CARTA ABERTA AO SR. ROBERT G. INGERSOLL (1887)
Caro
senhor: fico feliz em tê-lo conhecido, apesar de alguns dos meus colegas o
considerarem um monstro, por causa de sua descrença. Nunca esquecerei aquela
noite que eu passei na sua casa em Washington; o que eu vou dizer pode não
conseguir convencê-lo, mas sei que o senhor considerará que eu não sou indigno
de merecer sua cortesia e confiança.
Sua
conversa, na ocasião e em outras vezes, realmente me interessou. Eu reconheci
logo de início sua força de convencimento em grandes audiências, na sua ironia
e talento dramático - personalizando características e imitando tons de voz e
expressões - e sua impressionante utilização da língua, que mesmo nas
conversações familiares deixa clara a eloqüência. Tudo isso eu considerei como
grande estímulo intelectual. Nessas ocasiões fui principalmente um ouvinte; mas
quando conversamos livremente sobre religião, eu classifiquei a descrença como
totalmente irracional. Entretanto, não houve qualquer ofensa dada ou recebida,
e nos despedimos, acredito eu, com um sentimento de mútuo respeito.
Indo
mais além, digo que encontramos muitos pontos de convergência. Não hesito em
afirmar que há muitos pontos em que concordo com o senhor, em que eu amo o que
o senhor ama, e odeio o que o senhor odeia. Os ódios de um homem não são a
parte menos importante dele.
Eles
estão entre os principais indicativos do seu caráter. O senhor ama a verdade e
odeia a mentira e hipocrisia - todas as artes menores e embustes do mundo, com
os quais os homens se apresentam aos outros diferentemente do que são - assim
como o orgulho e arrogância, com os quais eles fingem superioridade em relação
a seus semelhantes. Sobretudo o senhor abomina toda sorte de opressão e
injustiça. Nada lhe causa maior indignação do que "a desumanidade de um
homem sobre outro", e o senhor denomina "maldição não alta, mas
profunda", sobre toda espécie de tiranos e opressores que o senhor
gostaria de varrer da face da terra. Na verdade o senhor não odeia a opressão
mais do que eu, nem ama mais a liberdade. Nem admitirei que o senhor tenha
maior desejo pela liberdade intelectual, para atingir o que o senhor considera
como a última e maior emancipação da humanidade.
Nem diria que o senhor tenha o maior horror às superstições. Na verdade devo
dizer que o senhor não pode ter ódio tão grande, pela simples razão de o senhor
não ter visto muitas delas; o senhor ainda não visitou as margens do Ganges,
nem viu os hindus apinhando-se aos milhares e se jogando loucamente nas suas águas,
levando consigo até as cinzas dos seus mortos para jogá-las no rio.
Parece
que foi ontem que eu me encontrava montado num elefante, olhando as cenas
horríveis da degradação humana. Estas superstições superam até os fundamentos
da moralidade. No lugar do senso comum do certo e errado, que está escrito no
coração e na consciência dos homens, ela coloca o padrão artificial, na qual a
ordem das coisas é pervertida: o certo é feito errado, e o errado é feito
certo. Ela faz uma virtude do que não é virtude, e um crime do que não é um
crime. A religião consiste num grupo de observações que não têm relações com a
bondade natural, mas que em vez disso a exclui, sendo um substituto dela.
Penitências e peregrinações tomam o lugar da justiça e misericórdia, benevolência
e caridade. Tal religião, longe de ser purificadora, é uma grande corruptora da
moral; então, não é nenhuma extravagância dizer que os hindus, que são uma raça
de boa índole, poderiam ser virtuosos se não fossem tão religiosos. Mas essa
colossal superstição pesa sobre sua existência, esmagando sua virtude natural.
Essa religião é uma monstruosa maldição.
Espero que esta linguagem seja forte o suficiente para satisfazer até seu
próprio ódio à superstição. O senhor não pode detestar isto mais do que eu. Até
aqui nós concordamos completamente. Mas infelizmente o senhor não limita sua
cruzada às religiões asiáticas, mas mantém o mesmo estilo de argumentação
contra as religiões da Europa e América, e na verdade contra qualquer crença e
adoração de qualquer país e lugar. Neste aspecto o senhor não faz qualquer
distinção: o senhor jogaria fora todas juntas de uma vez; igreja e catedral
cairiam com o templo e o pagode, assim como as manifestações de credulidade e
provas de fraqueza intelectual e ingenuidade humana.
Ainda
sob a impressão daquela memorável noite na sua casa, li de algumas de suas
preleções públicas, e experimentei um estranho sentimento de repulsa. Quase não
pude acreditar nos meus olhos quando eu li, de tão chocado. Coisas que
considero sagradas, o senhor não apenas rejeitava com descrença, mas ainda
ironizava com desprezo. Suas palavras eram cheias de amargura, tão diferentes
das palavras que eu ouvira dos seus lábios, que não pude conciliar as duas
pessoas, como se Robert Ingersoll fosse duas pessoas em uma. Duas pessoas não só
distintas, mas contrárias entre si - uma gentil e de boa índole, a outra hostil
e guerreira. Entre as duas tenho uma simpatia pela primeira. Não tenho nenhuma
discordância com o cavalheiro pacífico e gentil, cujo espírito faz o sol
brilhar na sua casa; mas foi o outro homem que irrompeu na arena tal qual um
gladiador, desafiante e beligerante, que despertou meu antagonismo.
No
entanto eu não pretendo me colocar contra ele; mas se ele sentar e ouvir
pacientemente, e responder naquele tom de voz suave que ele sabe muito bem como
usar, nós podemos ter uma conversa calma, que certamente não lhe trará qualquer
mal, enquanto aplacará minha mente atormentada.
Então, quais são as bases desta religião que o senhor despreza? Na fundação de
qualquer forma de religião, fé ou adoração, está a idéia de Deus. Aqui o senhor
toma sua posição; o senhor não acredita em Deus. Claro que o
senhor não nega absolutamente a existência de uma Forca Criativa; isto seria
assumir um conhecimento que nenhum ser humano possui. Como é pequena a
distância que podemos ver entre nós! A vela de nossa inteligência lança seus
raios, além da qual, o círculo de luz é envolvido pela escuridão universal.
Além
disso ninguém insiste mais que o senhor sobre a insignificância do homem, de
tal modo a colocar qualquer pastor embaraçado. Lembro de tê-lo visto falar das
miríades de criaturas que vivem nas plantas, as quais o senhor cita para
mostrar a insignificância humana, um inseto tão pequeno que nem dá para ser
visto à vista desarmada, cujo mundo é uma folha, e cuja vida dura não mais que
um dia! Claro, uma criatura que só pode ser vista com um microscópio, não pode
saber que o criador não existe!
Isto, eu devo fazer justiça, o senhor não afirmou. Tudo o que diz é que, se não
há nenhum conhecimento num lado, também não haverá no outro; é só uma questão
de probabilidade; e que, julgando pelas evidências que seus sentidos captam, e
seus entendimentos, o senhor não acredita que haja um Deus. Se isto é uma
conclusão racional ou não, isto é ao menos um estado inteligível da mente.
Agora eu não vou argumentar contra o que os católicos chamam de
"ignorância invencível" - uma incapacidade que vem do temperamento -
porque eu presumo que a crença em Deus, como a crença nas coisas espirituais,
vem à mente através de um tipo de intuição. Há naturezas tão concatenadas que
são sensíveis a influências que não atingem outros. O senhor pode achar que se
trata de mera rapsódia poética, quando Shelley escreve:
"A sombra terrível de alguma força invisível
flutua, apesar de invisível, entre nós."
Mas há naturezas que não são poéticas ou sonhadoras, mas em vez disso, sempre
simples e puras, que em certos momentos de exaltação espiritual, são quase
conscientes de uma Presença que não é deste mundo. Mas isto, que é uma questão
de experiência, não tem peso algum sobre aqueles que não têm essas
experiências. Por enquanto, entretanto, não vou ser desviado para o lado do
mero sentimento, mas olhar para a questão na luz fria da razão, apenas.
A idéia de Deus é, realmente, a maior e mais terrível que pode ser
experimentada pela mente humana. Sua grandeza nos supera, de tal modo que nos
parece impossível que tal Ser possa existir. Mas se é difícil conceber o
infinito, é ainda mais difícil encontrar explanação inteligível da presente
ordem das coisas sem admitir a existência de um Criador inteligente, ou
Mantenedor de tudo.
Galileu,
quando perscrutou o céu com o telescópio, reconheceu o dedo de Deus em cada
movimento dos corpos celestes. Napoleão que, quando os serventes franceses, na
viagem ao Egito, questionaram a existência de Deus, desprezou qualquer resposta
outra que não fosse apontar para o céu e perguntar: "Quem fez tudo
isso?" Esta é a primeira questão, e também a derradeira. Quanto mais longe
caminharmos, mais somos levados a uma conclusão. Ninguém mais estudou a
natureza com maior desejo de saber a verdade do que Agassiz, e no entanto, por
mais que ele explorasse, mais surpreso ficava ao se encontrar cara a cara com
as evidências da MENTE.
O senhor afirma que isso é um "grande mistério" querendo dizer que é
algo sobre o qual ninguém tem como saber? Claro que isso é "um
mistério". Mas o senhor pensa estar se livrando do mistério negando a
existência Divina? O senhor apenas troca um mistério pelo outro. O primeiro de
todos os mistérios não é que Deus exista, mas que nós existimos. Aqui estamos.
Como chegamos até aqui? Nós nos voltamos para nossos antepassados; mas isto não
diminui a dificuldade; isto apenas a empurra mais para longe. Quando começamos
a subir os degraus das gerações passadas, o senhor descobrirá que existe uma
escada de Jacó, na qual o senhor sobe mais e mais, até chegar à presença do
Altíssimo.
Mas mesmo que saibamos que há um Deus, o que podemos saber sobre Seu caráter? O
senhor afirma: "Deus é tudo aquilo o que concebemos que Ele seja".
Nós traçamos uma imagem de Divindade, da nossa própria consciência - é apenas
um reflexo da nossa própria personalidade, refletida no céu como a imagem vista
nos Alpes em certas situações atmosféricas - então nos decaímos e adoramos
aquilo que criamos, não propriamente com nossas mãos, mas com nossas mentes.
Isto
pode ser verdadeiro com relação aos deuses de certas mitologias, mas não ao
Deus da natureza, que é tão inflexível como a própria natureza. O senhor pode
afirmar que as leis da natureza são as leis que nós imaginamos que elas sejam.
Mas não podemos ir muito além se descobrirmos que, em vez de ser condescendente
com nossa vontade, elas são rígidas e inexoráveis, e nós nos esmagamos contra
elas até a destruição. Então Deus não se dobra ao pensamento humano, nem à
vontade humana. Quanto mais O estudamos, mais percebemos que Ele não é aquilo
que imaginávamos que fosse; que ele é muito maior do que qualquer imagem Sua
que pudermos construir.
Mas, depois de tudo, o senhor se regozija com a idéia de que a concepção de um
Ser Supremo é uma mera idéia abstrata, de nenhuma importância prática, sem
nenhuma influência sobre a vida humana. Eu respondo que é de inestimável
importância. Deixe ir embora a idéia de Deus, e o senhor terá deixado ir as
maiores restrições morais. Não há nenhum governante acima da humanidade; o
homem é a lei para si mesmo - uma lei que é impotente para produzir ordem, para
manter a sociedade unida, como é o homem impotente para, com suas pequeninas
mãos, alterar o curso dos astros no céu.
Eu sei como o senhor argumenta contra a Divina existência através da ordem
moral no mundo. O argumento leva em conta grande imaginação, e pode ser usado
com tremendo efeito. O senhor pinta com cores fortes a injustiça que prevalece
nas relações do homem com seus semelhantes - as injustiças da sociedade, a
superabundância dos ricos, e a miséria do pobre; o senhor coloca exemplos
ilustrativos dos vícios e crimes que vicejam nas grandes capitais do mundo, que
são os centros da civilização; e quando o senhor cativou sua audiência com a
maior força, o senhor então pergunta:
"Como podemos conceber que haja um Deus
justo no céu, que olha para a terra e vê toda essa horrível confusão e nem
levanta sua mão para proteger o inocente e punir o criminoso?"
A isto
eu respondo com uma só resposta: Isto o convence? Não estou afirmando que o
senhor não é sincero. Mas um orador é levado muitas vezes pela própria
eloqüência, e exclama coisas mais fortemente do que ele faria em situações mais
calmas. Então eu me aventuro a perguntar: com toda sua tendência ao ceticismo,
o senhor realmente acredita que não há qualquer governo no mundo - nenhuma
Força dentro da natureza "fazendo justiça"?
Não há
nenhuma retribuição na história? Quando Lincoln chegou ao campo de Gettysburg,
antes preenchido de sangue, e vendo a carnificina que acontecera naquele dia, e
aceitou isso como uma punição dos pecados da nossa nação, foi isso uma mera
representação teatral quando ele ergueu as mãos para o céu e exclamou:
"Justos e verdadeiros são os Teus caminhos, Senhor Deus Todo
Poderoso!"?
Aqui, assim como geralmente o senhor fala sobre existência de Deus, o senhor
cuidadosamente evita afirmações positivas: o senhor nem nega nem afirma. O
senhor estaria preparado para qualquer uma alternativa. No seu estilo alegre,
se o senhor se encontrasse futuramente numa situação nova e inesperada, o
senhor aceitaria e faria todo o possível, e estaria 'preparado para assumir
qualquer atividade remunerada'.
Depois de espalhar, para sua própria satisfação, que não há Deus, o senhor se
dedica à mesma tática fácil em descartar outra crença que é a fundação de toda
religião - a imortalidade da alma. Com um ar de modéstia e mansidão, que é
capaz de levar uma platéia ao delírio, o senhor confessa sua ignorância do que
outras pessoas, talvez saibam melhor que o senhor, quando diz:
"Este
mundo é tudo o que conheço, pelo que me lembre".
Isto é
dito muito ironicamente, e muitos poderão supor que pode conter um argumento;
mas o senhor realmente quer dizer que não sabe nada, desde que não lembre, ou
que tenha visto com seus olhos? Provavelmente o senhor nunca viu seus avós; mas
o senhor tem mais dúvida de que eles existiram do que o seu pai e sua mãe, que
o senhor viu?
Aqui, como quando o senhor fala da existência de Deus o senhor, cuidadosamente,
evita afirmações positivas: o senhor nem afirma nem nega. O senhor estaria
pronto para qualquer verdade que exista. No seu estilo alegre se o senhor se
encontrasse no futuro, numa situação não esperada, o senhor aceitará, e fará o
melhor de si, como faz o homem que assume uma atividade remunerada.
Mas enquanto descreve esta fantasia alegre, o senhor claramente descreve a
esperança numa vida futura como um sonho de mendigos - a ilusão de quem,
tropeçando ao longo da estrada da vida, caído num canto da estrada, descalço e
esgotado, com frio e faminto, adormece, e sonha estar num local onde existe
riqueza e abundância. Pobre criatura! Deixemos que ele sonhe; isto o ajuda a
aliviar sua miséria, e lhe dará um pouco de coragem para enfrentar a dureza
realidade da vida. Mas isso é somente um sonho, que se dissipa no ar, flutua e
desaparece.
Este
exemplo eu não tirei do senhor, mas simplesmente o coloquei o que (como outras
expressões citadas acima, e outras sentenças semelhantes) pode descrever, não
de maneira desonesta, o que o senhor pensa. Sua maneira de tratar a questão não
vem ao caso. O senhor não trata do assunto de modo sério, mas superficialmente e
irreverente, como se tudo fosse uma questão de conjecturas e fantasia, e não
digna de séria consideração.
Agora, nunca ocorreu ao senhor que existe algo de muito cruel no tratamento que
o senhor dá à crença de seus semelhantes, a aqueles nos quais a esperança numa
outra vida está o alívio de toda a escuridão da presente vida?
Para
muitos deles a vida é um fardo que têm de carregar, e eles precisam de toda a
ajuda para carregá-lo, ajuda essa encontrada na razão, na filosofia, ou na
religião. Mas que apoio o senhor dá com sua crença oca? O senhor é um homem de
coração bondoso, que desperta simpatias. Aqueles que o conhecem bem, e que o
amam, dizem que o senhor não pode suportar o sofrimento nem de animais. Que sua
sensibilidade é tamanha que o senhor não encontra prazeres nem nos esportes
como pesca e caça; matar uma ave o faria se sentir um assassino. Se o senhor vê
um homem em dificuldades, sua primeira reação é ajudar. O senhor não pode ver
uma criança chorar sem se aproximar, tomá-la em seus braços e tentar fazê-la
sorrir novamente. E, no entanto, com toda sua sensibilidade, o senhor tem a
mais impiedosa e desalmada crença do mundo - a crença de que não existe a menor
fagulha de misericórdia e esperança.
Uma mãe
acaba de perder seu único filho. Ela vai ao túmulo e se joga sobre ele, numa
cena pungente. Um pensamento a mantém sem cair no desespero: o pensamento de
que, depois desta vida, existe uma outra em que ela tenha a oportunidade de
segurar novamente seu filho nos braços. O que o senhor diria a essa mãe? O
senhor se calaria, e seu silêncio seria uma sentença de morte para a esperança
dela. Naquele túmulo o senhor não poderia falar; porque se o senhor abrisse os
lábios, diria àquela mulher o que o senhor realmente acredita, ou seja, que o
filho não mais existe, e que ela jamais veria sua face novamente. Ou seja, com
seu calcanhar de ferro o senhor esmagaria e despedaçaria a última esperança de
um coração partido.
Quando essas tristezas chegam para o senhor, o senhor os sente tão claramente
como qualquer homem. Com seus fortes vínculos com os parentes, não se podem
supor que aconteçam sem deixar um imenso vazio no coração, e sua dor seria tão
eloqüente quanto em
esperança. Nenhuma palavra é mais triste do que esta,
proferida sobre um ataúde de alguém que se amava:
"A
vida não é nada mais que um vale estreito, entre picos altos e áridos de duas
eternidades."
Esta é
uma condenação ao aniquilamento que lança calafrios no mais duro dos corações.
Mesmo o senhor deve invejar a fé que, quando olha para cima, vê aqueles picos
de duas eternidades, não como frios e áridos, mas aquecidos pelos raios do sol,
que dão esperanças de um futuro melhor.
Parece que ouvi o senhor dizer "Então, que seja assim! Se for dessa
maneira, eu acreditarei!" Nenhum outro reconhece tanto o vazio da vida.
Não esqueço o tom como o senhor falou: "A vida é muito triste para mim;
ela é lamentável; não vale a pena!" É verdade. Com sua crença, ou desejo
de crer, não vale a pena; e isto é tudo, ou haveria a questão de se a vida vale
a pena ser vivida. Em nome da humanidade, vamos nos agarrar a tudo o que nos
resta e que nos dê um raio de esperança dentro desta escuridão, e iluminar seu
impenetrável brilho.
Percebo que o senhor freqüentemente entretém sua platéia e a si mesmo
caricaturando certas doutrinas da religião cristã. A 'Expiação' como o senhor
descreve, é simplesmente 'punição ao homem errado' - deixar o criminoso escapar
e castigar o inocente. Seria um ataque à justiça permitir a injustiça. Mas não
haveria um outro lado desta questão? Não seria a idéia do sacrifício uma coisa
nobre para o homem, que enobrece o seu caráter? O senhor vê uma mulher
descuidando de si para se dedicar a seu filho, esquecendo dos confortos,
agüentando as maiores dificuldades, até que, por fim, desgastada de trabalho e
privações ela dobra os braços no seu peito.
Não
podemos dizer com certeza que ela deu sua vida pelo filho? A história é cheia
de sacrifícios, e esta é a melhor parte da história. Não vou falar dos 'nobres
exércitos de mártires', mas de heróis que morreram por sua pátria e pela
liberdade - não é o elemento de devoção pelo bem dos outros que dá tanta glória
a seus nomes imortais? Como então achar que é uma coisa sem razão quando o
Criador da humanidade dá Sua vida em beneficio da vida no mundo?
E então o senhor vê objeto de caricatura a doutrina da "regeneração".
Mas o que é regeneração, se não uma mudança no caráter mostrada na vida? O que
há de absurdo nisso? O senhor nunca viu um bêbado recuperado? Nunca viu um
homem de vida impura que, depois de trilhar o caminho do mal, tal qual o filho
pródigo, 'voltou para si mesmo' - ou seja, acordou para a vergonha, deixou-a,
voltou para o caminho da pureza, e reconquistou, por fim, a nobre humanidade?
Provavelmente
o senhor admitiria isso, mas diria que a mudança foi resultado de uma reflexão,
e da própria vontade e força do homem. A doutrina da regeneração apenas
transfere ao homem a força de Deus. Nós acreditamos que o homem é fraco, mas
que Deus é poderoso; e que quando o homem tenta se erguer, um braço se estende
em direção a ele e o levanta numa altura que ele não conseguiria atingir
sozinho. Por vezes alguém que levou a pior das vidas, depois de cair em
desespero e remorso, como se estivesse experimentando as agonias do inferno, dá
a volta e toma outro rumo: ele se torna uma nova criatura, o qual seus amigos
mal reconhecem quando ele se veste decentemente e com sua mente certa. A
diferença é da escuridão para a claridade, da morte para a vida; e quem tiver
visto um exemplo desses nunca dirá que a linguagem é inadequada para dizer que
aquele homem "nasceu novamente".
Se o senhor achar que eu passei levemente sobre essas doutrinas, não deixando
claros os significados que elas contêm, eu admito. Não estou escrevendo um
ensaio de teologia, mas apenas mostraria, de passagem, pelos seus métodos
favoritos de ilustração, que os princípios envolvidos são os mesmos com os
quais o senhor se familiariza no dia-a-dia.
Mas a doutrina que tira do senhor a mais amarga animosidade é aquela da
retribuição futura. A idéia de uma vida futura, atingindo um futuro
desconhecido, o senhor contemplaria com compostura se não fosse a sombra negra
pairando sobre ela. Mas para viver só para sofrer; para viver pedindo para
morrer; para 'desejar a morte, e não poder encontrá-la' - é uma idéia que
desperta a raiva de alguém que vê a morte com a calma de quem a considera
apenas um sono eterno. A doutrina não perde nenhum dos seus terrores quando
passa por suas mãos; porque esta é uma das razões pelas quais o senhor trabalha
com os sentimentos dos seus ouvintes.
O senhor
a descreve como a crença mais horrível que já penetrou na mente humana: que o
criador traria à vida os seres, para depois destruí-los! Isto faria dele o mais
assustador tirano que jamais existiu no universo - um selvagem destruindo seus
próprios filhos. Eu tremo quando lembro a energia imensa na sua voz quando o
senhor disse: "Este Deus eu odeio com toda a força do meu ser"!
Mas calma, calma, senhor! Vamos deixar que essa onda de fúria passe, antes que
retomemos nossa conversa! Quando o estiver um pouco mais tranqüilo eu,
modestamente, irei sugerir que o senhor está combatendo algo que é mero fruto
de sua imaginação. Nunca ouvi de nenhum professor cristão que "O Criador
trouxe ao mundo seres para destruí-los". Não seria melhor o senhor usar de
mais moderação e usar afirmações claras, especialmente quando com todas as
modificações, o sujeito é alguém que desperta sentimentos dos mais solenes e
profundos?
Agora não entrarei na discussão desta doutrina. Não citarei um único texto.
Apenas lhe perguntarei se não seria uma verdade científica se o resultado de
tudo o que existe na natureza de uma causa é eterna. A ciência abriu nossos
olhos para vários fenômenos estranhos da natureza. A teoria das vibrações é
considerada pelos físicos a uma extensão alarmante. Eles nos dizem que isto é,
literalmente e matematicamente verdade que você não pode atirar uma bola no ar
sem abalar o sistema solar. Ou seja, tudo está correlacionado com tudo o que
há. O que é verdade no tempo tem de ser verdade no espaço, e as leis da física
podem ser verdadeiras no mundo espiritual.
Quando a
alma do homem se liberta de seu corpo, libertando-se das grosseiras amarras da
carne, ela pode penetrar numa vida milhares de vezes mais intensa do que esta:
na qual ela não necessitará dos opacos sentidos como avenidas do conhecimento
porque o espírito, por si só, será só olhos, só ouvidos, só inteligência;
completa memória, como uma descarga elétrica, trará, num instante, todo o
passado na sua visão; e o senso moral será mais rápido do que antes. Aqui,
portanto, teremos todas as condições ideais de retribuição - um mundo, no qual,
por mais nebuloso que possa parecer, é tão real quanto as habitações e
atividades do nosso; com a memória trilhando os atos de uma vida passada, e
consciência, mais inexorável do que qualquer juiz, dado seu solene e definitivo
veredicto.
Considerando estas condições, vamos mostrar uma situação que despertará sua
justa indignação - que um homem cruel, impiedoso e egoísta; que sacrifica o
interesse de todos em beneficio próprio; que ri da cara do pobre; que rouba da
viúva e do pobre o pouco que têm; e aquele que, em vez de devolver, morre com
seus ganhos desonestos nas suas mãos entrelaçadas. Quanto tempo será necessário
para apagar da memória esta vida maléfica? Se ele acordar as lembranças ainda
não estarão consigo? Haverá águas purificadoras que apagarão sua alma imunda?
Se não - ele não esquecerá - ele não conseguirá se perdoar nem reparar nem o
mais discreto deslize que tenha cometido. Aqui está uma retribuição que é
inseparável do ser, a que é uma parte de sua existência. A lembrança eterna
leva à dor eterna.
Tomemos outro exemplo - aliás! Infelizmente muito freqüente. Um homem, por puro
prazer, trai uma mulher jovem, inocente e confiante, com promessas de amor, e
depois a abandona, deixando-a degradar-se por todos os degraus da vergonha e
miséria, até que ela se perca nas profundezas, e desapareça. Ele não deve
sofrer pela sua pobre vítima? Pode ele livrar-se desse peso fugindo para além
de onde nenhum viajante retorna? Não, mesmo que ele fuja de si mesmo: no mais
baixo submundo - onde o sol nunca brilha, a imagem nunca o abandonará e o
perseguirá. Nem que ele percorra as sombras, uma pálida forma deslizará junto,
como um fantasma assustador.
A face é
a mesma, linda mesmo na dor, mas com um ar de quem já sofrera uma eternidade de
dor. Num instante, todo o passado está de volta. Ele vê a jovem, mãe
amaldiçoada vagando em algum lugar solitário, de tal modo que só o céu vê sua agonia
e desespero. Lá ele a vê abraçando seu filho nos braços, o bebê que não tinha
nenhum direito de ter nascido, e clamando a Deus para fazer justiça contra seu
agressor. Que distância devemos percorrer no futuro, para esquecer esta cena?
Haverá alguma outra solução que não seja mergulhar no poço do aniquilamento?
Até aqui, nesta carta, tenho procurado dar o tom do respeito. Mas eu não
preciso que a religião cristã necessite de qualquer desculpa, - ela só precisa
ser melhor compreendida para que seja corretamente defendida. Em vez de
considerar suas 'evidências', que nada mais são do que ir para fora dos muros,
vamos entrar nos portões do templo e ver o que há lá dentro. Lá encontramos
coisas melhores do que torres e vigias, no caráter daquele que é o fundador da
nossa religião, e não apenas seus fundadores, mas todo o seu âmago e ser.
Cristo é o Cristianismo. Ele não é apenas o "Grande Professor", mas o
sujeito central do que Ele ensinou, de tal modo que o todo se erige e cai com
Ele.
Na nossa conversa anterior, observei que, com todos os seus comentários duros
sobre coisas sagradas, o senhor professa grande respeito pela ética do
Cristianismo, e pelo seu autor. "Faça o Sermão da Montanha a sua
religião", o senhor afirmou, "e eu estarei com você". Muito bem!
Até aí, ótimo! E agora, se o senhor for um pouco mais além, encontrará um pouco
mais de alimento para reflexão.
Todos aqueles que estudaram o caráter e os ensinamentos de Cristo, mesmo
aqueles que negam categoricamente o sobrenatural, maravilham-se diante da
figura gigante que aqui se revela. Renan fecha sua obra "A vida de
Jesus" com isto que é o resultado do seu estudo: "Jesus nunca será
superado. Sua adoração continuará sendo renovada sem cessar; sua história
(lenda) arrancará lágrimas de belos olhos, incessantemente; seu sofrimento
tocará as naturezas mais delicadas; todas as épocas proclamarão que entre os
filhos dos homens nunca nasceu ninguém maior do que Jesus. Sócrates morreu como
um filósofo, mas Jesus morreu como um Deus."
Este é
um argumento pela religião que eu rezo que o senhor envie a si mesmo. Como o
senhor não crê em milagres, e está determinado a esclarecer as coisas por
causas naturais, eu peço que nos diga como aconteceu que um pobre hebreu,
nascido nas montanhas, tinha uma sabedoria acima da de Sócrates e Platão,
Confúcio e Buda? Este é o maior dos milagres, que este ser tenha vivido e
morrido na face da terra.
Já que este é o principal argumento da religião, se considera que alguém se
decide a destruí-la para se colocar na posição central, em vez de perder seu
tempo com meras exclamações? Da próxima vez que o senhor se colocar diante de
uma grande platéia ávida em ouvir suas palavras, seria desonesto pedir para
deixar de lado estas questões familiares como fantasmas e milagres, ou
responder a Talmage, ou dizer-nos o que o senhor acha de Jesus Cristo? Se o
senhor o vê como um impostor, ou meramente um sonhador - um simples e
inofensivo agitador? Ou o senhor está pronto para reconhecer que ele pode ser
considerado como o grande professor da humanidade?
Mas se o senhor se sentir compelido a admitir a grandeza de Cristo, o senhor se
vingará nos apóstolos que o senhor não hesita em dizer que não leva em consideração. De
fato, o senhor os classifica como uma "pobre corja". É verdade que
aqueles pareciam uma inútil 'corja', um bando de pescadores, para se escolher
como apóstolos de uma religião - parece tão inadequado como escolher
trabalhadores de ferrovia como chefes de uma nação diante de uma grande crise
de sua história!
Mas em ambos
os casos parece haver uma sabedoria maior que a nossa, que escolhe melhor que
nós. Parece confundir mais o senhor dar uma definição de religião como esta do
apóstolo James: "Pura religião, descrita diante de Deus e o Pai é esta:
visitar os órfãos e viúvas nas suas aflições e se manter imaculado diante do
mundo"; ou encontrar entre aqueles sábios da antiguidade, cujos escritos o
senhor conhece bem, uma mais completa e perfeita delineação daquilo que é a
essência da bondade e virtude, do que a descrição de Paulo da caridade que
'sofre demasiadamente e é suave'; ou encontrar nos escritos de Confúcio e Buda
algo mais sublime do que este aforismo de João: "Deus é amor, e aquele que
mora no amor mora em Deus, e Deus está nele."
Aqui o senhor deve me permitir fazer uma observação que não deve ser vista como
uma provocação pessoal, mas simplesmente no interesse da verdade, a qual nós
estamos comprometidos em buscar e valorizá-la mais do que a vitória. Sua
linguagem é muito lastimosa para representar o cuidado de um pensador cuidadoso
que mede suas palavras e as pesa numa balança. Suas preleções me lembram as
gravuras de Gustave Dore, que preferia pintar em telas imensas, com figuras tão
gigantescas como aquelas de Michelangelo em seu "Juízo Final".
O efeito
é poderoso, mas se ele suavizasse as cores um pouco, - se as cores fossem mais
delicadas, uma gradação de luzes e sombras, como quando escurece na terra - as
paisagens seriam mais fiéis à natureza. Então, acredite, suas palavras teriam
mais vigor se não fossem tão pesadas. Mas quando o senhor fala de religião
parece perder o controle de si, e um sentimento de vingança toma conta da sua
pessoa, o que faz com que veja as coisas de modo distorcido da sua aparência
natural, de modo que o senhor se transforma numa figura caricata.
O senhor
desfere sentenças da mesma maneira como um lenhador usa seu machado. Claro que
esses seus golpes fazem muito sucesso em audiências populares, que não estão
muito preocupadas em fazer distinções, ou em evidências do que deve ser
considerado e pesado, mas desejosos de opiniões em segunda mão, e que gostam de
ver suas opiniões e preconceitos ecoados numa voz eloqüente. Isto entusiasma a
platéia, mas não convence uma mente filosófica. Uma pessoa que busca a verdade
não corta uma estrada numa floresta com explosões violentas; ele tem um trajeto
bem planejado para percorrer, e deve traçar seus passos de maneira cuidadosa e
gradual, para achar aquele caminho que é mais precioso do que o ouro.
Mas se fosse possível para o senhor descartar para sempre as evidências do
cristianismo, o senhor não jogou fora simplesmente o cristianismo; ele ainda
vive, não apenas na tradição, mas nos corações das pessoas, envolvido em tudo o
que há de mais doce nas suas vidas domésticas, aquilo que deve ser arrancado
com mãos violentas antes que possa ser exterminado.
Para
começar, o senhor dá as costas para a história. Tudo o que os homens têm feito
e sofrido pelo bem da religião foi à toa. Os peregrinos que cruzaram os mares
para encontrar liberdade de crença, nas florestas do novo mundo eram miseráveis
fanáticos. Não há mais espaço no mundo para heróis e mártires. Aquele que
sacrifica sua vida pela fé, ou por uma idéia, é um tolo. A única virtude moral
é ter um olho esperto para aproveitar a grande chance. Se o senhor continuar
seu trabalho de demolição, o senhor em breve destruirá todos os nossos ideais.
A vida familiar murcha sob o frio desprezo - meio piedoso, meio cínico - como o
senhor vê a adoração doméstica, tiradas das lareiras americanas, aquelas cenas
como retratadas pelas noites de sábado de Cotter, e o senhor terá roubado delas
as mais sagradas horas de suas lembranças.
O mesmo espírito destrutivo que se intromete nas nossas casas, assim como nossa
vida religiosa, levaria embora a beleza de nossas vilas, assim como os mais
doces de nossos lares. Na luta cansativa de uma semana de trabalho, há um
intervalo de descanso; o trabalhador deixa de lado sua carga, e por umas horas
respira um ar sereno. A manhã de sábado chegou.
"Doce dia! Tão fresco, tão calmo, tão claro,
o casamento do céu com a terra.."
Na hora marcada dos sinos que tocam ao longo do vale, e enviam seus ecos ao
longo das montanhas; e de todas as estradas as pessoas vêm caminhando para as
igrejas das vilas. Ali elas se reúnem, velhos e jovens, ricos e pobres; e
quando eles se unem no mesmo ato de adoração, sentem que Deus é o criador de
todos eles. Haverá em nossa vida nacional qualquer influência mais sublime do
que esta que mais contribui para a união comunitária? Para promover o
sentimento de vizinhança? Para suavizar as maneiras das pessoas? Para semear a
verdadeira cortesia, e tudo o que torna uma comunidade cristã diferente de um
bando de índios wigwams - uma comunidade civilizada diferente de uma tribo de
selvagens?
Tudo isso o senhor destruiria; o senhor aboliria o sábado, ou apenas o
transformaria num feriado; o senhor destruiria as velhas igrejas, tão cheias de
suaves associações dos vivos e dos mortos. Ou pelo menos o senhor a tosquiaria,
tirando fora as torres que apontam para o céu; e o seu interior seria
transformado em salas de reunião - um locar de diversões, onde os jovens se
casariam, exceto na época de verão, quando eles o usariam como salões de baile!
Assim o senhor conquistaria seu objetivo. Mas seria essa uma comunidade mais
ordeira, mais feliz?
O senhor pode considerar isto como mero sentimento - que nos preocupamos mais
com o pitoresco do que com a verdade. Mas há uma questão que é assustadoramente
real: a crença destrutiva, ou a não crença, que desgraça nossas igrejas e
nossos lares, ataca a sociedade nos seus princípios, levando embora seus apoios
morais. Não acredito que a moralidade possa ser sustentada sem a sanção da
religião. Pode haver indivíduos de grande força natural de caráter, que podem
se sustentar sozinhos - homens de intelecto superior e de forte arbítrio.
Mas em
geral a natureza humana é fraca, e a virtude não viceja espontaneamente da
inocência infantil. Homens não se tornam puros e bons por instinto. O caráter,
como a mente, deve ser desenvolvido pela educação; e ela necessita de todos os
elementos de força que só podem ser dados de fora e de dentro, do governo dos
homens e do governo de Deus. Abandonar essas amarras seria um perigo para a
moralidade pública.
O senhor se sente forte na força de uma robusta masculinidade, bem pesadas no
corpo e na mente, e no centro de um lar feliz, no qual corações amorosos se
cercam do senhor como as videiras se abraçam ao carvalho. Mas muitos daqueles
para quem o senhor fala são diferentes. O senhor se dirige a milhares de jovens
vindos de casas no interior, onde eles foram criados temendo a Deus, e ouviram
pela manhã e a noite as orações.
Eles vêm
para uma cidade cheia de tentações, mas são afastados do mal pelo pensamento do
pai e da mãe, e reverência por aquele que é o Pai de todos nós - sentimentos
que, mesmo não tendo tomado a forma de uma profissão, está no fundo dos seus
corações, e os mantêm longe de muitos erros e passos em falso. Um homem jovem
que é guardado e defendido por anjos invisíveis, em alguma ocasião, ao se
sentirem solitários, são convidados a ver e ouvir o senhor Ingersoll, e por
algumas horas ouvem suas caricaturas da religião, e suas descrições de rezas e
salmos, ilustradas por caretas e tons anasalados, que enchem a sala de gargalhadas
e gritos, e são recebidos por ruidosos aplausos.
Quando
tudo termina, e o jovem se acha novamente sob a tênue luz dos lampiões de rua,
ele está consciente de uma mudança; a fé de sua infância foi bruscamente
arrancada de si, e com ela "uma glória se foi do mundo". A bíblia que
sua mãe lhe deu, a manhã em que ele se foi, é um 'monte de fábulas'; a sentença
que ela gostaria que ele colocasse na parede "Vós, Deus, me vedes"
perdeu sua força, porque não há nenhum Deus que o vê, nenhum governo moral, nenhuma
lei e nenhuma recompensa.
Então
ele raciocina enquanto toma o caminho de casa, encontrando as tentações que o
espreitam nas ruas da cidade - tentações que até então lhe causavam arrepios,
mas que agora ele encara com uma força de resistência diminuída. Será que o
senhor fez algum bem a esse jovem tirando dele tudo o que considerava sagrado
até então? Será que o senhor não o tornou moralmente enfraquecido?
Ridicularizando
a religião se está a um passo de ridicularizar a moralidade, e então a um passo
de uma carreira de vícios e devassidão. Como o senhor consegue impedir esta
tendência ao declínio? Quando o senhor tirou dele as amarras da contenção, o
senhor deixa em seu lugar alguma coisa, além de um sentimento de honra,
respeito de si e interesse próprio? - motivos válidos, sem dúvida, mas muito
débeis para impedir as assustadoras tentações que o assaltam.
Seriam
suas chances de resistência agora tão fortes como antes? Olhe como ele agora
anda pelas ruas à meia noite! Ele anda pelos lugares onde o mal espreita, onde
há bebidas e vícios, aquelas bocas abertas do inferno; ele ouve os sons de
música e dança. E pela primeira vez pára para ouvir. Até quando ele vai
resistir para entrar?
Com esses perigos no caminho, é uma grande responsabilidade desfazer as amarras
que prendem esse jovem homem na virtude. Esses deboches e ironias que o senhor
usa tão freqüentemente podem causar um eco triste num caráter perdido e numa
vida destruída. Muitos jovens homens já estavam em local seguro, até que foram
puxados para a beira do cais, sob o pretexto de ganhar a 'liberdade', e
aventurando-se entre as cachoeiras, sendo levados pela correnteza, para se
destruir no redemoinho lá em baixo.
O senhor diz que seu objetivo é tirar o medo do mundo. É uma nobre ambição; se
for bem sucedido, o senhor será de fato um libertador. Claro que o senhor se
refere a medos irracionais. O senhor não tiraria do homem o medo de violar a
ordem da natureza; porque isto o levaria a incalculável miséria. O senhor se
refere apenas ao medo nascido da ignorância e superstição. Mas como o senhor
acabará com eles? O senhor confia no progresso da ciência, que já tem
descartado tantos medos surgidos de fenômenos físicos, mostrando que
calamidades que eram atribuídas a forças espirituais são explicadas por causas
naturais.
Mas a
ciência só pode progredir num caminho, além do qual esbarra na esfera do
desconhecido, onde tudo é escuro como antes. Como o senhor pode aliviar os
medos dos outros - e na verdade, como o senhor pode aliviar seus próprios medos,
acreditando, como o senhor, faz, que não há nenhuma Força que possa ajudá-lo em
situações extremas? Que o senhor é o resultado de um acidente, e que pode ser
feito em pedaços pela força cega da natureza? Se eu acreditar nisso, eu me
sentiria estando engasgado numa gigante engrenagem que me esmagaria como átomo,
sem qualquer possibilidade de escapar.
A religião não deixa o homem aqui na terra, desamparado e desesperançado -
aterrorizado, como se estivesse na mais completa escuridão como o seu destino -
mas abre o céu diante dele, ela descobre uma Grande Inteligência, que orienta
todas as coisas, vendo o fim pelo princípio, ordenando nossas pequenas vidas de
tal modo que até as contrariedades que sofremos quando despertam os finos
elementos do caráter, conduzem para nosso futuro e felicidade. Deus é nosso
Pai. Nós olhamos para sua face com um rosto infantil de confiança, e
descobrimos que seu papel é a perfeita liberdade. "O amor expulsa os
medos". Este, eu asseguro ao senhor, é o caminho e o único caminho que
poderá tirar do homem esses medos que durante toda a sua vida o submete à
escravidão.
Em seus ataques à religião, o senhor violenta sua própria humanidade.
Conhecendo o senhor como eu conheço, sinto que o senhor não percebe para onde
seus ataques se dirigem, ou quem eles ferem, ou o senhor não usaria suas armas
tão livremente. As crenças do homem são algo tão sagrado como os mais delicados
sentimentos de amor e honra. Eles são preciosos como as faces queridas que
passam por nossas vidas.
Eu penso
no meu pai e na minha mãe desejando respeito pela memória e seria cuidadoso em
falar da fé que eles alimentaram nas suas vidas. Claro que isso é só abstração.
Não acho que o senhor sinta prazer em causar dor. Não posso esquecer a mão
delicada apoiada no seu ombro, e a voz carinhosa que disse: "Tio Robert
não seria capaz de matar uma mosca". E, no entanto o senhor rasga as mais
delicadas sensibilidades, e pisa sobre o que é mais querido por milhões de
sobrinhas e filhas e mães, pequenos exemplos de que o senhor está brincando com
as vidas de criaturas humanas.
O senhor está levando a cabo uma batalha perdida - uma batalha na qual o senhor
será o único perdedor. A religião cristã começou quase dois mil anos antes de
nós termos nascido, e ainda sobreviverá dois mil anos depois da nossa morte.
Por que será que ela sobrevive por tanto tempo, mesmo depois que impérios e
reis perecem? Não se fala em "sobrevivência dos mais aptos"? Lutando
contra ela com toda a sua eloqüência e ironia, o senhor falhará, como todos
falharam antes do senhor. O senhor não pode lutar contra os instintos da
humanidade. É natural para o homem olhar para a Força Superior, como se olha
para as estrelas. Diga a eles que não há nenhum Deus! O senhor pode dizer
também que não há nenhum sol no céu, mesmo vendo que toda a vida na terra
depende dele.
Não diria que acho que posso convencer o senhor, ou mudar sua opinião; mas
sempre valerá a pena apelar para a sóbria consciência de um homem - para aquele
julgamento final que acontece com o aumento de nossos conhecimentos, na medida
em que os anos passam; e eu não abandonarei minha esperança de que o senhor, no
futuro, possa ver as coisas de modo melhor, mais claro, e reconheça o erro que
vem cometendo ao confundir religião com superstição - duas coisas tão distantes
como este local onde estamos até o longínquo pólo.
A
superstição é a grande inimiga da Religião. É o pesadelo da mente,
preenchendo-a com os mais assustadores terrores - uma nuvem negra que paira
sobre a metade do mundo. Contra isto o senhor está correto em invocar os
conhecimentos da ciência para iluminar a escuridão. Aquele que possa fazer algo
para eliminá-lo é um benfeitor da humanidade. Mas quando isto é feito
isoladamente e a natureza moral é tornada pura e doce, então o senhor e eu
estaremos certos de uma Presença chegando, como a Religião, filha dos céus,
trazendo a paz e boa vontade para os homens.
Henry M. Field
"A dúvida é considerada como o farol do sábio".
Meu caro Sr. Field:
Respondo sua carta porque ela foi humana, delicada e generosa. Não é freqüente que um pastor do evangelho da benevolência universal fale de um descrente sem ser em termos de reprovação, desprezo e ódio. O manso é geralmente malicioso. A afirmação, na sua carta, de que alguns dos seus colegas me vêem como um monstro, devido à minha descrença, tendem a mostrar que aqueles que mais amam um Deus não são sempre amigos dos seus semelhantes.
Não é estranho que pessoas que admitem que estão destinadas à condenação eterna, que elas são por natureza totalmente depravadas, que não há nenhum sinal de saúde nelas, possam ser tão egoisticamente arrogantes em olhar outras como monstros? E, no entanto, alguns de seus colegas, que classificam descrentes como infames, confiam na salvação inteiramente na bondade aos outros, e esperam receber como esmola uma eternidade de alegrias.
A primeira questão que surge entre nós é como a inocência de erros honestos – é o direito de exprimir uma idéia honesta.
O senhor deve reconhecer que homens perfeitamente honestos podem diferir em questões importantes. Alguns acreditam em livre mercado, outros advogam o controle estatal. Há democratas honestos e republicanos sinceros. Como o senhor considera essas diferenças? Homens instruídos, diretores de faculdades, não podem concordar sempre com questões capazes de solução – questões que a mente pode captar, nas quais a evidência está aberta a tudo, e onde os fatos podem existir com absoluta segurança. Como explicar isso? Se essas diferenças podem existir consistentemente com a boa fé daqueles que diferem, o senhor não pode conceber que pessoas honestas possam ter diferentes pontos de vista em questões sobre as quais nada pode ser sabido com certeza?
O senhor não me considera um monstro. Alguns de seus colegas me consideram como tal. Como considerar esta diferença? Claro que seus colegas – depois que os corações foram amolecidos pelo Deus Presbiteriano – são regidos pela caridade e amor. Eles não me consideram um monstro porque eu cometi um crime infame, mas simplesmente porque eu expressei minhas idéias honestamente.
O que eu fiz? Li a bíblia com todo o cuidado, e a conclusão que chegou à minha mente foi de que ela não é inspirada e que não é verdadeira. Por que seria minha obrigação falar o contrário do que minha mente pensa? Seria minha obrigação ficar calado? Se eu fosse desonesto comigo mesmo, se eu fizesse parte da maioria, - se eu declarasse que o livro é a palavra inspirada de Deus – estariam seus colegas ainda me considerando como um monstro? Pode a religião controlar o mundo de tal modo a ponto de um homem honesto parecer monstruoso?
De acordo com sua crença – de acordo com sua bíblia – o mesmo Ser que fez a mente humana, que idealizou cada cérebro, e que semeou nos mais maravilhosos campos as sementes de cada idéia e ação, inspirou cada palavra daquele livro, e o fez como um guia para todo o mundo. Certamente este livro deveria satisfazer a mente. E, no entanto, há milhões que não acreditam na inspiração das escrituras. Alguns dos maiores e melhores têm considerado com desprezo a alegação de inspiração. Nenhum presbiteriano foi mais alto do que Humboldt. Ele era familiar com a natureza, desde a areia às estrelas, e dedicou seus pensamentos, descobertas e conclusões, as "mais preciosas do que ouro" a toda humanidade.
E ele não só rejeitava a religião de seus colegas, mas
também negava a existência do seu Deus. Certamente Charles Darwin era um dos
maiores e puros dos homens, tão livre de preconceitos como a bússola de um
marinheiro. Tentando apenas achar, no meio das névoas da ignorância a estrela
da verdade. Nenhum homem exerceu maior influência intelectual no mundo. Suas
descobertas, levadas à conclusão legítima, destroem as crenças e escrituras
sagradas da humanidade. Diante da ‘seleção natural’, da ‘sobrevivência dos mais
aptos’, e na "Origem das Espécies", mesmo a religião cristã se
transforma numa grosseira e cruel superstição. E Darwin era um homem bravo,
honesto, sábio e generoso.
Compare, por favor, esses homens, Humboldt e Darwin com os fundadores da religião presbiteriana. Leia a vida de Espinoza, o adorável panteísta, e depois leia a vida de João Calvino, e me diga, sinceramente, na sua opinião, qual era o ‘monstro’! Nem seus colegas alegam que os homens foram feitos para ser eternamente castigados por terem estado enganados sobre as verdades da geologia, astronomia ou matemática.
Um homem pode negar que a terra é redonda, ou que rode,
rir da lei da gravidade, debochar da hipótese das nebulosas, e ver com horror
uma tabuada de multiplicação e, no entanto tomar parte de um coro angelical. Eu
insisto sobre a mesma liberdade de pensamento em todos os departamentos do
conhecimento humano. A razão é o teste final e supremo.
Se Deus já fez uma revelação ao homem, ela teve ter sido endereçada à sua razão. Não há outra faculdade que possa decifrar a mensagem. Eu admito que a razão é algo pequeno e frágil, uma pequena e trêmula chama carregada na noite escura, - ameaçada e soprada por tempestades de paixão, - e, no entanto esta é a única luz que temos. Se a extinguirmos, nada restará.
O senhor faz uma distinção entre o que classifica como "superstição" e religião. O senhor fica chocado com a cena da mãe hindu que oferece a vida do próprio filho para obedecer ao suposto comando do seu Deus. O que o senhor acha de Abraão, ou Jeftá? Qual é sua opinião sobre o próprio Jeová? Não acha que o sacrifício de uma criança é tão horrível na Palestina como na Índia? Por que Deus exigiria um sacrifício a um homem? Por que um ser infinito exigiria algo de um ser finito? Será que o sol exigiria algo de um vaga-lume, e será que a tênue luminescência deste ser despertaria a inveja da fonte de luz?
O senhor precisa lembrar que a mãe hindu está convencida de que seu pequeno filho estará para sempre abençoado – e que ele receberá cuidados especiais do Deus para quem ele está sendo doado. Este sacrifício se dá como resultado de uma falsa crença da mãe. Ela despedaça o próprio coração pelo amor do filho. Mas o que o senhor acha da mãe cristã que espera ser feliz no céu, enquanto seu filho será condenado eternamente numa prisão – uma prisão na qual ninguém morre, e da qual ninguém escapa?
O que o senhor acha daqueles cristãos acreditam que eles,
no céu, estarão preenchidos de êxtase, que todos os seres amados na terra serão
esquecidos – que todas as relações sagradas da vida, e todas as paixões do
coração se apagarão e morrerão, de tal modo que eles olharão com indiferença,
distância e alegria para as misérias dos condenados?
O senhor apontou uma regra na qual a superstição pode ser distinguida da religião. A regra é esta: "Fazer de um crime o que não é um crime, e fazer de uma virtude o que não é uma virtude." Vamos testar sua religião usando esta regra.
O senhor apontou uma regra na qual a superstição pode ser distinguida da religião. A regra é esta: "Fazer de um crime o que não é um crime, e fazer de uma virtude o que não é uma virtude." Vamos testar sua religião usando esta regra.
É um crime pensar, raciocinar, e observar? É um crime ser governado por aquilo que para você é evidência, e é uma infâmia expressar suas idéias honestas? Há uma outra questão: credulidade é uma virtude? Será a boca aberta do milagre ignorante a única entrada para o paraíso?
De acordo com sua crença, aqueles que acreditam serão salvos, e aqueles que não crêem serão condenados eternamente? Quando se condena um homem ao sofrimento eterno por descrer – ou seja, de acordo com o que para ele é evidência – o senhor não está fazendo um crime do que não é um crime? E quando o senhor recompensa um homem a uma eternidade de alegrias por simplesmente acreditar em coisas que estão em acordo com suas mentes, não se está fazendo uma virtude do que não é virtude? Em outras palavras, o senhor não está colocando sua religião dentro da regra do que é superstição?
A verdade que ninguém é responsável por seus pensamentos. O cérebro pensa sem pedir nossa permissão. Nós acreditamos, ou desacreditamos, sem um esforço da vontade. A crença é um resultado. É o resultado de evidências sobre a mente. Os fatos mudam apesar daquele que os observa. Não há nenhum lugar para ser honesto ou desonesto na formação de uma opinião. A conclusão é inteiramente independente da vontade. Devemos acreditar, ou devemos mudar, apesar de nossos desejos.
O que deve ser, tem o direito de ser.
Nós pensamos apesar de nós mesmos. O cérebro pensa como o coração bate, como os olhos vêem, como o sangue segue seu curso nas suas vias usuais.
A questão, então é, não ter o direito de pensar, - sendo uma necessidade, - mas devemos ter o direito de expressar nossas idéias honestas? O senhor certamente tem o direito de expressar as suas, e tem exercido este direito. Alguns dos seus colegas, que me consideram um monstro, têm também expressado as suas. A questão agora é, tenho eu o direito de expressar as minhas? Em outras palavras, tenho o direito de responder sua carta? Fazer do que é um crime em mim uma virtude no senhor certamente vem daquela definição sua de superstição. Exercer o senhor mesmo um direito que nega a mim é simplesmente o ato de um tirano. De onde veio o seu direito de expressar suas idéias honestas? Onde, quando e como eu perdi o meu?
O senhor certamente não me queimaria e nem sequer me aprisionaria, porque minha diferença com o senhor é sobre questões das quais nenhum de nós conhece. Para o senhor a selvageria da inquisição é apenas uma prova da depravação do homem. O senhor é muito melhor do que sua crença. O senhor acha que até o mundo cristão está superando o terrível sentimento de que o archote, a masmorra, o esmagador de polegares são argumentos legítimos, calculados para convencer aqueles sobre os quais estes instrumentos eram usados, que a religião daqueles que os usavam fora fundada por um Deus de infinita compaixão.
O senhor admitirá que aqueles que perseguem por diferenças
de opinião são infames. E, no entanto, o Deus que o senhor adora, de acordo com
sua crença, torturará por toda a eternidade aquele homem que expressa uma
dúvida honesta. A crença desse Deus é a fundação de toda a perseguição
religiosa. O senhor alega que só a crença num Deus falso faz os homens
desumanos. Mas o senhor admite que os judeus acreditavam num Deus verdadeiro,
mas é forcado a dizer que eles eram tão maliciosos, tão cruéis, tão selvagens,
que eles crucificaram o único Ser Imaculado que já existiu.
Este crime foi cometido, não apesar de sua religião, mas
de acordo com ela. Eles simplesmente obedeceram ao comando de Jeová. E os
seguidores desse Ser Imaculado que, por todos esses séculos, denunciaram as
crueldades dos judeus que crucificaram um homem por sustentar uma opinião,
destruíram milhões de seus semelhantes por terem idéias diferentes das suas. E
esse mesmo Ser Imaculado ameaça com a tortura eterna no fogo muitos homens,
pela mesma ofensa. Não existe incoerência maior que esta. Absurdo maior não
pode existir.
Sua crença transferiu a inquisição para um outro mundo,
tornando-a eterna. Seu Deus se torna, ou melhor, é, um Torquemada infinito, que
nega às suas incontáveis vitimas até mesmo a misericórdia da morte. E isso o
senhor chama de "consolação".
O senhor insiste que na fundação de qualquer religião está a idéia de um Deus. De acordo com sua crença, todas as idéias de Deus, exceto aquelas concernentes com a sua fé, são absolutamente falsas. O senhor não é chamado para defender os deuses das nações extintas, nem os deuses dos hereges. Seu negócio é defender o Deus da bíblia – o Deus da igreja presbiteriana.
Quando nas disputas, defendendo sua fé, o senhor deve
vestir o uniforme da sua igreja. O senhor não ousa dizer que é suficiente para
ser salvo defender a idéia de Deus, ou em algum deus. De acordo com sua crença,
as pessoas devem acreditar no seu Deus. Todas as nações extintas acreditaram em
deuses, e todos os adoradores de Zeus, e Júpiter, e Isis, e Osíris, e Brahma
rezavam e se sacrificavam em
vão. Suas solicitações não eram atendidas, e suas almas não
eram salvas. Certamente o senhor não afirma ser suficiente acreditar em algum
dos deuses dos pagãos.
Que razão tem o senhor de ocupar as idéias dos deístas, e desprezar argumentos que até os cristãos já responderam? Os deístas denunciaram o Deus da bíblia por causa de sua crueldade, e ao mesmo tempo eles riam do deus da natureza. Os cristãos respondiam que o deus da natureza é tão cruel como o deus da bíblia. Sua resposta estava completa.
Sinto que o senhor tem tendência a admitir que ninguém tem sido tão ignorante, tão degradado, para acreditar no sobrenatural; e eu dou ao senhor a vantagem desta admissão. Apenas uns poucos – entre eles os mais sábios, os mais nobres e puros da espécie humana – têm classificado todos os deuses como mitos monstruosos.
Entretanto, a crença no Deus verdadeiro não parece ser
suficiente para tornar o homem caridoso e justo. Para muitos o teísmo é a
solução mais fácil do universo. Eles estão satisfeitos em dizer que tem de
existir um Ser que criou e governa o mundo. Mas a universalidade de uma crença
não a torna verdadeira. A crença de um diabo maligno é tão antiga quanto a
crença num Deus beneficente e, no entanto, poucos homens inteligentes diriam
que a crença em demônios seja prova de que eles existem.no mundo das idéias as
maiorias não significam nada. A verdade sempre esteve do lado de poucos.
O homem tem enchido o mundo com monstros impossíveis, e ele tem sido a caça e a presa desses fantasmas nascidos da esperança, ignorância e medo. Para acalmar a ira desses monstros o homem tem sacrificado seus semelhantes. Ele tem derramado o sangue de esposas e filhos; ele tem jejuado e rezado; ele tem sofrido além da capacidade que a língua pode expressar e, entretanto ele não tem recebido nada desses deuses – eles não ouvem qualquer súplica. Eles não respondem a nenhuma oração.
O senhor pode alegar que seu Deus pode mandar chuva para o justo e para o injusto, e isto provaria que ele é misericordioso para com todas as suas criaturas. Eu respondo que seu Deus manda as pestes para os justos e injustos – que seus terremotos devoram e seus ciclones atacam e destroem os bons e os degradados, o honesto e o criminoso. Isto não provaria que Deus é mau para todos igualmente? Em outras palavras, não demonstraria a absoluta imparcialidade da divina negligência?
O senhor não acha que um homem justo e de inteligência mediana, tendo absoluto controle da chuva, poderia fazer de maneira muito melhor do que é feito? Certamente não ocorreria nenhuma seca e nenhuma enchente; as plantações não seriam deixadas murchar e morrer enquanto água seria desperdiçada no oceano. Seria concebível que um homem que tivesse controle sobre o vento não evitasse os ciclones? O senhor não confiaria mais num homem sábio e honesto com os raios?
Por que um Deus infinitamente sábio e poderoso destrói os bons e poupa os maus? Por que ele trata todos igualmente aqui, enquanto que num outro mundo faria diferente? Por que seu Deus permitiria que seus adoradores, seus aduladores sejam destruídos pelos inimigos? Por que ele permitiria que uma pessoa honesta, gentil e nobre perecesse numa fogueira? Pode responder a estas questões? Não ocorre ao senhor que seu Deus deve ter sentido uma ponta de vergonha quando a pobre escrava – aquela que teve seu bebê roubado – ajoelhou-se e com as mãos juntas, e com uma voz cortada por soluços começou sua oração com a palavra "Meu Pai"?
Causou-me satisfação descobrir que apesar de sua crença, o senhor é filosófico o suficiente para afirmar que alguns homens são incapacitados, por motivos de temperamento, em acreditar em evidências de um Deus. Mas, se a crença num Deus é algo necessário para a salvação da alma, por que Deus criaria alguém sem esta capacidade? Por que ele criaria pessoas, já sabendo que elas seriam condenadas? O senhor parece acreditar que é necessário ser poético, sonhador para ser religioso, e por inferência, pelo menos, o senhor nega em mim certas qualidades que julga necessárias.
O senhor condena o ateísmo de Shelley acusando-o de não
ser poético, e cita estas linhas para provar a existência do mesmo Deus que ele
nega tão apaixonadamente? Seria possível que Napoleão – um dos homens mais
infames – tinha qualidades tão grandes que o tornavam sensível a divinas
influências? O senhor deseja provar a existência de um tirano usando as
palavras de um outro?
Pessoalmente tenho muito pouca confiança numa religião que
satisfaça o coração dos homens que, para satisfazer sua ambição, enche o mundo
com órfãos e viúvas. A respeito de Agassiz, é justo dizer que ele reuniu um
grande volume de testemunhos em favor da verdade das teorias de Darwin, e
depois negou a correção das teorias – preferindo as boas opiniões de Harvard
nos primeiros dias, aos aplausos finais do mundo intelectual.
Eu concordo com o senhor que este mundo é um mistério, não um, mas que tudo na natureza é igualmente misterioso, e que não há como escapar do mistério da vida e da morte. Para mim a cristalização da neve é tão misteriosa quanto o mistério das constelações. Mas quando o senhor tenta explicar o mistério do universo com o mistério de Deus, o senhor não está apenas trocando de mistérios, mas apenas criando um novo.
O senhor admite que o Deus da natureza – ou seja, seu Deus – é tão inflexível como a própria natureza. Por que o homem deveria adorar o inflexível? Para que se ajoelhar diante do imutável? O senhor afirma que seu Deus "não se curva ao pensamento humano, nem à sua vontade", que "quanto mais o estudamos, mais descobrimos que ele não é o que imaginávamos". Então, afinal, a única coisa da qual temos certeza em relação a Deus é que ele não é o que pensamos. Não seria quase um absurdo afirmar que este estado da mente é necessário para a salvação, ou uma maneira de contenção moral, ou a fundação da ordem social?
As nações mais religiosas têm sido as mais imorais, as mais cruéis e injustas. A Itália ficou muito pior entre os papas do que entre os césares. Haverá nação mais bárbara do que a Espanha do século dezesseis? Certamente o senhor deve saber que o que chama religião produziu mil guerras civis, e que tem cortado com a espada todas as amarras que produzem "a unidade e calma dos estados".
A teologia é a mãe fértil da discórdia; a ordem é filha da
razão. Se o senhor considerar calmamente esta questão – se o senhor se livra
por uns instantes de suas idéias preconcebidas – o senhor verá instantaneamente
o instinto de auto-preservação que mantém a sociedade unida. A religião também
nasceu por instinto. Pessoas, sendo ignorantes, acreditavam que os deuses eram
ciumentos e vingativos. Essas pessoas encheram o espaço com fantasmas que
exigiam adoração e se deleitavam com sacrifícios e cerimônias, fantasmas que
podiam ser bajulados com homenagens, e manipulados com orações.
Essas pessoas ignorantes desejavam preservar a si mesmas.
Elas supunham que, dessa maneira, poderiam evitar as pestes e a fome, e evitar,
se possível, o dia da morte. O senhor não acha que auto-preservação está na
fundação da adoração? Nações, como indivíduos, têm medos, ideais, e vivem para
atingir certos fins. Homens defendem sua propriedade por causa do seu valor.
Homens, de regra, desejam viver, e por este motivo assassinato é crime. A fraude
é odiosa para vítima. A maioria da humanidade trabalha para produzir os bens,
os confortos, e os luxos da vida. Eles desejam preservar os frutos do seu
trabalho. O governo é um dos artifícios para a preservação daquilo que o homem
preza. Esta é a fundação da ordem social, e isto é o que mantém a sociedade
unida.
A religião tem sido inimiga da ordem social, porque ela desvia a atenção do homem para um outro mundo. Ela ensina seus seguidores a sacrificar esta vida em beneficio de uma outra. O efeito é um enfraquecimento dos laços que mantêm famílias e estados unidos. Afinal, qual é o valor de qualquer coisa neste mundo, em comparação com uma infinidade de alegrias?
O senhor diz que o homem não é capaz de se auto-governar, e que Deus cometeu o erro de encher o mundo de falhas – em outras palavras, que o homem deve ser governado, não por si próprio, mas pelo seu Deus, e que seu Deus produz ordem, e estabelece e conserva todas as nações da terra. Sendo assim, seu Deus é responsável pelos governos do mundo. Será que ele preserva a ordem na Rússia? Ele cuida da Sibéria? Será que ele instituiu a escravidão? Foi ele o fundador da inquisição?
O senhor responde todas estas questões chamando minha atenção para as recompensas da história. Quais são as recompensas? Os honestos eram queimados na fogueira; os patriotas, os generosos, os nobres eram deixados para morrer nas masmorras; raças inteiras eram escravizadas; milhões de mulheres tiveram seus bebês roubados. Quais foram as recompensas da história? Aqueles que cometeram esses crimes usavam coroas, e aqueles que justificaram essas infâmias eram adornados com uma mitra.
O senhor está enganado quando diz que Lincoln exclamou em Gettysburg: "Justo e verdadeiro é o vosso julgamento, Deus Pai Todo Poderoso". Algo semelhante a isto ele disse no seu último discurso, em que ele falou da sua esperança de que os combates terminassem breve: "Se isto continuar até que a última gota de sangue escorra da última ferida, deverá ser pago com outra, aberta com a espada, ainda assim se poderia dizer: ‘O julgamento de Deus é justo e verdadeiro ao mesmo tempo’". Mas admitindo que o senhor esteja correto na sua afirmação, deixe-me fazer uma pergunta: poderia alguém, estando junto ao corpo de Lincoln, o sangue ainda escorrendo lentamente dos ferimentos causados pelo fanático, dizer com sinceridade: "Justos e verdadeiros são vossos julgamentos, Senhor Deus Todo Poderoso?"
O senhor realmente acredita que este mundo é governado por um Deus infinitamente sábio e bom? O senhor já conseguiu se convencer disso? Como Deus permitiria o triunfo da injustiça? Como o inocente pode ser torturado? Como os mais nobres podem ser destruídos? Por que o mundo tinha de ser preenchido por misérias, ignorância e necessidades? Qual razão o faz acreditar que seu Deus fará melhor num outro mundo, do que ele fez, e tem feito neste? Ele se tornará mais sábio? Ele se transformará em alguém mais misericordioso?
Quando digo "seu Deus" claro que estou descrevendo aquele Deus citado na bíblia, e na confissão de fé presbiteriana. Mas novamente eu digo que na natureza das coisas não poderá haver qualquer evidência de que exista um Deus infinito.
Um ser infinito teria de ser incondicional e, por conseguinte, não haveria nada que um ser finito pudesse fazer que, de qualquer modo que seja, pusesse afetar bem estar do incondicional. Sendo assim, o homem não pode dispensar nenhum dever ou obrigação para um ser infinito. Um ser infinito não pode desejar, e o homem não pode fazer nada por um ser que não deseja nada. Um ser condicional pode ser alegrado, ou triste, mudando as condições, mas o incondicional é absolutamente independente de causa e efeito.
Não estou afirmando que Deus não existe, nem digo que Deus existe; mas eu digo que não sei – que não pode haver evidências de tal ser, e que minha mente é tal que não posso nem conceber a existência de uma personalidade infinita. Eu sei que na sua crença o senhor descreve Deus como "sem corpo, partes ou paixões". Isto, na minha compreensão é simplesmente a descrição de um vácuo infinito. Não tenho tido experiência alguma com deuses.
Este mundo é o único que conheço, e fiquei surpreso em
encontrar na sua carta a expressão de que "talvez outros tenham
experiência naquilo sobre o que sou ignorante". Está querendo dizer que o
senhor sabe alguma coisa a respeito de outros estados de existência – que o
senhor tenha habitado outros planetas – que já viveu antes de ter nascido, e
que se lembra de algo de outro mundo, ou daquele outro estado?
Sobre o estado da imortalidade, o senhor fez, para mim, mesmo sem intenção, uma grande injustiça. A respeito dessa esperança, eu nunca exclamei uma única palavra. Já disse milhares de vezes, e digo novamente, que a idéia da imortalidade que, como uma mar, inundou o coração humano, com suas ondas incontáveis de medo, e batendo contra o cais do tempo e destino, e não nasceu em nenhum livro, em nenhum credo, e em nenhuma religião. Ela nasceu da afeição humana, e continuará a inundar além das névoas e nuvens da dúvida e da escuridão, até quando o amor beije os lábios da morte.
Sobre o estado da imortalidade, o senhor fez, para mim, mesmo sem intenção, uma grande injustiça. A respeito dessa esperança, eu nunca exclamei uma única palavra. Já disse milhares de vezes, e digo novamente, que a idéia da imortalidade que, como uma mar, inundou o coração humano, com suas ondas incontáveis de medo, e batendo contra o cais do tempo e destino, e não nasceu em nenhum livro, em nenhum credo, e em nenhuma religião. Ela nasceu da afeição humana, e continuará a inundar além das névoas e nuvens da dúvida e da escuridão, até quando o amor beije os lábios da morte.
Já disse milhares de vezes, e digo de novo, que nós não sabemos, não podemos dizer, se a morte é uma porta ou um muro – o começo, o fim ou um dia – a revoada de pássaros num vôo, ou o recolher eterno das asas – o nascer ou o por do sol, ou uma vida eterna, que trará êxtase e amor para todos.
A crença na imortalidade é muito mais antiga que o cristianismo. Milhares de anos antes de cristo milhões de pessoas nasceram e viveram com esta esperança. Sobre muitos túmulos têm sido colocados, com amor e lágrimas, os símbolos de uma outra vida. O céu do novo testamento deveria ser neste mundo. Os mortos, depois de reviver, deveriam viver aqui. Nenhuma outra palavra se supõe ter sido dita por Cristo – nada filosófico, nada claro, nada que adorna, como uma promessa, as nuvens da dúvida.
De acordo como que é dito no novo testamento, Cristo ficou morto por um período de três dias. Após sua ressurreição, por que nenhum dos apóstolos perguntou onde ele estivera? Por que ele não disse quais mundos visitara? Aquela era a oportunidade de trazer à luz a vida e a imortalidade. E, no entanto, ele ficou tão mudo quanto a tumba de onde dele saiu. Calado como a pedra que os anjos rolaram.
Como o senhor explica isto? Não foi infinitamente cruel deixar o mundo na escuridão e na dúvida, quando uma só palavra teria enchido o mundo com esperança e luz?
A esperança na imortalidade é o grande carvalho em torno do qual rastejam as serpentes venenosas da superstição. As serpentes não apóiam o carvalho. O carvalho é quem dá sustentação às serpentes. Desde quando os homens vivem e morrem, esta esperança irá florescer no coração humano.
Tudo o que tenho dito sobre esta questão são para expressar minha esperança e para confessar minha falta de conhecimento. Nem minha palavra nem minhas expressões têm levantado o menor sentimento que não o de simpatia por aquelas pessoas que têm esperança de viver novamente – por aqueles que se curvam sobre seus mortos e sonham com uma vida futura. Mas tenho denunciado o egoísmo e impiedade daqueles que esperam para si mesmos uma eternidade de alegrias, e para o resto da humanidade, sem uma única lágrima, um mundo de dores infindáveis. Nada pode ser mais desprezível do que essa esperança – uma esperança que só pode dar satisfação às hienas da espécie humana.
Quando digo que não sei – quando nego a existência da perdição, o senhor responde que "há algo muito cruel neste tratamento da crença dos meus semelhantes."
O senhor teria a bondade para me convidar para um túmulo sobre o qual uma mãe se curva e chora por seu único filho. Por favor, peço-lhe para não usar generalizações. Seja explicito. Lembre-se de que o rapaz sobre o qual a mãe chora não era cristão, não acreditava na inspiração da bíblia, nem na divindade de Jesus Cristo. A mãe se volta para o senhor buscando consolo, alguma esperança na noite de dor. O que o senhor diria? Não despreze a crença presbiteriana. Não esqueça as ameaças de Jesus Cristo. O que o senhor deveria dizer? Leria uma parte da confissão presbiteriana da fé? O senhor leria isso?
"Apesar da luz da natureza e os trabalhos da criação e providência, manifeste a bondade, a sabedoria, o poder de Deus para deixar o homem indesculpável, porque eles não são suficientes para dar o conhecimento de Deus e sua vontade que é necessária para a salvação."
Ou leria isto?
"Pelo decreto de Deus pela manifestação de sua glória, alguns homens e anjos são predestinados a uma vida eterna, e outros a uma morte eterna. Esses anjos e homens assim predestinados e ordenados são particularmente e inexoravelmente destinados, e seu número é tão certo e definitivo que não poderá ser aumentado ou diminuído".
Suponha que a mãe, levantando o rosto molhado de lágrimas, dissesse: "Meu filho era bom, generoso, gentil e carinhoso. Ele deu a vida por mim. Não há nenhuma esperança por ele?" Colocaria o senhor esta serpente em seu seio?
"Os homens que não professam a fé cristã não podem ser salvos de nenhuma maneira, nem que sejam diligentes em viver suas vidas de conformidade com a luz da natureza. Não podemos, por nosso trabalho, dar mérito ao perdão dos pecados. Não há pecado tão pequeno além daquele que mereça punição eterna. Trabalhos feitos por homens não regenerados, portanto, por coisas que Deus comanda, e para bons usos tanto para si como para os outros, são pecaminosos e não podem agradar a Deus ou poderá fazer um homem encontrar Jesus ou Deus."
E suponha que a mulher pergunte, soluçando: "O que aconteceu com meu filho? Onde está ele agora? " O senhor lerá ainda sua confissão de fé ou isto, do catecismo?
"As almas dos condenados são mandadas para o inferno, onde ficam em tormento e escuridão, reservados para o julgamento do grande dia. No último dia, os justos deverão ganhar vida eterna, mas os maus serão lançados no sofrimento eterno e punidos num indescritível tormento, no corpo e na alma, com o demônio e seus anjos, para sempre."
Se a pobre mãe ainda chora, ainda desejando ser confortada, o senhor enterraria este punhal no seu coração?
"No Dia do Julgamento, anunciado por Cristo nas nuvens você, depois de ser chamado por Cristo, deverá estar sentado à sua direita, e deverá acompanhá-lo da condenação do seu filho."
Se isto não for suficiente para parar os batimentos do seu coração, o senhor repetiria aquelas palavras que se diz terem saído da amorosa alma de Cristo?
"Aqueles que acreditarem e forem batizados serão salvos, e aqueles que não acreditarem serão condenados: e estes deverão ir para o fogo eterno preparado pelo demônio e seus anjos."
O senhor são seria compelido, de acordo com sua crença, a dizer a essa mulher que "só há um nome dado sob o céu e entre os homens que existem" que as almas dos homens podem entrar no portão do paraíso? O senhor não seria compelido a dizer: "seu filho viveu num país cristão. O caminho da graça esteve nas suas mãos. Ele viveu sem experimentar a mudança no coração, e por isso seu filho está para sempre perdido. A senhora só poderá encontrá-lo novamente se morrer no pecado; mas se a senhora der o coração a Deus, nunca poderá novamente apertá-lo no peito."
O que eu diria? Deixe-me dizer: "Minha cara senhora, este reverendo não sabe de nada do mundo futuro. Ele não pode ver além da tumba. Ele apenas disse à senhora as superstições da ignorância, da crueldade e medo. Se houver neste universo um Deus, ele certamente é tão bom como a senhora. Se ele amava seu filho, segundo este senhor pastor, a ponto de ter dado sua vida por ele; por que este amor se transformaria em ódio no momento da morte do seu filho?
“Minha cara senhora, não há punição, não há recompensas – há conseqüências; e de uma coisa esteja certa; qualquer alma, seja em que esfera ela habite, terá a oportunidade da fazer o certo”.
"Se a morte for o fim, e se este monte de cinzas sobre o qual a senhora chora for tudo o que resta, a senhora tem este consolo: o seu filho não está sob o jugo deste Deus de quem este reverendo fala – isto já é muito. Seu filho não sofre. Depois de uma vida feliz há o sono infinito da morte."
Não lhe parece infinitamente absurdo classificar o cristianismo ortodoxo de "consolo"? Aqui neste mundo, onde cada ser humano é envolto em nuvens e névoa, - onde toda vida é envolvida com erros, - onde ninguém alega ser perfeito, é um consolo afirmar que a menor falta merece a punição eterna? Será possível para a ingenuidade humana, extrair da doutrina do inferno uma gota, um raio de "consolo"? Se esta doutrina é verdadeira, não será o seu Deus um criminoso eterno? Como ele pode ter criado milhões de criaturas destinados ao sofrimento eterno? Por que ele não os deixaria permanecer como pó inconsciente? Comparado com este crime, qualquer crime que o homem possa cometer é uma virtude.
Pense um momento no seu Deus, - o mantenedor de uma penitenciária universal cheia de condenados imortais, - seu Deus um eterno carcereiro, sem o poder de perdoar. Em presença deste infinito horror, sua fala complacente de expiação, - uma idéia que não captou nem um bilionésimo da espécie humana, - uma expiação na qual a metade da humanidade permanece afastada, quinze séculos depois que ela foi criada.
Se não existisse nenhum sofrimento não haveria nenhum pecado. Causar sofrimento injusto é o único crime possível. Como poderia um Deus aceitar o sofrimento do inocente no lugar da punição do culpado?
De acordo com sua teoria, este ser infinito, por sua própria vontade, fez o certo e o errado. Isto eu não admito. O certo e o errado existem na natureza das coisas – na relação que elas mantêm com o homem, e para os seres sensíveis. O senhor já admitiu que a "natureza é inflexível, e que uma lei violada traz suas conseqüências." Eu insisto que nenhum Deus daria um passo entre uma lei e suas conseqüências naturais.
Se Deus existe, ele não tem nada a ver com punição, nada a
ver com recompensas. De certos atos surgem as conseqüências; essas
conseqüências aumentam ou diminuem a felicidade do homem; e as conseqüências
surgem.
Um homem que destrói sua vida, para a comunidade ele pode ser perdoado, mas um homem que violentou a natureza de seu próprio bem estar não pode ser perdoado – não existe força de perdão. As leis do estado são feitas e, sendo feitas, podem ser mudadas. As relações do ato com a conseqüência não podem ser alteradas. Isto está acima de qualquer força, e conseqüentemente, não existe analogia entre leis de estado e fatos da natureza. Um Deus infinito não pode mudar a relação entre o diâmetro e a circunferência de um círculo.
Um homem, depois de cometer um crime pode ser perdoado, mas eu nego a um estado o direito de punir um inocente no lugar do perdoado – não importa tão desejoso esteja o inocente em sofrer a punição. Não há nenhuma lei na natureza, nenhum fato na natureza, que indique que um inocente possa ser justamente punido para que o culpado seja libertado. Vamos deixar claro de uma vez por todas: a natureza não pode perdoar.
O senhor reconhece esta verdade. O senhor me perguntou o que acontecerá com aquele que seduz e trai, ou daquele criminoso cujo sangue da vítima está em suas mãos? Sem a menor hesitação eu respondo que quem quer que seja que cometa um crime contra outro deve, seja neste mundo ou num outro, se existir, fazer uma restituição, e além disso, deve carregar as conseqüências naturais de sua ofensa. Nenhum homem pode ser perfeitamente feliz, nem neste mundo nem noutro depois de, numa traição, ter partido um coração confiante e amoroso. Nenhuma força se coloca entre atos e conseqüências – nenhum perdão, nenhuma expiação.
Mas, meu caro amigo, o senhor tem ensinado, por muitos anos, se é um presbiteriano, ou um cristão evangélico, que um homem pode seduzir e trair, e que a pobre vítima, levada à insanidade, jogando-se de um cais numa noite em que os barcos se sustentam nas âncoras na tempestade – o senhor ensinou que esta pobre moça será eternamente atormentada por um Deus de infinita compaixão.
Isto não é tudo o que tem ensinado. O senhor disse ao
sedutor, ao ofensor, para aquele que não ouviu os seus gritos e seu choro, -
aquele que jamais estenderia sua mão para agarrar suas roupas rasgadas, - o
senhor disse a ele: "Acredite no Senhor Jesus Cristo, e será feliz para
sempre; viverá no mundo do deleite eterno, de onde pode, sem uma sombra caindo
na sua face, observar a pobre moça, sua vítima, nas agonias do inferno."
O senhor ensinou isto. Por mim, não vejo como um anjo do
céu, encontrando um outro anjo que ele roubou na terra, poderia se sentir
inteiramente feliz. Vou mais além. Qualquer anjo decente, não importa se esteja
sentado ao lado direito de Deus, poderia ver no inferno uma das suas vítimas,
poderia deixar o céu sozinho com o propósito de enxugar uma lágrima do rosto do
condenado.
O senhor parece ter esquecido sua declaração do início de sua carta, que seu Deus é inflexível como a natureza – que ele não se curva aos pensamentos e desejos humanos. O senhor parece ter esquecido a linha que o senhor enfatiza com itálicos: "O efeito de tudo o que existe na natureza de uma causa é eterno".
O senhor parece ter esquecido sua declaração do início de sua carta, que seu Deus é inflexível como a natureza – que ele não se curva aos pensamentos e desejos humanos. O senhor parece ter esquecido a linha que o senhor enfatiza com itálicos: "O efeito de tudo o que existe na natureza de uma causa é eterno".
À luz desta sentença, onde o senhor encontra lugar para o
perdão – para sua expiação? Onde há lugar para escapar do efeito de uma força
que é eterna? O senhor não vê que esta sentença é uma corda com a qual eu
amarro facilmente suas mãos? A parte científica de sua teoria destrói a parte
teológica. O senhor colocou "vinho novo em velhas garrafas" e o
resultado previsível apareceu.
Será que os anjos do céu, os redentores da terra, perderão
suas memórias? Será que todos os canalhas redimidos lembrarão suas canalhices?
Será que todos os assassinos redimidos lembrarão as faces da morte? Será que
todos os sedutores e traidores lembrarão os suspiros, as lágrimas, os tons de
voz, e será que a consciência dos redimidos será tão inexorável como a
consciência dos condenados?
Se a memória for para sempre, "o carcereiro da mente", e se os redimidos nunca puderem esquecer os crimes que cometeram, a dor e angústia que causaram, eles nunca poderão ser perfeitamente felizes; e se os perdidos nunca esquecerem o bem que fizeram, as boas ações, as palavras amorosas, os atos heróicos; e se a lembrança das coisas boas derem a menor satisfação, então os condenados não poderão nunca ser totalmente infelizes.
Se a memória for para sempre, "o carcereiro da mente", e se os redimidos nunca puderem esquecer os crimes que cometeram, a dor e angústia que causaram, eles nunca poderão ser perfeitamente felizes; e se os perdidos nunca esquecerem o bem que fizeram, as boas ações, as palavras amorosas, os atos heróicos; e se a lembrança das coisas boas derem a menor satisfação, então os condenados não poderão nunca ser totalmente infelizes.
Será que as lembranças de uma boa ação não devem durar
tanto quanto as lembranças dos maus atos? De tal maneira que as lembranças
infinitas dos bons, no céu, trazem dor infindável, e as memórias infinitas dos
que estão no inferno trazem infinita alegria. O senhor não vê que, se o homem
faz o certo e o errado, não pode haver no futuro nem um perfeito céu nem um
perfeito inferno?
Eu acredito na doutrina humana de que o homem deve assumir as conseqüências dos seus atos e que nenhum homem pode ser salvo ou condenado de modo justo, no lugar da bondade ou maldade de outro homem.
Eu acredito na doutrina humana de que o homem deve assumir as conseqüências dos seus atos e que nenhum homem pode ser salvo ou condenado de modo justo, no lugar da bondade ou maldade de outro homem.
Se por expiação o senhor considera o efeito natural de auto-sacrifício, o efeito seguindo-se uma ação nobre e desinteressada; se o senhor considera que a vida e morte de Jesus valeu a pena sobre seus efeitos na espécie humana, - como sua carta parece mostrar, - então não há discordâncias entre nós. Se o senhor jogou fora a idéia antiga e bárbara de que uma lei foi quebrada, e que Deus exigiu um sacrifício, e que Cristo, o inocente, foi oferecido a nós e que ele acalmou a ira de Deus e sofreu em nosso lugar, então eu me congratulo com o senhor com todo o coração.
Parece-me impossível que a vida seja demasiadamente feliz para qualquer um que tenha contacto com as misérias, os sofrimentos, as lágrimas. Eu sei que assim como a escuridão se segue depois da luz no globo, a miséria e desgraça seguem os filhos dos homens. De acordo com sua crença, a situação futura será pior que a atual. Aqui, o viciado pode ser reformado; aqui, o mau pode arrepender-se; aqui, uns poucos raios de luz podem brilhar na escuridão da vida. Mas, no seu estado futuro, para milhões de seres humanos, não haverá nenhuma recuperação, nenhuma oportunidade de fazer o certo, e nenhuma fagulha de luz jamais poderá tocar suas almas. Não vê que o futuro que o senhor espera é infinitamente pior do que o presente?
O senhor parece confundir o clarão do inferno com a luz da
manhã.
Joguemos fora o dogma da condenação eterna. Vamos nos "agarrar a tudo o que pode trazer um raio de esperança para dentro da escuridão desta vida".
Joguemos fora o dogma da condenação eterna. Vamos nos "agarrar a tudo o que pode trazer um raio de esperança para dentro da escuridão desta vida".
O senhor foi gentil o suficiente para dizer que eu faço objeto de caricatura a doutrina da regeneração. Se, por regeneração, o senhor quer dizer recuperação, - se quer dizer que ocorre um momento na vida de um jovem em que ele sente o toque da responsabilidade, e deixa seus caminhos errados, e conclui que deve agir como um homem honesto, - se é isto o que o senhor considera regeneração, então eu sou um crente.
Mas esta não é a definição de religião na sua crença –
esta não é a regeneração cristã. Existe um meio misterioso, supernatural,
miraculoso e invisível, chamado, acho eu, Espírito Santo, que penetra e
modifica o coração do homem, e sua misteriosa aparência é como o vento, aparentemente
sob o controle de ninguém, indo e vindo conforme lhe apraz. Esta é a visão
ilógica e absurda da regeneração que eu ataco.
O senhor me perguntou como se explica que um peão hebreu, nascido nas montanhas da Galiléia, tinha uma sabedoria superior à de Sócrates, Platão, Confúcio e Buda, e conclui dizendo que "este é o maior de todos os milagres, - que este ser tenha vivido e morrido na face da terra."
Eu não posso concordar com sua conclusão, porque lembro que Jesus não disse nada em favor das relações familiares. Na verdade, na sua vida ele lançou descrédito sobre o casamento. Ele nada disse contra a instituição da escravidão; nada contra a tirania dos governos, nada sobre a defesa dos animais; nada sobre educação, sobre o progresso intelectual; nada sobre arte. Não fez nenhuma declaração científica, e nada disse sobre os direitos e deveres das nações.
O senhor poderia responder que tudo isso está incluído no ensinamento "Fazei aos outros o que desejas para vós". Ou "não resisti ao mal". Só que é necessário mais que isto para educar a espécie humana. Isto não é o suficiente para ensinar ao seu filho ou aluno "faça o correto". A grande questão ainda fica: O que é o correto? Não há nenhuma sabedoria na idéia de não resistir ao mal. Força sem misericórdia é tirania. Misericórdia sem força não é nada mais do que desperdício de lágrimas. Tire da sua virtude o direito de autodefesa, e o mal se tornará o senhor do mundo.
Deixe-me perguntar como foi possível que um rude tratador de camelos, um homem sem família, sem riquezas, tornou-se mestre de milhões de seres humanos? Como explicar que ele liderou e conquistou mais da metade do mundo cristão? Como explicar que em milhares de campos com a cruz foram derrotados com sangue, enquanto que a bandeira com a lua crescente triunfou? Como explicar que até hoje a bandeira desse impostor tremula sobre o sepulcro de Cristo? Foi isso um milagre? Maomé era também inspirado?
O que o senhor acha de Confúcio, cujo nome é conhecido
onde o sol se põe? Era ele inspirado – este homem que por séculos reinou
sozinho, e que é considerado o maior por centenas de milhares de seus
compatriotas? O que acha de Buda, - em vários aspectos a maior religião que já
surgiu na terra, a mais profunda, a mais intelectual de todas; aquele que era
grande o suficiente muito antes de Jesus ter nascido, para declarar que os
homens são todos irmãos, e que a inteligência é a única maneira de elevar a
humanidade?
O que acha dele, que teve mais seguidores do que qualquer
outro? O senhor quer dizer que todo sucesso é divino?
O que acha então de Shakespeare, filho de pais que nem
sabiam ler e escrever, nascido da ignorância e amor, nutrido no seio da pobreza
– o que acha dele, um dos grandes da raça humana, em cujas asas da imaginação
encheram os horizontes da humanidade; Shakespeare, que conhecia como poucos o
coração humano, conhecia todas as profundezas da dor, todas as alturas da
alegria, e em cuja mente estava o fruto do saber, da experiência, e da profecia
de tudo; Shakespeare, cujas palavras sábias, profundas e belas aumentaram a
inteligência e civilização do homem? Como explica este milagre? O senhor
acredita que algum fundador de religião poderia ter escrito o "Rei
Lear" ou "Hamlet"? Será que a Grécia poderia, de alguma maneira,
produzir um escritor que pudesse ser o autor de "Troilos e Cressida"?
Haveria dentro da toda poderosa Roma algum intelecto capaz de ter escrito Júlio
César? Não é "Antônio e Cleópatra" tão egípcio quanto o Nilo? O que o
senhor acha deste homem, em cujas veias pareciam correr o sangue de todas as
raças e em cuja mente estava toda a poesia e filosofia do mundo?
O senhor me pede para dizer minha opinião sobre Cristo. Deixe-me dizer, de uma vez por todas, que pelo homem Cristo, - pelo homem que, na escuridão gritou: "Meu Deus, por que me abandonaste?" – por este homem tenho o maior respeito. E deixe-me dizer, de uma vez por todas, que o lugar onde um homem morreu por um homem é um local sagrado. Por aquele grande e sereno peão da Palestina, eu pago alegremente o tributo de admiração e minhas lágrimas. Ele foi um revolucionário do seu tempo. Atrás da máscara teológica, e apesar das interpolações do novo testamento, eu vejo um grande e genuíno homem.
Acho difícil ver como o senhor pode defender constantemente o curso percorrido por Cristo. Ele atacava com amargura "a religião dos outros". Não ocorria a ele que havia "um algo muito cruel no seu tratamento das crenças de seus conterrâneos." Ele denunciou o povo escolhido por Deus como uma "geração de víboras" ele os comparou com "sepulcros caiados".
Como o senhor defende a conduta dos missionários? Eles
viajam a outras terras, atacam as crenças sagradas dos outros. Eles dizem aos
povos da Índia e outros povos pagãos não só que sua religião é uma mentira, não
só que seus deuses são mitos, mas que os ancestrais desses povos – seus pais e
mães, que nunca ouviram de Deus e da bíblia, ou de Cristo – estão todos na
perdição. Não seria isto uma maneira cruel de tratar a crença de um semelhante?
Uma religião que não é tão humana e robusta para aceitar ataques com um sorriso de segurança não é merecedora de um lugar no coração e na mente. Uma religião que procura refúgio no sentimentalismo, e que grita: "Por favor, eu lhe peço, não me diga nenhuma verdade destinada a ferir meus sentimentos!" só é adequada para hospícios.
O senhor diz que Cristo era um Deus, que ele era infinito em poder. Quando em Jerusalém, ele curava os doentes, levantou alguns poucos mortos, abriu os olhos de alguns cegos. Será que ele fez essas coisas porque amava a humanidade, ou terá ele feito esses milagres para estabelecer o fato de que ele era o verdadeiro Cristo?
Se ele era movido pelo amor, será que ele não é hoje tão
poderoso quanto naquele tempo? Por que ele não abre os olhos dos cegos agora?
Por que ele não limpa um leproso instantaneamente, com um toque? Se o senhor
tivesse o poder de dar a luz aos cegos, curar a lepra, e não fizesse isso, o
que poderia ser dito do senhor? Qual é a diferença entre aquele que pode, mas
não cura, e aquele que causa doenças?
Um dia desses, visitei uma bela moça – uma paralítica e, no entanto seu espírito bravo e alegre contrastava com o desastre que era seu corpo, uma manhã num deserto. O que eu poderia pensar de mim mesmo, se eu tivesse o poder de, numa palavra, fazer o sangue circular novamente nos seus membros atrofiados, dando-lhes vida novamente, e me recusasse?
Um dia desses, visitei uma bela moça – uma paralítica e, no entanto seu espírito bravo e alegre contrastava com o desastre que era seu corpo, uma manhã num deserto. O que eu poderia pensar de mim mesmo, se eu tivesse o poder de, numa palavra, fazer o sangue circular novamente nos seus membros atrofiados, dando-lhes vida novamente, e me recusasse?
A maioria dos teólogos parece imaginar que a virtude nasceu e é filha da religião.
Religião tem a ver com o sobrenatural. Ela define nossos deveres e obrigações, ela prescreve alguns caminhos de conduta que permitirão a chegada a outro mundo. Os resultados aqui são apenas incidentes. As virtudes são profanas. Elas nada têm a ver com o sobrenatural, e não são parentes de nenhuma religião.
Um homem pode ser honesto, corajoso, caridoso,
industrioso, hospitaleiro, amoroso e puro, sem ser religioso – ou seja, sem
nenhuma crença no sobrenatural; e um homem pode ser o extremo oposto e ao mesmo
tempo um sincero crente numa religião – ou seja, na existência de um Deus paternal,
a inspiração das escrituras, e a divindade de Jesus Cristo. Um homem que
acredita na bíblia pode ser ou não uma pessoa boa para sua família, e um homem
que é bom e carinhoso com sua família pode ser ou não um crente na bíblia.
Para que o senhor perceba o efeito da crença na formação do caráter, só é necessário chamar sua atenção para o fato de que sua bíblia mostra que o diabo em pessoa é um crente na existência de Deus, na inspiração das escrituras, e na divindade de Jesus Cristo. Ele não apenas acredita nestas coisas, mas também, apesar disso, ele continua mau.
Para que o senhor perceba o efeito da crença na formação do caráter, só é necessário chamar sua atenção para o fato de que sua bíblia mostra que o diabo em pessoa é um crente na existência de Deus, na inspiração das escrituras, e na divindade de Jesus Cristo. Ele não apenas acredita nestas coisas, mas também, apesar disso, ele continua mau.
Poucos religiosos têm sido maus o bastante para destruir toda a bondade natural do coração humano. Na mais tenebrosa noite da superstição, algumas virtudes naturais, como estrelas, têm sido visíveis no céu. O homem tem cometido todos os crimes em nome do cristianismo – e crimes que envolvem a participação de todos os outros. Aqueles que trabalharam com o chicote, e os que fizeram dos açoites um negócio legal, eram cristãos.
Aqueles que se dedicavam ao negócio do tráfico negreiro
eram crentes num Deus pessoal. Havia um navio negreiro chamado
"Jeová". Aqueles que perseguiam os negros fugitivos com cães,
seguindo a estrela do norte, rezavam fervorosamente a Deus para que fossem bem
sucedidos na empreitada, e os ladrões de crianças logo antes de dormir,
encomendavam suas almas aos cuidados do Altíssimo.
Como o senhor mencionou os apóstolos, deixe-me lembrar de um incidente.
O senhor lembra da história de Ananias e Safira. Os apóstolos, não possuindo nada, concebiam a idéia de que compartilhavam tudo entre si. Seus seguidores que possuíam algumas coisas deveriam vender o pouco que tinham, e dar o apurado para os financeiros teológicos. Parece que Ananias e Safira possuíam uns pedaços de terra.
Eles a venderam e depois de fazer o negócio, não estando ainda satisfeitos, concluíram em deixar um pouco – só o suficiente para evitar a fome, se os bons e piedosos banqueiros desaparecessem.
Quando Ananias pegou o dinheiro, ele foi perguntado se ele tinha mantido uma parte do pagamento. Ele negou. Foi quando Deus, o piedoso, o matou. Quando o corpo foi removido, os apóstolos procuraram sua mulher. Eles não disseram que seu marido havia sido morto. Eles armaram uma armadilha para sua vida. Nenhum deles foi nobre o suficiente para defendê-la; eles fizeram-na acreditar que seu esposo havia contado a história e que ela era livre para concordar com o que ele havia dito. Ela provavelmente concordou que eles estavam dando mais do que podiam dar e, por instinto feminino, tentou ficar com um pouco. Ela negou que tivessem ficado com parte do dinheiro da venda. Naquele momento um raio da vingança divina trespassou seu coração.
Como o senhor mencionou os apóstolos, deixe-me lembrar de um incidente.
O senhor lembra da história de Ananias e Safira. Os apóstolos, não possuindo nada, concebiam a idéia de que compartilhavam tudo entre si. Seus seguidores que possuíam algumas coisas deveriam vender o pouco que tinham, e dar o apurado para os financeiros teológicos. Parece que Ananias e Safira possuíam uns pedaços de terra.
Eles a venderam e depois de fazer o negócio, não estando ainda satisfeitos, concluíram em deixar um pouco – só o suficiente para evitar a fome, se os bons e piedosos banqueiros desaparecessem.
Quando Ananias pegou o dinheiro, ele foi perguntado se ele tinha mantido uma parte do pagamento. Ele negou. Foi quando Deus, o piedoso, o matou. Quando o corpo foi removido, os apóstolos procuraram sua mulher. Eles não disseram que seu marido havia sido morto. Eles armaram uma armadilha para sua vida. Nenhum deles foi nobre o suficiente para defendê-la; eles fizeram-na acreditar que seu esposo havia contado a história e que ela era livre para concordar com o que ele havia dito. Ela provavelmente concordou que eles estavam dando mais do que podiam dar e, por instinto feminino, tentou ficar com um pouco. Ela negou que tivessem ficado com parte do dinheiro da venda. Naquele momento um raio da vingança divina trespassou seu coração.
O senhor poderia fazer-me a gentileza de dizer sua opinião sobre os apóstolos, baseado nesta história? Certamente assassinato é um crime pior que desonestidade.
O senhor tem sido bom o suficiente, e de modo paternal, para me dar um aviso. O senhor diz que devo suavizar minhas palavras, e que minhas palavras teriam mais peso se não fossem tão fortes. O senhor realmente deseja que eu adicione peso às minhas palavras? O senhor realmente deseja que eu seja bem sucedido? Se o comandante de um exército manda um aviso ao comandante oponente, dizendo que ele está atirando muito alto, o senhor acredita que o general seria enganado? O senhor acha que ele mudaria sua atitude em respeito à mensagem?
Eu nego que "os peregrinos atravessaram o mar para encontrar a liberdade de adorar Deus na floresta do fim do mundo". Eles não vieram interessados em liberdade. Nunca entrou em suas mentes que outros homens tivessem a mesma liberdade de adorar Deus de acordo com o que ditavam suas consciências, que os próprios peregrinos tinham. No momento em que tivessem poder, eles estariam dispostos a açoitar, queimar e aprisionar. Eles não acreditavam em liberdade religiosa. Eles não tinham mais consciência de liberdade religiosa do que Jeová.
Eu não disse que não há espaço no mundo para heróis e
mártires. Pelo contrário, eu declaro que a liberdade que nós agora possuímos
foi conquistada para nós por heróis e mártires, e milhares desses mártires
foram queimados, esfolados vivos, ou despedaçados, ou assassinados na igreja de
Deus. O heroísmo foi demonstrado no combate às hordas da superstição religiosa.
Giordano Bruno foi um mártir. Foi um herói. Ele não acreditava em nenhum Deus, em nenhum céu, em nenhum inferno, e morreu na fogueira. Não havia nenhum Deus para agradar, nenhum céu para esperar, nenhum inferno para temer e, no entanto, ele morreu no fogo, simplesmente para preservar a brancura imaculada da sua alma.
Por centenas de anos todo homem que atacasse a igreja era um herói. A espada do cristianismo foi molhada por muitos séculos com o sangue dos mais nobres. O cristianismo estava disposto, com o chicote e com a corrente e fogo, para banir a liberdade da terra.
Nem é verdade que "a vida em família murcha sob o sorriso – meio piedoso, meio sarcástico – com o qual eu olho para a adoração em família".
Aqueles que acreditam na existência de Deus, a acreditam que devem a esse divino ser pelos poucos raios de luz de sua existência, e agradecem a Deus pelo pouco de alegrias que possuem, têm o meu inteiro respeito. Nunca exclamei uma palavra contra um espírito de gratidão. Eu compreendo o espírito de um homem que reúne sua família depois de uma tempestade, ou depois do escorbuto, ou depois de uma longa doença, e abre seu coração em agradecimento ao suposto Deus que protegeu sua vida. Compreendo o espírito do selvagem que agradece seu ídolo de pedra, ou seu fetiche de madeira. Não é a sabedoria de um ou de outro que eu respeito, mas a bondade e a gratidão, que provocam a oração.
Eu acredito na família. Acredito na família vida; e uma de minhas objeções ao cristianismo é que ele divide a família. Sobre esta questão eu falei centenas de vezes, e digo novamente, que o topo da árvore é sagrado, desde as mais finas fibras que sentem a terra macia, úmida e fria, até a mais alta flor, que floresce em direção ao sol, e que espalha seu perfume no ar. O lar onde a virtude impera com amor é como a açucena com o coração de fogo, a mais branca flor de todo este mundo.
O que o cristianismo fez, nos primeiros séculos, pelo lar? O que os conventos e monastérios, e o que a glorificação do celibato tem feito pela família? O senhor não sabe que o próprio Jesus ofereceu recompensas neste mundo e eterna felicidade num outro para aqueles que deixassem suas esposas, e filhos, e o seguissem? Que efeito tem esta promessa para a vida em família?
Na verdade a família é considerada como nada. O Cristianismo ensina que só há uma família, a família de Cristo, e que todas as outras relações é nada comparadas a isto. O cristianismo ensina o marido a desertar a esposa, a esposa a desertar o marido, filhos a desertar os pais, pelo propósito miserável e egoísta de salvar suas almas secas e pequenas.
É muito melhor para um homem amar seus semelhantes do que amar a Deus. É melhor amar a esposa e filhos do que amar Cristo. É muito melhor servir seu semelhante do que servir a um Deus – mesmo se Deus existir. A razão é palpável. Nos não podemos fazer nada por Deus. Nós podemos fazer algo por nossas esposas e filhos. Podemos dar o brilho do sol de uma vida. Podemos plantar flores no caminho dos outros.
É verdade que sou inimigo do sábado ortodoxo. É verdade que condeno que se dê um sétimo de seu trabalho para a superstição religiosa. Todo o projeto da sua religião pode ser compreendido por qualquer homem inteligente em um dia. Por que motivo ele precisaria passar um sétimo dos seus dias ouvindo tudo, mais e mais vezes?
Nada é mais triste do que o sábado. O mecânico que trabalha durante a semana no calor e na poeira, o homem trabalhador que tem dificuldades em manter sua alma no corpo, a pobre mulher que costura para o rico, pode ir para a vila como o senhor descreve. Eles ouvem o bater dos sinos, e o que é que eles ouvem na igreja da aldeia? Ouvem que Deus é o pai da espécie humana; isto é tudo?
Se fosse tudo, o senhor não ouviria uma só objeção dos
meus lábios. Mas isso não é tudo. Se todos os pastores dissessem:
"Eliminem o mal de sua vida; seu Pai no céu conta suas lágrimas; o tempo
virá em que dor e morte e lamento serão palavras desconhecidas"; eu
deveria ouvir o resto. O que mais o pastor diz às pobres pessoas que ouvem o
bater dos sinos? Ele diz: "O menor pecado merece castigo eterno".
"A grande maioria dos homens está destinada a sofrer a ira de Deus para
sempre". Ele enche o presente com medo e o futuro com fogo. Ele tem o céu
para uns poucos, e o céu para a maioria." Ele descreve o pequeno caminho
de grama que leva ao céu, no qual os viajantes andam juntos, e a grande avenida
aberta com numerosos pés, que leva ao sofrimento eterno.
Esses sábados são imorais. Esses pastores são os verdadeiros selvagens. Eu aboliria alegremente esses sábados. Eu os transformaria com prazer num dia feriado, um dia de descanso e de paz, um dia para nos encontrarmos com a esposas e filhos, um dia para trocar idéias com os vizinhos; e eu gostaria de ver as igrejas, nas quais esses sermões acontecem, transformadas em locais de diversões. Eu gostaria de ver os ecos dos sermões – as corujas e morcegos entre os predadores, as serpentes entre fendas e cantos – expulsas pela música de Beethoven e Wagner, com alegria eu veria os catecismos em que se ensina a doutrina do tormento eterno transformados em dança alegre nos verdes das aldeias.
A musica refina. A doutrina da punição eterna degrada. A ciência civiliza. Superstição olha saudosamente para a selvageria.
O senhor não acredita que a moralidade possa ser suspensa sem a sanção da religião.
O cristianismo tem vendido, e continua a vender crime a crédito. Ele tem , e ainda ensina, que há perdão para tudo. Claro que ele ensina a moralidade. Ele diz: "Se errares, há uma maneira de escapar: acredita no Senhor Jesus Cristo e serás salvo". Insisto em dizer que esta religião não é uma contenção. É muito melhor ensinar que não há perdão, e que cada ser humano deve assumir as conseqüências dos seus atos.
O primeiro grande passo pela recuperação nacional é a aceitação universal da idéia de que não há escapatória das conseqüências de nossos atos. O jovem que veio do interior para a cidade cheia de tentações pode ser contido pelo pensamento na mãe e no pai. Esta é uma contenção natural. Ele pode ser contido tendo consciência de que uma coisa é má por causa das suas conseqüências, e que fazer o mal é sempre errado.
Não posso conceber um homem mais disponível às tentações
porque ele ouviu uma das minhas preleções em que eu disse que o único bem é a
felicidade – que a única maneira de atingir este bem é fazer o que ele acredita
que é correto.
Não acredito que seu caráter moral sairá enfraquecido pela
idéia de que não haverá escapatória das conseqüências de seus atos. O senhor
parece acreditar que ele imediatamente se perderá – que ele seguirá as lâmpadas
até os motins da paixão. O senhor acha que a bíblia consegue contê-lo? O senhor
acha que conseguiria preservá-lo recomendando que lesse as vidas de Abraão, de
Isaque, e de Jacó, e os outros santos polígamos do Velho Testamento?
Deveria ele ler a vida de Davi e de Salomão? O senhor acha
que isto o evitaria cair em tentação? Não seria melhor encher o coração desse
jovem com fatos dos quais ele soubesse as conseqüências físicas? O senhor
considera a ignorância como o fundamento das virtudes? Será o medo o arco que
apóia a natureza moral do homem?
O senhor parece acreditar que existe perigo no conhecimento, e que os melhores químicos estão em perigo de envenenar a si mesmos.
O senhor afirma que rir da religião está a um passo de rir da moralidade, e mais um outro passo e chegamos ao vicio e devassidão.
Os judeus tinham a mesma opinião dos ensinamentos de Cristo. Eles riam da sua religião. Os cristãos têm tido a mesma opinião dos filósofos. Deixe-me dizer-lhe novamente – deixe-me dizer de uma vez por todas – que moralidade nada tem a ver com religião. Moralidade não depende do sobrenatural. A moralidade não anda com as muletas dos milagres. Moralidade apela para a experiência da humanidade. Ela não tem nada a ver com fé, nada a ver com livros sagrados. Moralidade depende de fatos, é algo que pode ser visto, que pode ser sabido, o produto do qual pode ser estimado. Ela não necessita de padres, cerimônias, números. Ela acredita na liberdade da mente humana. Ela pede investigação. Ela se fundamenta na verdade. Ela é inimiga de toda religião, porque ela tem a ver com este mundo, e apenas com este.
Minha intenção é eliminar o medo do mundo. O medo é o carcereiro da mente. O cristianismo, a superstição – ou seja, o sobrenatural – faz de cada mente uma prisão e cada alma um condenado. Sob o governo de uma divindade pessoal, conseqüências dependem da natureza de punições e recompensas. Sob o governo da natureza, aquilo que o senhor chama de punição e recompensa são apenas conseqüências. A natureza não pune. A natureza não recompensa. A natureza não tem propósitos. Quando a tempestade vem, eu não penso: "Isto foi trazido por um tirano". Quando o sol brilha, eu não digo:"Isto foi trazido por um amigo". Liberdade significa liberdade de desígnios pessoais. Isto não significa escapar de relações que temos com outros fatos na natureza.
Eu acredito nas restrições causadas pelos efeitos da
liberdade. A temperança anda de mãos dadas com a liberdade. Remover uma
corrente do corpo adiciona uma maior responsabilidade sobre a alma. A liberdade
disse ao homem: "Tu te feres ou proteges. Tu melhoras ou pioras teu
bem-estar. É uma questão de inteligência. Não é necessário te curvares diante
de um tirano ou a uma infinita bondade. Tu és responsável por ti mesmo, e por
aqueles que feres, e a ninguém mais."
Eu elimino o medo de mim mesmo acreditando que não há nenhuma força além de mim que me acuda nas dificuldades, e acreditando, como acredito, que não há nenhuma força além ou abaixo de mim que me prejudique nas dificuldades. Não acredito que sou o fruto do acidente, ou que eu possa ser feito em pedaços pela força cega da natureza. Não há acidentes, não há intenções. O que tem de acontecer acontece. O presente é o filho necessário de todo o passado, e é pai do futuro.
Será que ajuda tirar o medo do homem ensiná-lo que há um Deus que o ajuda nas dificuldades? Qual evidência se tem para fundamentar esta crença? Quando algum Deus ouviu a prece de um homem? A água cai, o frio congela, a enchente destrói, o fogo queima, os aguaceiros caem – quando foi a prece do homem atendida?
Será que o mundo religioso de hoje está desejoso de testar a eficiência da reza? Só há uns anos atrás ela foi testada nos EUA. Os cristãos do cristianismo, de comum acordo, caíram de joelhos e pediram a Deus para salvar a vida de um homem. O senhor sabe o resultado. O senhor sabe tanto quanto eu que as forcas da natureza produzem o bem e o mal igualmente. O senhor sabe que as forças naturais destroem os bons e os maus igualmente. O senhor sabe que o raio sente o mesmo prazer em fulminar o homem honesto que sente, ou sentiria um assassino com a faca, atacando o seio da inocência.
Será que Deus ouviu as orações dos escravos? Ouviu ele as orações dos filósofos e patriotas aprisionados? Ouviu as rezas dos mártires, ou permitiu que canalhas, que se diziam seus seguidores, amontoassem lenha para destruir o glorioso corpo dos mártires? Terá ele permitido que as chamas destruíssem aqueles cujos corações estavam nele? Por que um homem dependeria da bondade de Deus que criou milhões para sofrer a dor eterna?
A fé que o senhor diz ser sagrada, - "sagrada como o
mais delicado sentimento de amor humano" é a fé de que quase todos os seus
semelhantes serão perdidos. Será que o homem honesto deverá abster-se de
denunciar esta fé porque aqueles que a professam dizem que seus sentimentos são
feridos?
O senhor me diz: "Existe um inferno. Um homem dizendo
o que o senhor diz vai para o inferno quando morrer". Eu respondo:
"Não há inferno. A bíblia que ensina isto não é verdadeira." E o
senhor diz: "Como pode o senhor ferir meus sentimentos?"
O senhor parece acreditar que alguém que ataca a religião de seus pais está desrespeitando seu pai e sua mãe.
Os primeiros cristãos estavam também desrespeitando seus pais e mães? Os pagãos que abraçaram o cristianismo eram filhos e filhas sem coração? O que diria o senhor dos apóstolos? Eles também não desprezaram a religião dos pais e mães? Eles não se juntaram àquele que denunciou seu povo como "geração de víboras?" Eles não foram atrás daquele que ofereceu uma recompensa para os que deixassem os pais e mães?
Claro que bastaria você voltar algumas gerações na sua
família para chegar até os Fields que não eram presbiterianos. Logo depois
desta geração surgem os presbiterianos. Eram eles baixos demais, ou infames
demais para desprezar a religião do pai e da mãe? Todos os protestantes do
tempo de Lutero eram desrespeitosos pela religião dos pais. De acordo com sua
idéia, o progresso é um filho pródigo. Se alguém tem de ser inclinado à
religião do pai e da mãe, e se o pai é por acaso, presbiteriano e a mãe
católica, o que ele fará? O senhor não vê que sua doutrina só dá liberdade
intelectual para os fundadores?
Se por cristianismo o senhor considera bondade, espírito de perdão, e a benevolência da qual os cristãos afirmam fazer parte, e a principal parte desta religião peculiar, então eu não concordo com o senhor quando o senhor diz que "Cristo é o cristianismo, e este se sustenta e cai com ele". O senhor estreitou desnecessariamente as fundações da sua religião. Se fosse estabelecido, sem dúvida, que Cristo nunca existiu, todos os valores do cristianismo permaneceriam, e permaneceriam intactos.
Se por cristianismo o senhor considera bondade, espírito de perdão, e a benevolência da qual os cristãos afirmam fazer parte, e a principal parte desta religião peculiar, então eu não concordo com o senhor quando o senhor diz que "Cristo é o cristianismo, e este se sustenta e cai com ele". O senhor estreitou desnecessariamente as fundações da sua religião. Se fosse estabelecido, sem dúvida, que Cristo nunca existiu, todos os valores do cristianismo permaneceriam, e permaneceriam intactos.
Suponha que descobríssemos que Euclides é um mito. A
ciência conhecida como a matemática não sofreria alterações. Não importa quem
pintou ou esculpiu os grandes quadros ou imagens da história, desde que os
tenhamos. Quando alguém que estabeleceu uma verdade desaparece da terra, a
verdade fica. A verdade morre apenas quando esquecida pela mente humana.
Justiça, amor, misericórdia, perdão, honra, todas as virtudes que vicejam no
coração humano, eram conhecidos e praticados muitas eras antes do nascimento de
Cristo.
O senhor insiste que a religião não deixa o homem em "abjeto terror" – não o deixa "na assombrosa escuridão de seu destino".
É possível saber quem será salvo? Pode ler os nomes mencionados nos decretos do Infinito? É possível dizer quem será eternamente perdido? Pode a imaginação conceber um destino pior do que aquele que terão a maioria das pessoas? Como cada ser humano não consideraria "um abjeto terror" sua doutrina? Quantas mulheres sinceras e bondosas estarão hoje em asilos temendo que tenham cometido "um pecado imperdoável" – um crime contra o qual seu Deus tenha decretado o tormento eterno, e mesmo assim tenha falhado em descrever a ofensa?
O senhor insiste que a religião não deixa o homem em "abjeto terror" – não o deixa "na assombrosa escuridão de seu destino".
É possível saber quem será salvo? Pode ler os nomes mencionados nos decretos do Infinito? É possível dizer quem será eternamente perdido? Pode a imaginação conceber um destino pior do que aquele que terão a maioria das pessoas? Como cada ser humano não consideraria "um abjeto terror" sua doutrina? Quantas mulheres sinceras e bondosas estarão hoje em asilos temendo que tenham cometido "um pecado imperdoável" – um crime contra o qual seu Deus tenha decretado o tormento eterno, e mesmo assim tenha falhado em descrever a ofensa?
Pode a tirania ir além disso – decretando a pena da
tortura eterna pela violação de uma lei não escrita, não conhecida, mas mantida
no segredo da infinita escuridão? Como deveria ser bom não saber nada sobre
isso, e não acreditar em nada disso! Como seria melhor não ter nenhum Deus!
Primeiro o senhor vê uma "inteligência infinita ordenando nossas pequenas vidas, de tal modo que até as dificuldades que temos, os que chamam os mais finos elementos do caráter, conduz a uma futura felicidade". Esta é uma velha explicação – tão boa quanto qualquer outra.
A idéia é a de que este pequeno mundo é uma escola, na
qual o homem se torna educado através do sofrimento, - os músculos do caráter
sendo treinado através das distensões dos acidentes. Se é necessário viver esta
vida para desenvolver o caráter, para se tornar digno de um mundo melhor, como
o senhor explica o fato de que bilhões de seres humanos tenham morrido na
infância, perdendo a oportunidade de uma educação e desenvolvimento?
O que o senhor acharia de um professor que matasse a
maioria dos alunos durante o primeiro dia de aulas, antes sequer que eles
tivessem a oportunidade de conhecer a letra A?
O senhor insiste que "há uma força por trás da natureza fazendo o bem."
Se a natureza é infinita, como pode existir uma força fora dela?
Se o senhor quer dizer "uma força fazendo o bem para
que o homem, ao ser civilizado, ao se tornar inteligente, não só tira vantagens
das forças da natureza em seu beneficio, mas também percebe cada vez mais claro
que se ele quer ser feliz, ele deve viver em harmonia com os fatores
circunjacentes, em harmonia com as relações que ele mantém com outras pessoas e
coisas"; se é isto o que quer dizer, então existe "uma força fazendo
o bem". Mas se o senhor quer dizer que há algo de sobrenatural por trás da
natureza que dirige as coisas, então eu insisto que não há nenhuma
possibilidade de haver evidências dessa força.
A história da humanidade mostra que as nações crescem e decaem.
Há um limite para a vida de um povo; de tal modo que pode
ser dito de toda nação morta, que há um período em que elas perdem as fundações
da prosperidade, quando a combinação de inteligência e virtude do povo
constituíam a força de trabalho dos honestos, e que vem uma época em que esta
nação torna-se esbanjadora, e deixa de acumular, quando vivia do trabalho dos
jovens, e passam de poder e glória para fraqueza de velhos tempos, e finalmente
caminha trôpega para a tumba.
A inteligência do homem, guiada por um senso de responsabilidade é a única força que faz a justiça.
O senhor diz que estou levando adiante uma "guerra perdida" e o senhor dá uma explicação afirmando que a religião cristã nasceu dois mil anos antes de mim, e que ela ainda viverá dois mil anos depois da minha morte.
Isto é um argumento? Pode isto convencer até o senhor mesmo? Não poderia Caifás, o alto sacerdote, ter dito o mesmo e Cristo? Não poderia ele dizer: "A religião de Jeová começou dois mil anos antes que o senhor nasceu, e ainda viverá dois mil anos após sua morte"? Não poderia um seguidor de Buda fazer a mesma observação ilógica a um missionário de Andover? Não poderia ele dizer: "O senhor está travando uma batalha perdida. A religião de Buda começou dois mil anos antes do seu nascimento, e milhares de pessoas ainda adoram o grande santuário de Buda".
O senhor insiste em dizer que apenas o que é certo pode sobreviver por dois mil anos? E que a Igreja Católica sobrevive intacta enquanto que reinos e nações perecem? O senhor está se referindo à sobrevivência dos mais aptos?
Não é esta mesma religião que está sobrevivendo aquela que existia na idade média? É esta a mesma religião cristã que fundou a inquisição e inventou os esmagadores de polegares? O senhor não vê nenhuma diferença entre a religião de Calvino e Jonathan Erwards e o cristianismo de hoje? O senhor acha mesmo que é o mesmo cristianismo que vive por todos esses anos? O senhor notou alguma mudança nessas últimas gerações? O senhor se lembra quando cientistas tentaram provar uma teoria citando uma passagem da bíblia, e o senhor sabia que os crentes na bíblia estavam ansiosos em provar que a verdade dos fatos que os cientistas tentavam provar? O senhor sabe que os modelos mudaram? Outras coisas não são medidas pela bíblia, mas a bíblia deve ser submetida a outros testes.
Ela não é mais nosso padrão. Ela deve ser pesada, e está
ficando cada vez mais leve nos nossos dias. O senhor sabe que apenas há uns
anos atrás "o alegre anúncio das boas novas" consistia em
principalmente na descrição do inferno? O senhor sabia que quase todo pastor
inteligente de hoje se envergonha de pregar sobre isto, ou ler sobre isto, ou
falar sobre isto? Houve alguma mudança?
O senhor sabe que apenas alguns pastores hoje acreditam na
"inspiração plena" da bíblia, e que milhares de seguidores hoje são
ensinados que a criação, de acordo com o Gênesis é um erro, e que nunca houve
um dilúvio, e que os erros do velho testamento são considerados apenas como simplesmente
mitos ou enganos?
Até quando o que o senhor chama de cristianismo irá suportar, se ele mudar tão rapidamente no próximo século como mudou no século passado? O que sobrará do sobrenatural?
Não parece possível que pessoas conscientes possam, por muitos anos, acreditar que um ser de infinita sabedoria possa ser o autor do Velho Testamento, que um ser de infinita pureza e bondade apóie a poligamia, a escravidão, e que ele ordenou seu povo escolhido a massacrar seus vizinhos, e que ele ordenou maridos e pais a perseguir esposas e filhas até a morte, por questão de opinião.
Não parece estar dentro da probabilidade da crença que Jeová, o cruel, o ciumento, o ignorante, o vingativo, seja o criador e mantenedor do universo.
Parece provável que a infinita bondade criaria um mundo no qual a vida alimenta a vida, na qual tudo devora e é devorado? Pode existir um fato mais triste do que este: o inocente não estar certo da proteção?
É impossível para mim, acreditar na eternidade da punição. Se esta doutrina é verdadeira, Jeová é louco.
Dia após dia existe lamento entre homens e mulheres, patriotas e mães, moças cujo único crime é que a palavra liberdade floresce nos seus puros e belos lábios, carregados por bestas através da imensidão melancólica das neves siberianas. Esses homens, essas mulheres, essas filhas, vão para o exílio e a escravidão para uma terra na qual a esperança é a morte. Pode parecer possível para o senhor que um "Pai Infinito" veja isto e se sente impassível como um deus de pedra?
E, no entanto, de acordo com sua crença presbiteriana, de acordo com seu livro inspirado, de acordo com seu Cristo, existe um outro processo, no qual os mais nobres, os melhores, nos quais o senhor encontrará os maravilhosos espíritos do mundo, os amantes da espécie humana, os professores dos seus semelhantes, os grandes soldados que lutam pela justiça; este processo de muitos milhões, nos quais o senhor encontrará os mais generosos e os mais bondosos dos filhos e filhas do homem, estão viajando para a Sibéria de Deus, a terra do exílio eterno, na qual a agonia se torna imortal.
Como o senhor pode, como pode um homem de mente e coração, acreditar nesta mentira infinita?
Não há espaço para uma filosofia melhor e mais alta?
Afinal, não é possível que descubramos que tudo foi
necessariamente produzido, que todas as religiões e superstições todos os erros
e todos os crimes, foram todos necessários?
Não é possível que depois desta percepção poderá advir,
não apenas amor e piedade pelos outros, mas absoluta justificação pelo
indivíduo?
Não podemos achar que cada alma, como Mazeppa, sendo
açoitado pelo cavalo da paixão, como Prometeus nas rochas do destino?
O senhor me pede para considerar a "segunda sóbria idéia". Eu lhe peço para considerar a primeira, e se eu conseguir, o senhor jogará fora sua crença presbiteriana; o senhor instantaneamente perceberá que aquele que cometer o menor dos crimes não mais merecerá a danação eterna, assim como aquele que fizer o menor dos benefícios não merecerá a recompensa eterna; o senhor estará convencido de que um Deus infinito que criou bilhões de criaturas sabendo que eles sofrerão durante todos os incontáveis anos é um demônio infinito; o senhor ficará satisfeito que a bíblia, com sua filosofia e suas tolices, com sua bondade e sua crueldade, é apenas uma obra humana, e que o sobrenatural não existe e não pode existir.
O senhor me pede para considerar a "segunda sóbria idéia". Eu lhe peço para considerar a primeira, e se eu conseguir, o senhor jogará fora sua crença presbiteriana; o senhor instantaneamente perceberá que aquele que cometer o menor dos crimes não mais merecerá a danação eterna, assim como aquele que fizer o menor dos benefícios não merecerá a recompensa eterna; o senhor estará convencido de que um Deus infinito que criou bilhões de criaturas sabendo que eles sofrerão durante todos os incontáveis anos é um demônio infinito; o senhor ficará satisfeito que a bíblia, com sua filosofia e suas tolices, com sua bondade e sua crueldade, é apenas uma obra humana, e que o sobrenatural não existe e não pode existir.
Por sua personalidade, eu tenho os maiores considerações e respeito, e eu lhe peço para não poluir as almas das crianças, para não esbofetear a face das mães, pregando uma crença que poderia ser proferida num hospício. Não faça dum berço um objeto tão terrível como um esquife. Pregue, eu lhe peço, o evangelho da Hospitalidade Intelectual – a liberdade de pensamento e da fala. Tire o medo dos corações gentis. Tenha misericórdia dos seus semelhantes. Não leve para o hospício as mães em cuja face as lágrimas estão caindo sobre os rostos pálidos dos que morreram na descrença. Tenha piedade deste mundo de erros, sofrimento de choro. Não proclame como se fossem "as alegrias das boas novas" que uma Aranha Infinita está tecendo suas teias para capturar as almas dos homens.
Robert G. Ingersoll
UMA
ÚLTIMA PALAVRA PARA ROBERT G. INGERSOLL
(1887)
Meu caro
Coronel Ingersoll:
Li sua resposta à minha carta aberta uma meia dúzia de vezes, e cada vez que
leio aumenta minha admiração pela sua habilidade de advogado. É escrita com
grande ingenuidade, e fornece provavelmente um argumento tão completo quanto o
argumento da fé (ou falta de fé) que há no senhor. Certamente o senhor
considera irrespondível, e assim parece para as pessoas que são predispostas a
pensar desta maneira. Para citar uma frase informal do Sr. Lincoln, na qual
existe mais sabedoria do que ironia, "para aqueles que gostam desse tipo
de coisa, não espanta que isso é o tipo de coisas que eles apreciam".
O senhor
pode responder que nós, que nos agarramos à fé de nossos pais estamos tendo
atitude prejulgada, e isto seria a razão de não nos impressionarmos com seus
apelos. Eu não nego uma forte inclinação neste sentido, e na verdade nosso
interesse real é o mesmo – chegar à verdade; portanto, tenho tentado dar peso a
qualquer argumento que haja no meio de tanta eloqüência; mas devo confessar
que, apesar de tudo, permaneço na mesma situação mental de antes. Com toda a
boa vontade que eu possa trazer para a questão, eu não encontro, revisando
minha carta aberta, nenhuma sentença para ser mudada, ou retirada; e estou
disposto a deixá-la como minha Declaração de Fé – para ficar lado a lado com
sua resposta, para que homens honestos julguem entre nós. Eu só preciso de mais
umas palavras para deixar de lado o assunto.
O senhor parece um pouco perturbado porque alguns dos meus colegas o vêem como
um monstro por causa da sua descrença.
Certamente
eu não aprovo esta linguagem, apesar deles dizerem que esta é a única palavra
que acham adequada à sua ferocidade nos ataques contra aquilo que consideram de
mais sagrado. O senhor se tornou um gladiador, e quando desce à arena, o senhor
desfere golpes violentos, que provocam outros golpes, em retorno. Na sua
resposta o senhor revela uma particular animosidade contra os presbiterianos.
Seria porque o senhor foi criado nesta crença, e no qual seu pai, que o senhor
cita com filial respeito e afeição, foi um honrado pastor? O senhor até se
refere a "um Deus presbiteriano!", como se nós tivéssemos nos
apropriado do Ser Supremo, ou como se nos considerássemos objeto especial do
Seu favor.
Existe
algum motivo para esta visão estreita? Pelo contrário, quando dobramos nossos
joelhos para o nosso Criador, trata-se do Deus e Pai de todos os seres humanos,
e a expressão que o senhor se permite usar, só pode ser considerada como uma
grosseira ofensa. Era preciso esta grosseria contra a denominação religiosa na
qual o senhor nasceu?
Isto pode explicar e o senhor não parece totalmente capaz de entender, as
razões pelas quais o senhor certas vezes é tratado com certos adjetivos pela
imprensa e pelo público. O senhor se sente perseguido por suas opiniões. Mas
existem outros que têm as mesmas opiniões, mas sem ofensas. Não é porque o
senhor expressa suas opiniões.
Ninguém
negaria a mesma liberdade que é citada por Huxley ou Herbert Spencer. Não é
porque o senhor exercita sua liberdade de julgamento ou de expressão, mas pela
maneira como o senhor ataca os outros, tomando sua fé de todas as maneiras
ridículas, e falando daqueles que professam a fé como se fossem desonestos ou
tolos. Não é da natureza humana não se ressentir de tais acusações, as quais,
por mais que lhe pareçam incríveis, são preciosas para eles.
Daí eles
o vêem como um rude antagonista; e quando o senhor os choca com suas
expressões, como citei, o senhor merece linguagem dura em resposta. Eu não os
acompanho nisso porque eu o conheço, e aprecio aquele seu outro lado do senhor
que é humano, delicado e cavalheiro. Portanto, quando reconheço estas melhores
qualidades, devo acrescentar com toda franqueza que sou compelido a olhar para
o senhor como um homem tão amargurado contra a religião que o senhor não pode
pensar nela sem ser associando-a a fanatismo, hipocrisia; com este estado de
espírito é difícil para o senhor julgar honestamente os argumentos para sua
verdade.
Eu concordo com o senhor que a razão nos deu para se exercer, e quando o homem
procura a verdade, sua mente deveria ser, como o que Darwin era, "tão
livre do preconceito como a bússola de um marinheiro". Mas se ele é
perturbado pela paixão de tal maneira que ele não consegue ver as coisas
verdadeiramente, então ele é responsável. É o elemento moral somente o que faz
a responsabilidade. Nem eu acredito que algum homem será julgado neste mundo ou
em outro por aquilo que não envolve um julgamento moral errado.
De acordo com sua declaração comovente "O Deus que o senhor adora, de
acordo com sua crença, tortura (!) por toda a eternidade o homem que tem uma
dúvida honesta", não produz o efeito desejado, simplesmente porque eu não
afirmei, nem acredito em tal ser.
Eu
acredito é que no mundo futuro, todo homem será julgado pelas ações feitas por
seu corpo, e que o julgamento, como quer que seja, será transparentemente
justo. Deus é mais misericordioso do que o homem. Ele não deseja a morte dos
maus. Jesus perdoou, quando os homens condenariam, e qualquer que seja o
destino da alma humana, nunca será correto afirmar que o Juiz Supremo seja
carente de justiça ou de misericórdia. Isto eu enfatizo porque o senhor se
ocupa tanto da questão da retribuição, dando a esta questão uma atenção tão
constante, que é quase exclusiva.
Em
qualquer assunto que o senhor aborde, sempre volta a esta questão, como uma
nuvem negra que escurece o horizonte, lançando sua sombra sobre a vida que
existe e está por vir. Suas críticas a esta crença "desumana" são tão
intensas que fica a impressão de que religião se resume a isto; é toda ela é
ódio e horror. Mas o senhor está considerando uma parte como o todo.
Religião
é um vasto sistema, do qual este é apenas um aspecto: esta é apenas uma
doutrina dentre tantas; em entre muitos que não negariam ser verdadeiros cristãos,
nós concordam inteiramente com ela, ou apenas na forma modificada, enquanto que
com todo o coração eles aceitam e professam a religião que Cristo trouxe para o
mundo.
O arcebispo Farrar da abadia de Westminster, o mais eloqüente pregador da
Igreja da Inglaterra, escreveu um livro intitulado "Esperança
Eterna", no qual ele argumenta, através da razão e da bíblia, que esta
vida não é o tudo, ou o fim de tudo na provação humana. Mas que numa vida
futura haverá outra oportunidade, quando muitos milhões, tornados mais sábios
pela experiência infeliz, retornarão mais uma vez para os caminhos da vida; de
tal modo que, no fim, todos os seres humanos, com exceção, talvez, de uns
poucos que se mantiverem irredutíveis, despertarão e serão feitos felizes para sempre.
Outros
olharão para ‘morte eterna’ como se fosse meramente a extinção do ser, enquanto
que a imortalidade é a recompensa de uma preeminente virtude, interpretando,
neste sentido, as palavras, "O pagamento do pecado é a morte, mas o
presente de Deus é a eterna vida, através de Jesus Cristo, nosso Senhor."
A última
visão é recomendada ao senhor, como uma aplicação da "sobrevivência dos
mais aptos", a um outro mundo, sendo permitido aos inúteis, aos maus
incuráveis da espécie humana a morte eterna, (um fim que não deverá provocar
terrores no senhor, já que o senhor vê isso como o fim natural de todas as
pessoas), enquanto que aos bons será permitido viver eternamente. A aceitação
de qualquer destas teorias poderá aliviar sua mente desses "horrores da grande
escuridão", que parece vir à tona quando o senhor fala de retribuição no
além túmulo.
Mas aceitando toda a liberdade aos outros, não posso me livrar desta severa e
teimosa verdade. Para mim, o mal moral do universo é uma tremenda realidade, e
não vejo como limitá-lo sem um longo tempo. Para mim a retribuição é uma parte
necessária da lei Divina. Uma lei sem uma penalidade não é lei. Mas eu possuo o
argumento para isso não na bíblia, mas no principio o qual o senhor reconhece.
O senhor diz:
"Não
há punições, não há recompensas: há conseqüências."
Muito
bem, consideremos as "conseqüências", e vejamos até onde elas nos
levam. Quando um homem, através do vício, reduz seu corpo a um destroço, e sua
mente à idiotia, o senhor diz que isso são conseqüências da sua vida viciada.
Seria arranhar a língua dizer que esta é sua punição e não menos que punição
auto-infligida?
Para o pobre sofredor que vive no hospício, não importa muito como o chamemos,
desde que esteja experimentando as agonias do inferno. E aqui sua teoria é das
‘conseqüências’ se seguida à risca, levará o senhor para muito mais longe.
Porque se o homem vive depois da morte, e mantém sua identidade pessoal, não
poderíamos deduzir que as conseqüências desta vida o acompanhariam na outra? E
se sua existência é imoral, não seriam suas conseqüências imorais também? Não
seria isto retribuição infinita?
Mas o senhor afirma que o efeito moral da retribuição é destruído pela maneira
fácil de escapar da pena. Ele só teria de se arrepender, e estaria restaurado à
mesma condição anterior, como se ele nunca houvesse pecado. Não estendo desta
maneira. "Eu acredito na remissão dos pecados," mas, o perdão não
reverte o curso da natureza; não subverte o curso da lei natural; um bêbado
pode se arrepender, quando chega ao fim da vida, mas isto não desfaz o mal que
ele fizera na vida, nem impede suas conseqüências. Apesar de suas lágrimas, ele
morre na agonia da vergonha e do remorso. O inexorável tem de ser completado.
E assim é no mundo futuro. Mesmo que um homem seja perdoado, ele não consegue
escapar do mal de sua vida passada. Uma retribuição o persegue até as portas do
céu. Porque se ele não sofrer, ainda assim sua vida má tanto pode despertar sua
natureza mortal, como diminuir seu poder de aproveitá-la. Há graus diferentes
de felicidade, do mesmo modo que as estrelas diferem entre si em glória; e
aquele que começa errado, descobrirá que não pecar e se arrepender não é a
mesma coisa que simplesmente não pecar. Ele entra no outro mundo num estado de
infância espiritual, e terá de começar de baixo, e subir lentamente para cima.
Nós podemos dar um passo adiante, e dizer que o céu pode não ter apenas luz,
mas também sombras, refletidas no que vem de lá. Nós lemos o "Livro das
Lembranças de Deus", mas não há um outros livro de lembranças da mente, -
um livro o qual a maioria das pessoas temem abrir e olhar lá dentro? Quando
esse livro é aberto, e quando lemos suas páginas horríveis, não devemos pensar
no que deveríamos ter feito? E todos aqueles pensamentos podem ser totalmente
livres de tristeza? O bêbedo bruto que despedaça o coração de quem o amava
chorará amargamente, mesmo que sua esposa o perdoe no leito de morte; mas ele
não conseguirá perdoar a si mesmo, e ele nunca poderá recordar aqueles
sofrimentos sem baixar a cabeça, com o coração partido. Isto preserva o
elemento da retribuição, apesar de não fechar a porta do perdão e misericórdia.
Mas não precisamos viajar novamente através das doutrinas cristãs. Minha fé é
muito simples; ela se resume em duas palavras: DEUS e CRISTO. Estes são os dois
centros ou, como um astrônomo poderia dizer, as estrelas gêmeas, os sóis
duplos, em cuja órbita está a verdade religiosa.
A
respeito do primeiro o senhor afirma que "não pode haver qualquer
evidência na minha mente da existência de tal ser, e minha mente é de tal modo
que constituída que é incapaz de sequer imaginar uma personalidade
infinita"; e o senhor, gravemente, põe para mim esta questão: "O
senhor realmente acredita que este mundo é governado por um Deus infinitamente
sábio e bom? O senhor está convencido disso?" Aqui há duas questões – uma
quanto à existência de Deus, e outro sobre a Sua benevolência. Eu responderei
ambas numa linguagem o mais clara que puder usar.
Primeiro, eu acredito em Deus? Eu respondo que seria impossível, para mim, não
acreditar. Eu não conseguiria não acreditar, se tentasse. O senhor insiste que
crença ou descrença não é uma questão de vontade, mas de evidência. O senhor
diz: "o cérebro pensa como o coração bate, como os olhos vêem." Então
vamos deixar de lado suas conjecturas e abrir os olhos para o que podemos ver.
Quando Robinson Crusoe, na sua ilha, veio para a beira da praia num dia, e viu
na areia as pegadas de um homem, poderia ele evitar chegar à conclusão de que
um homem estivera na praia? O senhor poderia tentar convencê-lo de que aquilo
apareceu por acaso, - que a areia foi lavada pelas águas, que junto com o vento
esculpiu a forma de um pé, ou que um animal marinho desenhou ou esculpiu a
figura, - o senhor não conseguiria convencê-lo. As pegadas estavam lá, e a
conclusão era inevitável: ele não acreditava – ele acreditava que algum ser
humano, amigo ou inimigo, civilizado ou selvagem, havia posto os pés na praia
desolada.
Então,
quando eu descubro no mundo, (como eu acho que descubro), pegadas misteriosas
que certamente não são humanas, não é uma questão de dever acreditar ou não:
não posso deixar de acreditar que alguma Força mais poderosa do que o homem
colocou os pés na terra.
É comum entre os filósofos ateus fazer pouco caso do argumento da criação; mas
minha mente é tal que "é incapaz" de resistir à conclusão para qual
ela me leva. E (já questões pessoais estão vigorando), eu lhe pergunto se seria
possível para o senhor encontrar um relógio e acreditar que não há nenhum
criador na sua criação; que ele não foi feito para marcar o tempo, mas apenas
casualmente apareceu; que ele foi o produto de algum capricho da natureza, que
reuniu suas partes e o formou.
O senhor
não sabe que com toda a positivismo que pode pertencer ao convencimento de sua
mente, que isto não foi obra de acidente, mas de criação; e se aquilo foi uma
criação, havia um criador? E se o relógio foi feito para marcar o tempo, não
foi o olho feito para ver, e o ouvido para ouvir? Os céticos podem lutar contra
este argumento o quanto quiser, e tentar evitar a inevitável conclusão, e mesmo
assim, ela permanecerá para sempre gravada dentro do homem, assim como assim
como embebida nas sólidas fundações da terra.
Portanto,
eu repito, não é uma questão para mim de acreditar ou não – não posso evitar
acreditar; e eu não fico apenas surpreso, mas perplexo que não só o senhor, mas
qualquer outro homem possa chegar a uma conclusão diferente. Espantado e
surpreso eu lhe pergunto: "Em todo este amplo universo não há nenhuma
Inteligência superior àquelas das pobres criaturas humanas que rastejam nesta
pequena bola terrestre? Para mim é com a mais profunda convicção e o maior
respeito que eu repito a primeira sentença da minha fé: "Eu acredito em
Deus o Pai Todo poderoso".
E não apenas no Todo Poderoso apenas, mas sábio e bom. Mais uma vez eu
pergunto, como eu posso deixar de acreditar nas coisas que vejo no dia a dia? A
cada manhã, quando o sol nasce no leste, mandando luz e vida para a terra, eu
vejo uma gloriosa imagem do Criador beneficente. A maravilhosa beleza do
amanhecer, a úmida frescura do ar, as nuvens flutuando no céu – tudo fala nEle.
E quando o sol se põe, mandando luz sobre as densas massas que impedem seu
caminho, e mandando a glória sobre o céu e a terra, esta maravilhosa iluminação
é para mim simplesmente o reflexo dEle, que se espraia no céu tal qual uma
cortina; aquele que fez das nuvens sua carruagem, aquele que voa com as asas do
vento.
Como nós reconhecemos a evidência de bondade no próprio homem: na força do
pensamento, de adquirir conhecimento, de penetrar nos mistérios da natureza e
subir às estrelas. Pode um ser, dotado de tais presentes transcendentes,
duvidar da bondade do seu Criador?
Sim, eu acredito com todo o meu coração naquele que é, não apenas infinitamente
Grande, mas infinitamente bom; que ama todas as criaturas que Ele fez;
curvando-se sobre elas como a curva sobre as nuvens e envia arcos no céu,
espraiando-se de horizonte a horizonte; olhando para baixo com uma bondade que
comparada com a humana, esta parece fria e pálida. "Como o pai tem piedade
do filho, também Nosso Senhor tem piedade daqueles que O temem; porque Ele nos
conhece Ele sabe que somos pó".
Sobre a questão da imortalidade, o senhor está também "voando". O
senhor não sabe de nada nem acredita em nada; ou melhor, o senhor só sabe que
nada sabe, e acredita que em nada acredita. O senhor, entretanto, confessa uma
fé na esperança, e admite uma possibilidade que possa haver uma outra vida,
apesar de que a incerteza sobre isto é ao mesmo tempo desesperada e intensa.
Mas sua mente é tão poética que o senhor dá um certo atrativo até para a
perspectiva da aniquilação. O senhor coloca no sepulcro flores como estas:
"Eu já disse milhares de vezes, e digo novamente, que a idéia da
imortalidade, que como o mar tem inundado e preenchido o coração humano, com
suas infindáveis ondas de esperança e medo batendo contra seu cais, e pedras de
tempo e do destino, não foi nascida de algum livro, ou crença e religião.
Nasceu da afeição humana, e continuará a inundá-lo e encher, dentro das nuvens
de dúvida e escuridão até que o amor beije os lábios da morte".
"Eu já disse milhares de vezes, e digo novamente, que nós não sabemos, não
podemos dizer, se a morte é uma parede ou uma porta; o começo ou o fim de um
dia; a debandada de pássaros, ou o recolher para sempre as asas; o nascer ou o
por do sol; ou uma vida eterna que dá alegria e amor a cada criatura".
Belas palavras! Mas extremamente tristes! É como prata revestindo as nuvens,
mas as nuvens estão lá, escuras e impenetráveis. E, no entanto, não devemos
esperar nada mais claro e brilhante de alguém que não reconhece nenhuma luz
além daquela proveniente da natureza. Esta luz é muito pálida. Se fosse tudo o
que temos, nós deveríamos ser justos como Cícero, e dizer com ele, e com o
senhor, que o futuro da vida é "ter esperança, em vez de acreditar".
Mas esta incerteza não mostra a necessidade de algo acima da natureza, que
"foi crucificado, morto e sepultado, e no terceiro dia subiu novamente do
mundo dos mortos?" Foi o Conquistador da Morte quem apelou aos puros de
coração: "Eu sou a ressurreição da Vida". Já que Ele se foi antes de
nós, iluminando as passagens escuras do túmulo, nós não precisamos temer o que
virá, baseando-nos na palavra de nosso Líder: "Porque eu vivi, vós
vivereis também".
Esta fé noutra vida é uma herança preciosa, que não pode rasgar no fundo, sem
um golpe que partiria qualquer coração; e foi sobre isto que a mencionei como o
último refúgio da alma pobre, da agonizante, da sofredora, da desesperada,
quando perguntei: "Não lhe ocorre que há algo de muito cruel no seu
tratamento à crença de seus semelhantes, em cuja esperança em outro mundo, está
tudo o que lhes resta na escuridão de sua vida presente?" A acusação de crueldade
que o senhor repele com certa gentileza, dizendo, (com uma discreta alteração
das minhas palavras) "quando eu nego a existência da perdição, o senhor
afirma que há algo de muito cruel neste tratamento da crença de meus
semelhantes". Claro que a mudança nestas palavras, colocando ‘perdição’ em
lugar de vida eterna ou esperança, foi uma mera desatenção. Mas foi o
suficiente para mudar o sentido daquilo que escrevi. Quando mencionei ‘o
tratamento dado à crença dos meus semelhantes’ eu o considerei cruel, e ainda
considero.
Quando cito este mero deslize, pretendo remover da sua mente uma falsa
apreensão, que seria absurda se não fosse cômica. Na minha carta, referindo-me
à sua crença na imortalidade, eu havia dito: "Com um ar de modéstia e
humildade, que pode levar uma audiência ao delírio, o senhor confessa sua
ignorância sobre o que, para outros pode haver algum conhecimento, quando o
senhor diz ‘este mundo é o único que conheço, ao que me lembre’".
Claro
que, a respeito do que os outros tenham conhecimento, "era uma parte
daquilo que o senhor disse, ou pelo menos, implicado nas suas maneiras (porque
o senhor não enfatiza suas idéias apenas por palavras, mas também por entonação
de voz, por cílios levantados, ou lábios franzidos) e, no entanto, em vez de
tomar a sentença na sua forma clara e direta, o senhor tenta entendê-la como se
eu dissesse que possuo uma maneira misteriosa e privada de ter conhecimento de
outro mundo (!), e me pergunta seriamente: "O senhor está querendo me
dizer que possui algum conhecimento sobre um outro estado da existência; que o
senhor já habitou outros planetas antes de ter nascido; que o senhor já viveu
antes de ter nascido; ou que o senhor lembra de algo de outro mundo ou de outro
estado?"Não, meu caro coronel! Tenho sido um bom viajante e tenho visitado
muitas partes deste mundo, mas nunca visitei um outro. Lendo sua questão, se
não soubesse que o senhor tem uma das mais brilhantes ironias dos nossos dias,
eu seria tentado a dizer o que Sidney Smith disse sobre um escocês: "o
senhor não pode colocar uma piada na sua cabeça, exceto através de uma operação
cirúrgica".
Mas retornando ao que é sério: o senhor cita nossa fé e nossas esperanças,
porque o senhor não conhece a imenso consolo que isto traz para o transtornado
coração humano. O senhor ri da idéia de que a religião seja um
"consolo". De fato, não seria uma consolação ter um amigo Todo
Poderoso? Não seria uma questão delicada para uma pobre mãe escrava que senta
sozinha na sua cabana, depois de ter seu bebê roubado, cantar solitária a
seguinte sentença:
"Ninguém conhece a tristeza que tenho visto:
Ninguém sabe, além de Jesus"?
O senhor lhe tiraria seu amigo Todo Poderoso – o único que ela possui na terra
e no céu?
Mas lhe farei a justiça de dizer que sua falta de religião e fé vem, em parte
de sua sensibilidade e bondade no coração. O senhor não pode reconhecer uma
força no comando, porque sua mente é incomodada com os sofrimentos que
testemunha. Por que, o senhor pergunta, o homem sofre tanto? O senhor traça quadros
dramáticos da miséria que existe no mundo, como provas da incapacidade do
Governante ou Regente, e não hesita em dizer que "qualquer homem de
inteligência mediana faria muito melhor". Se o senhor conseguisse, faria
todo mundo feliz; não haveria mais pobreza, nem doenças, ou dor.
Esta é uma bela paisagem para se ver e, no entanto, o senhor vai me desculpar
em dizer que esta é uma visão mais de uma criança do que de um homem adulto. O
mundo não é um parque de diversões no qual o homem deve ser mimado e agradado
como criança: ele se tornaria estragado como crianças malcriadas. É numa arena
de conflitos, onde nos desenvolvemos, que existe a humanidade em nós.
Nós
todos temos de lutar pela vida, e estar atos para ela – fisicamente,
intelectualmente e moralmente. Se há verdadeira humanidade dentro de nós, nós
saímos da luta mais fortes e melhores; com mentes mais ágeis e corações mais
brandos; com conhecimentos mais amplos e mais caridosos.
Provavelmente não diferiríamos neste ponto se pudéssemos concordar sobre o
verdadeiro fim da vida. Mas aqui percebo que a diferença é irreconciliável. O
senhor acredita que o fim é a felicidade: Eu acho que é o caráter. Eu não acho
que o fim derradeiro da vida na terra é a diversão; que seja o objetivo obter
dela a maior quantidade de alegrias; mas para ser verdadeiramente e grandemente
bom; e que para este fim, nenhuma disciplina pode ser tão severa desde que nos
leve a sofrer e ser fortes.
Esta
disciplina corresponde a este fim quando ela eleva o espírito para os mais
elevados graus de coragem e resistência. O esplendor da virtude nunca parece
tão brilhante como quando colocado contra um fundo negro. É nas prisões e
calabouços que os mártires e heróis mostram os mais elevados graus de heroísmo
moral, a força da mente indevassável do homem.
Mas eu acho que estes exemplos todos não mudam a questão principal. Há uma
outra ilustração a ser acrescentada a esses heróis e mártires – a do sofrimento
silencioso, que fazem da vida uma longa agonia, que freqüentemente acometem os
bons, de tal modo que faz parecer que os melhores sofrem mais. E, no entanto,
quando o senhor senta junto a um leito de doente, e olha uma face mais branca
do que o travesseiro sobre a qual descansa, o senhor não percebe o quanto
aquele sofrimento acentua a natureza daquele que o suporta tão calmamente?
Esta é a
teoria cristã: este sofrimento, surgido pacientemente, é uma maneira de elevar
o caráter, e no fim, para a maior felicidade. Vendo desta maneira, podemos
entender, como se pode explicar que o "o sofrimento de hoje não vale nada,
se comparado com a glória que será revelada".
Quando a
manhã celestial abrir, mais clara do que qualquer manhã que surja no mundo,
haverá uma compensação para todas as coisas: o pobre se tornará rico, e o mais
sofredor será o mais feliz; como na visão do apocalipse, quando é perguntado
"quem são estes vestidos em mantos brancos, e de onde vieram eles?",
a resposta será: "estes são os que vieram das piores tribulações."
Nesta conclusão, que não é adotada levianamente, mas após inumeráveis lutas com
dúvidas, depois da reflexão e experiência de anos, sinto uma grande paz. É o
brilho do por do sol que anuncia a noite. Porque (devemos confessar) é em
direção a esta noite que o senhor e eu estamos caminhando. O sol já passou pelo
meridiano, e se apressa em
descer. O que quer que esta vida tenha trazido para nós (e eu
sou um dos que mais a vêem como um vale de lágrimas), ela logo estará para
trás.
Eu vejo
as sombras rastejando, mas eu dou as boas vindas para o anoitecer que em breve
escurecerá a noite, porque eu sei que será uma noite com estrelas gloriosas.
Quando olho para a frente, o sentimento de devoção se mistura com um estranho e
poderoso senso de Bondade Infinita que me circunda, como uma atmosfera:
"E então, junto ao mar silencioso,
Eu espero o remo reconfortante;
Nenhum
mal Dele pode vir a mim
No mar
ou na praia.
Não sei
onde está Sua ilha:
Suas
frondosas palmeiras ao vento;
Só sei
que não posso me distanciar
Além do
Seu amor e carinho".
Ah se o senhor compartilhasse comigo esta confiança esta esperança! Mas parece
que o senhor está realmente distante de qualquer fé. Num de seus parágrafos, o
senhor se refere ao que seria para o senhor "a conclusão da questão".
Depois de repudiar a religião com escárnio, o senhor pergunta: "Não há
espaço para uma filosofia melhor e mais elevada?" E depois indica a
resposta correta, a qual nenhuma palavra pode fazer justiça, com exceção da
sua:
"No final, não será possível que possamos achar que tudo tenha
necessariamente de ser produzido; que todas as religiões e superstições, todos
erros e todos os crimes foram coisas necessárias? Não será possível que depois
dessas percepções poderá surgir não apenas amor, mas piedade pelos outros, mas
absoluta justificação pelo indivíduo? Não podemos achar que cada alma, como
Mazzepa, é açoitada pelo cavalo selvagem da paixão, ou como Prometeus, para a
rocha do destino"?
Se isto é o fim de toda filosofia, isto é também o fim de todas as coisas. Não
só isto faz o fim de nós, e de nossas esperanças no futuro, mas de tudo o que
faz a presente vida valer ser vivida – de toda a liberdade, e conseqüentemente,
de toda a virtude. Não há mais distinção moral no mundo – nenhum bem e nenhum
mal, nenhum certo ou errado; nada além da dura necessidade.
Com este
credo, nem compreendo como o senhor pode fazer parte de um tribunal, e
argumentar pela condenação de um criminoso. Como poderemos ser condenados e
punidos se isto de nada adiantaria? Na verdade ele não é um criminoso, já que
não existe esta coisa de crime. Ele não deve ser acusado. Ele não é levado pelo
cavalo selvagem da paixão, carregado por uma força superior ao seu controle?
Que crueldade trancafiá-lo atrás de grades de ferro! Pobre homem! Ele merece
nossa piedade. Vamos depressa libertá-lo de uma situação tão dolorosa, e
apresentemos nossas humildes desculpas por tentar puni-lo por atos os quais ele
obedece por impulso impossível de resistir. Esta será a ‘absoluta justificação
pelo indivíduo’. Mas o que será da sociedade depois disto, o senhor nada diz.
O senhor tem consciência de que nesta última situação de ‘uma melhor, uma alta
filosofia’, (o que é o absoluto fatalismo), o senhor se colocou ao lado de John
Calvino, e foi muito além dele? Que o senhor, que esgotou todas as palavras da
língua inglesa para denunciar a sua crença, como a mais horrível das crenças
humanas – estúpida, cruel, desumana; que a considerou com escárnio e desprezo;
agora abraça o mais negro calvinismo que já foi ensinado ao homem? O senhor não
encontra palavras suficientes para exprimir seu horror na doutrina dos decretos
Divinos; e agora o senhor tem decretos com uma vingança – predestinação e
condenação, ambas em uma. Sob
esta crença, o homem é mil vezes pior do que sob a nossa: porque ele não tem
absolutamente nenhuma esperança. O senhor pode dizer que ele nunca sofrerá para
sempre. O senhor nem sabe isto; mas de qualquer modo, ele sofre enquanto
existe. Não há nenhum Deus lá em cima para ter piedade dele, para libertá-lo;
mas à medida que a idade avança, ele é carregado pelas pedras do destino, com o
insaciável abutre devorando seu coração!
Lendo suas frases fortes, pareço estar perdendo apoio a tudo, e estar
afundando, afundando, até atingir o mais baixo nível de um abismo; enquanto que
na escuridão acima de mim, um som como a voz da morte abraça a meia noite da
alma. Se eu acreditasse nisso eu choraria, Deus nos livre! Ah, não – se não
existisse nenhum Deus, até mesmo este último consolo seria tirado de nós: para
que ofereceríamos uma oração que não pudesse ser ouvida ou respondida? E também
poderíamos pedir misericórdia pelas "pedras do destino", aos quais
estaríamos ligados para sempre!
Recolhendo-me deste Evangelho de desespero, eu me volto para Aquele, em cuja
face existe ao mesmo tempo algo de humano e divino – uma indescritível
majestade, unida com mais do que bondade humana e misericórdia; Aquele que
nasceu entre os pobres, onde Ele não tinha lugar para apoiar Sua cabeça e, no
entanto, fez o bem; pobre e, no entanto fazendo de muitos, ricos; Aquele que encontrou
o homem na mais profunda solidão e, no entanto, cuja presença acendeu cada
habitante para quem Ele veio; Aquele que pegou criancinhas nos braços, e as
abençoou; Aquele que deu felicidade aos outros, mas sofreu; que experimentou
cada sofrimento humano e ,no entanto estava pronto para aliviar o sofrimento
dos outros; chorando com os que choravam; vindo a Betânia para confortar Marta
e Maria, que perderam seu irmão; criticando o orgulhoso, mas gentil e piedoso
em relação às mais abjetas das criaturas; parando na multidão para ouvir o
choro do mendigo cego, no caminho; querendo ser conhecido como o "amigo
dos pecadores", se fosse possível resgatá-lo para o caminho da paz; Aquele
que não desprezou nem a mulher degenerada que lhe caiu nos Seus pés, mas em vez
disso usou as seguintes palavras amorosas: "Nem eu te condeno. Vai e não
peques mais", ajudou-a a se levantar e a ajudou a percorrer seu caminho de
mulher virtuosa; e Aquele que, ao morrer na cruz, gritou: "Pai,
perdoai-os, porque eles não sabem o que fazem!" Neste Amigo da amizade,
Confortador dos desesperançados, Perdoador dos penitentes, e Guia dos perdidos,
eu vejo uma grandeza que eu não encontro em nenhum dos filósofos e professores
do mundo. Nenhuma voz em todo o mundo me dá arrepios como aquela que sussurra
perto do meu coração: "Vem para mim, e eu te darei repouso", para
quem eu respondo: ESTE É MEU MESTRE E EU O SEGUIREI.
Henry M. Fied
CARTA PARA O DR. FIELD (IV)
(1887)
Meu caro Sr. Field:
Com muito prazer, li sua segunda carta, na qual o senhor parece admitir que os
homens diferem até mesmo sobre religião, sem ser responsáveis por esta
diferença; que cada homem tem o direito de ler a bíblia por si mesmo, e
expressar livremente as conclusões às quais ele chega, e que não é apenas seu
direito, mas sua obrigação dizer a verdade; que os cristãos dificilmente podem
ser felizes do céu, sabendo que seus entes queridos na terra estão sofrendo com
os perdidos; que não é um crime investigar, pensar, raciocinar, observar, e ser
guiado pelas evidências; que a credulidade não é uma virtude, e que a boca
aberta da ignorância não é a única entrada para o paraíso; que crença não é
imprescindível para a salvação, e que nenhum homem foi feito para sofrer a
condenação eterna por ter expressado suas convicções intelectuais.
O senhor parece admitir que nenhum homem pode ser corretamente considerado
responsável por suas idéias; que o cérebro pensa sem pedir nosso consentimento,
e que nós acreditamos ou deixamos de acreditar sem um esforço da vontade.
Eu me congratulo com os avanços que o senhor fez. O senhor não só admite que
nós temos o direito de pensar, mas também que nós temos o direito de expressar
nossas idéias honestas. O senhor admite que o mundo cristão não mais acredita
na fogueira, no calabouço, no esmagador de polegares. Mas o mundo cristão
desistiu do seu Deus? Será que o homem se tornou mais misericordioso do que seu
criador? Se o homem não mais tortura seu semelhante por diferença de opinião,
será que um Deus de infinito amor torturaria seus filhos pelo pecado da não
crença? Será que o homem superou a inquisição, mas um Deus infinito seria o
guardião de uma penitenciária infinita? Os muros das velhas masmorras caíram, e
hoje o sol visita as celas onde, no passado, bravos homens pereceram na
escuridão. Será que Jeová faz a manutenção das celas da perdição para sempre, e
serão seus filhos os eternos prisioneiros?
Parece difícil para o senhor perceber a condição mental de quem considera todos
os deuses como substancialmente o mesmo; ou seja, daqueles os consideram como
mitos e fantasmas nascidos da imaginação – personagens da ficção religiosa da
nossa espécie. Para o senhor parece estranho que um homem pense mais em Júpiter
do que em Jeová.
Considerando ambos como criações da mente, eu escolho entre
os dois e prefiro o deus dos gregos, pelo mesmo motivo que eu considero Portia
melhor do que Iago; e na verdade eu os considero todos filhos da imaginação, ou
fantasmas nascidos dos medos e esperanças humanas.
Certamente nada está mais distante de minha mente do que ferir os sentimentos
de alguém, por falar no Deus presbiteriano. Eu simplesmente pretendi falar no
Deus dos presbiterianos. Certamente o Deus dos presbiterianos não é o mesmo
Deus dos católicos, ou o Deus dos muçulmanos ou hindus. Ele é uma criação
especial, adequada apenas a certas mentes. Estas mentes se reuniram e formaram,
o que hoje se conhece como a igreja presbiteriana.
Na
verdade, não se encontram duas igrejas que tenham precisamente o mesmo Deus; da
mesma maneira, dois seres humanos não podem conceber precisamente a mesma
Divindade. Em cada Deus
de um homem existe, para dizer o mínimo, uma parte desse homem. Quanto mais
baixo é um homem, mais baixa será sua
concepção de Deus. Quanto mais elevado um homem, mais elevada deverá ser sua
Divindade. Um selvagem que adorna seu corpo com um cinturão no qual estão
pendurados os escalpos dos inimigos mortos em batalha, não tem nenhuma
concepção de um Deus amoroso e misericordioso; seu Deus será necessariamente
tão vingativo, tão desumano, tão infame como o Deus de João Calvino.
O senhor não julgou muito bem as minhas idéias. Eu não detesto os
presbiterianos. Eu detesto, com todo o coração, a crença dessa igreja, e eu
desprezo com todo o coração aquele Deus descrito na Confissão de Fé. Mas alguns
dos meus melhores amigos que tenho no mundo são afetados pela perturbação
mental chamada de presbiterianismo. Elas são vítimas do consolo da crença de
que a imensa maioria de seus semelhantes estão condenados ao tormento eterno,
para que seu criador seja para sempre glorificado. Eu já afirmei muitas vezes,
e digo novamente, que eu não desprezo um homem por causa do seu reumatismo; eu
desprezo o reumatismo porque ele aflige o homem.
Mas eu insisto que os presbiterianos aparentemente apropriaram para si mesmos o
seu Supremo Ser, e que eles alegam e têm alegado, ser o objeto especial do seu
favor. Eles alegam ser os eleitos, e eles insistem em dizer que Deus os olha
com um cuidado especial. Eles afirmam que a luz da natureza, sem a tocha da
crença presbiteriana, é insuficiente para guiar a alma aos portões do céu. Eles
insistem em dizer que mesmo aqueles que nunca ouviram falar de Cristo, ou que
nunca ouviram falar do Deus presbiteriano, serão eternamente condenados; e eles
não apenas alegam isto, mas seus destinos irão ilustrar não só a justiça, mas
também a misericórdia de Deus. Não apenas isto, mas eles insistem que a
moralidade de um não crente é desagradável a Deus, e que o amor de uma mãe não
convertida por seu filho indefeso não é nada mais do que um pecado.
Quando encontro um homem que realmente acredita na crença presbiteriana, penso em Laocoon. Penso
estar diante de um ser humano desamparado, e enrolado numa imensa serpente
venenosa. Mas eu me congratulo com o senhor sinceramente, por repudiar esta
crença infame e selvagem; que o senhor agora admite que a razão é para ser
exercida; que um Deus não torturará um homem por possuir uma dúvida honesta, e
que num mundo vindouro, "todo homem será julgado de acordo com os atos
praticados pelo corpo".
Deixe-me citar sua linguagem exata: "Eu acredito que no mundo futuro todo
homem será julgado de acordo com os atos feitos no corpo." O senhor não
percebe que já deu adeus à igreja presbiteriana? Nesta sentença o senhor jogou
fora a expiação, negou a eficácia do sangue de Jesus Cristo, e negou a
necessidade da crença. Se seremos julgados pelos atos feitos no corpo, este é o
fim do esquema da salvação. Eu honestamente me congratulo por saber que o
senhor repudia a crença selvagem do calvinismo.
Devo dizer também que me deu imensa satisfação saber que o senhor jogou fora,
com um alegre estremecimento, aquela infâmia das infâmias, o dogma do
sofrimento eterno. Eu tenho criticado a crença humana; eu tenho denunciado
todas as crenças que se enroscam com esta víbora; eu tenho denunciado todo
homem que a prega, o livro que a contém, e com todo o meu coração, o Deus que o
ameaça; e é com prazer que vejo o editor do "New Yorker Evangelist"
admitir que cristãos devotos não acreditam nesta mentira, e cita as palavras do
pastor da Igreja Anglicana, que todos homens serão no final recuperados e
feitos felizes.
O senhor encontra esta doutrina de esperança na crença presbiteriana? Será que
esta estrela, que lança luz em todo túmulo, é encontrada na sua bíblia? Será que
Cristo tinha na mente a brilhante verdade de que todos os filhos do homem
serão, no final, preenchidos pela alegria, quando ele exclamou estas palavras:
"Afastai-vos de mim, amaldiçoados, para o fogo eterno, preparado pelo
diabo e seus anjos!"? o senhor encontra nesta chama alguma fagulha der
esperança, ou as flores da promessa?
O senhor supõe que é possível que "o de má índole e incurável poderá ser
aniquilado", e afirma que tal destino não pode trazer nenhum terror para
mim, já que considero a aniquilação como o destino de todos nós.
Vamos
examinar esta posição. Por que um Deus criaria homens e mulheres sabendo de
antemão que eles se tornariam "inexoravelmente maus"?
O que o senhor acharia de um mecânico que
jogasse fora toda sua produção, com a justificativa de que ela seria
"inexoravelmente ruim"? O senhor consideraria este mecânico como
alguém infinitamente sábio? Será que a infinita justiça aniquila o trabalho do
infinitamente sábio? Será que Deus, como um médico incompetente, sepulta seus
erros?
Alem disso, que razão tem o senhor em dizer que eu "vejo a aniquilação
como o destino de todos nós"? Há esta afirmação em algum lugar na minha
resposta? O senhor a encontra em algum dos meus trabalhos? O senhor já
encontrou nos meus escritos, algo em que digo que acredito na aniquilação? Não
é verdade o que digo agora, o que sempre tenho dito, que eu não sei? Será que a
falta de conhecimento a respeito do destino da alma humana implica na crença na
aniquilação? Não implicaria ela, igualmente, na crença na imortalidade?
O senhor tem sido – pelo menos até recentemente – um crente na inspiração da
bíblia e na verdade, de cada uma das suas palavras. O que o senhor acha disto:
"Porque aquilo que acontece aos filhos do homem acontece às bestas; só uma
coisa acontece a eles: sim, eles todos têm uma respiração; de tal maneira que
um homem não tem precedência sobre uma besta". O senhor vê que o escritor
inspirado não está apenas satisfeito em admitir que ele não sabe. "Como a
nuvem é consumida e se dissipa; também aquele que desce ao túmulo não voltará
mais." Não seria cruel para um homem inspirado atacar uma crença sagrada?
O senhor parece surpreso que eu me refira à doutrina do tormento eterno como
"A nuvem negra de tempestade que escurece todo o horizonte, lançando suas
sombras poderosas sobre a vida atual e a vida futura". Se esta doutrina
for verdadeira, o que mais merece atenção na mente humana? Ela é a escuridão
que apaga qualquer estrela. É o abismo no qual qualquer esperança deve perecer.
Mostra um universo sem misericórdia e sem perdão – um futuro sem o raio de luz,
e um presente sem nada além do medo. Ela faz do céu uma impossibilidade, faz de
Deus um monstro infinito, e o homem uma eterna vitima. Nada pode redimir uma
religião na qual este dogma é construído. Agarradas a ele estão todas as
serpentes da fúria.
Mas o senhor abandonou esta infâmia, e admite que deveremos ser julgados de
acordo com nossas ações feitas pelo corpo. Nada parece tão evidente quanto o
fato de que um ser finito não pode cometer um pecado infinito; nem um ser
finito pode fazer algo de infinitamente bom. Ou seja, ninguém pode merecer, por
qualquer ato, uma punição eterna, e ninguém pode merecer uma recompensa eterna.
Se seremos julgados pelos atos do corpo, o velho inferno tradicional, assim
como o céu, tornam-se impossíveis.
E também o senhor reconhece a grande e esplêndida verdade de que o pecado não
pode ser o resultado de uma convicção intelectual. Este é o grande primeiro
passo para a liberdade da alma. O senhor admite que não há moralidade ou
imoralidade na crença – ou seja, na simples operação mental de pesar
evidências, em observar fatos, em chegar a conclusões. O senhor admite que
essas coisas não possuem pecado nem culpa. Se todos os homens concordassem,
nunca teria havido perseguição religiosa – a inquisição não teria sido
construída, e a idéia do tormento eterno nunca teria poluído o coração humano.
O senhor escapou das paixões para encontrar o que o senhor gosta de chamar de
"pecado" e "responsabilidade"; e o senhor diz, falando do
ser humano: "mas se ele é afetado pela paixão de tal modo que não consegue
ver as coisas corretamente, então ele é responsável". Podemos supor que o
uso da expressão "não pode" é inconsistente com a idéia de responsabilidade.
O que é a paixão? Há certos desejos, emoções que apressam o coração – desejos
que enchem o cérebro de sangue, com fogo e chamas – desejos que recebem a mesma
relação de julgamento com que uma tempestade e ondas recebem a de uma bússola
de navio. Seria uma paixão algo que surge por necessidade? Haverá uma causa
adequada a cada efeito? Pode o senhor, de alguma maneira, conceber um efeito
sem uma causa, ou pode conceber um efeito que não é uma causa, ou pode imaginar
uma causa que não é um efeito? Não é a história da civilização, a gradual e
real emancipação do intelecto, ou do julgamento, os mestres da paixão? Não é do
homem civilizado, em cuja razão se coloca o monarca coroado do seu cérebro – e
cujas paixões são suas escravas?
Quem conhece a força da tentação para os outros? Quem sabe o quão pouco tem
sido resistido por aqueles que suportam, e o muito que resistem aqueles que
caem? Quem sabe se é a vitória ou a derrota quem faz o mais bravo e o mais
galante lutador? Ao julgar nossos semelhantes, devemos levar em consideração as
circunstâncias dos antecedentes, da raça, da nacionalidade, da profissão, da
oportunidade, da educação, e de milhares de influências que tendem a moldar o
caráter do homem. Esta visão é a mãe da caridade, e faz do Deus presbiteriano
um ser impossível.
No final o senhor vê a impossibilidade do perdão. Ou seja, o senhor percebe que
depois do perdão, o crime permanece, e seus filhos, que são as conseqüências,
ainda permanecem vivos. O senhor reconhece a falta de filosofia nesta doutrina.
O senhor ainda acredita naquilo que chama "o perdão dos pecados", mas
percebe que o perdão não altera o curso da natureza, e nem pode evitar os
acontecimentos da lei natural. O senhor também admite que se um homem vive
depois da morte, ele preserva sua identidade pessoal, sua memória, e que as
conseqüências de suas ações ainda o seguem por toda a eternidade. O senhor
admite que conseqüências são imortais. Depois de admitir isso, para que serve a
velha idéia de perdão dos pecados? Como o criminoso pode ser lavado e purificado
com o sangue de outro? Apesar desse perdão, apesar desse sangue, o senhor tomou
pé das conseqüências, como o cão de Actreon, que segue mesmo um presbiteriano,
mesmo aqueles eleitos, dentro dos portões do céu. Mesmo tentando ser lógico, o
senhor deve admitir que as conseqüências das boas ações, tal qual anjos alados,
perseguem até mesmo o ateu dentro dos portões do inferno.
O senhor tem tido a coragem de suas convicções, e tem dito que seremos julgados
de acordo com nossas ações feitas em nosso corpo. Por este julgamento, estou
tentando agüentar. Mas querendo ou não, devo suportar, porque não há poder, ou
nenhum Deus, que possa se colocar entre mim e as conseqüências dos meus atos.
Não quero nenhum céu que eu não tenha conquistado, nenhuma felicidade que não
mereça. Eu não quero me tornar um pobre eternamente; nem quero estender mãos
indignas pedindo esmolas.
Meu caro senhor Field, o senhor superou sua crença – como todo presbiteriano
deveria fazer. O senhor é muito melhor do que o espírito do velho testamento;
muito melhor, em meu julgamento, até mesmo do que o espírito do novo
testamento. A crença que o senhor abandonou que agora repudia, afirma que um
homem pode ser culpado de qualquer crime – que ele pode levar a esposa à
insanidade, que seu exemplo pode levar os filhos a uma penitenciária, ou para a
forca, e entretanto, na última hora ele pode, pelo que é chamado de
"arrependimento", ser completamente lavado e purificado pelo sangue
de um outro, e ser coroado com os louros da paz infinita.
Não
apenas isto, mas esta crença ensina que este desgraçado pode olhar para esta
pobre terra e ver sua esposa, a quem ele prometera amar e proteger, no
hospício, cercada de serpentes imaginárias, lutando na escuridão da noite,
tornada insana por sua crueldade – esta crença ensinou e ensina que ele pode
olhar para cá e ver seus filhos em prisões, nos cadafalsos com o laço no
pescoço, e que esta cena não lhe traria sequer uma sombra de tristeza na sua
face feliz e redimida. É esta doutrina, é este dogma – tão bestial, tão
selvagem, que torna pobre qualquer vocabulário humano – que eu tenho
denunciado. Todas as palavras de ódio, desprezo e antipatia que existam em
todas as línguas e dialetos dos homens não são suficientes para expressar meu
ódio, meu desprezo, e minha antipatia por esta crença.
O senhor afirmou que considera impossível não acreditar na existência de Deus.
A esta afirmação não tenho nenhuma crítica a fazer. Sua mente é tal que a
crença num Ser Supremo lhe traz satisfação e contentamento. Claro que o senhor
não está considerando que possui algum crédito com esta crença, da mesma forma
que o senhor não deveria ser recompensado por não acreditar em algo que não
pudesse crer; da mesma forma que eu não deveria ser punido por não crer em algo
em que não posso acreditar.
O senhor acredita porque vê o mundo que o rodeia com tantas adaptações entre
meios e fins que isto lhe indica uma criação. Eu admito que quando Robinson
Crusoe viu na areia as pegadas de um pé humano parecido, mas não idêntico ao
seu, ele tinha razão em chegar à conclusão de que um ser humano estivera lá. A
conclusão foi tirada da sua própria experiência, e estava dentro do âmbito de
sua própria mente. Mas eu não concordo com o senhor que ele
"soubesse" que um ser humano estivera ali; ele apenas tinha
evidências suficientes para chegar a uma conclusão. Ele não conhecia as pegadas
de todos os animais; ele não poderia saber que todos os animais, com exceção do
homem poderia ter deixado as pegadas. Para que ele soubesse que se tratava de
pegadas humanas, ele deveria saber que nenhum outro animal poderia deixar na
areia a semelhança com este pé humano.
O senhor vê o que chama de evidência de inteligência no universo, e chega à
conclusão de que deverá existir uma inteligência suprema. Sua conclusão é muito
mais abrangente do que a premissa. Vamos supor, como Sr. Hume supôs, que exista
um par de pratos de balança, um das quais está na escuridão, e o senhor percebe
que um peso de um quilo, ou dez quilos que é colocado na extremidade que se
encontra na luz, sobe; o senhor teria o direito de dizer que há uma força
infinita no lado escuro, ou seria compelido a dizer que há um peso na ponta
escura suficiente para levantar a extremidade no claro?
É ilógico dizer, por causa da existência da terra, ou daquilo que pode ser
visto ao redor dela, que tenha de existir uma inteligência infinita. O senhor
não sabe que nem a criação deste mundo, e de todos os planetas descobertos
requereu uma força infinita, ou sabedoria infinita. Eu admito que seria
impossível para mim, olhar para um relógio e chegar à conclusão de que não
houve nenhum projeto na sua construção, ou que ele apenas surgiu. Eu não
poderia achar que aquele objeto é fruto de algum capricho da natureza, nem
poderia acreditar que todas as suas partes se juntaram casualmente. Não
acredito no acaso.
Mas
existe uma grande diferença entre o que o homem fez e os materiais com os quais
ele construiu as coisas que ele fez. O senhor acha um relógio, e conclui que
ele exibe, ele mostra, um propósito. O senhor insiste que isto é tão
maravilhoso que tem de ter um criador – em outras palavras, que ele é tão
maravilhoso que não pode não ter sido construído.
Então, o
senhor encontra o relojoeiro, e diz, com relação a ele, que ele também tem de
ter tido um criador – em outras palavras, que ele é tão maravilhoso que não
pode não ter sido criado, porque ele é ainda mais maravilhoso do que o relógio.
Na imaginação o senhor vai além do relojoeiro e chega ao criador que chama
Deus, é então o senhor diz que ele criou o relojoeiro, mas ele próprio não foi
feito, porque ele é maravilhoso demais para ter sido feito.
No caso
do relógio e do relojoeiro é a maravilha deles que sugere a criação. Mas no
caso do criador do relojoeiro, a maravilha nega a criação. O senhor não percebe
que este argumento destrói a si mesmo? Se a maravilha sugere a criação, ela
pode progredir até que ela negue o que havia sugerido?
O senhor deve lembrar também, que o argumento da criação se aplica a tudo. O
senhor não tem a liberdade de parar o nascer ou por do sol, ou o crescimento do
milho, ou tudo o que adiciona felicidade ao homem; o senhor deve ir mais longe.
O senhor deve admitir que um Deus infinitamente sábio e misericordioso criou as
presas de uma serpente, o dispositivo com o qual o veneno é destilado, os
ductos pelos quais ele é levado até a presa, e que a mesma inteligência deu a
esta serpente o desejo de inocular esta substância mortal na carne do homem.
O senhor
deve acreditar que um Deus infinitamente sábio construiu este mundo, e que no
processo de resfriamento, terremotos poderiam ocorrer – terremotos que devoram
e engolem cidades e estados. O senhor vê sinais da criação num vulcão que emite
rios de lava sobre os campos e casas dos homens? O senhor acredita mesmo que um
Deus infinitamente bom criaria seres invisíveis para contaminar o ar, para
habitar as águas, e finalmente atacar e destruir a vida do homem? O senhor vê
os mesmos sinais de criação no câncer que vê no milho e trigo? Será que Deus
criou os tumores para crescer em cérebros? Será por sua ingenuidade que ele
criou a espécie humana de modo que milhares nascessem surdos e mudos, e milhões
de idiotas? Será que ele plantou propositadamente nas mentes de muitos as
sementes da insanidade? Será que ele cultivou essas sementes? O senhor vê
sinais de projeto nisso?
O homem chama de bem aquilo que aumenta sua felicidade, e de mal aquilo que lhe
traz dor. Nos velhos tempos, atrás do bem ele pôs um Deus; atrás do mal, um
demônio; mas agora o mundo religioso é levado a admitir que Deus é o autor de
tudo.
Eu mesmo não vejo nenhuma virtude numa epidemia – nenhuma misericórdia no raio
que sai do céu e deixa a marca da morte no seio de uma mãe carinhosa. Não vejo
nenhuma generosidade na fome, nenhuma bondade na doença, nenhuma piedade na pobreza
e agonia. E, entretanto, o senhor diz que aquele ser que criou parasitas que
vivem com a exclusiva incumbência de causar o mal – os seres responsáveis por
todo o sofrimento da humanidade – e diz que ele tem uma "bondade comparada
à qual todo o amor de todos os homens parece algo frio e fraco". De acordo
com a doutrina do mundo religioso, este ser de infinito amor e bondade criou
este mundo de tal modo que sua luz apagou, e deixou a grande maioria da raça
humana tateando no caminho de dor sem fim.
O senhor insiste que o conhecimento de Deus – a crença em Deus – é a fundação
da ordem social; e este Deus de infinita bondade deixa milhares e milhares de
seus filhos sem nenhum sinal de revelação. Por que razão a infinita bondade
deixaria a existência de Deus em dúvida? Por que ele deixaria milhões vivendo
na selvageria, destruindo a vida de outros, devorando a carne de outros, e
deixando sua existência como um segredo para o homem? Por que ele deixaria os
selvagens dependendo do nascer e do por sol e nuvens? Por que ele deixaria suas
grandes verdades para alguns profetas meio malucos, ou para uma igreja cruel,
impiedosa e ignorante? A sentença "Há um Deus" poderia vir impressa
em cada ramo de mato, em cada folha, em cada estrela. Um Deus infinito não
teria desculpas para deixar seus filhos na dúvida e escuridão.
Há ainda uma outra questão. O senhor sabe que por milhares de anos homens
adoraram bestas selvagens como deuses. O senhor sabe que por muitas gerações
eles se ajoelharam para serpentes enroscadas, acreditando que fossem deuses.
Por que o Deus real permaneceria escondido, e deixaria seus filhos pobres,
selvagens e ignorantes a imaginar que ele fosse uma besta, uma serpente? Por
que esse Deus permitiria que mães sacrificassem seus filhos, por que ele não
saiu da escuridão? Por que ele não gritou para a pobre mãe, "Não mates teu
filho!? Mantém-o nos teus braços; aperta-o no teu seio; deixa que ele seja o
consolo dos teus anos decadentes. Não vejo nenhum deleite na morde de crianças;
não sou aquele que supões que eu seja; não sou um monstro; não sou uma
serpente; sou cheio de amor, carinho e misericórdia, e quero que meus filhos
sejam felizes neste mundo"? Será que um Deus permitiria que uma mãe
matasse o próprio filho com a idéia equivocada de que o Deus que exige
sacrifícios, sente um carinho com relação à mãe "comparado com o qual,
todo o amor de todos os homens parece fraco e frio"? Permitiria um bom pai
que seus filhos matasse outros filhos para agradá-lo?
Há ainda uma outra questão. Por que Deus, um ser de infinita bondade, deixaria
a questão da imortalidade ma explicada? Como explicar que não haja nada no
velho testamento sobre issoi Como explicar que aquele que fez todas as
constelações não colocou no céu a estrela da esperança? Como o senhor explica o
fato de que não se encontra no velho testamento, desde o primeiro erro do
gênesis até a ultima maldição de Malachi, uma cerimônia fúnebre? Não acha
estranho que alguém no velho testamento não chegaria perto de um túmulo de um
pai ou mãe para dizer: "Nós nos reencontraremos um dia"?
O senhor me surpreende dizendo que eu não sei nada sobre a imortalidade do que
Cícero sabia. Isto eu admito. Não sei mais nem do que o mais simples selvagem,
não mais do que um doutor da divindade – ou seja, nada.
Não é, portanto, um fato curioso que haja menos crença na imortalidade da alma
entre as nações cristãs do que nas nações pagãs – que a crença na imortalidade,
numa igreja ortodoxa, é pura especulação, comparada com as crenças da Índia,
China ou ilhas do Pacífico? Compare a crença na imortalidade na América, dos
cristãos, com aquela dos seguidores de Maomé.
Os
cristãos não choram ao lado de seus mortos? Será que um crente na imortalidade
derramaria lágrimas? Na verdade, a promessa da eternidade é tão distante, e a
morte tão próxima – os ecos das palavras ditas há mais de dezoito séculos se
perderam com o som das lágrimas que caem nos ataúdes. E, no entanto, comparado
com a crença no inferno, comparado com o presídio de Deus, como é extasiante a
sepultura – a tumba sem um soluço, sem uma lágrima, sem um sonho, sem medo.
Comparado com a promessa na imortalidade da crença presbiteriana, como a
aniquilação parece bela. Para ser um nada – como isto é melhor do que ser um
condenado eterno. Para ser pó inconsciente – como seria melhor do que ser um
anjo desumano.
Não há e nunca houve, e nunca haverá qualquer consolo no cristianismo ortodoxo.
Ele não oferece nenhum consolo a um homem bom e amoroso. Eu prefiro o consolo
da natureza, o consolo da esperança, o consolo vindo da afeição humana. Eu
prefiro o simples desejo e viver e amar para sempre.
Claro que seria um consolo saber que temos um "amigo Todo Poderoso"
no céu; mas um amigo que não cuida de nós, que permite que sejamos atingidos
por seus raios, congelados pelo seu inverno, esfomeados por sua fome, e
deixados presos no seu inferno, é um amigo que eu não gostaria de ter.
Eu me lembro da "pobre mulher escrava sentada sozinha na sua cabana,
depois de ter seu filho roubado;" e, meu caro Sr. Field, eu me lembro também
que aquelas pessoas que roubaram seu filho justificavam sua ação lendo
passagens das sagradas escrituras. Lembro que enquanto a mãe chorava, os
ladrões, alguns deles cristãos, liam isto: "Compra os hereges ao redor, e
eles deverão ser teus servos e servas, para sempre." Lembro também que os
ladrões liam: "Servos deverão ser obedientes aos seus amos." E, eles
diziam, esta passagem é a única mensagem do coração de Deus par consolar os
escravos. Eu me lembro disso e me lembro também que a pobre mãe escrava de
joelhos, emocionada e triste chamava o "Amigo Todo Poderoso", e eu me
lembro que suas orações nunca eram ouvidas, de modo que seus soluços morriam no
ar negligente.
O senhor me pergunta se eu "tiraria dessa pobre mulher este Amigo"?
Minha resposta é esta: Eu daria a ela a liberdade; eu quebraria suas algemas.
Mas deixe-me perguntar ao senhor: esse "Amigo Todo Poderoso" olhou
para essa mulher que ele ama com uma afeição "perante a qual todo o amor e
afeição humanos parecem pálidos e frios", a mulher que o amava, que teve o
filho roubado? Seria esse "Amigo Todo Poderoso" importante para dela?
Ela certamente preferiria o filho.
Como poderia o "Amigo Todo Poderoso" ver esta pobre criança sendo
perseguida por cães – a criança cujo único crime era o amor à liberdade – como
poderia vê-lo e tomar o partido dos cães? O senhor acredita que esse
"Amigo Todo Poderoso" governa o mundo? O senhor realmente acredita
que:
"Manda o navio negreiro percorrer de costa a costa,
Embandeirado
com as asas do Espírito Santo"?
O senhor acredita que o "Amigo Todo Poderoso" assistiu a todas as
tragédias que se desenrolaram nas selvas africanas – que ele assistiu às
viagens dos navios negreiros, viu as misérias das viagens, ouviu os tiros de
canhão, ouviu o sangue correndo, as faces de agonias de mulheres, e todas as
lágrimas que eram derramadas? O senhor acredita que ele viu e presenciou todos
esses acontecimentos e que ele, o "Amigo Todo Poderoso", olhava
friamente para baixo e nem estendeu a mão para socorrer?
O senhor persiste, entretanto, em explicar as misérias do mundo argumentando
que a felicidade não é o objetivo da vida. O senhor diz que "o verdadeiro
sentido da vida é o caráter, e que nenhuma disciplina é severa o suficiente, se
nos levar a sofrer e ser fortes". Sobre este assunto o senhor usa a
seguinte linguagem: "Se o senhor pudesse, faria todo mundo feliz; não
haveria mais pobreza, nem doenças nem dor". E isto o senhor considera uma
"visão infantil, não compatível com um homem adulto".
Deixe-me
ler para o senhor uma outra "visão infantil" que o senhor encontrará
no vigésimo primeiro capitulo de Revelação , supostamente escrito por São João,
o divino: "E eu ouvi uma forte voz vinda do céu, que dizia, vigiai, os
tabernáculos de Deus estão com os homens, e ele estará com eles, e eles serão
seu povo, e o próprio Deus estará com eles, e será vosso Deus; e Deus enxugará
todas as lágrimas dos seus olhos, e não haverá mais morte, nem dor, nem choros,
e não haverá mais dor".
Se o senhor visitasse uma mulher vivendo nem cortiço, sustentando, com seu
trabalho, sua pobre família – uma pobre família passando fome, costurando, seus
olhos marejados de lágrimas – o senhor lhe diria que "o mundo não é um
parque de diversões, no qual os homens devem ser mimados e estragados como crianças"?
o senhor diria a ela que pensar num mundo sem pobreza, sem lágrimas, sem dor, é
uma "visão infantil"? se ela lhe pedisse uma pequena ajuda, o senhor
recusaria, com a desculpa de que ao ser ajudada ela perderia seu caráter? O
senhor lhe diria: "Deus não quer que a senhora seja feliz; felicidade é
algo de tolo; caráter é o que a senhora precisa; e Deus a colocou aqui com
esses bebês famintos e desamparados, e ele colocou este encargo nas suas costas
para que a senhora possa sofrer e ser forte. Eu poderia ajudá-la com
satisfação, mas não posso alterar os planos traçados pelo "Amigo Todo
Poderoso""? O senhor argumentaria de uma maneira, mas agiria de
outra.
Eu concordo com o senhor que o trabalho é bom, que a luta é essencial; que o
homem é feito homem lutando entre si e com as forças da natureza; mas há um
ponto além do qual a luta não faz caráter; há um ponto em que a luta se torna
falha.
O senhor pode conceber um "Amigo Todo Poderoso" que deforma seus
filhos porque ele os ama? Permitiria ele que o inocente definhasse numa
masmorra porque ele era seu amigo? Permitiria que o nobre perecesse no
patíbulo, que o devotado e corajoso fosse queimado na fogueira, porque ele
tinha o poder de salvar? Seria ele impedido pelo amor? Permitiria esse
"Amigo Todo Poderoso" que milhões de crianças fossem escravizadas com
o objetivo de que "o esplendor da virtude tivesse seu fundo negro"? o
senhor insiste que "o sofrimento, pacientemente surgido, é um dos meios
para as maiores elevações do caráter e o fim da maior felicidade;" o
senhor não vê que o seu "Amigo Todo Poderoso" tem sido injusto para
com os felizes – cruel para com aqueles que nós chamamos de bem-afortunados –
que ele é indiferente com aqueles homens que não sofrem – que ele deixa todos
aqueles felizes, prósperos e alegres sem caráter, e que no fim, de acordo com
sua doutrina, eles serão os perdedores?
Mas, afinal, não há necessidade de levar adiante esta questão. Há um fato que
destrói para sempre sua teoria – é o fato que milhões morrem na infância. Como
eles ganham a "elevação do caráter"? Que oportunidade é dada a eles,
para que "sofram e sejam fortes"? Admitamos que não sabemos. Digamos
que os mistérios desta vida, do bem e do mal, da alegria e da dor, nunca serão
explicados. Não teria o caráter importância no céu? Como será possível que
anjos, vivendo numa "visão infantil", podem "sofrer e ser
fortes"? O senhor não vê que, de acordo com sua filosofia, só os
condenados podem crescer – apenas os perdidos serão sublimes?
O senhor parece não entender o que quis dizer quando me referia a alta
filosofia. Quando esta filosofia é aceita, claro que haverá bem no mundo,
haverá o mal, e ainda haverá o certo e o errado. O que é o bem? É aquilo que
aumenta e felicidade dos seres vivos. O que é o mal? É aquilo que tende a
aumentar o sofrimento, ou diminuir a felicidade dos seres vivos. O que é o
certo? É a melhor coisa que se pode fazer em certas circunstâncias, - ou seja,
aquilo que pode ser feito para aumentar ou preservar a felicidade do homem. O
que é o errado? É o que aumenta o sofrimento do homem.
O que o senhor chama de liberdade, escolha, moralidade, responsabilidade, não
tem nada a ver com estas coisas. Não há nenhuma diferença entre necessidade e
liberdade. Aquele que é livre, age por opção. Qual é a fundação dessa escolha?
O que chamamos de liberdade é libertação de uma imposição pessoal – nós não
queremos ser regidos pela vontade de outros. Para nós a natureza das coisas não
parece ser um mestre – a natureza não tem vontades.
A sociedade tem o direito de se proteger, e aprisionar aqueles que agem contra
seus interesses; mas não tem o direito de punir. Ela pode ter o direito de
destruir a vida de alguém perigoso para a comunidade; mas o que tem a ver
liberdade com isso? O senhor mata uma serpente venenosa porque ela sabia algo
mais do que morder? O senhor aprisiona uma besta selvagem porque ela é
moralmente responsável? O senhor não acha que o criminoso merece a piedade do
virtuoso?
Eu desejaria que chegasse o tempo em que o indivíduo pode se sentir justificado
– quando o indiciado que tenha usado os trajes da desgraça sente que ele tinha
agido como deveria.
Há uma antiga oração hindu para qual eu chamo sua atenção: "Tem piedade, ó
Deus, dos degenerados; tu já tivesses piedade dos justos fazendo-os justos".
Não é possível que tenhamos de achar que tudo foi produzido com propósito? Isto
terminará, claro, na justificação do homem. Não seria isto uma coisa desejável?
Não é possível que a inteligência possa, no final, elevar a espécie humana para
uma sublime altura filosófica?
O senhor insiste, entretanto, que isto é calvinismo. Suponho que o senhor
conheça calvinismo – mas deixe-me dizer o que é. Calvinismo diz que o homem é o
que ele tem de ser, e não obstante este fato, ele é responsável pelo que faz – ou
seja, por aquilo que ele é compelido a fazer – ou seja, pelo que Deus faz com
ele; e então, por fazer o que ele tem de fazer, um Deus infinito, que o força a
fazer isto, faz justiça ao punir o homem no fogo eterno; isto não porque o
homem tem de ser condenado, mas simplesmente para a glória de Deus.
Começando pela mesma declaração e que o homem faz o que ele tem de fazer, chego
à conclusão de que devemos perceber neste fato justificação para cada
indivíduo. E, no entanto, o senhor não vê diferença entre minha doutrina e o
calvinismo. O senhor insiste que condenação e justificação são a mesma coisa.
E, no entanto, a diferença é tão grande quanto pode expressar a língua. O
senhor chama a justificação de todo o mundo "o evangelho do
desespero", e a condenação de quase a totalidade da espécie humana como o
"consolo da religião".
Depois de tudo, meu caro amigo, o senhor não vê que quando o senhor vem falar
daquilo que é realmente bom, o senhor seja obrigado a descrever seu ideal de
ser humano? É o humano de Cristo, e somente humano, que o senhor consegue
compreender. O senhor fala de alguém que nasceu entre os pobres, que se
esforçou para fazer o bem, que simpatizava por aqueles que sofriam. O senhor
descreveu não apenas um, mas milhões de seres humanos, milhões de pessoas que
levam luz para aqueles que vivem na escuridão; milhões que carregam crianças
nos braços, milhões que choram para que outros sorriem.
Nenhuma
língua pode exprimir a bondade, o heroísmo, a paciência, o desprendimento de
muitos milhões, vivos ou mortos, que preservaram na família dos homens a jóia
do coração. O senhor reuniu num homem todas as virtudes da espécie humana, com
todos os atributos de generosidade, paciência, bondade e amor e, no entanto
este ser, de acordo com o Novo Testamento, tinha um outro lado do seu caráter.
Na verdade, ele disse: "Vem a mim e eu darei descanso". Mas o que ele
disse para aqueles que não foram a ele? O senhor oferece a esse homem todo o
agradecimento pelo que ele fez de bom, mas eu agradeço não só por isso, mas por
tudo. Meu coração reverencia todos os grandes, os despojados de vaidade, e os
bons – para os fundadores de nações, cantores de canções, construtores de
lares; para os inventores, os artistas que encheram o mundo de beleza, para os
compositores de música, para os soldados do direito, para os fazedores de
alegrias, para os homens honestos, e todas as mães amorosas da raça.
Compare, por um momento, tudo o que os salvadores fizeram, todas as dores e
sofrimentos que aliviaram, -- compare isso com a descoberta da anestesia.
Compare seus profetas com os inventores, seus apóstolos com os Keplers, os
Humboldts e os Darwins.
Eu pertenço à grande igreja que toma o mundo nos seus limites pequenos; que
relata o bem dos grandes e bons de todas as raças; que encontra alegria nos
grãos de outro de cada crença, e enche de luz e amor as sementes do bem em cada
alma.
A maioria dos homens é provinciana, estreita, toma um só partido, e só se
desenvolve limitadamente. Numa nova área rural vemos freqüentemente uma pequena
porção de terra, na qual um pioneiro construiu sua cabana. Esta pequena terra
só é suficiente para sustentar sua família, ficando a maior parte da
propriedade tomada pelo mato, no qual as serpentes rastejam e as feras se
escondem. Assim é que fica a mente de um homem comum. Há pouco esclarecimento,
pouco de remendos, de tamanho o suficiente apenas para praticar uma medicina
rudimentar, ou vender bens, ou praticar a lei; ou pregar, ou fazer um negócio,
apenas o suficiente para adquirir pão e alimentos, e proteção para a família,
ficando a maior parte da mente coberta pelo mato, no qual se enroscam as
serpentes da superstição, e da qual surgem as bestas selvagens que são as
religiões.
Nem por interesse da verdade, nem pelo beneficio do homem, é necessário dizer
que não sabemos. Nenhuma causa é grande o suficiente para sacrificar a
franqueza. Os mistérios da vida a da morte, do bem e do mal, nunca foram
desvendados.
Eu combato aqueles que, nada sabendo do futuro, profetizam uma eternidade de
dor – aqueles que semeiam as sementes do medo no coração dos homens – aqueles
que envenenam as fontes da vida, e colocam um esqueleto em toda festa.
Vamos exterminar as bruxas enrugadas da superstição; vamos dar boas vindas às
belas filhas da verdade e da felicidade.
Robert G. Ingersoll