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Robert Ingersoll |
Perguntam-me
o que “substitui a Bíblia como guia moral”.
Sei
que muitas pessoas têm a Bíblia como o único guia moral e acreditam que somente
nesse livro se encontra o verdadeiro e perfeito padrão de moralidade.
Existem
muitos preceitos bons, muitos provérbios sábios e muitas regras e leis
excelentes na Bíblia — mas estão misturados com preceitos péssimos, provérbios
tolos, regras absurdas e leis cruéis.
Porém,
temos de nos lembrar que a Bíblia é uma coleção de muitos livros escritos
durante séculos, e que representa e conta, em parte, o desenvolvimento e a
história de um povo. Precisamos nos lembrar também que seus escritores tratam
de uma ampla variedade de assuntos. Muitos desses escritores não têm nada a
declarar sobre o certo e o errado, sobre o vício e a virtude.
O
livro do Gênesis não contém nada sobre moralidade. Não há nele nenhuma linha
calculada para iluminar o campo de nossa conduta. Ninguém pode chamar este
livro de um guia moral. Ele constitui-se de mitos e milagres, de tradição e
lenda.
No
livro do Êxodo encontramos uma explicação de como Jeová libertou os judeus da
escravidão dos egípcios.
Nós
atualmente sabemos que os judeus jamais foram escravizados pelos egípcios, que
a história toda é uma ficção. Nós sabemos disso porque não há no hebraico
qualquer palavra de origem egípcia, e não foi encontrada na língua egípcia
qualquer vocábulo de origem hebraica. Assim sendo, inferimos que os hebreus e
os egípcios não poderiam ter convivido durante séculos.
Certamente
o livro do Êxodo não foi escrito para ensinar moralidade. Neste livro é
impossível encontrar qualquer palavra contra a escravidão humana. De fato,
Jeová era conivente a esta instituição.
A
matança do gado com peste e granizo, o assassinato dos primogênitos — de modo
que em todos os lares houve morte porque o rei recusou-se a deixar os hebreus
partirem — certamente não foi algo moralmente correto: foi algo demoníaco. O
autor deste livro considerava todo o povo do Egito — suas crianças, suas
manadas e seus rebanhos — como propriedades do Faraó. Esse povo e esse gado
foram mortos, não porque fizeram algo de errado, mas simplesmente com o
objetivo de punir o rei. É possível extrairmos alguma lição moral desta
história?
Todas
as leis encontradas no Êxodo — incluindo os Dez Mandamentos —, que estão tão
longe do que é realmente bom e sensato, estavam naquele tempo sendo impostas à
força a todos os povos do mundo.
O
assassinato é, e sempre foi, um crime, e sempre o será enquanto a maioria da
população negar-se a ser assassinada.
A
diligência sempre foi e sempre será a inimiga do latrocínio.
A
natureza do homem é tal que ele admira aquele que diz a verdade e despreza o
mentiroso. Entre todas as tribos, entre todos os povos, o “dizer a verdade” tem
sido considerado uma virtude, e um juramento ou pronunciamento falsos, um
vício.
O
amor dos pais pelos filhos é natural, e este amor pode ser encontrado entre
todos os animais vivem. Deste modo, o amor dos pais pelos filhos é natural —
não foi e não pode ser criado por lei. O amor não surge do senso de dever e
tampouco floresce curvado em obediência a comandos.
Assim,
neste sentido, os homens e as mulheres não são virtuosos por causa de algum
livro ou de alguma crença.
De
todos os Dez Mandamentos, os que eram bons eram antigos, eram resultado da
experiência. Os mandamentos originais de Jeová eram tolos.
A
adoração “qualquer outro Deus” não poderia ter sido pior do que a adoração de
Jeová, e nada poderia ser mais absurdo do que a santidade do Sabá.
Se os
mandamentos concedidos fossem contra a escravidão e a poligamia, contra guerras
de invasão e extermínio, contra a perseguição religiosa sob todas as formas, de
modo que o mundo pudesse ser livre, de modo que a mente pudesse ser
desenvolvida e o coração civilizado, então poderíamos, com propriedade, chamar
tais mandamentos de um “guia moral”.
Antes
de podermos dizer que os Dez Mandamentos constituem realmente um guia moral,
devemos adicionar e subtrair alguns deles — devemos jogar alguns fora e
escrever outros em seus lugares.
Os
mandamentos que possuem alguma aplicação conhecida aqui, neste mundo, que
tratam de compromissos humanos, são sábios; os outros não se fundamentam em
fatos ou experiências.
Muitos
dos regulamentos encontrados no Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio são
bons. Entretanto, muitos são absurdos e cruéis.
As
cerimônias de adoração são completamente insanas.
A
maior parte das punições prescritas para violações de leis são irracionais e
brutais. O fato é que o Pentateuco justifica praticamente todos os crimes, e
chamá-lo de um guia moral é tão absurdo quanto dizer que ele é misericordioso
ou verdadeiro.
Nenhuma
moral natural pode ser encontrada em Josué ou em Juízes. Estes livros
estão repletos de crimes — com massacres e assassinatos. Em boa parte, são como
a história real dos índios Apache.
A história de Rute não é particularmente moral.
Em Samuel I e II
não há uma palavra calculada para desenvolver o cérebro ou a consciência.
Jeová
matou setenta mil judeus porque Davi fez um censo do povo. David, segundo o
relato, era o único culpado, porém somente inocentes foram mortos.
Em Reis I e II
não pode ser encontrada qualquer coisa de valor ético. Todos os reis que se
recusaram a obedecer aos sacerdotes foram denunciados, e todos os vilões
coroados que ajudaram os sacerdotes foram declarados como os favoritos de
Jeová. Nestes livros não se pode encontrar uma única palavra em favor da
liberdade.
Há
alguns Salmos bons e alguns infames. A maioria dos Salmos é egoísta. Muitos
deles são apelos passionais à vingança.
A
história de Jó choca o coração de qualquer homem de boa índole. Neste livro há
alguma poesia, algum sentimento e alguma filosofia, mas a história deste drama
chamado Jó é desalmada ao mais alto grau. As crianças de Jó foram assassinadas
devido a uma pequena aposta entre Deus e o Diabo. Posteriormente, tendo Jó
permanecido firme, outras crianças foram colocadas no lugar das assassinadas.
Todavia, nada foi feito pelas crianças que foram assassinadas.
O
livro de Éster é completamente absurdo, e a única coisa boa nele é o fato de
que o nome de Jeová não é mencionado.
Aprecio
o Cântico dos Cânticos porque fala sobre o amor humano, e isso é algo que posso
compreender. A meu ver, este livro é melhor que todos aqueles que o precedem e,
de longe, é um guia moral superior.
Há
alguns provérbios sábios e compassivos. Alguns são egoístas e outros são
superficiais e triviais.
Gosto
do livro de Eclesiastes porque lá podemos encontrar alguma sensatez, alguma
poesia e alguma filosofia. Excetuando-se as interpolações, trata-se de um bom
livro.
Obviamente,
não há nada em Neemias ou Esdras para tornar o homem melhor; não há nada em
Jeremias ou em Lamentações cujo objetivo é atenuar vícios, e somente poucas
passagens de Isaías podem ser utilizadas em prol boas causas.
Em
Ezequiel e Daniel encontramos somente delírios de insanos.
Em
alguns dos profetas menores, aqui e acolá encontramos um bom verso, aqui e
acolá um pensamento elevado.
Podemos,
através de uma seleção de trechos de diferentes livros, obter uma crença
excelente. Entretanto, através de uma seleção de trechos de outros livros,
podemos obter uma péssima crença.
O
problema é que o espírito do Velho Testamento — sua disposição, seu
temperamento — é maldoso, egoísta e cruel. As coisas mais atrozes comandadas,
recomendadas e aplaudidas.
As
estórias contadas de José, de Eliseu, de Daniel e de Gideão — e de muitos
outros — são hediondas, diabólicas.
Na
sua íntegra, o Antigo Testamento não pode ser considerado um guia moral.
Jeová
não foi um Deus moral. Ele possuía todos os vícios e carecia de todas as
virtudes. Ele geralmente executava suas ameaças, mas nunca cumpriu fielmente
uma promessa.
Ao
mesmo tempo, devemos ter em mente que o Antigo Testamento é uma produção
natural, que foi escrito por selvagens que estavam caminhando, lentamente, em
direção à civilização. Devemos dar-lhes crédito pelas coisas nobres que
disseram e devemos ser compreensivos o suficiente para desculpá-los por suas
faltas, e mesmo pelos seus crimes.
Sei
que muitos cristãos consideram o Velho Testamento como o “alicerce” e o Novo
como a “superestrutura”. Por outro lado, muitos admitem que há falhas e erros
no Antigo Testamento, mas insistem que o Novo Testamento é uma flor, um fruto
perfeito.
Admito
que há muitas coisas boas no Novo Testamento e, se retirarmos deste livro os
dogmas da dor eterna, da vingança infinita, da expiação, do sacrifício humano,
da necessidade de derramamento de sangue; se colocarmos de lado a doutrina da
não-resistência — de amarmos os inimigos —, se colocarmos de lado a ideia de
que a prosperidade é consequência da perversão, que a miséria é uma preparação
para o Paraíso. Enfim, se deixarmos isso tudo para trás e selecionarmos apenas
as passagens sensatas e bondosas, que são aplicáveis à nossa conduta, então
poderíamos construir um guia moral razoavelmente bom — estreito e limitado, mas
moral.
Neste
caso, evidentemente, muitas coisas importantes ficariam de fora. Não haveria
qualquer coisa quanto aos direitos humanos, nada em favor da família, nenhuma
palavra sobre a educação, nada em favor do espírito investigativo, do
pensamento e da razão — mas, ainda assim, teríamos um guia moral razoável.
Por
outro lado, se selecionarmos apenas as passagens tolas — as mais extremas —,
então poder-se-ia construir uma doutrina capaz satisfazer um manicômio inteiro.
Se
pegarmos as passagens cruéis, os versos que inculcam o ódio eterno, os versos
que rastejam e sibilam como serpentes, então poder-se-ia construir um doutrina
que chocaria até o coração de uma hiena.
Talvez
nenhum livro contenha passagens melhores que as do Novo Testamento — mas
certamente nenhum livro contém piores.
Sob o
desabrochar da flor do amor encontra-se o aguilhão do ódio; nos lábios que
beijam encontra-se o veneno da serpente.
A
Bíblia não é um guia moral.
Qualquer
homem que seguir fielmente todos os seus ensinamentos é um inimigo da sociedade
— e provavelmente irá terminar seus dias numa prisão ou num manicômio.
Que é
moralidade?
Neste
mundo, precisamos de certas coisas. Possuímos muitos desejos. Somos expostos a
muitos perigos. Precisamos de alimento, combustível, vestimentas e abrigo; além
desses desejos, há o que poderíamos denominar nossa “fome mental”.
Somos
seres condicionados e, por isso, nossa felicidade depende de condições. Há
coisas que reduzem e há coisas que aumentam nosso bem-estar. Há certas coisas
que o destroem e outras que o preservam.
A
felicidade — também em suas formas mais elevadas — é, em última instância, a
única coisa boa. Portanto, todas as coisas cujo objetivo é produzir ou
assegurar a felicidade são boas, ou seja, morais. Tudo que destrói ou diminui o
bem-estar é ruim, ou seja, imoral. Em suma, tudo que é bom é moral, tudo que é
ruim é imoral.
Então
o que é — ou poderia ser denominado — um guia moral? A resposta mais curta
possível consiste de apenas uma palavra: inteligência.
Queremos
a experiência da humanidade, a verdadeira história de nossa raça. Queremos a
história do desenvolvimento intelectual, do fortalecimento da ética, da ideia
de justiça, da consciência, da caridade, do altruísmo. Almejamos conhecer as
estradas e os caminhos que foram percorridos pela mente humana.
Esses
fatos em geral, o esboço dessas histórias, os resultados obtidos, as conclusões
alcançadas, os princípios envolvidos — tudo isso, tomado em conjunto,
consistiria no melhor guia moral concebível.
Não
podemos nos apoiar nos assim chamados “livros inspirados” ou nas religiões do
mundo. Estas religiões são fundamentadas no sobrenatural e, de acordo com elas,
estamos obrigados a adorar e a obedecer algum ser ou seres sobrenaturais. Todas
essas religiões são incompatíveis com a liberdade intelectual. São inimigas do
pensamento, da investigação, da honestidade intelectual. Elas despojam do homem
sua própria humanidade. Prometem recompensas eternas para a crença, para
credulidade — para aquilo que denominam “fé”.
Essas
religiões ensinam virtudes que escravizam. Transformam coisas inanimadas em
coisas sagradas e falsidades em dogmas sacrossantos. Criam crimes artificiais:
comer carne na sexta-feira, divertir-se aos sábados, comer nos dias de jejum,
ser feliz na Quaresma, debater com um sacerdote, buscar evidências, rejeitar uma
crença, expressar seu pensamento honestamente — todos esses atos são pecados,
são crimes contra algum deus. Emitir sua opinião sincera sobre Jeová, Maomé ou
Cristo é muito pior do que caluniar maliciosamente seu próximo. Questionar ou
duvidar de milagres é muito pior do que rejeitar fatos conhecidos.
Somente
os obedientes, os crédulos, os bajuladores, os ajoelhadores, os submissos, os
que não questionam — os verdadeiros crentes —, são considerados morais,
virtuosos. Não basta ser honesto, generoso e prestativo; não basta seguir as
evidências, os fatos. Além disso, é necessário crer. Essas doutrinas são
inimigas da moralidade, elas subvertem todas as concepções naturais de virtude.
Todos
os “livros inspirados”, ensinando que os mandamentos sobrenaturais são corretos
— corretos porque foram ordenados —, ensinando que aquilo que o sobrenatural
proíbe é errado — errado porque foi proibido —, são absurdamente
antifilosóficos.
E
todos os “livros inspirados”, ensinando que somente aqueles que obedecem aos
mandamentos sobrenaturais são — ou podem ser — verdadeiramente virtuosos, e que
uma fé inquestionada será recompensada com a eterna bem-aventurança, são
grosseiramente imorais.
Declaro
novamente: a inteligência é o
único guia moral.