Discurso
de Eusébio, um dos 300 bispos restantes
dos 2.048 que foram expulsos do Concílio
de Nicéia por não concordarem com a imposição do Imperador por ocasião dos festejos de aniversário de
Constantino, decidiu-se a apresentar na cerimônia uma teologia política para
fixar qual era o papel do Imperador Constantino no universo do Cristianismo
oficializado.
“É um novo Moisés!”, assegurou Eusébio à corte presente. Constantino, tal o patriarca judeu, salvara o monoteísmo das injurias do politeísmo. Assim, se o Reino do Céus é governado por um só Pai, o mundo terreno o é por César. Ele é o lugar-tenente de Deus de quem recebeu, pela intermediação de Cristo, a função de assegurar na terra “o plano de Deus para os homens”.
Designando-o como “pastor, pacificador, mestre, médico das almas e pai”, Eusébio, em êxtase, chamou-o de “amigo e predileto de Deus”(Laud. Constant., 5; 7,12).
“É um novo Moisés!”, assegurou Eusébio à corte presente. Constantino, tal o patriarca judeu, salvara o monoteísmo das injurias do politeísmo. Assim, se o Reino do Céus é governado por um só Pai, o mundo terreno o é por César. Ele é o lugar-tenente de Deus de quem recebeu, pela intermediação de Cristo, a função de assegurar na terra “o plano de Deus para os homens”.
Designando-o como “pastor, pacificador, mestre, médico das almas e pai”, Eusébio, em êxtase, chamou-o de “amigo e predileto de Deus”(Laud. Constant., 5; 7,12).
Vejamos pois quem era o Imperador Romano
Constantino.
Constantino nasce em Mesia (a atual
Sérvia), por volta de 274. Seu pai, Constâncio Cloro, era um oficial de
carreira; sua mãe, Flávia Helena, concubina de Constâncio, era uma albergueira,
ou seja, uma subserviente funcionária da estalagem da estação postal.
Constâncio Cloro depois repudiou
Helena para se casar com Teodora, filha do imperador Maximiliano, e, no ano de
293, entrou na tetrarquia (governo de quatro) criada por Diocleciano, primeiro
com o título de "césar" (vice-imperador), e, em seguida, em 305, com
o de "augusto" (imperador pleno).1
Constantino participou de várias campanhas
militares durante os anos de juventude, primeiro a serviço de Diocleciano,
depois de Galério e, finalmente, de seu pai.
Quando Constâncio morreu, em 306, os
soldados aclamaram Constantino "augusto", desobedecendo as
disposições emanadas de Diocleciano,2 dando um verdadeiro golpe de
Estado. Seguiram-se seis anos de guerra civil entre os vários pretendentes ao
título de imperador, entremeada por lutas travadas para levar os bárbaros até
as fronteiras.
Para consolidar seu poder,
Constantino desposou Fausta, filha de Maximiliano, estabelecendo com ele uma
aliança para reinarem juntos no Ocidente. Mas o casamento e o pacto não o
impediram de atacar e matar Maximiliano em 310.
No mesmo ano, de acordo com um
escrito comemorativo da época, Constantino visitou um templo de Apolo, na
Gália, onde o próprio deus apareceu e colocou nele uma coroa de louros.3 O mesmo escrito cria uma genealogia que estabelecia que Constâncio, pai de
Constantino, não era homem de origem humilde, mas filho do imperador Cláudio
II.
Em 311, os pretendentes ao título de
"augusto" eram quatro: Constantino e Magêncio, filho de Maximiliano,
no Ocidente, e Valério Licínio e Maximino Daia no Oriente. Constantino se aliou
a Licínio, concedendo-lhe a mão de sua irmã, Constância, e marchou rumo à
Itália contra Magêncio. Em 312, naquela que é lembrada como a Batalha da Ponte
Mílvio, mas que na verdade se iniciou em Saxa Rubia, Constantino derrotou
Magêncio, que morreu durante a retirada, tornando-se, assim, único senhor do
Ocidente. Em 313, ele e Licínio promulgaram o Edito de Milão, que assegurava
liberdade de culto aos cristãos e transformava o cristianismo em uma das
religiões oficiais do Império Romano. Iniciava-se o processo de integração dos
cristãos à sociedade romana e à organização do Estado.
A liberdade de culto dada aos
cristãos seria o pretexto para a luta pelo controle do Oriente entre Maximino
(perseguidor dos cristãos) e Licínio (que, mesmo não sendo batizado, agia como
defensor dos cristãos). A guerra no Oriente se encerra com a vitória definitiva
de Licínio e o suicídio de Maximino.
Em 314, Constantino convocou o
Concilio de Aries, que condenou definitivamente a heresia donatista (um
movimento cristão de rigor excessivo que, em 311, em Cartago, elegeu um bispo
alternativo àquele oficial e apoiado por Constantino) e permitiu que os
cristãos ocupassem cargos públicos, o que até então era considerado pecado.4
Em seguida, abafou violentamente o
protesto dos agonistas, ou circunceliões, que, por trás de motivações
religiosas, escondia uma verdadeira guerra de classes.
No mesmo ano, Licínio se revoltou
contra Constantino. Surgiu, assim, uma guerra que teve Constantino como
vencedor. Compelido à rendição, Licínio foi obrigado a lhe ceder quase todas as
províncias orientais, mantendo apenas a Trácia.
Em 323-324, Licínio se rebelou
novamente e de novo foi derrotado. Dessa vez, foi preso e morto, apesar das
súplicas feitas por Constância ao irmão Constantino. A partir de então,
desaparece qualquer resíduo da tetrarquia criada por Diocleciano, e Constantino
domina como um monarca todo o Império Romano.
Em 325, acontece o famoso Concilio de
Nicéia, o primeiro concilio ecumênico da Igreja Católica. Dele participaram
cerca de trezentos bispos e prelados, na maioria orientais, sendo presidido por
Osio, um homem de confiança do imperador. As principais questões abordadas
foram o dogma da Trindade, a reafirmação da origem divina de Cristo e a
condenação à heresia ariana.
Em 326, Constantino manda matar seu
filho preferido, o primogênito Crispo (concebido com uma concubina), e, em
seguida, a mulher Fausta. Segundo diz a lenda, Fausta teria acusado falsamente
o enteado de assediá-la, e Constantino só teria descoberto a verdade depois.
No mesmo ano, condenou à morte também
Liciniano, filho de sua irmã Constância e de Licínio.
Em 330, Constantino transferiu a
capital para a cidade grega de Bizâncio, rebatizada de Constantinopla, após ser
ampliada e reconstruída. Décadas antes, os imperadores romanos já tinham
transferido o centro de comando para fora de Roma, por motivos logísticos e
militares. Constantino fez algo a mais: criou uma segunda Roma, com o mesmo
número de palácios, um Senado e benefícios iguais aos dos cidadãos romanos para
seus habitantes (como a distribuição gratuita de trigo). Talvez Constantino se
sentisse mais seguro e protegido no Oriente, prevalentemente cristão, do que em
Roma, onde o grupo de senadores hostis a ele ainda tinha muito poder e
influência, e quisesse que seus sucessores governassem o Império a partir de
uma nova capital, "livre" dos antigos ranços.
Constantino morreu em 337. Só foi
batizado à beira da morte, por um bispo ariano.
A Igreja Ortodoxa Grega até hoje o
venera como santo.
Pouco depois de sua morte, foram
eliminados seus meios-irmãos Dalmácio e Anibaliano, e o Império foi dividido
entre seus três filhos legítimos: Constantino II, Constâncio II e Constante.
Constantino II foi assassinado em
340, em uma emboscada, pouco depois de tentar usurpar os domínios do irmão
Constante, que, por sua vez, foi morto alguns anos depois, por um matador do
usurpador Magêncio.
Constâncio II morre de febre em 346,
na véspera de um combate contra o sobrinho e rival Juliano.
O cristianismo de Constantino.
Segundo a tradição, na véspera da
Batalha de Ponte Mílvio, Constantino teve uma visão (ou talvez um sonho
profético), durante a qual recebeu um brasão milagroso e a ordem celeste de
reproduzi-lo nos escudos, para obter a vitória. Esse brasão, dependendo da
fonte, poderia ser um "X ao contrário, com as pontas dobradas" ou as
iniciais gregas do nome de Cristo, x (chi) e p (ro), entrecruzadas.
Muitos historiadores colocaram em
dúvida ou redimensionaram a veracidade do episódio. Talvez os soldados de
Constantino, provenientes da Gália, usassem um símbolo solar no escudo, que
poderia ser confundido com a cruz cristã;5 ou Constantino pode ter
mandado gravar o monograma apenas para distinguir suas tropas das de Magêncio.6
Com certeza, Constantino, na época,
já travara contato com ambientes cristãos. Por exemplo, o bispo Osio, de
Córdoba, já fazia parte de seu séquito.
É possível imaginar que Constantino
tenha aproveitado a ocasião para testar a eficácia da nova religião e, tendo
visto que funcionava,, decidido adotá-la, transformando o Deus dos cristãos em
seu protetor pessoal.
Em seguida, Constantino concedeu
crescentes favores, financiamentos e reconhecimentos ao culto cristão. Os
bispos, por exemplo, foram isentos do pagamento dos impostos, tornaram-se
funcionários imperiais e até juízes de apelação.7 Em troca, obteve
uma ingerência cada vez maior nos assuntos internos da Igreja, da qual se
considerava "bispo externo".
Ao mesmo tempo, ele assegurou por
muitos anos, pelo menos aparentemente, a prática dos tradicionais cultos
romanos: assumiu o encargo de "Pontífice Máximo", ou seja, grande
sacerdote do culto politeísta romano; aceitou a realização de jogos e
sacrifícios aos deuses em sua homenagem; mandou cunhar moedas com a imagem do Sol
Invictus, o Sol Invicto; e tornou feriado o Dies Solis, o Dia do
Sol, nosso "domingo". O Sol Invicto era uma divindade adorada por
muitos povos do Império e pelo próprio Constantino, antes da conversão.8 Ao mesmo tempo, entretanto, a esfera solar podia ser considerada um símbolo do
Deus dos cristãos e de outras religiões monoteístas do Império.
Outro sinal do empenho de Constantino
foi a promulgação de leis morais muito rígidas. Um exemplo é a seguinte,
emanada em 320.
O homem que tomar uma moça, com ou
sem seu consentimento, sem antes ter estabelecido um acordo com seus
progenitores [...] não terá na resposta da moça nenhuma vantagem dada pelo
direito antigo, e a própria moça será considerada culpada de cumplicidade no
delito. E como muitas vezes a vigilância dos pais é burlada pelos discursos e comportamentos
cativantes das nutrizes, que sobre elas [...] recaia a ameaça do seguinte
castigo: a abertura de sua boca e de sua garganta, que emitiram sugestões
arrasadoras, será fechada com a ingestão de chumbo derretido. Se for verificado
o consentimento voluntário da virgem, que esta seja punida com a mesma rigidez
que seu raptor, e não será concedida imunidade nem às moças que forem raptadas
contra sua vontade, pois poderiam ter permanecido em casa até o dia do
casamento, e se a porta houver sido arrombada pela audácia do raptor, estas
poderiam ter pedido ajuda aos vizinhos com seus gritos e se defendido a todo
custo. Mas, para estas moças, cominamos uma pena mais leve e ordenamos que
sejam deserdadas por seus progenitores [...] Se os progenitores, para quem a
vingança pelo crime deveria ser uma preocupação particular, mostrarem
tolerância e reprimirem sua dor, serão castigados com a deportação.9
Os historiadores contemporâneos
garantem que a adesão ao cristianismo de Constantino foi convicta e sincera, e
é provável que seja verdade, se levarmos em consideração que as concessões
religiosas de um oficial romano da época eram bem diferentes das nossas:
"...a função do imperador é a de se colocar como sujeito coletivo que
represente toda a cidade e todo o mundo (orbis), na qualidade de Imperator
orbis. De fato, o primeiro encargo que Augusto reserva a si mesmo é o de Pontifex
Maximus, representante junto à divindade que constitui o pacto da aliança
[...] E isso continua em vigor até Constantino. Roma, portanto, através de seus
sacerdotes, de seus institutos, de seus colégios coletivamente representados
pelo imperador, pede à divindade três coisas:
1. a fertilidade das mulheres (tanto
mães quanto Mulheres, pois, para os romanos, havia pouca distinção);
2. a vitória dos exércitos;
3. a paz social.
Em troca, ofereciam o culto às
divindades.
O direito penal romano tem penas
atrozes para os transgressores do culto, pois desrespeitar o culto significava
desrespeitar o pacto [...] e a conseqüência da chama apagada pela
não-observância de uma vestal era a infertilidade das mulheres, a derrota do
exército e a desordem social. Esse é o esquema com base em que Roma age da
República até Constantino. Constantino, quando proclama o Edito de Milão,
realiza uma operação muito simples: como os velhos deuses não funcionavam mais,
pensa em substituir o velho Panteão pelo deus dos cristãos, e, ao perceber que
o motor volta a funcionar a pleno vapor e se converte [...] Constantino
continua pagão, ou seja, ligado à mentalidade religiosa clássica, até sua
morte."10
O primeiro Concílio de Nicéia e as
heresias
Por volta de 314, ao menos dois
grandes movimentos heréticos surgidos no norte da África, onde se encontravam
as comunidades cristãs mais numerosas e ricas do Império, preocupavam
Constantino.
O primeiro foi o cisma dos
donatistas, um movimento rigorista, contrário aos compromissos com o poder
imperial, que contava com muitos prosélitos e que, em 311, chegou a eleger em
Cartago um antibispo, em contraposição ao legítimo.
Constantino, após tentar uma
mediação, acabou apoiando o bispo legítimo Ceciliano, subvencionando a Igreja
"oficial", proibindo que os donatistas usassem os locais de culto e
negando o asilo para alguns de seus líderes. Em seguida, seu filho Constante
promoveu uma perseguição ainda mais cruel e sanguinária contra eles.11
O outro movimento era muito mais
perigoso: tratava-se dos agostinianos, um verdadeiro exército de guerreiros em
nome de Cristo.
Os agostinianos eram expoentes de
classes populares com reivindicações políticas e sociais, como a libertação dos
escravos, o perdão das dívidas e o fim dos usurários.
Eles se organizavam em batalhões
armados que realizavam incursões avassaladoras nas grandes propriedades,
incendiando casas e matando as famílias dos latifundiários mais odiados.
Foram massacrados pelas tropas
imperiais.
Na época de Constantino, outra grande
disputa dividia o cristianismo. Principalmente no Oriente, os cristãos haviam
se dividido entre partidários e adversários de Ário, um presbítero da diocese
de Alexandria.
Ário e seus seguidores afirmavam que
o Filho de Deus, ao contrário do Pai e tendo sido por Ele criado, teve um
início; portanto, Cristo representava uma divindade de segundo plano. Foi para
resolver essa questão que Constantino convocou, em 325, em Nicéia (na antiga
Turquia), aquele que ficou na história como o primeiro concilio geral da Igreja
Católica. Dele participaram mais de 300 bispos e prelados, com exceção do bispo
de Roma, que mandou dois representantes.
As conclusões desse primeiro concilio
foram muito importantes para a história da Igreja. A grande maioria dos padres
aprovou um Credo, no qual se afirmava que o Filho fora gerado, e não criado,
com a mesma substância do Pai (em grego, homooüsion, quando, para os
arianos, era apenas homoioúsion, ou seja, "de substância
similar"). Pela primeira vez, foi proclamado dogma, ou seja, verdade
revelada, um termo que não estava contido nas Escrituras (em nenhuma passagem,
o Novo ou o Antigo Testamento afirmam que o Filho é consubstancial ao Pai).
Além disso, os Padres Conciliares
declararam sua crença no Espírito Santo, tradução do hebraico ruah, que
era, no entanto, de gênero feminino.12 A Trindade proclamada pelo
Concilio era constrangedoramente similar à tríade das religiões politeístas. E,
para surpresa, até os bispos arianos aprovaram o novo Credo, salvo por dois deles,
que logo foram exilados.
No Concilio de Nicéia, foram tomadas
outras decisões muito importantes para a vida da Igreja: por exemplo, ficou
estabelecido que apenas outros bispos, e não mais as comunidades que reuniam
todos os fiéis, poderiam consagrar um novo bispo. O território da cristandade
também foi dividido em zonas de influência, sujeitas ao poder, respectivamente,
dos bispos de Roma, Antioquia e Alexandria, que passaram a se chamar
metropolitas. A legitimação da autoridade na Igreja não vinha mais de baixo
para cima, mas de cima para baixo.
O Concilio não marcou o fim do
arianismo. Entre 327 e 328, Constantino reabilitou Ário e alguns de seus
seguidores, e nomeou como conselheiro o bispo ariano Eusébio de Nicomédia, que
o batizaria em seu leito de morte. Pelo contrário, a partir de 326 foram
exiladas dezenas de bispos antiarianos.13
Sucederam-se vários combates entre
facções, com muitos mortos e feridos; concílios e contraconcílios, que
condenavam ora uma tese, ora outra; de exílios e de retornos; de perseguições
por parte de imperadores "arianos" e "niceianos".
Todos os historiadores concordam que
Constantino não entendia nada de questões doutrinárias. A única coisa que lhe
interessava era tornar o cristianismo uma crença homogênea, sem nuances, sem
ambigüidade, livre de conflitos internos perigosos.
Tirando isso, a unidade era uma
obsessão sua: unidade do poder político em torno de sua pessoa e dinastia;
unidade das populações sujeitas a Roma, amalgamadas por uma religião única, na
qual confluíam elementos culturais de origens diferentes; e unidade da Igreja,
obtida impondo-se a todos os crentes a opinião da maioria, ou pelo menos da
maioria dos amigos do imperador, e se estes mudavam, mudava também a política
religiosa do imperador.
As motivações de ordem política e
social eram evidentes na repressão aos donatistas e aos agostinianos.
A história da heresia ariana, no
entanto, foi mais complicada. Nem as teses trinitárias nem as arianas colocavam
em risco o projeto imperial de hegemonia, mas a controvérsia em si representava
um perigo.
Não se podem obter estabilidade e paz
social com uma religião partida em facções que se condenam e renegam
reciprocamente a autoridade e legitimidade da outra. Escolher significava,
contudo, um "mal menor". Provavelmente, o que fez a balança pender
primeiro para uma posição, depois para outra, foram considerações muito
pragmáticas: a cada vez, a efetiva força de uma ou outra corrente ou a
utilidade de seus defensores.
A militarização do cristianismo
Jesus ensinava pela boca dos outros a "dar a outra
face", a "amar os próprios inimigos", mandou Pedro devolver a
espada à bainha e o reprovou: "Quem com a espada fere com a espada
perece" (Mateus, 26, 52).
Talvez nem todos os primeiros
cristãos estivessem dispostos a "dar a outra face" e a sacrificar a
vida, mas, com certeza, entre eles era muito difundido um sentimento de repúdio
às armas.14 Teólogos e bispos, venerados ainda hoje como santos,
escreveram páginas inequívocas sobre o assunto.
Nós, cristãos, não erguemos mais a
espada contra uma nação, não aprendemos mais a arte militar.
O fato é que nos tornamos filhos da
paz, graças a Jesus Cristo, que é nosso Senhor, e desertamos de chefes a quem
serviram nossos antepassados: se aceitássemos suas ordens, nós nos tornaríamos estranhos
à promessa divina.15 Que se diga ao soldado para não matar. Se
receber ordem para matar, que se recuse. Do contrário, que seja afastado [da
Igreja]. Se um catecúmeno ou fiel quiser servir como soldado, que seja
afastado, pois despreza Deus. O cristão não pode se tornar soldado
voluntariamente. Quem carrega uma espada deve prestar atenção para que não faça
escorrer sangue. Se o fizer, não poderá participar dos mistérios."
Quando alguém comete homicídio,
fala-se de crime; mas quando é o Estado que o encomenda, chama-se "ato de
coragem". Aos cristãos não é permitido matar outrem; ao contrário, que
deixem que assassinem a ele.17
Alguns cristãos chegaram a enfrentar
o martírio por se recusarem ao serviço militar, como o jovem Maximiliano. "Não me é lícito prestar serviço militar, pois
sou cristão", e foi decapitado.
As coisas mudaram com a chegada de
Constantino.
O Concilio de Áries, de 314,
excomungou os cristãos que desertaram em tempos de paz.18
O Concilio de Nicéia pareceu retomar
os velhos costumes, tanto que o cânone 12, nele aprovado, dispõe: "Aqueles
que, sentindo-se chamados pela graça, e por zelo a abandonaram a divisa, mas
logo depois, como cães, voltaram atrás, chegando a oferecer dinheiro e
presentes para serem aceitos novamente ao exército, devem permanecer entre os
penitentes por treze anos..." Durante o reinado de Teodósio I, ao
contrário, foram excomungados os relutantes e os desertores.
Os perseguidos se tornam
perseguidores: a repressão ao paganismo
Os cristãos, que ainda exibiam na carne
os sinais das perseguições," tornaram -se perseguidores.
Durante os últimos anos de vida de
Constantino, vários templos pagãos foram demolidos, sobretudo no Oriente.
Outros templos continuaram em atividade, mas foram despojados de tudo que
tinham de precioso: estátuas, objetos preciosos, revestimentos de ouro e prata,
portas de bronze. Muitas obras de arte foram levadas para embelezar a nova
capital: Constantinopla.20
As festas tradicionais pagãs, com
seus jogos circenses e as lutas entre gladiadores, eram cada vez menos
toleradas, com exceção daquelas em homenagem ao imperador e à sua família.
Só em Roma os templos e antigos
cultos continuaram íntegros.
Em 341, Constante tentou proibir os
sacrifícios com um edito.21 Mas a política antipagã dos sucessores
de Constantino bateu de frente com um grande descontentamento por parte do
povo.22
Em 361, subiu ao poder o imperador
Juliano, apelidado de "apóstata" pelos historiadores. Ele tentou
reorganizar a antiga religião politeísta e criou estruturas de assistência aos
pobres, que concorriam com aquelas cristãs. Ao mesmo tempo, assegurou a
liberdade de culto a todas as religiões do Império, inclusive ao judaísmo e às
comunidades cristãs hereges.
Juliano morreu após apenas dois anos
de reinado, e seus sucessores retomaram a política antipagã.
Em 392, o imperador romano Teodósio I
proibiu mais uma vez todos os sacrifícios e cultos pagãos, fossem públicos ou
privados, sob pena de confiscar os locais ou terrenos em que eram realizados.
Os templos foram abandonados. Muitos foram demolidos, outros foram
transformados em igrejas cristãs.
Os pagãos desfilavam em verdadeiros
cortejos de protestos, exibindo suas imagens sagradas. Essas manifestações, por
sua vez, desencadearam a reação dos cristãos e provocaram sangrentos tumultos.23
O imperador Teodósio II (408-450)
mandou punir algumas crianças, culpadas de brincar com restos de estátuas
pagas. E, de acordo com os elogios dos cristãos, Teodósio "seguia
conscienciosamente cada ensinamento cristão".24
Em 415, em Alexandria, uma turba de
fanáticos cristãos linchou a matemática, astrônoma e filósofa neoplatônica
Hipácia, importante expoente da cultura pagã.25
Nos séculos que se seguiram, as
antigas religiões pré-cristãs se tornaram cultos cada vez mais diminutos, ainda
praticados em algum vilarejo camponês perdido (a palavra "paganismo"
deriva, na verdade, do latim pagus, "vilarejo") ou em grande
segredo por alguns intelectuais neoplatônicos.
Mas o paganismo não morreria
completamente. Ele "...revive nas manifestações litúrgicas ligadas à vida
do dia-a-dia, nas libações sagradas e no uso cada vez mais difundido do
incenso, no culto aos santos e às relíquias, que tomam o lugar dos ídolos, na
veneração a algumas árvores, animais, fontes e fenômenos naturais, que vive
ainda nos dias de hoje".26
FONTES
1. Diocleciano, imperador de 284 a 305, criou uma tetrarquia composta por dois "augustos" (ele e Maximiano) e dois "césares" (Constâncio e Galério). Assim, os imensos territórios do Império Romano estavam divididos em quatro áreas, cada uma com um comandante-em-chefe que podia reprimir tempestivamente rebeliões e invasões.
2. Por direito, a sucessão caberia a Flávio Severo.
3. Arnaldo Marcone, Costantino, il Grande, Laterza, Roma-Bari, 2000, p. 22-24.
4. Remo Cacitti, Tolleranza, intolleranza, obiezione di coscienza nel cristianesimo dei primi secoli. In: CIDI Carnia-Gemonese (organizado por), Conoscere Ia storia per insegnare Ia pace - Da Omero al Ruanda, Edizioni Petra, Udine, 1996, p. 49.
5. Ambrogio Donini, Storia del cristianesimo - dalle orígini a Giustiniano, Teti editore, Milão, p. 235.
6. Arnaldo Marcone, op. cit, p. 40-1.
7. Ibid, p. 61.
8. Ambrogio Donini, op. cit, p. 232.
9. Código Teodosiano, IX 24,1.
10. R. Cacitti, op. cit, p. 88-89.
11. Vide aprofundamento no Apêndice.
12. R, Cacitti, op. cit, p. 128.
13. David Christie-Murray, I percorsi delle eresie, Rusconi, Milão, 1998, p. 82.
14. Provavelmente, nem Jesus nem os primeiros cristãos eram pacifistas "sem mais nem menos"; eles simplesmente esperavam que Deus fizesse justiça por eles, de maneira também muito cruel, e consideravam um sacrilégio realizar ações que cabiam a Ele.
15.0rigene, Contro Celso, 5, 33. Origene (185-253, aproximadamente) foi talvez o maior estudioso da antigüidade cristã e até hoje é considerado um dos Pais da Igreja, ainda que muitas de suas proposições, depois, tenham sido consideradas heréticas.
16. Hipólito de Roma, La tradizione apostólica, Roma, Edizioni Paoline, 1979. Hipólito (235-6 aproximadamente) foi um teólogo e escritor de origem grega. Grande adversário de muitas doutrinas consideradas heréticas, ainda é venerado como santo pela Igreja Católica, ainda que tenha sido o primeiro antipapa.
17. Ciprião de Cartago, reitor e bispo de Cartago, mártir e santo. A citação foi extraída da Lettera l,6.
18. Remo Cacitti, op. cit, p. 49.
19. 0 bispo Pafnuzio, por exemplo, um dos participantes do Concilio de Nicéia, foi cegado de um olho
e perdeu um pé durante a perseguição de Diocleciano, cf. R. Cacitti, op. cit, p. 104. 20. Andreas Alfoldi, Costantino tra paganesimo e cristianesimo. Laterza, Roma-Bari, 1976, p. 91-94. 21.b/d, p. 91-94.
22. Ambrogio Donini, op. cit, p. 277.
23. Ibid, p. 287.
24. K. Deschner, Abermals kràhte der Hahn, Stuttgart, 1962, p. 469.
25. Ambrogio Donini, op. cit, p. 287.
26. Ibid, p. 287.
Recomenda-se a leitura dos livros e
sites quando indicados como fontes. Os posts contidos neste blogger são
pequenos apontamentos de estudos.