quarta-feira, 28 de outubro de 2015

A SALVAÇÃO DE LUTERO E A REFORMA PROTESTANTE

A venda de indulgências



No que consistia a doutrina das indulgências? "Acreditava-se que Jesus em pessoa, a Virgem Maria e muitos santos tivessem ganhado, durante sua vida, um surplus de mérito que poderia ser distribuído entre os cristãos menos praticantes da fé e que haviam, ao contrário deles, acumulado um déficit em razão dos pecados cometidos, e, para expiá-los, deveriam passar um longo período de tempo no Purgatório.

Os papas, depositários, através de Pedro, das chaves da Igreja, tinham acesso a esse tesouro e podiam estendê-lo aos pecadores que precisassem de uma diminuição na pena. Estes podiam, assim, privar-se de parte das riquezas acumuladas durante a vida terrena e receber em troca a riqueza espiritual dos santos. Mesmo não sendo possível comprar a salvação, podia-se, no entanto, pagar pela remissão (mesmo total) da pena." (David Christie-Murray, 1998, p. 169.)

O auge dessa prática se deu durante o pontificado de João de Mediei, o Leão X (1513-1521), que lançou uma aberta política de venda de indulgências. Verdadeiros mascates percorreram a Europa vendendo "cartas de indulgência", quase bônus-Paraíso, que podiam ser comprados sem maiores formalidades, mas desconcertando muitos crentes genuínos.

Em 1517, foi divulgada a Taxa Camarae, uma lista das indulgências previstas para os vários pecados, com um tarifário a elas referentes, reportado a seguir:


1. O eclesiástico que incorrer em pecado carnal, seja com freiras, primas, sobrinhas, afilhadas ou, enfim, com outra mulher qualquer, será absolvido mediante o pagamento de 67 libras e 12 soldos.

2.   Se o eclesiástico, além do pecado de fornicação, pedir para ser absolvido do pecado contra a natureza ou de bestialidade, deverá pagar 219 libras e 15 soldos. Mas se tiver cometido pecado contra a natureza com crianças ou animais, e não com uma mulher, pagará apenas 131 libras e 15 soldos.

3.   O sacerdote que deflorar uma virgem pagará 2 libras e 8 soldos.

4.   A religiosa que quiser ser abadessa após ter se entregado a um ou mais homens simultânea ou sucessivamente, dentro ou fora do convento, pagará 131 libras e 15 soldos.

5.   Os sacerdotes que quiserem viver em concubinato com seus parentes pagarão 76 libras e 1 soldo.

6.   Para cada pecado de luxúria cometido por um leigo, a absolvição custará 27 libras e 1 soldo.

7.   A mulher adúltera que pedir a absolvição para se ver livre de qualquer processo e ser dispensada para continuar com a relação ilícita pagará ao papa 87 libras e 3 soldos. Em um caso análogo, o marido pagará o mesmo montante; se tiverem cometido incesto com o próprio filho, acrescentar-se-ão 6 libras pela consciência.

8.   A absolvição e a certeza de não ser perseguido por crime de roubo, furto ou incêndio custarão ao culpado 131 libras e 7 soldos.

9.   A absolvição de homicídio simples cometido contra a pessoa de um leigo custará 15 libras, 4 soldos e 3 denários.

10. Se o assassino tiver matado dois ou mais homens em um único dia, pagará como se tivesse assassinado um só.

11. O marido que infligir maus-tratos à mulher pagará às caixas da chancelaria 3 libras e 4 soldos; se a mulher for morta, pagará 17 libras e 15 soldos; e se a tiver matado para se casar com outra, pagará mais 32 libras e 9 soldos. Quem tiver ajudado o marido a perpetrar o crime será absolvido mediante o pagamento de 2 libras por cabeça.

12. Quem afogar o próprio filho pagará 17 libras e 15 soldos (ou seja, 2 libras a mais que aquele que matar um desconhecido), e se pai e mãe o tiverem matado de comum acordo, pagarão 27 libras e 1 soldo pela absolvição.

13. A mulher que destruir o filho que carrega no ventre e o pai que contribuir para a realização do crime pagarão 17 libras e 15 soldos cada. Aquele que facilitar o aborto de uma criatura que não for seu filho pagará 1 libra a menos.
14. Pelo assassinato de um irmão, uma irmã, mãe ou pai, pagar-se-ão 17 libras e 5 soldos.

15. Aquele que matar um bispo ou prelado de hierarquia superior pagará 131 libras, 14 soldos e 6 denários.

16. Se o assassino tiver matado mais sacerdotes em várias ocasiões pagará 137 libras e 6 soldos pelo primeiro homicídio e a metade pelos seguintes.

17. O bispo ou abade que cometer homicídio por emboscada, acidente ou estado de necessidade pagará, para conseguir a absolvição, 179 libras e 14 soldos.

18. Aquele que quiser comprar antecipadamente a absolvição por qualquer homicídio acidental que possa vir a cometer no futuro pagará 168 libras e 15 soldos.

19.  O herege que se converter pagará, pela absolvição, 269 libras. O filho do herege que tiver sido queimado, enforcado ou executado de qualquer outra forma poderá ser readmitido apenas mediante o pagamento de 218 libras, 16 soldos e 9 denários.

20. O eclesiástico que, não podendo pagar os próprios débitos, quiser se livrar de ser processado pelos credores entregará ao pontífice 17 libras, 8 soldos e 6 denários, e a dívida lhe será perdoada.

21. Será concedida a licença para a instalação de postos de venda de vários gêneros sob os pórticos das igrejas mediante o pagamento de 45 libras, 19 soldos e 3 denários.

22. O delito de contrabando e fraude aos direitos do príncipe custará 87 libras e 3 denários.

23. A cidade que quiser que seus habitantes ou sacerdotes, freis ou monjas obtenham licença para comer carne e laticínio em épocas em que é proibido pagará 781 libras e 10 soldos.

24. O mosteiro que quiser variar a regra e viver com menos abstinência do que a prescrita pagará 146 libras e 5 soldos.

25. O frade que, por conveniência própria ou gosto, quiser passar a vida em um ermitério com uma mulher dará ao tesouro pontifício 45 libras e 19 soldos.

26. O apóstata vagabundo que quiser viver sem obstáculos pagará igual quantia pela absolvição.

27. Igual montante pagarão os religiosos, sejam eles seculares ou regulares, que queiram viajar em trajes de leigo.

28. O filho bastardo de um sacerdote que queira preferência para suceder o pai na cúria pagará 27 libras e 1 soldo.

29. O bastardo que queira receber ordens sagradas e gozar de seus benefícios pagará 15 libras, 18 soldos e 6 denários.

30. O filho de pais desconhecidos que queira entrar para as ordens pagará ao tesouro pontifício 27 libras e 1 soldo.

31. Os leigos feios ou deformados que queiram receber ordenamentos sagrados e ter benefícios pagarão à chancelaria apostólica 58 libras e 2 soldos.

32. Igual quantia pagará o vesgo do olho direito, enquanto o vesgo do olho esquerdo pagará ao papa 10 libras e 7 soldos. Os estrábicos bilaterais pagarão 45 libras e 3 soldos.

33. Os eunucos que queiram entrar para as ordens pagarão a quantia de 310 libras e 15 soldos.

34. Aquele que, por simonia, queira comprar um ou muitos benefícios se dirigirá aos tesoureiros do papa, que lhe venderão os direitos a preços módicos.

35. Aquele que, tendo descumprido um juramento, queira evitar qualquer perseguição e se livrar de qualquer tipo de infâmia pagará ao papa 131 libras e 15 soldos. Além disso, dará 3 libras para cada um que ouviu o juramento.1




TARIFA DA CHANCELARIA E PENITENCIÁRIA DE JOÃO XXII.

1 - Pela absolvição do que tiver violado uma mulher numa igreja, ou cometido outros que tais sacrilégios, 6 gros.

2 - Pela absolvição dum clérigo que mantiver concubinagem, com dispensa de irregularidade, e apesar das proibições provinciais, e sinodais, 7 gros.

3 - Pela absolvição do que tiver cometido incesto com sua mãe, sua irmã, ou qualquer outra mulher que seja sua parente, por sangue ou aliança, ou com a sua madrinha, 6 gros. 

4 - Pela absolvição do que tiver desflorado uma virgem, 6 gros. 

5 - Pela absolvição de um perjúrio, 6 gros.

6 - Pela absolvição do que tiver morto seu pai, sua mãe seu irmão, sua irmã, ou algum parente secular, 5 a 7 gros. pelo morto. (Se o assassínio for um parente, pertencente à Igreja, deverá o matador visitar a Santa Sé.)

7 - Pela absolvição de um marido que tiver espancado sua mulher, e desse espancamento lhe haja resultado aborto, 6 gros.

8 - Pela absolvição duma mulher, que servindo-se de uma beberagem, ou de outra qualquer trama, promover um aborto, 6 gros.

Nota. - No caso de que seja clérigo o homem que tiver administrado a beberagem, ou promovido o aborto, este crime será considerado como o de morte de secular, e a pena será a mesma. 

9 - Pela absolvição de pilhagens, incêndio, roubo e assassinatos de seculares com dispensa, 8 gros. 



Não havia crime, nem o mais cruel, que não pudesse ser perdoado mediante pagamento.

Naqueles anos, o dominicano Tetzel percorreu a Alemanha vendendo cartas de indulgência. Mais tarde, Lutero descreveria sua obra da seguinte forma: 

"Seus poderes e graça foram ampliados de tal forma pelo papa que, se alguém violasse ou engravidasse a Virgem Maria, ele teria perdoado aquele pecado assim que uma quantia de dinheiro suficiente fosse colocada em sua bolsa... Ele redimiu mais almas com as indulgências do que São Pedro com seus sermões; quando era colocado em sua bolsa um dinheiro pelo Purgatório... a alma se elevava imediatamente para o Paraíso; não havia necessidade de comprovar dor ou arrependimento por um pecado se era possível comprar indulgências ou cartas de indulgência. Tetzel vendia até o direito de poder pecar no futuro... qualquer coisa era garantida em troca de dinheiro."2

A venda de indulgências era apenas a ponta do iceberg de um fenômeno geral de corrupção na Igreja da época. Os altos prelados acumulavam mais encargos e as relativas prebendas. Os bispos não residiam nas sedes a eles designadas: por exemplo, um nobre de Ferrara podia ser nomeado arcebispo na Hungria e nunca sair de sua casa, limitando-se a receber o dízimo dos fiéis de cujas almas devia cuidar.

O título de cardeal (que era o "príncipe", também em sentido terreno) muitas vezes não era resultado de um longo percurso espiritual, mas da venda ou concessão do papa a parentes e amigos. Quem podia se permitir o comprava para o filho caçula ou ilegítimo, por vezes adolescente, como uma renda vitalícia. O próprio Leão X (1513-1521) se tornara cardeal aos 13 anos.

Os pontífices eram, em todos os aspectos, soberanos renascentistas. Como os reis, eliminavam os adversários e se cercavam de homens de confiança. Como os reis, usavam a intriga e o homicídio político, como o papa Alexandre VI Bórgia (1492-1503), por exemplo, e seu filho César. Como os reis, declaravam guerra contra seus inimigos e conduziam as tropas na batalha; o papa Júlio II (1503-1513) foi retratado em armadura.3 Como os reis, tinham concubinas e filhos bastardos. E, como os reis, amavam as artes e protegiam os artistas. Mas os cuidados com as almas nada tinham a ver com tudo isso.


Martinho Lutero




Lutero (1483-1546) foi ordenado sacerdote em 1507, após ter concluído brilhantes estudos universitários. Atormentado com o sentido do pecado, sua ânsia o levou a elaborar uma nova doutrina da Salvação, em contraposição à católica. Para Lutero, a absolvição do pecado derivava de uma relação direta entre Deus e o fiel, que poderia ser obtida apenas através da própria fé, não por meio de obras e, muito menos, com a compra de indulgências ou a intervenção de um confessor.4

Lutero defendeu o direito que cada fiel tem de ler e interpretar as Escrituras, negou a autoridade jurisdicional do papa, dando início a uma vigorosa polêmica contra a corrupção da Igreja de Roma, e contestou o poder temporal do clero. Negou também a validade de alguns sacramentos e o valor do celibato eclesiástico.

Em 31 de outubro de 1517, afixou na porta de uma igreja as "95 teses para esclarecer a eficácia das indulgências", que suscitaram grandes polêmicas e tiveram ampla difusão em toda a Alemanha.

Em 15 de junho de 1520, uma bula papal condenou algumas proposições luteranas, ordenando que fossem queimadas. Lutero, em compensação, queimou, diante de uma multidão que o aplaudia, o que ele mesmo chamava de "execrável bula anticristo".

Em 1521, apresentou-se à Dieta de Worms com o salvo-conduto do imperador Carlos V. Ao final de uma acirrada discussão teológica, Lutero declarou que não podia se remeter à autoridade do papa e dos concílios, até porque estes muitas vezes se contradiziam, mas apenas à das Sagradas Escrituras.

Excomungado pela Igreja e banido pelo imperador, continuou suas atividades ou, ao menos, deu início a um projeto ambicioso: a tradução das Escrituras para o alemão. Lutero, com grande probabilidade, salvou-se da fogueira por um conjunto de fatores deliciosamente políticos: o favor de alguns príncipes alemães, dentre os quais estava o eleitor da Saxônia, que o escondeu no castelo de Wartburg encenando um falso rompimento; a desconfiança do papa com relação a Carlos V, cuja influência se tornara preponderante na Itália; o fato de que o próprio Carlos V, nos anos seguintes, estivesse ocupado demais com guerras contra turcos, franceses, venezianos e o próprio Estado Pontifício.

As teses luteranas eram populares entre os príncipes alemães, que desejavam se apoderar dos bens dos grandes eclesiásticos: latifúndios enormes com vários servos da gleba e que gozavam de amplos privilégios fiscais, quase Estados dentro dos Estados.

Lutero também gozava de grande admiração entre o povo, que reconhecia em algumas de suas declarações as próprias aspirações de justiça social. Mas as expectativas de muitos, sob esse ponto de vista, não foram atingidas.

Em 1524, eclodiu nos territórios do Império uma gigantesca rebelião camponesa. Bandos armados compostos de cerca de trezentos mil camponeses saquearam igrejas, castelos e cidades. Lutero, depois de tentar inutilmente uma mediação, escreveu o tratado Contra os bandos arruaceiros e assassinos dos camponeses, uma espécie de carta aberta aos príncipes alemães pedindo para conter os rebeldes. "Esta é a época da ira e da espada, não a da graça [...] Por isso, caros senhores [...] matem, esganem, estrangulem quem puderem [...] e se alguém julgar tudo isso duro demais, pense que a sedição é insuportável e que a cada momento é preciso esperar a catástrofe do mundo."5

Os príncipes católicos e protestantes acolheram o convite e massacraram os rebeldes. Uma das características da Igreja Luterana foi o direito de envolvimento dos príncipes na gestão eclesiástica. O soberano de um Estado se tornava o chefe da Igreja nacional.

Os escritos de Lutero tiveram ampla difusão na Europa, com exceção, talvez, apenas da Itália, onde desencadearam uma severa repressão. Os sermões luteranos se difundiram em muitos países europeus, em alguns casos fornecendo combustível para as fogueiras, em outros, com sucesso, transformando a Reforma em religião de Estado (que perseguiu, por sua vez, os católicos).

A Dinamarca se tornou protestante com o reinado de Cristiano III (1534-1559). Os bispos católicos foram presos e substituídos pelos luteranos, as propriedades eclesiásticas foram confiscadas e utilizadas para manter o Estado e financiar a cultura. O rei era o chefe da Igreja. A Bíblia foi traduzida para o dinamarquês.

Posteriormente, Cristiano III estendeu a própria soberania também sobre a Noruega e a Suécia. Na Noruega, os soldados luteranos demoliram algumas igrejas católicas, e todos os bispos foram expulsos, com exceção de dois que se converteram ao luteranismo. Na Suécia, as doutrinas reformadas penetraram de maneira mais suave e "em diálogo" com Roma. A ruptura só aconteceu em 1523, quando o papa se recusou a ratificar a nomeação de quatro bispos suecos enquanto não se pagassem as anonas (um dos tantos tributos que os reinos cristãos deviam à Santa Sé). O rei da Suécia respondeu que o país era pobre demais para pagar e nomeou ele próprio os bispos.

Dos países escandinavos, o luteranismo se propagou pelas regiões bálticas. Na Finlândia, tornou-se religião de Estado. A Islândia, no século XVI, estava subordinada à Dinamarca, e o luteranismo chegou com os mercadores e doutos que tinham estudado no continente (a Universidade de Wittemberg tornara-se um importante centro de difusão cultural), mas sobretudo pela influência de Cristiano III, contestada em vão por um bispo local e seus dois filhos. Os prelados católicos foram depostos, e seus bens, confiscados. Contudo, a Igreja Reformada manteve várias práticas católicas, como a da confissão e a adoração a alguns santos locais.

Na Boêmia, a Reforma se difundiu graças aos estudantes hussitas formados em Wittemberg. Os alemães da Boêmia se tornaram luteranos; os eslavos, calvinistas, mas depois as duas correntes elaboraram uma confissão de fé unitária para enfrentar melhor os soberanos católicos, o que deu ensejo a uma violenta reação dos católicos em geral e dos jesuítas em particular. Até o final do século XVI, calcula-se que 90% dos boêmios fossem protestantes.

Na Hungria, a Reforma também se difundiu através de diretrizes "étnicas": alemães e eslavos se voltavam preferivelmente ao luteranismo; os magiares, com algumas exceções, ao calvinismo. Vários fatores ajudaram a obra dos reformadores.

Em primeiro lugar, a corrupção que se espalhou entre o clero e os leigos católicos. Os hussitas e (provavelmente) os valdenses abriram o caminho.

A invasão turca à Hungria, em 1541, auxiliou na instituição da Reforma tanto indireta (muitos líderes católicos foram mortos em combate contra os turcos) quando diretamente: as forças de ocupação turcas favoreceram os protestantes em detrimento dos católicos, mais temidos por sua propensão às Cruzadas e sua ligação com o imperador.6

Na Transilvânia, alguns decretos de 1568 e 1571 garantiram direitos iguais a católicos, calvinistas, luteranos e unitaristas.


João Calvino




Calvino (1509-1564), francês, foi o fundador da Igreja Calvinista, outro grande culto reformado que se espalhou pela Europa talvez com um sucesso ainda maior que o luterano. Para Calvino, o pecado original transmitido por Adão a toda a humanidade tornou os homens incapazes de redenção. Apenas os eleitos, que haviam recebido uma graça especial de Deus, poderiam se salvar; todos os outros estavam predestinados à danação.7

Com base nessa afirmação, ninguém além de Deus podia saber com certeza quem eram os eleitos, embora a profissão de fé, uma vida correta e a observância dos sacramentos fossem provas evidentes do favor divino. Existem, assim, duas Igrejas: uma invisível, formada pelos eleitos vivos e mortos e conhecida apenas por Deus; e uma visível, composta também de homens indignos, imperfeita, mas passível de melhoras, e os cristãos deveriam respeitar sua autoridade.8 Obviamente, quando falava de "Igreja visível", Calvino se referia àquela fundada por ele próprio. A Igreja e o Estado eram partes integrantes da mesma comunidade sagrada. Entre os deveres do Estado, havia o de defender a religião e evitar as ofensas contra ela. A pena capital e, dadas as condições, a guerra eram consideradas práticas legítimas e admissíveis para um cristão.

Graças à sua influência, a República de Genebra se transformou em um regime teocrático, o que lhe conferiu um incrível impulso para o comércio, os investimentos e a educação. Um conselho eclesiástico cuidava da moralidade dos cidadãos, cominando penas severas até mesmo para pequenas infrações, e se ocupava dos crimes de heresia.9

Considerado herege e banido da Igreja de Roma, Calvino, por sua vez, teve um comportamento muito duro com os dissidentes de sua doutrina.10

O calvinismo se difundiu em vários países, às vezes em detrimento do luteranismo, como em Estrasburgo, onde muitos reformados aderiram à nova crença, incentivados pela intransigência dos luteranos mais radicais. No Palatinado, tornou-se religião de Estado, e o governo perseguiu católicos e luteranos.11


Os huguenotes


Catarina de Médici examina os corpos dos protestantes mortos na Noite de São Bartolomeu


Na França, a Reforma se difundiu sobretudo no sul do país, onde três séculos antes pregavam os cátaros e os valdenses. Os calvinistas franceses eram apelidados de "huguenotes". A disciplina e a moral rígida que os caracterizavam lhes permitiram exercer grande influência na vida pública francesa, embora representassem uma pequena minoria dentro de um país quase totalmente católico.

As autoridades francesas adotaram uma política que se alternava entre tolerância e repressão aos calvinistas e outras minorias religiosas. A repressão não poupou nem os seguidores do bispo católico reformista de Meaux, Guillaume Briçonnet (1492-1549), confessor de Margarida, irmã do rei, que foram lançados à fogueira. A Sorbonne proibiu livros de reformistas, o Parlamento os baniu e decretou a destruição de muitas cidades habitadas por comunidades hereges.

Em 1535, para vingar uma suposta profanação da hóstia sagrada, foram queimados seis hereges, um por cada uma das estações que compunham a solene procissão do Corpus Domini.12

O ano de 1572 pareceu presenciar um período de paz na luta entre católicos e huguenotes. As núpcias entre a católica Margarida, irmã do rei da França, e o protestante Henrique, rei de Navarra, estavam previstas para o dia 28 de agosto. Mas na noite de São Bartolomeu (24 de agosto), em Paris, os soldados do rei da França entraram nas casas dos huguenotes e os mataram em emboscadas. Poucos encontraram abrigo, todas as ruas haviam sido bloqueadas. Nos dias que se seguiram, o massacre se estendeu também a outras cidades francesas e aos campos. Calcula-se que, em Paris e arredores, foram mortos entre 25 mil e 35 mil huguenotes.

O papa Gregório XIII (1572-1585), assim que foi informado do massacre, ordenou que o acontecimento fosse comemorado com festas solenes e celebrou um jubileu "no qual os fiéis deveriam agradecer a Deus pela destruição dos huguenotes e pedir que absolvesse, por completo a França católica".13 Finalmente, encarregou Vasari de imortalizar o feito em um afresco na Sala Regia do Vaticano.

As contendas religiosas, que se misturaram às dinásticas pelo trono da França, só tiveram fim em 1594, quando Henrique IV se tornou rei dos franceses, um protestante convertido ao catolicismo. "Paris vale uma missa", frase que lhe foi atribuída, diz tudo sobre as relações entre política e religião.

Em 1598, foi promulgado o Edito de Nantes, que garantia aos huguenotes a liberdade de culto e o controle, a título de garantia, de algumas cidades fortificadas. Apesar disso, as perseguições não cessaram.

Em 1621, os huguenotes assinaram, na cidade fortificada de La Rochelle, uma verdadeira declaração de independência. A cidade foi tomada em 1628, após um longo sítio. Os reformistas perderam, assim, sua cidade e foram obrigados a pagar pesadas taxas, sendo excluídos por lei do exercício de algumas profissões.

Em 1680, novas perseguições se iniciaram (Luís XIV, o Rei Sol, não tolerava nenhuma forma de autonomia no próprio reino). Alguns protestantes emigraram, outros se converteram à força, por meio de missionários escoltados por bandeiras de dragões (as forças francesas mais ferozes). Dizem que, em três dias do ano de 1684, foram convertidos sessenta mil huguenotes.

Em 1685, o Edito de Nantes foi ab-rogado, provocando um novo êxodo de protestantes. Nas montanhas de Cevennes, um grupo de três mil reformistas guiados, ao que parece, por alguns "profetas-meninos", desafiou um contingente de seis mil soldados do exército francês.


Henrique VIII e a Reforma inglesa




A Igreja Anglicana nasce graças a Henrique VIII"(1509-1547), conhecido por ter tido seis mulheres (duas repudiadas, duas decapitadas e uma morta no parto). Henrique iniciara seu reinado com o marco da ortodoxia católica: seguidores das teses luteranas, como o estudioso Thomas Bilney e o sacerdote William Tyndale, que traduziu para o inglês o Novo e grande parte do Antigo Testamento, acabaram na fogueira. Ele próprio escreveu (ou mandou escrever) um libelo antiprotestante e foi nomeado Defensor Fidei (defensor da fé) pelo papa. Em 1509, casou-se com Catarina de Aragão, viúva de seu irmão mais velho, Artur, após ter obtido uma dispensa especial do papa (as leis da época proibiam casamento entre cunhados).

Por volta de 1527, não havendo tido nenhum filho homem de sua união e desejoso de um herdeiro para sua dinastia, Henrique tentou obter do papa a anulação do casamento, para poder se casar com Ana Bolena. O papa indeferiu o pedido, provavelmente porque temia ofender o imperador Carlos V, sobrinho de Catarina, que já havia saqueado Roma com suas tropas.

Henrique entrou em controvérsia com a Igreja Católica. Em 1531, a assembléia geral do clero o nomeou "chefe supremo da Igreja na Inglaterra" e doou uma notável quantia em dinheiro à Coroa. Em seguida, o Parlamento decretou que os impostos religiosos não fossem mais pagos ao papa, mas ao rei, e que a Igreja Anglicana podia deliberar sobre as próprias questões internas, sem recorrer a Roma.

Quando o papa excomungou Henrique, o parlamento inglês ab-rogou o chamado "Óbolo de Pedro", uma taxa papal imposta a todas as famílias pela Igreja de São Pedro, e proclamou o rei o "único chefe supremo em Terra da Igreja na Inglaterra". Qualquer referência ao papa foi tirada das missas.

Forest, um frei praticante, defensor da autoridade absoluta do papa nas questões de fé, foi acusado de heresia e queimado na fogueira junto com um ídolo de madeira venerado em Gales. Thomas Moore e o bispo Fisher também foram decapitados por sua fidelidade a Roma.

Em todas as igrejas, apareceram uma Bíblia em latim e uma em inglês, para que os leigos lessem diretamente as Escrituras e verificassem como muitas doutrinas e costumes católicos não correspondiam aos textos sagrados. Os mosteiros foram saqueados e destruídos, e seus bens foram confiscados e vendidos.

A ruptura com Roma não significou a automática adesão às doutrinas luteranas, muito pelo contrário. Henrique VIII em pessoa, junto com seus bispos, julgou o caso do luterano John Nicholson, que foi condenado e mandado à fogueira apesar de seu pedido de perdão.

Sob o reinado de Henrique e o breve governo de Eduardo VI, os artigos da fé da Igreja Anglicana foram reescritos várias vezes, alternando posições reformistas e "católicas", às vezes com resultados tragicômicos. Em 1539, foram promulgados os Seis Artigos, que reformulavam vários aspectos da doutrina católica, como o celibato eclesiástico. As infrações seriam punidas com a fogueira ou com o enforcamento. O arcebispo Cranmer, que se casara, teve de esconder a mulher. Em 1543, seis pessoas foram executadas num único dia: três queimadas por heresia e três enforcadas por negarem a supremacia religiosa do rei.     

             
Maria, a Sanguinária, e Elisabete I


Maria, a Sanguinária


Em 1553, a reação católica levou ao poder Maria I (chamada também de Maria, a Católica; ou Maria, a Sanguinária), filha de Henrique VIII e de Catarina de Aragão.

Durante seu breve reinado, ela ab-rogou todos os provimentos de Henrique VIII e Eduardo e retomou as leis contra os hereges. Muitos protestantes fugiram do país e os bispos católicos retomaram a posse de suas sedes. Foram instituídas comissões especiais com a tarefa de encontrar e processar os hereges em todo o território do reino. Em cinco anos, 282 pessoas foram mortas por heresia.


Elizabeth I


Elisabete I (1558-1603) escolheu o meio-termo, criando uma igreja autônoma cujos artigos de fé representavam um compromisso entre instâncias católicas, luteranas e calvinistas e contentaram grande parte dos cristãos da Inglaterra. Ela conservou a oposição ao extremismo: de um lado, aos jesuítas, que ordenaram vários complôs contra a rainha; de outro, aos puritanos.

Em 1570, Elisabete foi oficialmente excomungada por Roma (lembremos que esse ato, que excluía os súditos da obrigação de fidelidade, representava um grave perigo para a autoridade e a própria vida do monarca), ao que respondeu perseguindo, sem hesitar, os católicos. Das 187 pessoas mortas durante seu reinado, 123 eram sacerdotes católicos ou jesuítas.


Puritanos e anglicanos


Puritanos


A Igreja da Inglaterra fora dividida em duas: de um lado, os puritanos, integralistas da religião, que rejeitavam liturgias e hierarquias eclesiásticas, mas eram impiedosos com os "pecadores"; de outro, os anglicanos, partidários do poder, mais tolerantes com o pecado, mas impiedosos com os puritanos.

Os puritanos (rótulo que na verdade englobava uma constelação de movimentos muito diferentes entre si) professavam o sacerdócio universal, defendiam a igualdade de todos os ministros do culto contra a hierarquia dos bispos e condenavam como "idolatras" a missa e outros rituais anglicanos adaptados dos católicos. Seu programa "político-social" previa punições severas contra blasfemos, caluniadores, perjuros, fornicadores e alcoólatras, além da pena de morte "sem salvação" para os adúlteros. O Parlamento inglês apoiou seus pedidos. Seus adversários eram a monarquia e o clero institucional. A luta entre uma Igreja Alta, aliada ao poder real, e uma Igreja Baixa, muito influente no Parlamento, duraria quase um século, intercalando-se com os vários fatos históricos da época.14

Os anglicanos emanaram leis muito severas contra os puritanos: quem não participasse da missa seria punido com o exílio. Quem fazia "reuniões religiosas particulares" era condenado a penas graves (o pregador John Bunyan foi preso por 12 anos). Os escritores e pregadores puritanos corriam o risco de ser colocados na berlinda, açoitados, marcados com fogo ou ter o nariz e as orelhas arrancados.




A guerra civil e o período do Commonwealth (1649-1659) marcaram um breve triunfo dos puritanos, que conseguiram abolir a instituição dos bispos. Mas a sucessiva restauração voltou a fazer a balança pender para o lado dos anglicanos, que reinstauraram à força a hierarquia eclesiástica. Só os católicos nunca tiveram seu instante de triunfo e foram cuidadosamente perseguidos durante todo o século XVII, acusados de conjuras verdadeiras (como a dos pós) ou inventadas, e excluídos dos cargos públicos. Em 1689, um Ato de Tolerância garantiu liberdade de culto a batistas, presbiterianos, congregacionalistas e quacres, mas não aos católicos e unitaristas.


Na Irlanda, os católicos se rebelam

Apesar do cisma de Henrique VIII, os irlandeses continuaram tenazmente ancorados pela Igreja Católica. O arcebispo de Amagh declarou que "esta ilha não pertence a ninguém além do bispo de Roma, que a entregou aos antepassados do soberano". Em todas as dioceses, enfrentaram-se dois bispos rivais, nomeados respectivamente pelo papa e pelo rei.

A destruição dos mosteiros revelou-se uma verdadeira catástrofe para o povo irlandês, já que eram os únicos centros de difusão da cultura e da assistência. A destruição das imagens sagradas gerou o horror dos fiéis. Bispos e eclesiásticos anglicanos comportaram-se com grande arrogância em relação aos irlandeses, não se preocupando nem em convertê-los. Os habitantes da ilha, apoiados pelos jesuítas a partir de 1542, reagiram criando a Liga Católica, para se defender da obrigação de freqüentar as igrejas protestantes e para difundir a instrução. A existência de uma oposição católica organizada representaria um obstáculo durante todo o reinado da rainha Elisabete.


 FONTE DE ESTUDOS

1.   Pepe Rodriguez, Verità e menzogne delia Chiesa Cattolica, Roma, Editori Riuniti, 1998, p. 263-266.
2.   David Christie-Murray, I percorsi delle eresie, Milão, Rusconi, 1998, p. 180.
3.   Uma sátira de Erasmo de Rotterdam imaginava que o defunto Júlio II, subindo aos céus, foi deixado do lado de fora do Paraíso. Ele, então, tentou tomar militarmente o Reino dos Céus.
4.   Para um aprofundamento sobre a doutrina de Lutero e sobre a Reforma, cf. Luise Schorn-Schütte, La Riforma protestante. Bolonha, Il Mulino, 1998.
5.   David Christie-Murray, op. cit, p. 202.
6.   Ibid., p. 203.
7.   Ibid., p.205.
8.   ítalo Mereu, Storia dell'lntoleranza in Europa, Milão, Bompiani, 2000, p. 89.
9.   David Christie-Murray, op. cit, p. 247.
10. Ibid., p. 247-8. 11.Ibid.,p.212.
12. Ibid., p. 212.
13. Ibid., p. 213.
14.0 rei Jaime da Inglaterra adotou uma política religiosa"centrista": discriminou tanto católicos quanto extremistas puritanos, atraindo para si o ódio de ambas as facções. Em 1605, alguns notáveis católicos organizaram uma conspiração para matar o rei: uma câmara subterrânea localizada embaixo da Câmara dos Lordes foi cheia de barris de pólvora e barras de ferro. A idéia era explodir o palácio quando o rei Jaime lá entrasse, junto com seus herdeiros. No último momento, uma denúncia anônima mandou o plano pelos ares. Guy Fawkes, que deveria ter sido o executor material do crime, não foi avisado por seus cúmplices e, assim, em 15 de novembro, dirigiu-se à cela subterrânea com uma tocha e foi preso pelos agentes reais que lá estavam. Fawkes foi enforcado em 1606, junto com três supostos cúmplices. O 5 de novembro é celebrado até hoje pelos católicos irlandeses, e Fawkes é lembrado corno uma espécie de mártir.

Saber Mais:
Martinho Lutero









terça-feira, 27 de outubro de 2015

AS BRUXAS







Justificar que a classe dominante da religião cristã composta de filósofos e doutores, por mais de quinhentos anos, mataram crianças e mulheres adultas para salvar-lhes a alma do suplício eterno, quando você mesmo, sem os conhecimentos doutrinários dos inquisidores, sabe perfeitamente que bruxas nunca existiram, cai por terra o argumento de que "aquele era o pensamento da época", mesmo por que a confissão sob tortura não goza da presunção de veracidade. Mesmo assim São Tomaz de Aquino proclamava que os heréticos deviam ser torturados (São Agostinho) ou mortos logo de uma vez.

Martinho Lutero e João Calvino defendiam o assassinato em massa de heréticos, apóstatas, judeus e feiticeiras.


Naturalmente você é livre para interpretar esta página negra do cristianismo - mas não é espantoso que você tenha conseguido discernir os verdadeiros ensinamentos do Cristianismo, enquanto os mais influentes pensadores na história da religião falharam nesse ponto?










Dor sem conselho, saco sem fundo, febre contínua que nunca termina, besta insaciável, folha levada pelo vento, bastão vazio, louca desvairada, mal sem nenhum bem, em casa um demônio, na cama uma vadia, na horta uma cabra, imagem do Diabo.

Em geral, falar de caça às bruxas significa voltar à época medieval. A perseguição em massa e os massacres, no entanto, continuaram muito depois desse período. As grandes ondas repressivas contra as bruxas e os hereges aconteceram, na verdade, de 1480 a 1520, período ao qual sucederam uma relativa pausa e uma nova onda de perseguições de 1580 a 1670.

Aquela que na Idade Média fora uma guerra aberta contra populações inteiras que haviam escolhido uma vida comunitária (como os cátaros e dulcinistas) se transformou em uma perseguição de estilo policial em larga escala destinada a extirpar a erva daninha da desobediência,

A legislação cristã logo passou a cuidar da bruxaria, associando-a ao paganismo e considerando-a uma forma de heresia. "A motivação era tipicamente teológica: quem usa as artes da magia rejeita o poder livre e libertador do Deus de Jesus, enquanto tenta estabelecer uma espécie de domínio sobre realidades terrenas [e] sobre a vida humana em si." (Benazzi, D'Amico, 1998, p. 258-9.)

Os primeiros mandantes do fenômeno eram muito céticos acerca da real existência dos poderes sobrenaturais das bruxas e magos. O Cânone Episcopal, um documento eclesiástico do século XIX, diz: "Não nos esqueçamos das mulheres desventuradas que se ofereceram a Satanás, sessões de encantamento e fantasmas de origem diabólica, afirmaram terem montado animais durante a noite junto à deusa paga Diana e fizeram isso com várias outras mulheres... Muitas se deixaram enganar por essas coisas e acham que tudo é verdade, afastando-se da verdadeira fé [...] Mas quem pode ser tão tolo a ponto de crer que tudo isso acontece [...] e corporalmente?"2

Enfim, quem praticava bruxaria cometia um pecado grave, mas as artes mágicas em si não representavam um perigo.

A partir do século XI e até a metade do XIII, a atenção da Igreja se concentrava mais nas heresias, como as dos cátaros e valdenses, e o mundo do ocultismo foi, em parte, ignorado.


Bruxaria e heresia

As coisas começaram a mudar depois do nascimento da Inquisição. O deslocamento da perspectiva entre as primeiras e brandas perseguições e as sucessivas, mais sistemáticas, é fundamental. Segundo essa nova visão, na verdade, o Demônio se torna um ser físico, que pode possuir e ter aliados na Terra, que tem um exército próprio e uma Igreja. A batalha entre o bem e o mal se concretiza transformando-se em uma guerra em sentido físico, além do metafísico.

Em 1258, Alexandre IV condenou as práticas mágicas. Em 1320, João XXII encarregou os inquisidores de Toulouse de intervir contra os bruxos. Em 1436, o juiz Claude Tholosan declarou que os magos e bruxas não tinham direito a indulgências da Igreja e considerou suspeitas até práticas populares aparentemente inócuas, como a colheita das plantas durante a festa de Santo Antônio. Em 1451, Nicolau V exortou os inquisidores a punir os adivinhos mesmo quando não houvesse uma condição evidente de heresia: a Inquisição podia, assim, atingir também a superstição popular.3 Por volta do final do século XV, o bispo de Paris determinou a excomunhão a qualquer um que lesse as mãos.

Durante todos os séculos XIV e XV, sucederam-se, com preocupante aumento, vários tratados sobre bruxaria e intervenções de juristas sobre o assunto. Será dito que, no instante em que aceitam ter relações com o Demônio, as bruxas se mancham com o crime de heresia. Ou melhor, elas chegam a constituir uma verdadeira seita que luta pela destruição da Igreja.

Aos hereges também são atribuídos malefícios e pactos diabólicos. Os Templários foram acusados de heresia, bruxaria e de adoração a um ídolo chamado Bafometo. Os valdenses de Arras, processados durante o século XV, confessaram, sob tortura, a filiação a uma seita de adoradores do diabo. Eles iam voando aos sabás, onde abjuravam a religião cristã e blasfemavam contra Deus, a Trindade e Nossa Senhora.4

Os cátaros foram acusados de ter o nome derivado de Cato, demônio que adoravam.

O objetivo de tais comparações é claro: se as bruxas eram por definição hereges, então hereges também eram os magos. Assim, bruxas e hereges constituíam um único grande inimigo comum do poder espiritual e do civil. Sem contar que o rótulo de "mago" contribuía para queimar a terra em volta dos pregadores heréticos e tornava mais fácil atiçar o ódio do povo contra eles.

A bula papal Summis desiderante affectibus, promulgada por Inocêncio VIII, em 5 de dezembro de 1484, marcou a data de início daquilo que se tornou um verdadeiro extermínio em massa de mulheres e homens acusados de bruxaria. Nesse documento, o papa, alarmado pelas notícias provenientes do norte da Alemanha, onde parecia que os cultos satânicos e a bruxaria tinham muitos adeptos, dava aos inquisidores plenos poderes para extirpar o fenômeno.5

Dois anos depois, foi o poder leigo que interveio. O imperador Maximiliano da Áustria emanou uma ordem na qual convidava todos os bons católicos a ajudar os inquisidores em sua obra.







No mesmo ano, saiu o Malleus Maleficarum (Martelo das feiticeiras), um verdadeiro tratado reproduzido através da nova técnica da prensa inventada por Gutenberg, que descrevia por completo o mundo das bruxas, seus malefícios, como reconhecê-las e como conduzir os interrogatórios. A tese do Malleus era que a bruxaria existia e que era uma forma de heresia, assim como negar sua existência era um comportamento herético. Seus autores, Krämer (vulgo Institoris) e Spengler, são dois teólogos dominicanos. Krämer, em especial, era um conhecido e incansável inquisidor internacional, famoso por perseguir os valdenses, hussitas e as bruxas. Sua conduta na Alemanha meridional atraiu para si o desprezo dos eclesiásticos locais e o ódio da população, que chegou a um passo da revolta. Ele atuou também na diocese de Bressanone, mas o bispo Georg Golser o afastou em razão de sua crueldade e arbitrariedade, que mais uma vez contribuíram para atrair a ira do povo. O Martelo das feiticeiras, que foi impresso até 1669, tornou-se um verdadeiro best-seller na época.

Muitos outros "caçadores de bruxas" escreveram dissertações sobre o assunto, dentre os quais Jean Bodin, obstinado inquisidor e perseguidor que, por sua vez, foi acusado de heresia, e Henry Boguet, inquisidor suíço que entrou para a história por pedir a condenação à morte de algumas crianças acusadas de bruxaria.6

As áreas mais atingidas pela caça às bruxas foram Artois, Flandres, Hinaut, Cambrésis, Brabante, Luxemburgo, Lorena, Renânia, as regiões do sul da Alemanha, a Borgonha, os Países Bascos e o Piemonte.7

De certo ponto de vista, a caça às bruxas tornou-se uma gigantesca guerra do poder masculino contra as mulheres e contra as últimas formas de matriarcado.

Por exemplo, foi tirado do gênero feminino o "poder" de curar os males e assistir no parto, entregando-os ao monopólio da casta masculina dos médicos. O Malleus Maleficarum afirma claramente que "ninguém prejudicou mais a Igreja do que as parteiras". Não é preciso se esforçar muito para encontrar na literatura, na teologia, mas também nos tratados de medicina da época, afirmações de forte desprezo, se não de ódio, às mulheres. Um exemplo de Laurent Joubert, médico do século XVI, afirma: "Por si mesmo indiferente é o sêmen... este muitas vezes degenera na fêmea por causa da frieza e da umidade... e pela abundante presença de sangue menstrual cru e indigesto."8 Por outro lado, Tommaso Campanella escreveu: "As mulherzinhas, que consomem um péssimo alimento, ou pelo sangue menstrual, ou pelos excrementos retidos no útero tomado de vapores da concepção, acabam perturbadas e realizando atos para receberem os demônios."9

Homens e personalidades de alta estirpe também foram condenados à fogueira, mas isso não impede que a grande maioria das vítimas fosse de mulheres pobres, muitas vezes à margem da sociedade. Às vezes, a figura da bruxa parteira/curandeira se confundia com a da prostituta. Então, reaparecia um personagem social de grande poder que ainda possuía a linfa das sacerdotisas dos cultos matriarcais. Não sabemos quanto disso era real e quanto era uma fantasia dos inquisidores. É verdade, no entanto, que, em algumas localidades (por exemplo, nos territórios eslavos), os cultos matriarcais que remontavam a quatro, cinco mil anos antes de Cristo sobreviveram por muito tempo, até depois do século XVII, às vezes camuflados de ritos cristãos, às vezes praticados pelo povo às escondidas — como aconteceu por muito tempo com os ritos matriarcais dos escravos negros nas Américas.


A louca engrenagem da Inquisição

No final do século XV, a Inquisição já era uma máquina bem lubrificada e rodada para eliminar os hereges. O sucesso e a carreira dos inquisidores dependiam do número de processos julgados e das condenações executadas. Também se acreditava que o povo devia se sentir constantemente ameaçado pela visão dos castigos exemplares, para não ousar sair do recinto da verdadeira fé. As fogueiras e as mortes em praça pública serviam de exemplo.

Por sorte, não faltaram pessoas que se opuseram ao clima da época, como o filósofo e matemático Nicolau de Cusa. Em 1457, ele julgou, na qualidade de bispo de Bressanone, o caso de duas mulheres que haviam confessado ter sido transportadas a um sabá por uma misteriosa mulher chamada Richella, após terem abandonado a fé cristã e terem visto homens devorando crianças não batizadas.

De Cusa encerrou o caso como se fosse um sonho e condenou as mulheres a uma simples penitência. A crença na bruxaria, de acordo com o raciocínio do bispo, alimentava nas pessoas o medo do diabo, a ponto de fazê-las acreditar que este fosse mais poderoso que o próprio Deus.10

Em 1489, Urlich Müller declarou que as bruxas não eram nada além de mulheres pobres dominadas por uma ilusão diabólica. No início do século XVI, o frei Samuel De Cassinis chegou a acusar os inquisidores de heresia, pois acreditavam nos sabás, e lutou para que os tribunais devolvessem aos parentes das bruxas executadas os bens que haviam confiscado. O humanista Andréa Alciato, em 1544, afirmou a inutilidade da perseguição às bruxas. Em 1553, o médico Johann Weyer afirmou que as bruxas eram apenas pobres mulheres vítimas de alucinações. Por causa dessa teoria, foi atacado violentamente pelos teólogos católicos e protestantes.11 Em 1594, Reginald Scot publicou um livro contra os excessos cometidos durante a caça às bruxas. As cópias do volume foram queimadas por ordem do rei da Escócia.

No início do século XVII, o renano Cornelius Loos tentou inutilmente mandar imprimir uma obra em que acabava com a fantasia dos sabás, das cavalgadas noturnas e das negociações som o demônio. Ele foi o primeiro a identificar nas bruxas uma cultura alternativa à dominante e muito arraigada entre os pobres. Por suas idéias, foi condenado à fogueira, mas morreu de peste na prisão antes da execução.

Em 1631, o jesuíta alemão Friedrich von Spee, em seu tratado Cautio Criminalis, seu de processibus contra sagas, afirmou: "Envergonho-me de confessar que, principalmente na Alemanha, entre católicos e o povo, estão presentes superstições inacreditáveis [...] que [...] recaem mais sobre as pobres mulheres. [...] Com a tortura, um inquisidor conseguiria fazer até o papa confessar-se bruxo."12 Todavia, até a metade do século XVII, esses tipos de manifestações eram sempre isolados.


O processo

O processo por bruxaria acontecia paralelamente ao de heresia e podia ser instruído com base em uma mera suspeita (ou simplesmente "aparecer no sonho" de outra pessoa). As delações anônimas também valiam. Nas igrejas, chegou a ser colocada uma urna para as denúncias, parecida com a das ofertas.

Assim que a audiência começava, a suposta bruxa era convidada a confessar e abjurar o demônio; se não o fizesse, era torturada. Entre as provas da possessão diabólica estava a presença de sinais específicos no corpo da bruxa. Podia ser uma mancha na pele, uma verruga, um calo ou qualquer "imperfeição". Aquela era a marca deixada pelo Diabo. Outro elemento de avaliação era o Ordálio. No caso de suspeita, ver a ré chorando ou lacrimejando já bastava para os juízes (acreditava-se que as bruxas não podiam chorar, mas que o Diabo podia simular as lágrimas). Nos casos mais graves, recorria-se à prova da água: a acusada (muitas vezes amarrada a uma grande pedra) era jogada na água. Se afundasse, era inocente. Se, ao contrário, boiasse, queria dizer que era culpada, sendo protegida por um sortilégio do demônio. Os interrogatórios eram realizados em meio a perguntas e armadilhas criadas especialmente para confundir o imputado. Por exemplo, diante da pergunta "Você acredita em bruxas?", responder "não" significava negar a própria existência do Diabo e, assim, assumir o crime de heresia. Responder "sim" ocasionava outras perguntas dos juízes, como: "Quantas bruxas você conhece?" e assim por diante.

As bruxas, por sua vez, espontaneamente ou sob tortura, muitas vezes acusavam outras pessoas que supostamente teriam participado com elas dos sabás e que acabaram processadas. Às vezes, as acusadas, por vingança, davam os nomes dos próprios acusadores, criando, assim, uma lúgubre reação em cadeia que podia durar anos e envolver centenas de pessoas.

Mas o processo por bruxaria tinha uma diferença muito importante em relação àquele por heresia. O herege que confessasse e abjurasse imediatamente diante dos juízes podia ser absolvido logo ou, no máximo, receber uma leve punição (constando dos autos que, se fosse novamente processado, a morte seria certa). A bruxa que confessasse "espontaneamente" seria absolvida da acusação de heresia, mas os juízes mandariam seu caso ao tribunal "leigo" para que sofresse os efeitos "civis" de suas ações.13

As penas por bruxaria variavam de castigos corporais e períodos de exílio a, nos casos mais graves, prisão perpétua ou a fogueira. Às vezes, como gesto de clemência, a bruxa era estrangulada antes de ser queimada. Às vezes, eram queimados junto com a bruxa os autos do processo, como ato de purificação. Por isso, também, não há como documentar o número exato de bruxas executadas, apenas aproximadamente.

As estimativas mais prudentes dão, para o período entre o final do século XIV e o final do século XVII, um balanço que oscila entre 70 e 320 mil vítimas. Mas há quem fale de milhões de mortos.14 A estes, acrescentem-se as pessoas mortas, talvez anos depois, em conseqüência das torturas sofridas; as mortas de fome por causa do exílio ou por terem sido isoladas da sociedade após serem "marcadas" como bruxas; e os familiares dos "hereges bruxos", condenados à miséria em conseqüência do confisco dos bens. E sabe-se lá em quantos povoados pequenos e isolados, após uma colheita ruim ou a morte de animais, os próprios habitantes processaram e mataram "com as próprias mãos" uma suposta bruxa, sem que tenhamos qualquer testemunho por escrito.


A tortura

A primeira tortura era psicológica: a suposta bruxa era levada à sala de interrogatório, onde eram expostos todos os instrumentos de suplício. Em seguida, era despida diante do magistrado, depilada e coberta com um lençol.

A tortura mais branda eram as chibatadas. Depois havia a "corda": os braços eram amarrados atrás por uma corda presa à polé; a vítima era içada, provocando o deslocamento do ombro. Ainda mais cruel que a polé era o cavalo de estiramento, um pedaço de madeira triangular com a ponta virada para cima: "O corpo da torturada era deitado e amarrado apertado à ponta, que lhe penetrava na carne, do pescoço aos glúteos. Então em suas mãos e pernas eram amarrados pesos cada vez mais pesados; ou cordas ligadas a uma roda que girava com a ajuda de uma manivela. Puxando as cordas, todo o corpo era esticado, e os membros, após algumas horas, soltavam-se do corpo."'5 Outra prática era a de acender uma fogueira sob os pés da vítima. E havia as tenazes, cujo uso deixamos a cargo da sua imaginação, e muitos outros instrumentos.

Teoricamente, a tortura deveria durar um tempo limitado, e um médico supervisionava as operações para garantir que o imputado não corresse risco de vida ou sofresse danos graves à saúde. Mas, na verdade, o suplício continuava ao sabor do inquisidor, e não eram raros os casos de mulheres mortas ou estropiadas de forma irreversível em razão das sevícias sofridas.


UMA BREVE LISTA

Fazemos aqui uma lista de alguns dos maiores processos por bruxaria que talvez possam dar uma idéia de como devia ser o dia-a-dia na época da caça às bruxas.

Como, 1416: ao longo do ano, trezentas bruxas foram queimadas na fogueira.

Sion, 1420: setecentos supostos adeptos de uma seita que adorava o diabo, em forma de urso ou bode, foram processados. Deles, cem confessaram sob tortura e foram queimados vivos.

Rouen, 1430: Joana d'Arc morre na fogueira por heresia e bruxaria. No seu caso, são evidentes as motivações políticas da sentença.

Como, 1484: sessenta bruxas são queimadas na fogueira.

Mirandola, 1522-1523: o processo "de Mirandola" atinge com firmeza centenas de cidadãos, a ponto de ser lembrado como o "pogrom de Mirandola". A violência com que os acusados foram tratados foi tal que fez os cidadãos que assistiam à execução exclamarem: "Não é justo que esses homens sejam mortos de maneira tão cruel."

Genebra, 1513: em três meses, quinhentas bruxas foram queimadas.

Como, 1514: trezentas bruxas foram justiçadas como "reincidentes ou impenitentes". Fontes da época falam de uma média de cem bruxas executadas por ano também nos anos sucessivos, a ponto de o inquisidor ser repreendido pelo excesso de zelo.

Noruega, 1544: na luterana Dinamarca, os católicos foram equiparados às bruxas. Só neste ano, 52 pessoas foram executadas.

Languedoc (França), 1557: o parlamento local mandou queimar quatrocentas pessoas.

Paris, 1565-1640:1.119 pessoas foram julgadas em 75 anos. Foram executadas cem sentenças de morte, quase sempre de pessoas abastadas.

Genf, 1571: 21 mulheres foram queimadas em maio.

Lorena, 1576-1606: o juiz Nicolas Remy se vangloriou de ter mandado à fogueira entre duas mil e três mil bruxas no período (uma média de cerca de duas por semana).

Bordeaux, 1577: quatrocentas bruxas são mandadas à morte pela corte soberana de Bordeaux.

Alemanha, 1560 (aproximadamente): os príncipes protestantes processaram, torturaram e condenaram à fogueira algumas centenas de bruxas.

Inglaterra, 1560-1600: sob o reinado de Elisabete I, 314 vítimas foram queimadas na fogueira, na maioria mulheres.

Treviri, 1587-1593: sob as ordens do arcebispo-eleitor Johann Von Schöneburg, ligado aos jesuítas, foram queimadas vivas 368 bruxas em 22 povoados. Em dois deles, apenas uma mulher foi deixada viva. Dentre as vítimas do arcebispo, havia também protestantes e judeus, além do ultracatólico reitor da universidade e magistrado Dietrich Flade. Este, acusado de ter sido clemente demais para com as bruxas, foi preso, torturado, estrangulado e queimado.

Nesses mesmos anos, a caça às bruxas provocaria a destruição de povoados inteiros na Suíça e a execução de 311 bruxas na região francesa do Vaud.

Triora (Ligúria), 1588: a responsabilidade de uma pesada escassez foi atribuída às bruxas. Na verdade, como se descobriria depois, não houve nenhuma escassez, os influentes locais é que se apoderaram do fruto das colheitas para vendê-los a preços altos. Enquanto isso, a intervenção da Inquisição mandou prender e torturar dezenas de mulheres e um suposto bruxo, todos acusados também de se relacionar com protestantes. Treze mulheres morreram torturadas, seis foram condenadas à morte e uma se suicidou na prisão para escapar das sevícias.

Val Mesolcina, 1593: o cardeal Carlos Borromeu (santificado em 1610) favorece a condenação de várias mulheres. Oito bruxas foram amarradas de cabeça para baixo e jogadas no alto na fogueira.

Ao longo de todo o século XVI, somam-se ao menos mil execuções na Dinamarca, quantidade análoga na Escócia, e quase duzentas fogueiras erguidas na Noruega.

Alemanha, 1600, (aproximadamente): o caçador de bruxas Balthasar Ross deu início a uma atividade própria. Ele chegava de surpresa nos povoados com um tribunal itinerante. As bruxas eram presas, processadas, torturadas com novos instrumentos inventados por ele, condenadas e queimadas. Em três anos de trabalho, ele conseguiria matar 250 mulheres e seria amplamente recompensado pelo príncipe e pelas autoridades locais.

Inglaterra, 1600 (aproximadamente): o arcebispo de Saint Andrew, acamado por uma grave doença, manda chamar a curandeira Alison Peirsoun. Esta o cura e ele, em compensação, manda que seja presa, torturada e, finalmente, condenada à morte.

Mântua, 1603: o duque de Mântua mandou afixar um decreto no qual previa uma recompensa de 50 escudos para quem denunciasse uma bruxa.

Zagarramurdi (Países Bascos), 1614: após um processo que durou quatro anos e um interrogatório de 300 testemunhas, foram condenadas 12 bruxas. Sete foram queimadas vivas, as outras cinco morreram durante o processo e foram queimadas "em efígie" (ou seja, um retrato seu foi jogado nas chamas).

Würtzburg, 1623-1631: o príncipe católico Filipe von Ehrenburg mandou novecentas pessoas à fogueira, dentre as quais o sobrinho, 19 cardeais católicos condenados por sodomia e algumas crianças de 5 a 7 anos acusadas de ter tido relações sexuais com o Demônio.

Oppenau, 1631-1632: um processo mandou à fogueira 8% da população.

Inglaterra, 1645-1647: o caçador de bruxas Matthew Hopkins viajava pelas cidades e povoados cobrando uma libra esterlina por cada bruxa que conseguisse fazer condenar. Só na província de Suffolk, ele conseguiu fazer enforcar 98 mulheres. O próprio Hopkins conduzia os interrogatórios e se voltava principalmente contra mulheres jovens, que torturava após violentar repetidas vezes.

Polônia, 650-1700 (aproximadamente): calcula-se que o número de vítimas da caça às bruxas seja em torno de dez mil pessoas.

Salem (Massachusetts), 1692: uma escrava negra confessou ter induzido as moças da cidade a participar de uma dança noturna com práticas de magia e dá o nome de alguns membros importantes do local. Tem início uma espécie de histeria coletiva que levaria à morte várias pessoas. Um total de 155 meninas, moças e jovens mulheres seriam processadas, e 20 delas acabariam na fogueira.

Suíça, 1782: a última bruxa é queimada na fogueira.

Polônia, 1793: a última bruxa é queimada na fogueira.


Ordálio

O termo "ordálio" deriva do anglo-saxão "ordeal", "juízo". Sua definição técnico-jurídica é: procedimento em que "forças sobrenaturais se manifestam dando seu próprio juízo sobre uma questão que provoca uma conseqüência jurídica."16

Alguns estudiosos afirmam que o "juízo de Deus" já era mencionado na Bíblia.17 Entretanto, até hoje, é difícil saber se a Igreja aprovava os ordálios, uma vez que o Quarto Concilio de Latrão (1215) os vetou explicitamente.

Na verdade, o "juízo de Deus" não foi vetado de fato. Por vezes, foi utilizado até por eremitas e monges na tentativa de tornar Deus testemunha de suas próprias razões, passando por cima das instituições eclesiásticas.

Nos primeiros séculos do cristianismo, muitos eremitas e missionários cristãos utilizaram de várias formas a prova do fogo para testemunhar a própria fé ou ser absolvidos de acusações infames.

O missionário Bonifácio, diante dos exércitos russo e alemão, submeteu-se à prova do fogo em nome de Deus. Conta-se que os espectadores, ao ver que seu corpo não queimava, converteram-se ao cristianismo.

A Igreja Católica do século XIII, já estatizada e hierarquizada, não podia permitir que houvesse outras fontes de legitimação espiritual e de santificação além das bulas provenientes da Santa Sé.18 Mas o instituto do ordálio sobreviveu de fato ainda por séculos e foi reintroduzido durante os processos por bruxaria.

O primeiro ordálio, surgido na Alemanha, foi a prova da fogueira, que consistia em fazer uma pessoa vestida com uma camisola coberta de cera passar por entre duas fileiras de galhos em chamas. Em 1098, um camponês da região da Provença, Pierre Barthélemy, submeteu-se espontaneamente à prova, conseguindo passar incólume através das duas fileiras de oliveiras em chamas colocadas a uma distância de pouco mais de um pé umas das outras.

Outro ordálio era a prova do ferro de marcar, que devia ser segurado na mão como se fosse um buquê de flores. O manuscrito Saxo Gramaticus fala de Poppus, que se submeteu à prova para demonstrar a verdade do cristianismo.

Ordálio semelhante é o da água fervente: a pessoa submetida à prova devia pegar um objeto dentro de um caldeirão cheio de água ou óleo fervente. Dizem que uma escrava teutoa acusou a ama de infidelidade, e ambas passaram pela prova.

A ama enfiou a mão e conseguiu pegar o objeto, enquanto a escrava se queimou e foi morta com um banho de água fervente.

Outro ordálio, ainda, era o da água fria (usada não por acaso contra as bruxas). O examinado era submerso em uma banheira de água fria com o polegar da mão e o indicador do pé amarrados. Se afundasse, era inocente; se boiasse (por ao menos cinco minutos) era culpado.

O último ordálio de que falaremos é a prova da Bíblia. O acusado subia sobre o prato de uma balança, enquanto do outro lado era colocada uma Bíblia. Se seu peso fosse inferior ao do livro, era condenado. As Bíblias da época pesavam cerca de 25kg.


Os bem-andantes, os bruxos "bons"

Por volta do final do século XVI, os inquisidores do Friuli viram-se diante de casos de bruxaria que não se encaixavam nos esquemas conhecidos.

Alguns camponeses eram conhecidos nas redondezas por sua capacidade de curar as pessoas atingidas por males. Um deles, como disse um pároco ao inquisidor da diocese de Aquiléia em 1575, declarara ser um "bem-andante" e se vangloriara de "vagar pela noite com bruxos e gnomos".19

O inquérito, de início, avançou lentamente (foi interrompido em 1575 e retomado apenas em 1580), mas no final chegou a confirmar a presença de um fenômeno muito difundido. Segundo a lenda, os "bem-andantes", homens e mulheres, durante o sono entravam em uma espécie de transe durante o qual a alma saía do corpo em forma de "fumaça", ratos ou outros pequenos animais. Como as bruxas, eles chegavam ao lugar de encontro (os campos do Vêneto ou do Friuli, mas também o vale bíblico de Josafá) voando, sozinhos ou cavalgando sobre pequenos animais, e, como as bruxas, reuniam-se com seus semelhantes para realizar feitos mágicos. Ao contrário das bruxas, no entanto, os bem-andantes não utilizavam ungüentos para voar, não participavam de orgias, não abjuravam a fé católica e não adoravam o diabo. Ao contrário, eles afirmavam que lutavam 'em nome da religião e de Cristo' contra as bruxas e magos maus, e para defender a colheita.

Ninguém se dizia bem-andante, mas nascia assim. Todas as crianças que viessem ao mundo de "camisa", ou seja, cobertas por uma película placentária, como se fosse uma roupa, eram potenciais bem-andantes, desde que guardassem a membrana e a levassem sempre consigo. Em geral, os futuros xamãs eram avisados do futuro que lhes esperava por suas mães ou por um bem-andante "ancião", que o visitava pessoalmente ou em sonho. Por volta dos 20 anos, nas noites de quinta-feira da quarta têmpora,20 eles eram chamados em sonho por um "capitão" ou anjo. Quando chamados, seu espírito abandonava o corpo e voava com o capitão. O destino era um campo onde lhe esperava uma luta contra bruxas e magos malvados. Os bruxos bons lutavam com ramos de funcho, os maus, com galhos de sorgo. Caso os primeiros vencessem, a colheita daquele ano seria boa; se fossem os segundos, o ano seria péssimo.

Os bem-andantes eram vinculados com o máximo segredo a suas ações e aos nomes de seus companheiros e dos bruxos adversários, sob pena de receberem pauladas "em sonho" durante a noite. Na verdade, muitas vezes falavam de suas atividades, por orgulho ingênuo ou para tirar alguma vantagem. A eles era atribuída a capacidade de curar pessoas atingidas por encantamentos e de reconhecer uma bruxa à primeira vista. As mulheres nascidas com a "camisa" podiam falar com os mortos. Todos esses eram dons que podiam trazer alguma vantagem econômica.21

Os inquisidores, durante os interrogatórios, tentavam insinuar habilmente a suspeita de que "o anjo" visto pelos bem-andantes era ninguém menos que o Demônio disfarçado e incluir nos relatos dos malfadados xamãs elementos típicos do "sabá" das feiticeiras, como a presença de "belas cadeiras", utilizadas pelo Diabo como trono, e de danças e "diversões".

Os camponeses continuaram repetindo que apenas as bruxas se entregavam a "diversões", enquanto eles se reuniam para promover o bem. Mas, no final, cederam à pressão psicológica e às armadilhas das perguntas capciosas e admitiram, ainda que renegando a própria fé, terem sido vítimas do Maligno.

Os autos dos processos contra os que nasceram com a "camisa" registraram uma evolução ao longo dos anos. O retrato do bem-andante se afastou cada vez mais daquele do "bruxo bom" para assumir o aspecto de bruxo malvado, apóstata da fé e adorador de Satanás. O que impressiona é o fato de muitos inquisidores investigarem cuidadosamente as pessoas que os bem-andantes afirmavam ter visto em sonho. De qualquer modo, nenhum foi condenado pelo simples "chamado em sonho".

As condenações da Inquisição contra os bem-andantes entre 1581 e 1705 foram, somando tudo, leves: muitos foram repreendidos ou tiveram de abjurar publicamente, alguns foram detidos por poucos meses ou banidos temporariamente. Apenas dois de 16 condenados foram exilados para sempre.22 O bem-andante Michele Soppe morreu na prisão antes da sentença, talvez pelas péssimas condições da detenção.23

Muitos processos foram interrompidos, muitos supostos bem-andantes considerados inencontráveis não foram procurados. É provável que a Inquisição estivesse mais preocupada com a infiltração das teses luteranas, cujos adeptos foram identificados e perseguidos com eficiência e rapidez.

Além disso, entre o final do século XVI e a metade do século XVII, o interesse dos inquisidores pelos sabás diminuiu, enquanto aumentou seu ceticismo. Mas ainda que não tenha sido uma tragédia material, o fim dos bem-andantes representou um crime cultural e significou a destruição da vida para muitos acusados, obrigados a viver à margem da sociedade.


Xamãs europeus

Os bem-andantes não eram os únicos "bruxos bons" presentes na Europa. Em 1692, na Letônia, Thiess, um homem de mais de 80 anos, declarou aos juízes que era um lobisomem e que três noites por ano (Santa Lúcia, Pentecostes e São João) os licantropos se transformavam em lobos e se dirigiam ao Inferno para pegar dos diabos e dos bruxos maus os grãos da colheita que estes haviam roubado. Os licantropos batiam nos bruxos com açoites de ferro, enquanto estes, por sua vez, os expulsavam com cabos de vassoura.24

Thiess, irritado com as perguntas dos inquisidores, repetiu várias vezes que os lobisomens eram "cães de Deus", que expulsavam o Diabo com todas as suas forças e que, sem eles, este roubaria todos os frutos da Terra. Os lobisomens russos e alemães faziam o mesmo. Thiess, que não voltava atrás de suas declarações, foi, por fim, condenado a dez chibatadas.

As semelhanças com os bem-andantes do Friuli são evidentes. Talvez os "nascidos com a camisa" e os licantropos letões representassem os últimos remanescentes de um culto xamanista pré-cristão antes difundido em várias áreas da Europa e que sobrevivera em algumas zonas marginais, como os campos do Friuli e o extremo norte. Até hoje, na Istria ou na Dalmácia, há terapeutas e "antibruxos" nascidos com a "camisa".25

No caso específico dos bem-andantes, talvez haja um elemento a mais de originalidade. Segundo dom Gilberto Pressacco (1945-1997), seus ritos reuniriam também elementos da tradição estática dos Terapeutas de Alexandria, veiculada no Friuli através dos sermões de Ermagora, discípulo de São Marcos (de origem alexandrina) e fundador da Igreja de Aquiléia.26 Assim como os lobisomens, originalmente bons, foram transformados pela tradição cristã em seres negativos, os bem-andantes acabaram sendo identificados com os próprios demônios que combatiam. 

PASMEM




FONTES PARA ESTUDO

1.  De um cântico medieval popular sobre a mulher, extraído de Vanna De Angelis, Le Streghe. Roghi, riti,
processi e posizioni. Casale Monferrato, Edizioni Piemme, 1999, p. 161. 2.. J.M. Sallmann, Le streghe: amanti di Satana. Paris, Universale Electa Gallimard, 1995.
3.   Benazzi, D'Amico. Il Libro Nero delllnquisizione. La ricostruzione dei grandi processi. Casale Monferrato, Edizioni Piemme, 1998, p. 263-5.
4.   Ibid.,p.261.
5.   ibid., p. 256-7.
6.   Ibid., p. 268.
7.   J.M. Sallmannm, op. cit, p. 81.
8.   Vanna De Angelis, op. cit, p. 269.
9.   Tommaso Campanella, Del senso delle cose e delia magia citado em Benazzi, D'Amico, op. cit, p. 268.
10. Benazzi, D'Amico, op. cit, p. 251-3.
11. Vanna De Angelis, op. cit, p. 382-3.
12. Citado em Benazzi, D'Amico, op. cit, p. 268.
13. A Igreja julgava se uma bruxa estava mais ou menos possuída pelo demônio, mas se sua bruxaria tivesse causado danos a propriedades ou pessoas, ela era julgada por um tribunal civil.
14. Benazzi, D'Amico, op. cit, p. 269.
15. Vanna De Angelis, op. cit, p. 28-29.
16. C. De Vesme, Ordalie, roghi e torture, Gênova, Fratelli Melita Editori, 1987.
17. Provérbios XVI, 33.
18.G.G. Merlo, Eretici ed eresie medievali, Bolonha, Il Mulino, 1998.
19. Cario Ginzburg, I benandanti: stregoneria e culti agrari tra Cinquecento e Seicento. Tunm, Einaudi, 1966, p.4.
20. Chamam-se têmporas os três dias de jejum prescritos pelo calendário eclesiástico na primeira semana da Quaresma (têmpora de primavera), na oitava de Pentecostes (têmpora de verão), na terceira semana de setembro (têmpora de outono) e na terceira semana do Advento (têmpora de inverno).
21. Para um maior aprofundamento sobre o fenômeno dos bem-andantes, reportamo-nos às seguintes obras: Cario Ginzburg, / benandanti: stregoneria e culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Einaudi, Turim, 1966. Franco Nardon, Benandanti e inquisitori nel Friuli dei Seicento, Edizioni Università di Trieste, Trieste,1999.
22. Franco Nardon, op. cit, p. 138.
23. Cario Grinzburg, op. cit, p. 181.
24. Ibid.,p. 47-51.
25. Franco Nardon, op. cit, p. 94.
26. Raffaella Paluzzano e Gilberto Pressacco, Viaggio nella notte delia Chiesa di Aquiléia, Udine, Gaspari Editore, 1998.