepetiba e transformou a sua
casa em Seropédica em Casa de Candomblé. Não visitava o terreiro com
regularidade, mas podia ficar uma ali uma semana inteira ou apenas um fim de
semana, ‘‘o tempo que a obrigação religiosa exigir’’. Quando chegou à casa,
próximo da meia noite, viu o portão arrombado, o Orixá Bará no chão, os Exus
quebrados. Conseguiu um caminhão para tirar o que sobrou. No dia seguinte,
alugou uma casa em Sepetiba para começar a construção de um novo espaço
dedicado aos orixás. Para o anterior, não quer voltar mais: ‘‘É como se
tivessem arrancado um filho meu’’. Além dos orixás, destruíram a própria
estrutura da casa e outros objetos, ‘‘coisa que pra gente tem muito valor. Um
búzio, uma moeda pra gente vale, pra outras pessoas talvez não, mas é muito
ruim’’, contou.
Mãe Vivian
mudou o terreiro para uma casa mais isolada em Sepetiba (Foto: Dado Gadieri e
Pilar Olivares/Hilaea Media)
A casa nova é
menor; objetos simbólicos foram armazenados em um quarto, e a outra parte em
uma sala, com os atabaques e colchões que conseguiu levar. ‘‘Não dá pra
entender tanto ódio. Parece que eu tô no tempo dos meus antepassados, da gente
ter que se esconder na mata, como meus avós fizeram pra continuar cultuando a
nossa religião. Eu tô acuada, eles estão nos acuando cada vez mais.’’
Mãe Vivian foi
até a Delegacia em Sepetiba para fazer a denúncia, mas foi orientada a fazer o
Registro de Ocorrência online ou ir à delegacia de Seropédica. “A forma que
eles agem é como se você fosse culpado por aquilo que tá acontecendo, ‘porque a
senhora não tava lá na hora?’. Não sou eu que tenho que saber quem foi.’’
Para ela, não há interesse da polícia em realizar uma investigação de
fato.
Com a crise, o
fim do Centro de Promoção da Liberdade Religiosa
Mãe Vivian
buscou ajuda no Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos
Humanos (Ceplir) que, de 2012 até este ano, atendeu às vítimas de
intolerância no Estado Rio com acompanhamento psicológico, jurídico e
assistência social.
Porém, Flávia
Pinto, que era diretora da instituição até esta semana, explicou à Pública que
o Centro deixou de receber recursos do Governo do Estado em
2016. ‘‘Com a crise do Estado, o Ceplir ficou sucateado. Conseguimos
recurso com a Fundação Cultural Palmares [do Governo Federal] e colocamos o
Ceplir pra funcionar por mais um ano na UFF [Universidade Federal Fluminense],
mas esse recurso acabou’’, informou. ‘Estamos conscientizando as pessoas
de que intolerância religiosa é crime. A política de liberdade religiosa ainda
é embrionária no país. As pessoas ainda não têm o entendimento de que ser
discriminado pela sua religiosidade é crime’’.
O secretário
estadual de Direitos Humanos, Átila Alexandre Nunes, rebate as críticas.
Segundo ele, a Secretaria estadual de Proteção e Apoio à Mulher e ao Idoso
passou a ser Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres
e Idosos (SEDHMI) e, com a mudança, a secretaria vai incorporar os técnicos do
Ceplir já em novembro ‘‘pra que seja uma estrutura permanente,
consolidada e que não dependa de recurso de terceiros’’. Mesmo assim, a Ceplir
não terá atendimento em novembro, mês da Consciência Negra, segundo Flávia. Ela
agora vai trabalhar na Secretaria Municipal de Direitos Humanos da capital.
Em agosto, o
secretário anunciou que o Estado vai criar uma delegacia policial especializada
em combate a crimes raciais e delitos de intolerância, a DECRADI, com um grupo
capacitado para realizar as investigações e os atendimentos com as vítimas de
crimes de ódio.
Mãe Vivian na
porta da casa em Sepetiba com parte da estrutura da casa de Seropédica em mãos
(Foto: Dado Gadieri e Pilar Olivares/Hilaea Media)
Ainda há muito
o que melhorar no atendimento, comenta Flávia Pinto: “Os casos de intolerância
ainda são interpretados pela polícia como brigas de vizinhos, aí a pessoa não
tem atendimento correto e os dados não são gerados’’.
Sobre o
problema orçamentário, o secretário acredita que a ação pode desafogar as
delegacias regionais que vão poder encaminhar para a especializada a
investigação. ‘‘Estamos falando de uma estrutura mais enxuta, a Secretaria de
Direitos Humanos disponibilizaria os técnicos de psicossocial pra fazer o
atendimento e ajudar nesse acolhimento das vítimas’’.
‘‘Infelizmente,
estamos vivendo um outro momento que traficantes estão perseguindo os
terreiros, a lógica agora é uma lógica territorial por conta desses
traficantes’’, diz o secretário. A violência por parte dos traficantes estimula
o aumento do número de casos não notificados e dificulta o trabalho da polícia.
‘‘No caso da mãe Carmen, foram quase 10 traficantes, segundo o relato dela. A
gente até acompanhou ela até a delegacia, mas ela não quis assinar o depoimento
por receio”, conta. Ele diz ainda que há uma sensação de impunidade por esses
casos não serem tratados com seriedade e notificados como intolerância religiosa.
O Delegado
Henrique Pessoa, da 151º DP de Nova Friburgo, coordenou o Núcleo de Combate a
Intolerância da Polícia Civil que centralizava as informações de ocorrências
recebidas pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa. “Esse
assessoramento nas delegacias. A nossa função era devolver à polícia a
consciência da relevância da investigação. O problema não pode ser enfrentado
de uma forma banal. Mas, lamentavelmente, a polícia trabalha em condições
precárias, de forma inadequada.’’ O núcleo foi extinto em 2012, durante a
reestruturação da polícia civil, no governo de Sérgio Cabral (PMDB).
Mãe Elaine e
Pai Márcio
Mãe Elaine
Dias Pereira, mãe Elaine de Oxalá, mora em Nova Iguaçu há 30 anos – e há 30
anos sofre perseguição pela sua religião. Ela conta que logo que começou a casa
em Santa Rita, bairro de Nova Iguaçu, já colocaram fogo nas colunas da casa.
Ainda hoje, jogam constantemente pedras nas telhas. Até dezembro do ano
passado, ela nunca tinha feito uma denúncia ou registro de ocorrência na delegacia.
Mas, daquela vez, explodiram uma bomba no relógio de luz do terreiro enquanto
ocorria uma cerimônia religiosa. ‘‘Tinha muita gente, muitos filhos aqui na
casa, tinha criança, mulher grávida, e a explosão foi assustadora, naquele
momento da explosão a gente não tinha noção do que estava acontecendo’’.
Ela foi à
delegacia da Posse (58º) para relatar o caso. ‘‘Para minha surpresa, fui muito
bem atendida e foi registrado como intolerância religiosa, foi uma vitória,
cheguei aqui feliz porque tinha conseguido fazer isso’’. Um inspetor de polícia
visitou a casa no dia seguinte. ‘‘O caso não foi adiante, não houve uma
investigação até o fim’’, conta. Depois do episódio, ela resolveu colocar duas
câmeras na frente do terreiro, o que inibiu as agressões.
Pai Márcio
Virginio também precisou colocar uma câmera no quintal de seu terreiro, na
Penha, Zona Norte no Rio de Janeiro, para identificar os autores das pedradas e
restos de lixo que são frequentemente jogados na Casa de Candomblé. A Casa está
aberta há três anos e, a partir do segundo ano, os ataques começaram em dias
certos, segunda-feira e sábado – sempre em momentos de cerimônia. ‘‘As pedras
vêm do prédio do lado, sendo que a câmera não é tão boa, então vou gastar mais
dinheiro pra comprar uma câmera melhor.’’ Além de quebrar partes do telhado, os
agressores já quebraram uma imagem do Caboclo, orixá cultuado na casa. ‘‘Quando
a gente vê uma imagem de santo quebrada eu fico pra baixo, porque é a casa do
nosso sagrado.’’
Foi necessário
colocar lona na parte aberta do quintal para que as pessoas não fossem atingidas
pelas pedras no momento das cerimônias religiosas. ‘‘Minha casa tem muitos
idosos, gente que vem com cadeira de roda. A pessoa já chega com medo’’.
Pai Márcio foi
até a delegacia quando as agressões começaram a ficar mais frequentes. “Na
primeira vez não abriram o boletim de ocorrência. Só na segunda vez’’. Ele
conta que foi pelo menos 20 vezes à delegacia para fazer mais denúncias. “Não
fizeram nada”, diz.
Os defensores
da liberdade religiosa veem uma ligação entre a inação da polícia e o
preconceito. Ivanir dos Santos argumenta que um passo ainda pendente seria a
instituição do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nas
escolas, segundo a Lei 10639. A culpa é, também, do desconhecimento. “Não
adianta colocar a conta só nos neopentecostais porque não são só eles. Para a
sociedade brasileira nós somos feiticeiros, macumbeiros e do mal”, resume.
No dia 27 de
setembro, o Supremo Tribunal Federal autorizou ensino religioso confessional
nas escolas públicas – ou seja, as aulas podem seguir os ensinos de religiões
específicas. Para Ivanir dos Santos, o efeito da ação será aumentar a
discriminação e a perseguição às religiões afro-brasileiras. “Isso é referendar
o papel da igreja como elemento do estado, isso é igualzinho na Colônia e no
Império’’, comenta. Jayro concorda que o ensino religioso reforça a dualidade
entre o bem e mal. ‘‘As igrejas se sentem detentoras do bem, não só da alma,
mas da vida social. Então o ensino religioso nas escolas é um incentivo a essa
dualidade’’, comenta.
Sem conhecer a
religião, é difícil à sociedade entender a seriedade desses ataques. Na visão
de mundo africana, o assentamento dos orixás é uma espécie de ‘‘extensão do seu
eu’’, da própria existência, explica o professor Jayro. “A violência é muito
mais vigorosa do que a gente imagina’’. Desrespeitar as lideranças religiosas e
os símbolos representativos de matriz africana, diz ele, é entendido como uma
forma de expulsão. Para muitas pessoas, depois da destruição, é necessário se
reconstruir em outro espaço físico.
Para se
reconstruir, Mãe Merinha contou com um mutirão de voluntários a limpar,
fisicamente, a sua casa varrida pelas chamas. Agora, prepara o ritual de
limpeza religiosa, com direito a preces para os Pretos Velhos. “Passamos por um
momento de grande intolerância religiosa em nosso país, que a cada dia se
agrava mais. Não sei se é de conhecimento de todos, mas o nosso espaço
infelizmente também veio a fazer parte dessa estatística de ódio”, escreveu aos
seus filhos.
Mãe Merinha
olha as roupas de santo queimadas (Foto: Dado Gadieri e Pilar Olivares/Hilaea
Media)
Um
passado que volta
Em vários
momentos da história brasileira, as religiões de matriz africana, cuja essência
teológica e filosófica é baseada nos valores civilizatórios negroafricanos,
sofreram repressão e foram tratadas como práticas primitivas e profanas. Até a
Constituição Imperial, promulgada em 1824, que concedeu certa liberdade de
culto aos não-católicos, foram alvo de perseguição do estado e consideradas
criminosas. Neste período, os negros-africanos escravizados só podiam cultuar
as divindades secretamente. A liberdade religiosa só passou a ser considerada
um direito fundamental com a Constituição de 1988.
‘‘Hoje, o que
o neopentecostalismo faz com os terreiros, a Igreja Católica fez na Colônia e
no Império. A destruição dos terreiros tem essa lógica, de um passado que se
presentifica’’, comenta o professor Jayro de Jesus.
Os mais de 130
anos de história do terreiro Ilè Așé Opò Afonjá, o mais antigo do Rio de
Janeiro, revelam a resistência do Candomblé.
Dois anos antes da abolição da escravatura, em 1886, mãe Eugênia Ana dos
Santos, a mãe Aninha, se mudou de Salvador para a região portuária e se
instalou na Pedra do Sal. Após a abolição, a repressão continuava, e polícia
fazia prisões asseguradas pela Lei da Vadiagem.
A Lei punia a
manifestações negro-africanas, como a capoeira, o samba e as práticas
religiosas. ‘‘Hoje, eles vão mudando de lugar para preservar esse culto, assim
como lá dentro da senzala’’, explica Sandra Brandão, 47 anos, pedagoga e
Presidente da Sociedade Civil do Ilè Așé Opò Afonjá do Rio – nome que significa Casa
de Força Sustentada por Xangô.
A Casa passou
por diversos locais antes de se instalar em São João de Meriti, na
Baixada Fluminense, para fugir da intolerância religiosa. ‘‘O objetivo era se
afastar dos grandes centros’’, conta a neta de Edgard Brandão, que veio de
Salvador com mãe Aninha. ‘‘E mesmo nesse endereço que estamos hoje, também
existia essa intolerância. Tenho uma tia biológica de 89 anos que conta que
quando criança, as crianças brincavam na frente da casa pra fazer barulho pro
candomblé poder tocar atrás pra polícia não coibisse essa manifestação.’’ As
prevenções continuam. Sandra diz que principalmente os mais idosos estão
amedrontados – e que o medo já causou um efeito psicológico. “Quando a gente
faz as práticas religiosas, a gente fala, olha o portão, tem que estar
fechado’’, conta.
A maioria das
Casas de Candomblé antigas no Rio de Janeiro continuam na Baixada Fluminense,
como o Terreiro Alákétú e a Casa Branca. Mãe Beata de Iemanjá seguiu o
mesmo caminho: foi de Salvador para o Rio em 1969 e fundou em 1985 o terreiro
Ilê Omiojuarô, em Miguel Couto, Nova Iguaçu. Reconhecida pela militância em
diversas causas, entre elas a liberdade religiosa, Mãe Beata morreu em maio
deste ano em Nova Iguaçu, onde ‘‘encontrou seus laços, suas redes bem tecidas
de apoio da população negra de terreiro’’, conta Pai Adailton, filho biológico
de Mãe Beata de Iemanjá.
NOTA
INFOPEN - Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias
Centros religiosos de matriz africana em MG
sofrem com ataques
VICE BrasilCarla Castellotti · 01/11/2017
A prática de
religiões de matriz africana em Minas Gerais está sendo ameaçada graças à
intolerância religiosa. Dos casos apurados pelo O Beltrano, o mais
recente ocorreu no dia 24 de outubro, quando a Casa Espírita Império dos Orixás
Nossa Senhora da Conceição e São Jorge Guerreiro, na cidade de Mário Campos,
foi destruída por um grupo de quatro homens liderado por um policial militar
reformado. Além de armados, inclusive com uma motosserra, eles destruíram
imagens e ameaçaram de morte os religiosos.
No dia
seguinte, três homens, entre eles um pastor evangélico, retomaram as ofensas e
agressões na mesma casa. A Polícia Militar (PM) foi acionada e um umbandista
foi levado à delegacia depois de jogar uma pedra contra os homens. Enquanto
isso, os acusados cortaram os serviços de água e luz do terreiro. A prefeitura
local investiga as ações do pastor, que está com uma tramitação para construir
uma igreja evangélica no lugar do terreiro.
Em junho, em
Santa Luzia, região metropolitana da capital mineira, o Centro Espírita
Candomblé Ilê Axé e Sangô recebeu um mandato judicial do Ministério Público de
Minas Gerais (MP-MG) que impõe restrições à prática religiosa. O mandato
foi resultado de reclamações por parte dos vizinhos contra o barulho
das manifestações do terreiro.
No mesmo
mês, O Beltrano também divulgou quando um sargento evangélico
da PM invadiu um terreiro armado e ameaçou uma mãe de santo. Após a decisão do
MP-MG, das ameaças e ataques, praticantes e membros de comunidades religiosas
de matriz africanas protestaram contra a intolerância religiosa em Belo
Horizonte.
O Centro Nacional
de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (CENARAB), com sede em BH, presta
assistência aos religiosos de umbanda e candomblé. A associação está
acompanhando os casos sofridos pelos terreiros na Justiça.