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quinta-feira, 24 de outubro de 2013

DOIS MILÊNIOS DE OBSCURANTISMO: INQUISIÇÃO


SÃO DOMINGOS PRESIDINDO UM AUTO-DE-FÉ





Na minha análise das razões que explicam o obscurantismo imposto pela Igreja católica durante a Idade Média figura proeminentemente a Inquisição e a perseguição de hereges, crentes em outras fés e «bruxas». A definição de herege dada pelo teólogo proscrito por Bento XVI, Leonardo Boff, é a minha favorita até porque ilustra perfeitamente as causas biológicas, a serem explanadas em breve, dessa longa noite obscurantista.

Segundo Leonardo Boff o herege é:
«(…) aquele que se recusa a repetir o discurso da consciência colectiva. (…) Por isso está mais voltado para a criatividade e o futuro do que para a reprodução do passado.».

Para o catolicismo medieval eram consideradas heresias todas as formas de pensamento que não obedecessem estritamente às emanações da hierarquia da Igreja. Ou seja, eram hereges todos os que ousassem sair do controle rígido efetivado pela Igreja, todos os que não aceitassem as orientações, práticas, concepções e preconceitos da Igreja como sendo a verdade «absoluta». Assim, eram hereges todas as pessoas que acreditavam, aceitavam ou mesmo divulgavam quaisquer ideias que se desviassem minimamente da doutrina concebida pela Igreja romana, o que incluía, obviamente, quem ousasse usar perversa e culpadamente a razão em incursões proibidas pela «má» ciência de Agostinho de Hipona.

A Inquisição foi a forma a que a Igreja recorreu para perseguir tudo e todos que não se conformassem aos moldes que esta impunha, nomeadamente que se permitiam ao uso «blasfemo» da razão.

Problema que começou a surgir nos finais do século XII, quando a dita Reconquista da Península Ibérica começou a ter sucesso, (dita Reconquista porque o objectivo foi a recuperação de terras sob domínio árabe às quais os cristãos acreditavam ter direito) graças à fragmentação do califado de Córdoba. Reconquista que pôs os incultos cristãos em contacto com uma civilização cultural e cientificamente muito mais avançada e cujos focos de infecção principal se situaram na Córdoba cosmopolita, elegante e educada, com uma comunidade judaica muito importante de que se destaca um dos seus mais prestigiados filósofos, Maimonides (1135-1204), e na académica Toledo, que expuseram o mundo cristão não só à filosofia aristotélica sem censuras (o que determinou o período seguinte da escolástica) mas também à matemática dita árabe.

E especialmente a matemática porque o crescimento económico de cidades como Florença, Veneza e Pisa, implicava a existência de conhecimento impossível de satisfazer pelos mistícos scholasticus. Conhecimento que possibilitasse cálculos prosaicos como os envolvidos em empréstimos e juros, preços de revenda, investimentos, custos dos seguros das viagens, etc. As necessidades económicas ditaram a criação de uma nova instituição educativa: a Botteghe ou Scuole d’abaco (Escola de Ábaco), cujo primeiro Maestri d’abaco (mestre de ábaco, ou cálculo) foi, provavelmente, o famoso Fibonacci da série que tem o seu nome ou Leonardo de Pisa (ca. 1175-1250). Estas escolas, dirigidas a um público diverso desde filhos dos mercadores, aspirantes a funcionários públicos a aspirantes a pintor (Piero della Francesca frequentou uma escola de Ábaco), escultor ou arquitecto, ensinavam essencialmente a matemática indo-árabe. Fibonacci estudou com um mestre árabe e, tal como Fibonacci, cada vez mais europeus se atreviam a algo proibido até então: usar os neurónios para algo mais que lucubrações sortidas sobre Deus e os Evangelhos.

Assim a Igreja precisava de um «cão de fila», a Inquisição, que exercesse não só uma severa vigilância sobre o comportamento dos fiéis, assegurando que não eram contaminados com toda a produção cultural e inovações científicas que o contacto com os infiéis catalizou, como controlar e tentar cercear toda esta produção intelectual anti-cristã. Na verdade, a Igreja receava que as ideias inovadoras conduzissem os crentes à dúvida religiosa e à contestação da autoridade do Papa. As novas propostas filosóficas ou científicas eram examinadas (e cortadas radicalmente) pela Inquisição, exame que mais tarde, depois da invenção da prensa por Gutenberg que dificultou o trabalho inquisitoral, culminou na criação do Index auctorum et librorum prohibitorum, o catálogo dos livros cuja leitura era proibida aos católicos, sob pena de excomunhão.

A origem da Inquisição remonta ao século IV, quando se iniciam as perseguições contra os hereges. Nesta época, o movimento ainda não era institucionalizado, e no período que vai dos séculos VI ao IX o seu poder era restrito. A partir do século X, a Inquisição vai assumindo um papel cada vez mais importante. Com o IV Concílio de Latrão, de 1216, o papa Inocêncio III estabelece o metodo inquisitio e após o Concílio de Toulouse, em 1229, a sua organização foi formulada, sendo oficializada em 1231 pelo Papa Gregório IX. Inserido num cenário ainda de poder eclesiástico absoluto e soberano este Tribunal é instaurado essencialmente para perseguir os hereges que começavam a incomodar os alicerces do poder da Igreja católica. Em 1252 o poder da Inquisição é reforçado com a santificação da tortura pelo Papa Inocêncio IV que no Ad Extirpanda, diz que os hereges «podem ser torturados a fim de revelar os próprios erros e acusar os outros, como se faz com os ladrões e salteadores» e em que propõe que os heréticos irrecuperáveis devem ser queimados vivos na fogueira. Na prática, um testemunho era suficiente para justificar o envio para a câmara de tortura do acusado e quanto mais débil a evidência do crime, mais severa era a tortura.

O Manual dos Inquisidores, o Directorum Inquisitorum (escrito em 1376 por Nicolau Eymerich e revisto e ampliado em 1576 por Francisco de la Peña) é uma compilação da praxis da Inquisição desde a sua criação formal, um tratado dividido em três partes: a) o que é a fé cristã e seu enraizamento; b) a perversidade da heresia e dos hereges; c) a prática do ofício do inquisidor que importa perpetuar, dá conta, na secção b), que:

«Aplicar-se-á, do ponto de vista jurídico, o adjetivo de herético em oito situações bem definidas. São heréticos:
a) Os excomungados;
b) Os simoníacos;
c) Quem se opuser à Igreja de Roma e contestar a autoridade que ela recebeu de Deus;
d) Quem cometer erros na interpretação das Sagradas Escrituras;
e) Quem criar uma nova seita ou aderir a uma seita já existente;
f) Quem não aceitar a doutrina romana no que se refere aos sacramentos;
g) Quem tiver opinião diferente da Igreja Romana sobre um ou vários artigos da fé;
h) Quem duvidar da fé cristã.»

Nestas oito alíneas cabem todos os que não aceitavam de cruz o que a Igreja de Roma determinava ou qualquer um que se considerasse ter ofendido os costumes (as tradições ainda tão invocadas hoje em dia) e a fé cristã da Santa Madre Igreja, para além dos culpados do costume: judeus, cristãos novos, marranos, sodomitas e bruxas (boa parte parteiras que, inspiradas pelo demo, ajudavam parturientes a «escapar» ao castigo ordenado pelo Senhor de parirem em dor).


quinta-feira, 20 de junho de 2013

INQUISIÇÃO NO PIAUÍ

Por Claucio Ciarlini Neto

A história do Brasil é mergulhada em mitos e silêncios. Um destes foi de que não houve Inquisição no Brasil, devido ao fato de não ter havido um tribunal atuando em terras brasileiras, porém esta interferiu bastante na vida colonial durante mais de dois séculos, atingiu as regiões mais distantes e perseguiu portugueses residentes no País e brasileiros natos, através de seus visitadores, comissários, bispos, vigários locais e “familiares”. Quem era pego pelos “olhos e ouvidos” desse tribunal logo era conduzido para Portugal, e lá recebia sua sentença.

Os elementos mais visitados foram os cristãos-novos, acusados de praticarem secretamente rituais judaicos. As investigações abrangiam, também, culpas de sodomia, bruxaria e blasfêmias contra a Igreja católica, incluindo luteranos e judaizantes. Os jesuítas, assim como os vigários locais, ajudavam na busca dos culpados e suspeitos.

  No Piauí colonial, vários foram os “pecadores” julgados por essa instituição, segundo o Pesquisador Luiz Mott em seus achados na Torre do Tombo: “Ao todo, conseguimos localizar na Torre do Tombo (Lisboa) 23 nomes de moradores do Piauí denunciados ao Tribunal de Lisboa: 15 por desvios relacionados à fé e 8 por crimes sexuais, entre estes 7 sacerdotes. Apenas um destes processos mereceu rápida menção na ainda insuperada Cronologia Histórica do Piauí, de Pereira da Costa: portanto a presença inquisitorial nestes sertões é um tema ainda praticamente virgem na historiografia nacional”. 

O primeiro morador do Piauí a ser capturado pela Inquisição foi Dionísio da Silva, natural da Paraíba. Vinha de uma família de cristãos novos que, secretamente,  realizavam algumas práticas cerimoniais próprias da religião judaica. Cristão novo era a designação dada em Portugal, Espanha e Brasil a judeus convertidos ao cristianismo. Luiz Mott, brilhante pesquisador e antropólogo, em suas abundantes investigações na Torre do Tombo (Lisboa), encontrou, e catalogou, vários casos de moradores capturados pelo Tribunal Inquisitorial em muitos estados do Nordeste, dentre eles Pernambuco, Bahia, Maranhão, Ceará e Piauí, e é Mott que nos relata sobre o ocorrido com a família de Dionísio, em artigo intitulado “Inquisição no Piauí”:

“Seu pai, José Nunes, lavrador de mandioca, demonstrava inclusive certa hostilidade à religião de Cristo, tanto que fora visto desrespeitar uma imagem de Nossa Senhora agredindo-a com uma faca, repreendia seu filho quando o via rezar o rosário e costumava dizer ‘que não devia adorar a um Deus que foi açoitado e morreu’.

Por tais dizeres e práticas proibidas, quase toda sua família foi presa e sentenciada pela Inquisição: a partir de 1729 foram presos seu pai, três tios e uma sobrinha, sendo condenados a abjurar seus erros judaicos e usarem perpetuamente o sambenito – aquela humilhante capa, tipo um escapulário, identificador dos condenados pelo Santo Ofício. Foi sua tia Joana  do Rêgo quem o denunciou: naqueles tempos de terror, para salvar a própria pele, filhos denunciavam seus pais; pais acusavam seus próprios filhos, pois esconder os crimes alheios implicava penas ainda maiores para os réus”.

Em meados de 1730, Dionísio fugiu da Paraíba para o Piauí, foi morar na Fazenda das Éguas, na Ribeira dos Guaribas, distrito da Mocha. Instalou-se como vaqueiro na propriedade. Depois de onze anos, a Inquisição conseguiu encontrá-lo, delatado por seu vizinho, assim como sua “covarde tia” havia feito anos antes com sua família, e o Juiz Ordinário da Mocha, na ocasião, efetuou sua detenção, cumprindo ordem por determinação inquisitorial.

Para instrumentalizar o processo, não havendo até então representantes do Santo Tribunal no Piauí, para lá se dirigiu o Juiz Comissário Frei João da Purificação, do convento carmelitano do Maranhão, que gastou 41 dias entre viagem e inquirições; despendendo a soma de 40$000 com tal diligência, o equivalente ao valor de 16 bois, concluindo com a informação de que ‘todas as testemunhas eram de verdade e crédito, dizendo o mesmo unani­memente”.

 Em 23 de janeiro de 1744, Dionísio recebeu sua punição: “é colocado no “potro” – uma espécie de cama de  madeira onde o réu era amarrado, tendo suas pernas e braços apertados por correias de couro até provocar insuportáveis dores e hematomas.

Diz o documento que o  pobre Dionísio “no potro gritava por Jesus e a Virgem Nossa Senhora do Rosário”. Ouviu sua sentença no Auto de Fé de 21 de junho do mesmo ano, sendo condenado a abjurar seus erros judaicos, a cumprir algumas penitências espirituais, como rezar salmos, comungar e confessar nas principais festas litúrgicas do ano e usar o sambenito para sempre. Teve seus bens confiscados”.

No mesmo ano da prisão de Dionísio, ocorreu mais um caso registrado na Torre do Tombo sobre um morador do Piauí. Foi na freguesia de Nossa Senhora do Livramento de Paranaguá, onde um sacerdote abusou de sua autoridade e recebeu a punição do Santo Oficio, tratou-se de Padre José Aires, 40 anos, natural do Recife, formado em teologia pela Universidade de Coimbra, que ao constatar uma série de denúncias de desvios pertencentes à jurisdição inquisitorial, exagerou no uso de seus poderes, ordenando algumas prisões “em nome do Santo Ofício”, comportamento severamente punido pois apenas aos Inquisidores era dado o poder de prender e julgar os que pecavam contra a fé.

Mais uma vez Mott: “Quem fez a denúncia foi o próprio vigário de Paranaguá, o padre Francisco Xavier Rosa: disse que o padre visitador chegando à fazenda das Traíras, a duas léguas da Matriz, exigiu que os fregueses viessem buscá-lo debaixo do pálio (aquela espécie de guarda-sol utilizado nas procissões solenes para proteger o Santíssimo Sacramento), e após poucos dias da abertura à visita, mandou prender e seqüestrar os bens do próprio Vigário Rosa, proibindo que lhe falassem na prisão e impondo-lhe restrita dieta.

 A acusação que pesava contra o Vigário de Paranaguá era de ter revelado o segredo da confissão. Culpa grave mas que somente com ordem expressa de Lisboa é que o Comissários ou familiares do Santo Ofício poderiam efetuar a prisão do faltoso. Ao reclamar ao Santo Tribunal das arbitrariedades do Padre Visitador, o Vigário Rosa diz ter sido  preso com uma corrente no pescoço e levado a uma cadeia  na vila de Mocha, e dali para São Luiz, achando-se há 13 meses no cala­bouço.”  Já preso e em Lisboa, Padre José Aires confessou e pediu perdão por seus desmandos, recebendo como sentença o degredo por três anos para o extremo sul de Portugal, nos Algarves.

 Outro caso registrado foi o de  Joaquim de Santana,  sapateiro, natural da Bahia, que mudou-se para Jaguaribe com medo de ser denunciado, pois havia casado uma segunda vez, sendo sua primeira mulher ainda viva. O crime de bigamia era considerado um “pecado horrendo” aos “olhos” da Igreja católica, pois ia contra os preceitos desta, contra o discurso instituído quanto religião, pois depois de casados, ou seja, depois de terem recebido as bênçãos católicas, um casal não poderia se separar, pois dessa forma estariam quebrando uma ordem imposta pela Igreja.

 Porém um dos casos mais tenebrosos registrados sobre as “Vítimas” da Inquisição no Piauí Colonial foram as confissões de duas escravas negras, como bem relata Mott: “Em 1758 registra-se o episódio de feitiçaria mais fantástico da história do Piauí, quiçá um dos mais espantosos de todo nordeste brasileiro: a confissão de duas mestiças da Mocha envolvidas com o diabólico ritual do “sabá”, i.e., uma reunião de demônios com feiticeiras, muito semelhante ao relatado na Europa medieval e moderna, mas rarissimamente documentado na América Portuguesa…”.

“Eu, Joana Pereira de Abreu, mestiça, agora escrava do Capitão Mor José de Abreu Bacelar, e moradora nestas Cajazeiras, Fazenda do dito meu Senhor, Freguesia de Nossa Senhora do Livramento, da Vila de Paranaguá… denuncio e me vou a denunciar a Vossas Excelências Reverendíssimas que haverá oito anos, com pouca diferença, vivendo eu na Mocha, donde nasci e fui criada na casa do dito primeiro meu senhor acima dito, já defunto, uma mestiça forra da mesma vila, chamada Cecília, não estou bem certa no sobrenome, mas cuido que Cecília Rodrigues, bem conhecida na vila por Cecília e tem uma filha chamada Mariana, se me fez Mestra ela e também uma minha irmã mestiça, chamada Josefa Linda, mais velha e que então vivia comigo na mesma casa e depois veio comprada para estas Cajazeiras dois anos antes de eu vir também comprada pelo dito agora meu Senhor Capitão Mor.

Estas foram as duas Mestras que eu tive para tudo o que de mim e delas denunciarei abaixo, pedindo para mim ao Santo Tribunal compaixão pois já o faço arrependida e com prometimento de não tornar a semelhantes erros como os que tem sido em mim…   Um mês antes, me contou a dita Mãe Cecília, que o Demônio tinha torpezas com as mulheres. E que se eu queria falar e ter com ele, ela me ensinaria. Aceitei eu, como rapariga de nenhuns miolos e por outra parte de costumes de pouca ou nenhuma boa educação.

Então me disse ela que eu havia de ir nua à porta da igreja da mesma vila da Mocha, em que vivíamos, e na qual igreja da vila se conserva sempre o Santíssimo Sacramento, que ali havia de bater com as partes prepósteras assim nua umas  três vezes na porta da Igreja indo sempre para trás, e havia no mesmo ponto de chamar por este nome e vocábulo: Tundá,  o qual vocábulo nem eu lhe sei bem decifrar a significação inteira e cabal, mas julgo ser nome do Demônio. E que dali havia de endireitar nua para umas covas de defuntos que estão a um lado da vila, a onde chamam o Enforcado, por se ali ter enforcado algumas vezes alguns delinqüentes. E que ali me havia de aparecer um moleque e que eu pondo-me na postura de quatro pés, ele me havia de conhecer pela parte prepóstera…”.

 Temendo os castigos da Inquisição, Joana Pereira de Abreu delatou ao “Santo Oficio”, a também escrava Cecília que, segundo ela, a teria convencido a fazer parte de um Sabá, ritual de bruxaria em adoração ao Demônio.

A partir da primeira Inquisição, a iconografia cristã passou a representar o “Arcanjo Decaído” não mais como um arcanjo, mas com a aparência de deuses pagãos, como Pã, um deus dos bosques, dos campos, dos rebanhos e dos pastores na mitologia grega e Cernunnos, Deus Cornífero, por ser muitas vezes representado como um homem com chifres adornando a cabeça. Era o Deus da fertilidade, da abundância e patrono da caça para os povos antigos, às vezes era representado alimentando animais; também podia mudar de forma e aparecer como cobra, lobo ou veado.

Tal fato levou, séculos após, à suposição de que bruxas eram adoradoras do demônio, o que não faz sentido, uma vez que a figura do demônio faz parte do dogma cristão, não pertencendo às crenças pagãs e nem existindo personagem de caráter equivalente ao diabo em qualquer panteão pagão. O uso alternativo do nome Lúcifer para designar o mal encarnado, na visão cristã, agravou a ignorância a respeito do culto das bruxas, uma vez que o nome Lúcifer, pela raiz latina, representa portador/fabricante da luz (Lux Ferre), inescapável semelhança ao mito grego de Prometeu, que roubou o fogo dos céus para trazê-lo aos homens.

Concluindo este artigo, foi encontrado por Mott um caso relacionado à suspeita na Fé, fato que os Regimentos Inquisitoriais rotulavam de proposições heréticas (a proposição herética encerrava uma parte de verdade, e era perigosa para a fé porque apresentava essa parcela de verdade como a verdade toda, como por exemplo, quando se diz que é verdade que Cristo é Deus e homem, mas para a Igreja é heresia afirmar que Cristo é apenas Deus ou apenas homem).

Mott transcreveu e analisou com maestria esse episódio ocorrido na Parnaiba do periodo colonial: “Trata-se de um morador da Vila de São João da Parnaíba, José Francisco Souto Maior, natural de Pernambuco, acusado de ter proferido as seguintes heresias: “que Deus tinha obrigação de salvá-lo posto que o criara; que os mártires eram tolos, pois devemos defender à vida acima de tudo; que homem nenhum do mundo não se deixou cair no 6º mandamento,  e perante o Santíssimo Sacramento dizia: eu vos adoro se aí estais…”.

Tal delação traz à data 29 de janeiro de 1802, a única ocorrência de um morador do Piauí já no século XIX. Como as demais denúncias, também esta ficou arquivada no Secreto do Tribunal da Inquisição de Lisboa, sem que este Monstro Sagrado ordenasse qualquer medida punitiva contra o irreverente sertanejo. Já nesta época, o Santo Ofício estava moribundo, e também no Piauí as novas idéias dos iluministas da Revolução Francesa tinham seus adeptos e divulgadores”.

No dia 31 de Março de 1821 foi extinta a Inquisição em Portugal, por uma sessão das Cortes Gerais da Nação Portuguesa. Um “mundo da razão” pedia passagem e certos tipos de radicalização da fé não poderiam mais ser bem aceitos, pois afinal de contas, as revoluções que o capitalismo necessitava, e assim impulsionava, ocorriam já há décadas e o Brasil acabaria por não ficar de fora, mesmo que na forma de um Império herdado por um filho de sua antiga metrópole.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

INQUISIÇÃO NO CEARÁ






Por Vinícius Barros Leal, médico e historiador. Publicado na Revista do Instituto do Ceará - ANNO LXXXIX - 1975




Através dos registros de casamentos e batizados pude identificar a vinda para Aquiráz, de uma filha do casal mais inexoravelmente atormentado pelos “familiares” inquisitoriais. Charmava-se Josefa Maria dos Reis. Nome disfarçado de uma Fonsêca Rêgo, cristã nova pelos 4 costados.

Era filha de Manuel Henriques Fonsêca e de Joana Rêgo. Vale a pena contar a história deste casal. No “Auto de Fé” de 17 de junho de 1731, em Lisboa, aparece o pai de Josefa qualificando-se como cristão novo, de 53 anos de idade, lavrador de canas, natural do Engenho Inhobim e morador no Riacho do Meio, distrito da cidade da Paraíba, no Bispado de Pernambuco. (Rev. Inst. Hist. Bras. Tomo 7 (1845)).

Foi comprovada a sua culpa; judaizava. Foi condenado a cárcere e hábito perpétuo. E também perda de todos os seus bens. (Os marranos brasileiros, Isaac Izeckson, 195). É provavel que jamais tenha voltado ao Brasil. Sua mulher, Joana do Rêgo o acompanhou no infortúnio. Presa na Paraíba, foi levada para Lisboa, figurando no mesmo Auto de Fé. Também natural da Paraíba, jamais voltou a sua terra. Hábito e cárcere perpétuo. Este hábito significava que pelo resto da vida teria que usar um “sambenito”, isto é, uma espécie de avental amarelo com a estrela de David na frente.

 O aparecimento em público de uma pessoa com este vestuário era motivo para escárnio e manifestações de insultos e, às vezes de violência por parte da multidão enfurecida, sobretudo, após uma simples manifestação das forças da natureza, como tufões, sismos, etc. A eles era atribuída a fúria divina.

      Pois, deste casal, era filha Josefa, que casou em Aquiráz a 22 de novembro de 1735. Ofereceu ao Padre ou sacristão que documentou o sacramento, a sua filiação e naturalidade. Devia estar muito segura de sí. Segurança que poderia ser motivada por sua total adesão a Fé católica ou por gozar de proteção especial de parentes influentes na nova terra de sua adoção. Os pais são dados como já falecidos.

O noivo Antônio de Freitas Coutinho, natural de Sergipe d’El Rey, é fllho de Pedro de Freitas Faleiro e Margarida de Brito Coutinho. Este último apelido é tipicamente judeu. E os Fonsêca Rêgo tinham já outras ligações com esta família de cristãos novos. Os padrinhos foram o Tenente Cel. José Correia Peralta e o Sarg.-mor Manuel de Brito. Presumo ser este o protetor de Josefa. Os Britos do Ceará eram cristãos novos. Em documentos antigos eles são taxados de mouros, mas, isto é apenas uma incompreensão muito corrente na época, em que não se distinguia o árabe do judeu; ambos eram inimigos da fé.

Pois, deste casal, era filha Josefa, que casou em Aquiráz a 22 de novembro de 1735. Ofereceu ao Padre ou sacristão que documentou o sacramento, a sua filiação e naturalidade. Devia estar muito segura de sí. Segurança que poderia ser motivada por sua total adesão a Fé católica ou por gozar de proteção especial de parentes influentes na nova terra de sua adoção. Os pais são dados como já falecidos. O noivo Antônio de Freitas Coutinho, natural de Sergipe d’El Rey, é fllho de Pedro de Freitas Faleiro e Margarida de Brito Coutinho. Este último apelido é tipicamente judeu. E os Fonsêca Rêgo tinham já outras ligações com esta família de cristãos novos.

 O primeiro aparecimento do nome de Josefa em documento eclesiástico foi em Aquiráz, a 20 de julho de 1734, quando ela foi madrinha de um escravo de Manuel de Brito. O casal não teve filhos; apenas adotou uma criança chamada Joaquim, que teve por padrinho Luis Ribeiro Monção. Antônio de Freitas Coutinho teve vida ativa, sobretudo após 1746 quando passou a figurar na lista dos ocupantes de cargos públicos: alcaide, carcereiro e, mais demoradamente, “tesoureiro do cofre dos órfãos”. Nesta função, sucedeu ao protetor Manuel de Brito.

 Num certo período ele desaparece da cena pública. Coincide isto, com a nomeação para governador do Ceará de Francisco da Costa. Costa era sobrinho de Antônio Borges da Fonsêca, familiar do Santo Ofício que teve grande atuacão na Paraíba na repressão ao surto de judaismo alí ocorrido no segundo decênio do século XVIII. Foi este “familiar”, que verificou e ordenou as prisões dos hereges. A queixa está bem explícita nas declarações de Antônio da Fonsêca Rêgo.

      Na Revista de História n. 98, pág. 359, em documentado trabalho de Anita Novinsky, podemos verificar que Antônio tinha na época de sua prisão, na Paraíba, 47 anos, isto é em 22 de novembro de 1729. Era lavrador de canas, não possuia bens de raíz, mas arrendava terras a Baltazar da Rocha e a João Peixoto.

No inventário feito na ocasião, declarou possuir diversos bens móveis, animais, escravos, jóias etc. Lamenta-se também da violência cometida pelos policiais que a mando de Antônio Borges da Fonsêca o prenderam. Quebraram toda a louça de barro de seu uso.

 Tinha credores diversos e um deles, Francisco Barbosa de Menezes, talvez fosse o deste mesmo nome residente na época, em Aracati, e tronco da família Bezerra de Menezes naquela região.

 Entre as seus sobrinhos citados, está o nome de Miguel Henriques, que faz lembrar a seu homônimo. Miguel Henriques Fonsêca que teve, em Portugal, em 1682, um trágico fim: foi queimado vivo, “ouvindo o crepitar das próprias carnes e os uivos do populacho que o apedrejava” (Lucio de Azevedo, História dos cristãos novos portugueses, 323). Miguel, que era advogado, não abjurou de sua fé tradicional e arraigada.

 Antes de ir para a fogueira, entregou ao juiz uma declaração afirmando que voltaria, daí por diante, a assinar o seu nome na maneira hebráica original, isto é: Misael Hisneque de Fungoça. Aí a origem do apelido dessa família.

      Voltando ao casal pai de Josefa. Tiveram outros filhos. Três deles, pelo menos, tiveram contas a ajustar com a lnquisição: José da Fonsêca Rêgo, Dionísia da Fonsêca e Izabel da Fonsêca Rêgo.

      Estes 3 irmãos de Josefa estavam presentes no Auto de Fé de Lisboa realizado a 6 de julho de 1732. Certamente, a prisão havia ocorrido 2 ou 3 anos antes, motivada por denúncias dos próprios pais e de mais uma outra testemunha. Era condição exigida pelos inquisidores: duas testemunhas, duas denúncias. José, tinha 31 anos, era solteiro e já vivia muito dentro do sertão, nas Piranhas, próximo às lindes com o Ceará. Izabel, de 26 anos, já era viúva de Antônio Nunes e Dionísia, a mais convicta na religião de Moisés, tinha apenas 24.

Muitos outros parentes estavam também em Lisboa, presos e passando pelas maiores agruras, na incerteza de seus destinos. Neste Auto, somaram 17, todos da cidade da Paraíba. José morreu no cárcere e suas duas irmãs foram condenadas a cárcere e hábito perpétuo, tal como seus pais. Dionísia foi renitente. Mesmo nas garras do Santo Ofício, continuou a judaizar, voltando ao banco de réus no auto de Fé de 18 de outubro de 1739 e mais uma vez condenada a prisão perpétua e sambenito. E estranhável ter escapado da fogueira num Auto onde foi condenado a esta pena, por renitência um seu contraparente, o célebre Antônio José da Silva, filho de Lourença Coutinho.

Em que consistiam estes delitos tão graves que levavam estes infelizes a sacrificarem suas vidas, tendo uma morte infame e, muito pior ainda, muitas vezes, aqueles que não eram queimados e deveriam suportar pelo resto da existência as masmorras infectas, os trabalhos forçados, o degrêdo para terras inóspitas? Unicamente a fato de judaizarem; isto é, de, no recôndito de seus lares, praticarem cerimônias rituais milenares, jejuando nos grandes dias, deixando de trabalhar aos sábados, ou, algumas vezes, por um descuido, fazendo transparecer opiniões pessoais a respeito do conceito em que tinham os sacramentos ou atos da Religião oficial.

 Ainda hoje perduram, sem que ninguém se aperceba disto, no nosso dia a dia, hábitos e costumes que no passado eram vedados aos católicos. Por exemplo, o resguardo de 40 dias é prática tipicamente israelita: certos cuidados com os cadáveres antes do sepultamento, a troca de roupas limpas nos sábados, a uso da lamparina, tão comum no interior.

Vinicius Barros Leal, médico e historiador cearense, nos revela - Muito esmiuçado pelos inquisitores eram os hábitos alimentares. A maneira de tratar a carne e a escolha desta ainda perduram em muitas famílias. É claro, que atualmente estas pessoas são incapazes de explicar esta ou aquela preferência por determinado peixe ou por particular tratamento que recebem os alimentos em suas cozinhas. Nos séculos das perseguições, sabiam. Sabiam, mas, diante dos inquisidores faziam-se de inocentes. É muito divulgado nos livros que tratam do assunto, as confissões das filhas de Branca Dias, em Olinda. Diogo Fernandes e Branca fundaram uma Sinagoga em Camaragibe e lá reuniam frequentemente os criptojudeus da região. (Revista do Instituto do Ceará - ANNO LXXXIX - 1975)

Muitos cearenses descendem deste casal, sobretudo, comprovadamente, os provenientes de Agostinho de Holanda, um dos filhos do fundador da família, Arnau de Holanda. Agostinho era casado com uma neta de Branca Dias, diz o médico historiador Vinicius Barros Leal, que se chamava Maria de Paiva. Apesar de toda a prosápia da família naqueles recuados tempos, este sobrinho neto do Papa Adriano VI foi chamado para dar explicações de certos hábitos alimentares de sua mulher que ali já procurara se justificar alegando idiossincrasias, repugnancias e males do estômago.

Milhares de atuais cearenses são 8º, 9º e 10º netos de Maria de Paiva, que pelo exposto devia estar muito impregnada da fé de seus avós, judeus convictos, renitentes escapos da fogueira pela extemporaneidade da visita de Heitor Furtado de Mendonça. Pelas monitorias da Inquisição, nestes casos de pertinácia e de resistência por parte dos cristãos novos de praticarem a fé católica, os descendentes destes casais, até a 10ª geração, eram execrados, vilipendiados e sujeitos a outros vexames. Pombal se encarregou de cortar este cordão umbilical.

      Voltando ao casal de Aquiráz, Antônio de Freitas Coutinho e Josefa Maria dos Reis. Josefa, unicamente naquele batizado de um escravo de seu protetor teve seu nome anotado nos livros paroquiais. Antônio aparece uma única vez, também, testemunhando um casamento. Na capela do Forte, em 5 de agosto de 1761 presenciou o enlace de um filho de Paschoal Nunes Pereira. É bem estranhável esta ausência aos atos religiosos de apadrinhamento, sobretudo num casal de bastante projeção no incipiente meio social, onde ele por diversas vezes ocupou cargos por eleição de seus coetâneos.

      Antônio faleceu pouco depois desta última data, pois, sua viúva, a 9 de julho de 1764 casava segunda vez com o recém viúvo Jacinto Coelho Frazão. Josefa teria cerca de 50 anos e Jacinto mais do que isto e fôra casado com Maria Lopes Leitão, irmã de Francisco de Brito Pereira. Lopes, Brito e Pereira são nomes usuais entre os “da nação”.

      Judaizaram também no Ceará? Não podemos afirmar. Algum dia pode ser, tal como aconteceu agora no Pará, o “Livro” do Ceará aparecerá, se é que a Inquisição tenha andado por aqui, o que é pouco provável. E aí conheceremos os seus nomes e as suas convicções religiosas. Por ora, resta-nos levar nossas conjecturas até aquela Casa Grande nas proximidades de Baturité e chegar até o copiar, onde uma senhora de idade revive a sua triste mocidade na Paraíba. Em suas lembranças e em seus sonhos estarão presentes as cenas cruciantes da prisão de seus pais e irmãos e as noticias inseguras, por algum correligionário, dos Autos de Fé em Lisboa.

      Os confitentes e denunciantes que compareciam à mesa inquisitorial eram obrigados a assinar um papel obrigando-se a jamais revelar o que se passasse durante os interrogatórios. Apenas o que se tornava público eram as procissões para a Praça onde deveria ocorrer a publicação das sentenças e o cumprimento da pena, nas fogueiras previamente preparadas.

      Nessas ocasiões apenas era dado encontrarem-se aqueles que durante anos permaneciam nas masmorras vigiados dia e noite. Muitas vezes para um último olhar, uma despedida cruel. Nestas circunstâncias estiveram parentes próximos de Josefa: Antônio da Fonsêca Rêgo e Maria Valença, ambos queimados em praça pública. Seus pais, uma vez, juntamente com os 3 filhos, para receberem a sentença de cárcere perpétuo. O casal de velhos e o filho homem, suportaram pouco tempo; morreram na prisão. Dionísia voltou a um 2º Auto, por relapsia.

      Tudo leva a crer que Josefa tinha certa inclinacão pela observância da Lei mosáica. O seu 2º marido, um Frazão, teve ascendentes inteiramente integrados no judaismo durante a ocupação holandesa. Um deles, Samuel Frazão chegou a ser eleito Rabino da sinagoga mauricia.

      Mais difícil se torna hoje em dia a identificacão destas pessoas, em vista da Carta Régia de 25 de maio de 1773, quando se mandou proceder uma devassa em todos os livros das Misericórdias, Irmandades, Companhias e Corporações, limpando-os de quaisquer notas maliciosas que fizessem distinguir cristãos velhos e novos.

A lei era dura e foi cumprida, fazendo desaparecer para sempre as preciosas informações que nos possibilitariam uma identificação correta e segura dos marranos. Resta-nos, através de antigos genealogistas, e com o seguimento ordenado, metódico e paciente, acompanhar o desenrolar das múltiplas gerações. O trabalho é penoso, estafante, enfadonho, mas, compensa, pela alegria de um achado interessante, pelo levantamento de uma cortina que esconde um passado fascinante.

Por Vinícius Barros Leal, médico e historiador. Publicado na Revista do Instituto do Ceará - ANNO LXXXIX - 1975

sábado, 15 de junho de 2013

INQUISIÇÃO - BRANCA DIAS



Branca Dias foi uma descendente dos antigos judeus portugueses, que a memória regional identificava como uma cristã-nova vítima da ação do Tribunal da Inquisição entre os séculos XVII e XVIII.

Há três Brancas, explica o professor de história religiosa Carlos André. Uma delas já tem a existência histórica comprovada: viveu em Pernambuco e foi processada pela Inquisição como judaizante no século XVI. Há uma outra que teria vivido em Apipucos (hoje município do Recife), segundo a escritora pernambucana Joana Maria de Freitas Gamboa em o “drama histórico” “Branca Dias dos Apipucos”, cuja narrativa versava sobre uma rica cristã-nova, moradora perto do Recife, que teria sido presa pela Inquisição quando da Guerra dos Mascates (1710-1711), mas sem documentação comprobatória de sua existência. A Branca que nos interessa teria vivido em Gramame, Paraíba, no século XVIII.

Há ainda uma quarta Branca Dias. Esta teria nascido em Viana, no Minho em Portugal, que no final dos anos 1520, casou-se com um cristão-novo chama Diogo Fernandes. Denunciada pelo crime de judaísmo em 1540 por sua própria mãe e uma irmã, em face da pressão do Santo Ofício. Depois de confessada a culpa ficou presa durante cinco anos. Ao conseguir a liberdade, Branca Dias fugiu para o Brasil com seus filhos (3 meninos e 8 meninas) desembarcando na cidade do Recife onde seu marido em Olinda onde era comerciante de tecidos e senhor de engenho. (Dicionário Mulheres do Brasil - Maria Aparecida Schumaher, Érico Vital Brasil)

Se Branca Dias não é comprovada historicamente, se ela não existiu historicamente e realmente ela não tem comprovação de existência ou qualquer documentação, nos interessa, no entanto, como um objeto básico de memória e como uma exposição essencial daquilo que a sociedade imagina como tendo sido o Tribunal do Santo Ofício. É memória no sentido aristotélico.

 Branca Dias é a “personagem” histórica – ainda que ficcional – mais controvertida da Paraíba. A biografia dela é repleta de fatos contundentes. Sua própria existência é posta em dúvida. Branca foi, segundo o “Livro de Branca”, de J. Abreu, uma judia vitimada pela Inquisição. Naquela época – século XVIII – os judeus viviam sob o terror da conversão forçada decretada desde o século XV, obrigando os “filhos de Israel” a se tornarem cristãos na marra. Até o Papa chegou a questionar tal obrigatoriedade, mas acabou se deixando levar pelas pressões do Império Português. Com a conversão, o judeu – que pensava se livrar da perseguição após ter se convertido – passava a ser tido como cristão-novo ou criptojudeu, ou seja, cristão nas aparências públicas, mas ainda judeu nos hábitos e no coração.

A memória atual do ficcional caso de Branca Dias, na Paraíba, demonstra a força deste passado.


BRANCA DIAS


A história de Branca é paradigmática. Teria sido vítima da paixão anormal de um padre que desejava a judia a qualquer preço. Em nome do amor que tinha pelo noivo, também judeu, Branca resistiu a todas as pressões. A história é marcada pelos mitos que formam o imaginário da nossa gente. Tendo ou não ocorrido, sob a narrativa heróica está o mitologema mais caro da alma luso-brasileira: a “saudade do impossível”. Esta saudade conduz Branca ao embate suicida contra os inquisidores. Ela sabe que não poderá ter uma vida normal ao lado do seu amado. Sabe que poderá perder tudo para o confisco inquisitorial. Sabe que só lhe restará “lembrança do que TERIA SIDO a vida sem a Inquisição”. Mesmo assim, Branca não se entrega às pressões do padre... e morre queimada por causa de seu destemor.

Nós, brasileiros, buscamos este paradigma heróico em nós mesmos, nos nossos políticos, nos nossos artistas e até nos jogadores que representam o “país do futebol” na Copa do Mundo. Branca, tendo ou não existido, leva em si um pouco da nossa alma. Ou, para usar o termo científico forjado por Arnold Toynbee (um dos maiores historiadores deste século), Branca Dias diz muito do “espírito de uma época e de um povo”.

Este esforço intelectual pela elaboração de um panteão de heróis especificamente paraibanos podia ser encontrado, inclusive, em discursos de políticos. Pinheiro menciona conferência proferida pelo presidente do estado, Castro Pinto, no Rio de Janeiro, por ocasião  da comemoração do aniversário da cidade da Paraíba do Norte em 05 de agosto de 1920. No discurso ele afirma que:

“A qualidade fundamental que encontro no povo parahybano é a vontade  heróica, a firmeza de caracter, a inflexibilidade na linha de conducta, o saber querer para agir com acerto, a consciência do dever norteando os seus actos de vida (...); sirvo-me [para provar a tese] dos grandes nomes  representativos da evolução da Parahyba, desde os primórdios do povoamento até hoje.” (apud Ferreira, 2002, p.165).

 Dentre os inúmeros nomes que cita, a exemplo de Branca Dias, José Peregrino de Carvalho, Antonio Borges da Fonseca, D.Vital, Manuel de Arruda Câmara, Epitácio Pessoa, e outros, o presidente Castro Pinto destaca André Vidal de Negreiros, que, segundo ele, fora superior a todos os heróis de sua época.

Branca teria sido a realização de uma das características do imaginário colonial brasileiro muito bem definidas pelo antropólogo francês Gilbert Durand. Ele diz que o nosso imaginário é composto de vários mitologemas e dois desses mitologemas vão nos interessar especificamente para o estudo da Inquisição.

 O professor Carlos André em palestra proferida no Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba, falando sobre as famílias descendentes de judeus que aqui na Paraíba viveram, destaca os membros da família de João Inácio Cardoso Darão. Esse, segundo o professor, conseguiu fugir aqui das perseguições, foi para o Ceará e lá se casou com uma moça da família Alencar, em Barbalha. Depois volta e se refugia em Mari do Seixas, saindo de lá para Pombal. Era uma família de artesãos, que passaram a arte da ourivesaria para os filhos.

Era uma família pequena. João Inácio era casado com Catarina Liberato de Alencar. Deles descende o professor Inácio Tavares de Araújo e José Romero Araújo Cardoso, que é escritor e professor de Geografia em Mossoró. O interessante dessa família é que eles conservaram na memória familiar a sua ascendência judaica e conservam viva  na memória a história de Branca Dias, da Branca Dias da Paraíba.

Segundo o professor Inácio, na memória da família (não tem documento) João Inácio e Francisco se diziam que eram filhos de Simão Dias Cardoso de Araújo, morador no Engenho Velho, nas margens do Gramame. Ora, esse Simão Dias aqui da margem do Gramame é dado, embora não tenha documentação, como pai da própria Branca Dias. Estou apenas passando aquilo que colhi na família.

Outro paraibano ilustre que defende a cidadania paraibana de Branca Dias é o Irineu Ceciliano Pereira da Costa, da cidade de Pocinhos e aluno do padre Rolim  em Cajazeiras, tendo mais tarde mudado o seu nome para Irineu Jofily.

Irineu Jofily foi promotor público em São João do Cariri (1867), Juiz de Direito de Campina Grande, Deputado provincial pelo Partido Liberal, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Jornalista (A Gazeta do Sertão), deputado geral em 1889, cuja posse foi impedida pela Proclamação da República voltando para Campina Grande no mesmo anos onde acompanhou as definições dos limites do território paraibano.

Irineu Jofily em seus escritos afirma que a tradição nos diz que Branca Dias, de alta posição na sociedade colonial pela ilustre família a que pertencia e pela opulência em que vivia no seu engenho próximo a cidade da Parahyba, o que contrastando com o seu miserando fim, resultado da perseguição que lhe moveu o terrível Tribunal, influiu de tal modo na imaginação popular, que o seu nome tem atravessado três séculos.

Outro artigo de Irineu sobre o tema foi publicado no jornal A União, em 24 de agosto de 1901. Neste texto, Joffily lembra os gracejos que ouvira, quando estudante de Direito no Recife, dos colegas de outras províncias:

“Há quarenta anos, pouco mais ou menos, quando fazia o meu curso de preparatórios na cidade do Recife, ouvia freqüentemente entre os colegas, e em reuniões familiares, pronunciar o nome de Branca Dias, célebre paraibana de raça judia e vítima da inquisição. „A Paraíba é a terra de Branca Dias, os paraibanos descendem de judeu, não comem toucinho, etc., dizia-se geralmente nessas ocasiões, pilheriando com os filhos desta terra (JOFFILY, I., 1977: 445)”.

 No mesmo artigo, Joffily escreve: “Desde tenra idade que ouço falar nessa célebre mulher [Branca Dias] e tão célebre que o seu ruidoso processo e deplorável fim nas fogueiras do Santo Ofício, deu lugar que os paraibanos seus patrícios ficassem suspeitos de judaísmo pelos habitantes das capitanias vizinhas (JOFFILY, I., 1977: 177)”.

O bacharel afirma que “a curiosidade e o interesse que me desperta o assunto, obriga-me a encará-lo com o fim de convidar a quem quer que o possa esclarecer, a vir a público JOFFILY, I., 1977: 177)”.

Quatro anos depois, no jornal A União, Joffily recuperava o convite e transcrevia a única resposta obtida após o primeiro apelo, do Cônego Bernardo de Carvalho Andrade:

“Li no „Commercio de Pernambuco de 21 de março findo seu bem lançado artigo sobre a célebre Branca Dias, e muito agradeço a fineza de mo ter enviado, porque seria por mim ignorado, desde que não assino aquele periódico.

“Pouco adiantarei ao que sabe o meu amigo da história da célebre heroína paraibana, pois jamais pude obter documento escrito que se referisse à vida e fim trágico que teve. Mas, ainda que ao nome dessa paraibana célebre ligue o preconceito popular um histórico fabuloso e fatídico que não traz a luz precisa à sua biografia, não se pode pôr em dúvida ter ela existido na Paraíba, pois disto dão testemunho o território e as ruínas do engenho que lhe pertenceu, e onde residiu.

“Até o ano de 1880, quando o meu caro amigo tomava assento na Assembléia daquela Província, hoje Estado, era aquela propriedade respeitada de tal sorte pelo povo ignaro, que dela não cortavam sequer uma tabica para açoitar cavalos, por terem por malditos os próprios matos que ali vegetavam, e se alguém mais desabusado atrevia-se a fazê-lo, os demais vaticinavam a morte dele ou do cavalo, que se morressem de velho seria a morte sempre atribuída à imprudência de se ter servido da tabica daqueles matos.

“Depois do ano memorável de 1877 projetei mudar-me do Sertão por causa do flagelo da seca, e amigos nossos da capital procuravam convencer-me que seria de vantagem minha colocação naquela zona próxima ao litoral.

“Um desses amigos, o Tenente João Pinto de Vasconcellos, que então vivia e era senhor de propriedade que pertencera à heroína de que se ocupa, ma ofereceu por venda, que não se realizou por não assentar a mulher do mesmo Pinto, que a houve por herança de antepassados.

“Não visitei aquela propriedade por não ter efetuado a compra, mas sei que é situada à margem do Rio Gramame, ao S. da capital da Paraíba, não longe da foz do mesmo rio. Sei mais que são bem visíveis os destroços das edificações que ali existiam e que o preconceito dos ignorantes não tem servido de inteira garantia à propriedade, porque os poucos escrupulosos se têm apossado de parte de seus terrenos.

“O finado Comendador Dr. Lindolpho José Correia das Neves, de talento tão robusto e cultivado, que faz honra à terra aonde nasceu, sabendo que eu pretendia comprar aquela propriedade me garantiu ser de ótimos terrenos para a agricultura, e que se conservava coberta de matos. Seu espírito ativo e aguçado a criticar com jocosidade, não perdeu o ensejo de dizer-me: - „Espera por certo encontrar o terreno de Branca Dias, pois de outro modo não se explicaria pretender V. comprar aquela propriedade inculta e sazonática. Não duvido que alguns dos seus descendentes desconhecidos entre o povo e depositários do segredo lho tenham revelado. Não haverá entre os de sua família alguém daquela procedência?

“Isto motivou larga conversação sobre o assunto, dizendo-me ter visto notas sobre o auto-de-fé daquela notável paraibana, notável não somente pela origem de sua ascendência, de quem houve a grande fortuna que possuia, como pelo faustoso e principesco tratamento que ostentava (JOFFILY, I.,1977: 445-447)”.

Ignoraria o nome do engenho visitado pelo cônego Bernardo, não fossem as pistas dadas por Zilma Pinto. A propriedade era o Engenho Velho, e a mulher do tenente Vasconcelos, Alminda Manoelita Cavalcanti d’Albuquerque.

Existe a hipótese, aventada pela autora, de que este engenho tenha sido levantado no século XVI por certo Jorge Thomas, “senhor do distrito de Gramame”. Há um Jorge Thomaz (ou Thomas) Pinto cristão-novo, depoente na visitação inquisitorial de 1591-5, a primeira que o Santo Ofício delegou à América Portuguesa.

Zilma Pinto arrisca, portanto, que o engenho Velho foi criado e habitado por cristãos-novos desde o século XVI (PINTO, 2006: 164-165)
.
Porque relacionada à história da Inquisição na capitania, a Branca Dias paraibana engendra uma questão histórica: a presença cristã-nova na região e sua relação com a suposta mártir local. Escrita no século XIX, embora só publicada na íntegra em 1912, a História da Província da Parahyba, de Maximiano Lopes Machado, talvez seja um dos primeiros livros de história escritos na Paraíba que trata da lenda de Branca Dias.

 No quarto capítulo do tomo II, Machado discorre sobre as “fogueiras da Inquisição [que vieram] agravar ainda mais a sua sorte [da Paraíba]” na época colonial. Sob orientação do bispo do Rio de Janeiro e delegado do Santo Ofício, D. Frei Francisco de São Jerônimo, “os familiares [do tribunal] se poseram em  O Tribunal do Santo Ofício de Lisboa – ao qual o Brasil era subordinado – realizou pelo menos três “visitações” a partes da América Portuguesa: a Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba (1591-1595), à Bahia (1618-1620) e ao Grão-Pará e Maranhão (1763-1769).

Os documentos sobre o casal de proprietários do engenho em 1877, citados pela autora, estão no Arquivo da Catedral Basílica da Paraíba.

Paraibano nascido em 1821, Maximiano Machado, assim como Joffily, também cursou Direito em Pernambuco. Depois de formado, exerceu cargos de magistratura e delegacia, se envolveu na Revolução Praieira – teve de se esconder até a decretação da anistia dos revoltosos, em 1851 –, chefiou o Partido Liberal em Campina Grande nos anos 1850 e foi deputado provincial na Paraíba entre 1858 e 1861. Maximiano Machado ocupou o cargo de orador do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano. Faleceu em 1895.

Diz Maximiano Machado que “A Parahyba foi uma das [capitanias] mais tributadas neste gênero de imposição ao tremendo tribunal. Sem averiguações [...] foram arrancadas dos braços das famílias e da pátria, de 1731 em diante, as seguintes pessoas [...]

(MACHADO, 1912: 427)”. Em três páginas, com base na pesquisa de Varnhagen – paradigma da historiografia brasileira no século XIX – sobre os “brasileiros” condenados pela Inquisição lusa, Maximiano Machado cita os habitantes da Paraíba vítimas do Santo Ofício, de 1731 em diante. Mas, quanto a outros nomes que, supõe o autor, se perderam na história, um é digno de menção pelo bacharel:

“Se não desapareceu com as listas, é bem provável que á este arbítrio [o autor se refere ao fato de que os nomes dos penitenciados que saíam em autos-de-fé privados não constavam nas listas] se deva a omissão do nome da formosa e gentil donzella Branca Dias, que a tradição de mais de um século refere como sendo arrebatada aos desoito annos de edade do regaço materno para ser arremeçada aos carceres negros dos Estáus em Lisboa. Não lhe valeram formosura, innocencia, família, lagrimas, nem a consternação d‟estranhos, para desapparecer, depois do supplicio da corda, na fogueira expurgatoria da Inquisição, como as duas infelizes relaxadas em carne, Guiomar Nunes e Isabel Henriques! Quaes seriam as culpas de Branca Dias naquella edade de innocencia e de amor? Não se sabe, porque os processos da justiça eram feitos de conformidade com a sentença que se pretendia dar” (MACHADO, 1912: 430-1).

Guiomar Nunes, relaxada em carne, é uma das “pernambucanas ilustres” que Henrique Capitolino Pereira de Mello insere em seu livro sobre as heroínas pernambucanas (MELLO, H., 1980). Natural de Pernambuco, moradora no engenho de Santo André, na Paraíba, casada com o latoeiro Francisco Pereira, Guiomar foi condenada como convicta, negativa e pertinaz no crime de judaísmo, sendo relaxada ao braço secular no auto-de-fé de 17 de junho de 1731. Isabel Henriques, cristã-nova solteira, de 41 anos, natural de Portugal e moradora no engenho Velho – o mesmo engenho que, conforme o testemunho do cônego Bernardo, o povo acreditava ter sido a morada de Branca Dias na Paraíba –, foi condenada a cárcere e hábito penitencial perpétuo, e não relaxada em carne, como quer Machado. (Crítica de FERNANDO GIL PORTELA VIEIRA)

 Ainda assim, são duas personagens históricas que marcam a história da ação inquisitorial na Paraíba no século XVIII (MACHADO, 1912: 427-8; MELLO, H., 1980: 113-114; NOVINSKY, 2002: 228).

O crítico Fernando Gil Portela Vieira prossegue nos seguintes termos: “Mas é a forma pela qual Machado se refere à figura de Branca Dias que impressiona. Seu livro também não fornece respostas documentais sobre a existência da personagem. Pelo contrário, Branca Dias é tratada de modo bem romântico – “donzela”, “formosa”, “gentil”, cheia de “inocência” e “amor”. Qualidades que, se compartilhadas pelos demais paraibanos, faria qualquer suposto descendente da conversa se orgulhar de antepassada tão virtuosa. Ao afirmar que a tradição sobre a morte de Branca Dias pela  Inquisição é de “mais de um século” – o que, na pior das hipóteses (a partir do ano da morte do autor, 1895), remonta até pelo menos o final do século XVIII –, o livro de  Machado também descarta a possibilidade de a lenda ser criação literária. Vivia na memória dos paraibanos e, como toda memória, tinha um aspecto presencial. A personagem continuava presente na região, mesmo tanto tempo depois de seu suposto martírio.”

É o que se depreende da questão proposta por Joffily no Commercio de Pernambuco: “Diz-se que uma das mais distintas famílias da Paraíba é descendente de BRANCA DIAS. Será exato? Pergunta Fernando Gil Portela Vieira.

 A historiografia tem destacado a participação dos cristãos-novos na colonização da Paraíba, para além das primeiras etapas de povoamento, no século XVI. É certo que da conquista da capitania participou o cristão-novo João Nunes, tido como o “tesoureiro” da comunidade de cristãos-novos de Olinda. Nunes e seu irmão, Diogo Nunes Correia, construíram quatro engenhos na Paraíba; Diogo, aliás, morava na capitania. Fernanda Lustosa destaca o comportamento, mais que “judaizante”, crítico da religião católica e de seus dogmas, manifestado pelos conversos paraibanos ainda no século XVI (LUSTOSA, in GORENSTEIN; CARNEIRO, 2002: 134-137; FEITLER, 2003: 29; 150-152).

Argumenta Fernando Gil que o grupo de cristãos-novos judaizantes que persistia na lei mosaica aqui na Parahyba, foi desbaratado a partir de 1726, quando uma primitiva denúncia levou à prisão de cinqüenta pessoas, duas das quais morreram na fogueira – uma delas, Guiomar Nunes – e oito pereceram no cárcere (LUSTOSA, in GORENSTEIN; CARNEIRO, 2002: 139-143). Nenhum destes presos, porém, foi a “gentil donzela” Branca Dias da tradição paraibana.

A perseguição aos cristãos-novos judaizantes da Paraíba no século XVIII é que situou a personagem Branca Dias naquela centúria. O histórico deste grupo é a principal evidência explicativa da datação apontada por Machado para a prisão de Branca Dias, em meio aos conversos presos nos Setecentos. É necessário, a propósito, destacar dois pontos: o caminho que Irineu Joffily propunha para provar a existência de Branca Dias na Paraíba e a explicação para o fato de o bacharel, em meio ao turbilhão das atividades políticas e jornalísticas, fazer da busca de Branca Dias uma verdadeira meta paraibana.

A razão do primeiro ponto está no valor tributado por Joffily à história como meio legítimo de conhecer o passado. Se Irineu acreditava que Branca Dias realmente existira e vivera na Paraíba, isto não o demitia da obrigação de provar a realidade desta personagem. Para isso, só haveria um caminho: que fossem empreendidos estudos históricos em seu Estado. No artigo publicado no Commercio de Pernambuco em 1897, Joffily acatava a necessidade de uma pesquisa nos arquivos da Inquisição em Lisboa para investigar o assunto. Esta é uma realidade válida ainda hoje para os pesquisadores do Santo Ofício. Mesmo o estudo de um único processado pelo tribunal da fé residente no Brasil requer a pesquisa nos acervos da Torre do Tombo. Como afirma Ronaldo Vainfas, “Estudar a fundo a Inquisição portuguesa, seja sua atuação no Brasil, seja noutras partes, é tarefa que exige visita ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa (TAVARES et alii, 2005).

Se hoje, com o número extenso de pesquisas realizadas nos arquivos inquisitoriais, esta necessidade continua insuperável, quanto mais em fins do século XIX. No artigo citado acima, Joffily relata a ajuda que pedira ao historiador pernambucano Francisco Augusto Pereira da Costa. Em artigo publicado na Revista do Instituto Arqueológico de Pernambuco, Costa havia mencionado o nome de todas as vítimas da Inquisição em Pernambuco conhecidas àquela altura. Uma destas vítimas era filha de certa Branca Dias. Irineu – vemo-lo leitor de publicações historiográficas –, intrigado com a questão, escrevera a Costa pedindo esclarecimentos sobre quem era esta Branca Dias. O pernambucano respondeu:

“O fato que refiro no meu trabalho, da prisão de Brites Fernandes, filha de Diogo Fernandes e de Branca Dias, que teve lugar em Pernambuco, em 1601, é referido por Borges da Fonseca na sua Nobiliarquia, mas com relação especial a BRANCA DIAS, o que sei, consta de uma tradição muito vulgar entre nós e já com foros de cidade [sic] por mais de uma publicação e eu mesmo já utilizei dela em um livrinho que publiquei em 1884, o Mosaico Pernambucano (...) [Costa faz uma referência que intriga Joffily:]

BRANCA DIAS seguiu para Portugal e lá morreu nas fogueiras da Inquisição de cujo auto de fé existe um quadro no Convento de São Francisco na cidade da Paraíba (RIHGB, 1966: 178.

Pereira da Costa diz acreditar que essa Branca Dias fosse realmente a mãe de Brites Fernandes e mulher de Diogo Fernandes – hipótese que seria comprovada no século XX por historiadores como Gonsalves de Mello (MELLO, G., 1996,  especialmente a parte dedicada ao casal de cristãos-novos Diogo Fernandes e Branca Dias) –, o qual, feitor do engenho de Camaragibe, poderia ter comprado um engenho nas terras de Apipucos, junto ao riacho da Prata, que seria, segundo o historiador, o engenho Dois Irmãos (RIHGB, 1966: 179). Irineu, todavia, objetou que só o fato de existir um quadro do auto-de-fé de Branca Dias no Convento de São Francisco, na Paraíba, mostrava que a vítima era paraibana, não pernambucana.

Este era um dos motivos para situar Branca Dias na Paraíba; os outros, a tradição popular no Estado, as piadas que Irineu ouvira na faculdade no Recife e nas conversas familiares... Não faltavam razões para supor que Branca Dias fosse paraibana. Ou melhor, faltava uma: encontrar um documento que o comprovasse.

Irineu adotará uma postura bem mais incisiva quanto à pesquisa histórica sobre Branca Dias quatro anos depois, no jornal A União. Neste texto, após reproduzir a carta do cônego Bernardo (transcrita acima), o bacharel escreve: “O estudo de um fato histórico vale por si só muito mais do que todas as efêmeras produções literárias [...] semelhantes a essas nuvens róseo-douradas do fim do dia, que um momento alegram a vista e logo desaparecem nas trevas da noite (JOFFILY, I., 1977: 447)”. Não poderia ser mais clara a referência a romances, peças, contos, enfim, textos ficcionais, que, se romanceavam a trajetória de personagens históricas, sublimavam a pesquisa documental. Tendo em vista o contato com historiadores do Nordeste, como Pereira da Costa, e a carreira de magistrado – a mesma de seus contemporâneos Henrique Pereira de Mello e Maximiano Machado, membros do Instituto Arqueológico e Histórico pernambucano (MELLO, H., 1980: s/p) – não terá sido impossível que Joffily tivesse um contato com algumas obras ficcionais sobre a cristã-nova Branca Dias.

De todo modo, Irineu descarta a literatura para elucidar o problema da existência de Branca Dias na Paraíba. Os contos e as estórias ouvidas até ali sobre o assunto, se “alegram a vista”, logo deixam o bacharel nas “trevas da noite”. Assim sendo, “Passada a idade juvenil [...] quando a razão entra no seu completo desenvolvimento, o homem tem o dever de empregar-se em estudos mais sérios, de resultados reais, e nenhum mais importante do que os históricos (RIHGB, 1966: 447 ”. finda com estes termos o crítico literário Fernando Gil Portela Vieira.

 Compactuo da ideia de que não há autor nem livros superados, se pensados em determinadas épocas e contextos da escrita, sendo assim, “a história é necessariamente escrita e reescrita a partir das posições do presente, lugar da problemática da pesquisa e do sujeito que a realize”. Portanto, a discussão historiográfica relativa a Branca Dias deve ter como base de análise o entendimento daquilo de Michel de Certeau (1982) chamou de lugar social, ou seja, a inserção do autor no contexto de produção da sua escrita e das suas escolhas teóricas e metodológicas, para assim, entender o discurso histórico construído pelo autor.


 
Loja Maçônica Branca Dias, João Pessoa, Paraíba, Brasil





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