sábado, 9 de setembro de 2017

DEUS E O DIABO NA TERRA DE JÓ (JOB)


A TEOLOGIA DO SOFRIMENTO

JOB

JÓ TENTADO POR DEUS E PELO DIABO, NO FINAL A VITÓRIA DE JÓ


Desde que há homens e que eles pensam, idéias religiosas





Jó, quem o tentou?

A Onipotência em meio à tempestade contra o verme humano esmagado e rastejante

Salma Ferraz







Resumo: O presente artigo pretende discutir alguns aspectos do polêmico Livro de Jó, do Antigo Testamento: quem tentou realmente Jó? Quem foi tentado no Livro de Jó? Quem é o vencedor e quem é o perdedor no livro de Jó? Como Camões, Miguel Torga e Saramago vêem o drama do sofrimento de Jó?

* Profª Adjunta de Literatura Portuguesa no Departamento de Língua e Literaturas Vernáculas (DLLV) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Membro da Associa- ção Latino Americana de Literatura e Teologia (ALALITE); Coordenadora do Núcleo de Estudos Comparados entre Teologia e Literatura (Nutel), com sede na UFSC. E-mail: salmaferraz@gmail.com




1. Jó: a teologia do sofrimento O Livro de Jó é um dos livros mais sensivelmente filosóficos de todo o Antigo Testamento porque tenta responder a uma difícil pergunta: afinal, quem é o responsável pela existência do mal? Trata-se na realidade de uma espécie de big brother celestial. Deus provoca Satanás – o qual nesse livro é identificado como “um dos filhos de Deus” que frequentava o céu com muita intimidade e liberdade - para uma disputa, na qual os dois observariam tudo do camarote.

Jung, em Resposta a Jó (2001, p. 16), afirma que “Satanás talvez seja um dos olhos de Deus que perambula sem rumo certo pela terra”. Jó vai duas vezes para o paredão sem clemência alguma. Na primeira, Deus permite que Satanás tire tudo que ele tem: fazendas, filhos, servos, bens, e Jó vence o Diabo. Não satisfeito, Deus pela segunda vez o envia para a beira do abismo e permite que Satanás toque em sua carne, mas Jó não renega a Deus e triunfa novamente. A alma de Jó é oferecida numa bandeja para Satanás, há um pacto entre Deus e Satanás, e não seria exagero dizer que o mito de Fausto, muito antes de Marlowe, Shakespeare, Goethe, Tomas Mann, Paul Valéry, Guimarães Rosa, nasceu aqui, com uma diferença: Jó não sabia de pacto algum.

 Dezenas de livros e teses já foram escritas sobre Jó e a partir delas nos permitimos fazer algumas considerações. O Livro de Jó consiste em uma teologia do sofrimento, pois nele, pela primeira vez, o caráter e a justiça de Deus são questionados por um pobre mortal que sofre muito além de suas forças. Em verdade o confronto não se dá entre Satanás e Jó, mas sim entre Deus e Jó, uma vez que Satanás é apenas um instrumento para realizar a vontade de Deus. Aqui se acentua o caráter destrutivo de Javé.

Jó questiona a justiça divina e Deus não responde ao que ele pergunta, considera isso uma ousadia, sente-se embaraçado e o esmaga, mostrando não sua justiça, mas seu poder, com discurso arrasador. Se Deus era onisciente, por que provocou Satanás? Afinal, nem este pode ser tentado além do que pode resistir... Retomamos nossa ideia, anteriormente já exposta: essa aposta funda o pacto e o mito de Fausto, enfim, revela-nos um mundo regido por dois deuses orgulhosos, e a partir daí o caráter nada santo do Senhor Deus.

Com o desenvolvimento dos estudos comparados entre Teologia e Literatura, muito se tem escrito sobre Deus, Madalena e o Diabo como personagens literários, sem desconsiderar a importância destes 75 no campo da Teologia.

Jó não poderia ficar de fora.

Também sobre ele, um dos mais instigantes personagens da Bíblia, muito se tem escrito. Iniciemos nossas considerações com Jack Miles que, em seu livro Deus, uma Biografia, dedica o capítulo Confronto para tratar da epopeia de Jó.

Deus: o grande tentador e perdedor

Quando inicia seu livro, no qual faz uma leitura pós-crítica ou pós- moderna dos elementos míticos, ficcionais e históricos da Bíblia, Miles (1997, p. 17) já adverte: “É estranho dizer, mas Deus não é nenhum santo.” E é justamente isso que o autor tentará provar no capítulo dedicado a analisar o Livro de Jó.

Miles cita Frost, para quem Jó se emancipa de Deus, e Willian Safire, que denomina Jó de primeiro dissidente. Enumeraremos a seguir as várias teses defendidas por Miles acerca do livro de Jó (Miles, 1997, p. 341- 368):

1) O que se questiona fundamentalmente no livro não é questão do pacto, mas sim o verdadeiro caráter de Deus;

2) O livro do Jó constitui uma genuína teologia do sofrimento;

3) O livro revela o lado obscuro do caráter de Deus, o lado demoníaco, perverso e destrutivo de sua personalidade;

4)O embaraço de Deus diante do sofrimento e das perguntas de Jó;

5)A justiça distributiva de Deus (os bons são recompensados e os maus são punidos) não funciona para Jó;

6)Deus considera uma ousadia de Jó pedir satisfação das atitudes divinas, e por isto no meio do redemoinho se enfurece;

7) Se Gênesis revela o lado criador de Javé, o livro de Jó revela seu lado destruidor – portanto o caráter de Deus é ambivalente;

8) Deus é uma presa fácil para Satanás;

9) O discurso de Deus é ineficaz, já que Jó quer saber sobre a justiça divina e Deus responde mostrando sua força e poder;

10) É o Diabo que determina as ações de Deus, Deus não se arrepende explicitamente de suas atitudes, mas ao devolver em dobro os bens de Jó fica implícita uma certa (re)compensação e um certo arrependimento;

11) Na realidade Deus não vence a aposta, mas desiste dela.

Para Miles (1997, p. 346), “apostar faz parte do esporte, e o Senhor foi tentado a fazer uma aposta com o inimigo da humanidade [...] Para nós basta saber que o Senhor foi suscetível às sugestões de um ser celestial hostil ao ser humano.” Assim, conforme esse autor o grande tentado não é Jó, mas sim Deus e, o grande tentador não é Satanás, mas Deus. Deus se transforma em tentado e tentador. Deus se deixa tentar por Satanás, Deus cai em sua armadilha e passa a abusar de Jó. Para o crítico, provocado por um ser demoníaco o lado demoníaco do Senhor aflora de uma maneira espantosa e Deus se torna muito mais um adversário do homem que o próprio Satanás.

Não satisfeito com o tempo normal da partida, na qual Jó vence, Deus aceita a prorrogação. Deus cai na armadilha do Adversário duas vezes. Acrescentamos que talvez Deus fosse à decisão por pênaltis se necessário. Para Miles, O mundo em que ele (autor do livro de Jó) imagina Jó sofrendo é um mundo governado por um deus que faz apostas com o demônio, manipulado e controlado por um demônio.

O lado demoníaco do Senhor Deus, que nunca esteve ausente, tem, de repente, um aliado demoníaco. (Miles, 1997, p. 347). Miles alerta para o fato de que a tradição transformou o empate retórico entre Jó e Deus, numa desequilibrada vitória do Senhor, mas ressalta que esta vitória vem no pior momento, quando o Senhor é parceiro num jogo com o Diabo.

Para o crítico, esta vitória é uma derrota. Termina suas considerações afirmando que Jó é inocente e não tem do que se arrepender. Deus sim tem do que se arrepender, já que foi longe demais ao se deixar, por orgulho, tentar por Satanás e abusar da paciência de Jó. Jó queria o Deus justo e não o Deus trovejador. O silêncio de Jó condena Deus.

Miles afirma ainda que “[...] o diabo é personagem deste livro, personagem em cujas mãos o Senhor entregou o corpo de Jó, ao mesmo tempo entregando-se a si mesmo nas garras morais

Todos os negritos das citações são de autoria da articulista. do Diabo.” (Miles, 1997, p. 361).

O crítico termina esclarecendo que a inocência de Deus nunca mais será a mesma depois de Jó.  

O bingo celestial O escritor argentino Alejandro Maciel corrobora o pensamento de Miles em seu artigo, misto de crítica e ficção, intitulado Job, o la depravación de La Justicia (2007). Maciel afirma que em Jó a observação das leis divinas não lhe garantiu uma vida ditosa, pelo contrário, em seu caso, essa observação mais do que correta das leis funcionou como uma armadilha, já que justamente isto proporcionou uma aposta entre Deus e o Diabo.

A seguir apresentamos as principais colocações de Maciel:

1) É muito estranho que a criatura perversa entre tranquilamente nos céus e faça apostas, negocie com o Altíssimo;

2) Satanás é identificado com um dos filhos de Deus, e tinha franco acesso aos céus, este ambiente lhe era familiar;

3) Parece que a disputa no céu é eterna;

4) Deus e o Diabo jogam um jogo de azar, esclareça-se: de azar para Jó. (

Maciel, 2007. http://alebovino.blogspot.com) Citando Maciel, Pero de repente leemos el Livro de Job donde Satanás y Yaveh apuestan como se estubiesen em el bingo y no em um livro edificante. Si hay algo que se opone a la idea de ordem es la idéia de azar y para nuestra perplejidad en el cielo ordenado también cuenta el azar. (Maciel, 2007).

Para Maciel, se alguém leu Deus, este alguém foi Jó, e no livro deste a justiça divina é completamente depravada, pois Deus aceita jogar um jogo de azar com Satanás e Jó é o mais azarado de todos.

Maciel aponta ainda que “Se Cristo es Dios como afirmam los trinitaristas, la apuesta vuelve a repetirse en el desierto... A quién ofrece el poder temporal sobre la Tierra Don Satanás? A um hombre, abusando de su codicia desmesurada? A Dios, que ya lo tiene? Ignora que Cristo es Dios?...” (Maciel, 2008).

 Homens da face da terra. Alberto Cousté, em sua Biografia do Diabo (1996, p. 158) complementa as idéias de Maciel ao apontar que Jeová não aparece surpreso com a presença de Satanás, pelo contrário, constata uma extrema familiaridade entre os dois, companheiros de antigos e futuros tempos.

Aponta o papel explícito do Diabo como Coadjutor divino e que seu papel é muito mais importante do que a degradação que o Cristianismo operou sobre sua imagem.

Satã – um revisor de Deus A vida do italiano Giovanni Papini (1881 - 1956) nos revela a trajetória de um dos intelectuais mais polêmicos e contraditórios de seu tempo, tendo ele participado de diatribes de toda sorte, sido excomungado e tido dois livros no Index do Vaticano, e concluído seus dias, em 1956, como um católico devoto.

Foi jornalista, crítico, teólogo à sua maneira, poeta e novelista. Seu livro O Diabo foi tema de grandes discussões e controvérsias. Esse livro, publicado em 1953, apresenta na contracapa o subtítulo Apontamentos para uma futura Diabologia.

Em sua obra, Papini elabora uma espécie de Summa Diabológica. Entre tantas outras ideias polêmicas, defende o Anjo Fulminante, afirma que os cristãos nunca foram cristãos para com Lúcifer e que se o sacrifício de Jesus tivesse sido realmente suficiente, Lúcifer estaria perdoado.

Sobre o livro de Jó defende o que ele denomina de três verdades:

1) Deus, na Sua infinita misericórdia conservava uma paterna indulgência a Lúcifer;

2) Satã agia, num certo sentido, como inspector, revisor de Deus em meio dos homens e que Deus escutava benignamente os seus relatos, os seus juízos, as suas acusações55;

3) [...] o Senhor estava pronto, em determinados casos, a conceder a Satã poderes iguais aos seus: tudo o que é possível está em teu poder.

É um privilégio enorme, que o Pai concedeu só ao Filho quanto este encarnou na Terra. (Papini, 1953, p. 80-81). No meio de seu livro, Papini afirma ainda que o Diabo é uma espécie de Anti-Deus, e se Deus se define como Eu sou o que sou, o Diabo deveria definir-se como Eu sou o que não sou.
Eu sou o nada que sou.

 (Papini, 1953, p. 86-87). 5. Jung e sua Resposta a Jó: a onipotência contra o verme humano semi-esmagado Não poderíamos passar por Jó sem analisar Carl Gustav Jung e sua Resposta a Jó (2001). Já na introdução o autor adverte que o Livro de Jó pode reduzir o leitor a pedaços, alerta para o caráter inefável, transcendente e metafísico da Fé, do Numinoso, do mistério tremendo, e que estes fundamentos emocionais são inacessíveis à razão crítica.

Esclarece que analisa Jó do ponto de vista de um médico que perscruta as profundezas da alma humana, portanto analisa o enredo subjetiva e emocionalmente. Elencamos a seguir suas principais teses sobre Jó:

1) Deus, colérico e ciumento, mostra-se excessivo em suas emoções, portanto amoral e selvagem;

2) Jó é aniquilado e transforma-se não mais num homem, mas num verme rastejante;

3) O Deus de Jó não se preocupa com julgamentos morais, possui os atributos do bem e do mal, parece mais um Deus grego do que hebraico, e está preocupado com poder e não com justiça;

4) Deus em Jó não gosta de críticas;

5) Javé cede às tentações de Satanás com espantosa facilidade, deixa-se aliciar por Satanás, mostrando-se inseguro em relação à fidelidade de Jó;

6) São completamente obscuros os reais motivos que levaram Deus a fazer uma aposta com o Satanás;

7) O estreito parentesco existente de Deus e do Diabo;

8) Deus dependendo da opinião de um mísero vaso de terra: o humano Jó;

9) A batalha é monstruosamente desproporcional: a onipotência em meio à tempestade contra o verme humano esmagado e rastejante;

10) Jó foi submetido a um ato de violência sobrehumana;

11) Ao final do episódio Jó passa a conhecer Deus  mais do que Deus;

12) Jó é um espelho cruel para Deus;

13) Não é Satanás quem perde a aposta, não é Deus quem vence, é Jó quem derrota Deus;

14) Deus precisa da opinião de Jó sobre ele, precisa que Jó reconheça seu poder, e esta importância dada a Jó o transforma quase num deus, pois Jó é elevado à condição de juiz da divindade;

15) Deus, ao humilhar Jó, o exalta, e Jó, ao exaltar Deus, o humilha. (Jung, 2001)

Pó e cinza contra um Deus cósmico Moshe Greenberg, no capítulo intitulado Jó, do livro Guia Literário da Bíblia (1997) afirma que Jó, ao mesmo tempo paciente e impaciente, é o porta-voz de todos os desgraçados da terra. Primeiramente analisa Jó do ponto de vista estrutural: a narrativa poética, a prosa e a poesia, o monólogo interior, os diálogos, a ironia e o sarcasmo dos discursos de Jó.

Depois parte para a análise da temática do livro, e explora as seguintes questões:

1) Os sofrimentos de Jó resultam de uma aposta e ele não entende por que está sofrendo;

2) A completa falha da chamada justiça distributiva de Deus, já que aqui os bons não são recompensados, pelo contrário, sofrem além do humanamente possível;

3) A linguagem é carregada de termos jurídicos e parece que Jó, Deus e Satanás se encontram num tribunal;

4) A assombrosa e desnecessária exibição de força por parte de Deus;

5) Os amigos de Jó são rabugentos, querem que ele peça perdão a Deus, e isto multiplica os sofrimentos de Jó;

6) O sarcasmo, a cólera, a lamentação e o desespero se alternam e se mesclam no discurso de Jó;

7) Jó reivindica a justiça divina e Deus mostra-lhe sua força;

8) Deus caprichosamente molesta Jó;

9) Jó sofre tanto que se transforma num bipolar, seus discursos vão da euforia extrema ao clímax da depressão;

10) Em seus imensos solilóquios, Jó quer saber onde está a sabedoria divina e não obtém resposta;

11) Ocorre no livro de Jó uma aliança às avessas, é o homem acusando Deus e não mais Deus acusando Israel;

12) Jó quer que o litigante Deus apresente uma nota de acusação contra ele;

13) Quando Deus fala, se defende;

14) No discurso de Deus, diferentemente do que aparece em Gênesis, o homem é um mero detalhe da criação, apenas uma criatura em meio a tantas outras, e ao fazer isto o autor do livro rejeita o caráter antropocêntrico do restante do Velho Testamento;

15) Em seu discurso Deus aponta a impotência, a ignorância de Jó, que como um verme não pode questionar Deus nem o caráter exótico de toda criação;

16) O que fica claro no discurso divino é que nenhum homem pode entender Deus, já que ele é inescrutável (Greenberg, 1997, p. 305-326). Greenberg termina sua análise afirmando que Jó é pó e cinza, e Deus é cósmico, inescrutável e imperscrutável.

Jó na Literatura Portuguesa:

 Camões, Miguel Torga e Saramago O primeiro poeta português a mencionar Jó em seus poemas foi o grande vate Camões (1520-1580), escritor de Os Lusíadas e de centenas de sonetos, além de vasta obra teatral. Mantendo constante diálogo com a Bíblia em vários de seus sonetos, reapropriou-se da matéria bíblica, quer fosse parodiando, quer fosse dando uma nova luz ao episódio bíblico e, assim, Camões não poderia ter deixado Jó de fora de sua lírica, conforme podemos observar no soneto a seguir, tipo de poema com forma fixa que se caracteriza pela extrema concisão:

O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao Mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.
A luz lhe falte, o Sol se [lhe] escureça,
Mostre o Mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.
As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao Mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!

(Camões, 1980, p. 84) Camões cita textualmente, no primeiro verso do Soneto, a primeira frase do discurso bíblico de Jó, capítulo 3, versículo 3: Pereça o dia em que nasci. A respeito dessa intertextualidade, Vitor M. Aguiar e Silva, em sua obra Maneirismo e Barroco na poesia Lírica Portuguesa (1971, p. 275), afirma que “nenhum poeta, porém, logrou exprimir como Camões os paradoxos da dor que explode em gritos, a angústia de uma existência despedaçada, a melancolia de um viver sem lume de esperança.

” E quem mais Camões poderia tomar como exemplo de dor e angústia do que Jó? O soneto sintetiza o discurso desesperado daquele que teve a vida mais desgraçada que jamais se viu.

Miguel Torga57 (1907-1995), pseudônimo de Adolfo Correia Rocha, foi um dos grandes escritores portugueses do século XX. Estudou em seminário, tinha familiaridade com os textos bíblicos e acabou se formando em medicina. Colaborou na Revista Presença, que agregava.

 Apresenta 14 versos, sendo 2 estrofes de quatro versos (quartetos) e 2 estrofes de 3 versos (tercetos). Esta é a forma do soneto italiano/petrarquiano. Adolfo Correia Rocha autodefine-se pelo pseudônimo que criou, “Miguel” e “Torga”. Miguel, em homenagem a dois grandes vultos da cultura ibérica: Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno. Já Torga é a designação nortenha da urze, planta brava da montanha, que deita raízes fortes sob a aridez da rocha, de flor branca, arroxeada ou cor de vinho. Em torno de si escritores modernistas de Portugal, depois rompeu com os modernistas, e foi preso várias vezes por suas ideias políticas.

De sua imensa obra de caráter humanista nos interessa O outro livro de Jó, publicado em 1936. Os capítulos se dividem em Lamentações: Primeira Lamentação, Segunda Lamentação etc. Torga concede a Jó o direito se lamentar, sem ter que dialogar ou replicar com ninguém, conforme podemos observar nestes trechos da segunda e terceira lamentações:

Segunda Lamentação (...)
Por tão pouco Mudaste o saibo de Pão e a cor do Vinho E cobriste o meu caminho De tojos e de sombras de pavor! (...) Por tão pouco Dos bens que tinha nem um só deixaste, nem um só!... Por tão pouco Com tua ordem e por teu orgulho, tocou-me Satanás com sua mão; e diante de ti as chagas supuraram, e as moscas me devoraram, e os meus gritos te chamaram em vão!... (...) Por tão pouco Sai de minhas cinzas o que sou: O Homem do Bem e do Mal Que nunca pôde valer Ao esqueleto descarnado Que está no chão desenhado A apodrecer...

Terceira Lamentação Injustamente, Senhor, injustamente A fúria do teu açoite Me corta pela raiz...  (...) Eu ainda não era o Homem, e tu já eras o Deus... (...) Não tenho culpa de a Obra Cair, por causa da Cobra Das tuas mãos sem firmeza Interessante também observarmos que O outro livro de Jó termina com um poema denominado Mensagem: Agora, que eu dei provas de humildade cantando o teu corpo velho, agora, que te beijei, que me despi no teu quarto, agora não ouças a minha voz porque não falo contigo... (Torga, 1958, p. 29-37):

Humanista radical, Torga defende o homem como criação máxima da natureza. Para Torga os deuses são indignos de qualquer louvor, se há algum deus que merece ser engrandecido esse deus é o homem: [...] hinos aos deuses, não os homens é que merecem que se lhes cante a virtude bichos que cavam no chão actuam como parecem sem um disfarce que os mude.

Saramago, em seu Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) faz, além da revisão dos Evangelhos, uma releitura profana e carnavalizadora de diversos episódios do Antigo Testamento. Sobre Jó, na mesma direção dos escritores Camões e Miguel Torga, dos críticos Miles e Maciel, o autor ironicamente revê a trajetória do miserável leproso: [...] ou o Senhor já teria mandado castigo, sem pau nem pedra, como é seu costume, haja vista o caso de Job, arruinado, leproso, e mais sempre havia sido varão íntegro e recto, temente a Deus, a sua pouca sorte foi ter-se tornado em involuntário objecto de uma disputa entre Satanás e o mesmo Deus, cada qual agarrado às suas idéias e prerrogativas.

E depois admiram-se que um homem desespere e grite, Pereça o dia em que nasci e a noite em que fui concebido, converta-se ele em trevas, não seja mencionado entre os dias do ano nem se conte entre os meses, e que a noite seja estéril e não se ouça nela nenhum grito de alegria, é verdade que a Job o compensou Deus restituindo-lhe em dobro o que em singelo lhe tirara, mas aos outros homens, aqueles em nome de quem nunca se escreveu nenhum livro, tudo é tirar e não dar, prometer e não cumprir. (Saramago, 1991, p. 133-134, negrito nosso).

Observamos que o discurso do narrador saramaguiano cita textualmente o discurso bíblico de Jó 3:3. Parece que os inescrutáveis desígnios de Deus apontados pelos teólogos não foram bem entendidos nem pelos críticos até aqui citados, nem pelos autores de literatura portuguesa: Camões, Torga e Saramago.

Por tão pouco O imenso discurso de Deus de nada serve. O silêncio de Jó é o silêncio dos vencedores e o silêncio de Deus é o silêncio dos perdedores. A partir de então Deus não fala mais no restante do Antigo Testamento. E a pergunta “Mas onde se achará a sabedoria?” formulada em Jó 28:12 continua sem resposta. Como pode ser o livro de Jó um livro que contém sapientia?

No meio da Bíblia tinha uma pedra, tinha o Livro de Jó. No meio do caminho de Jó ele topou com uma pedra, ou melhor, uma montanha cósmica: Deus. Se até antes do Livro de Jó o homem buscava Deus nas montanhas, nesse livro Deus desce a terra no meio do redemoinho para buscar o homem. Mas, no meio do caminho de Deus, também tinha uma montanha: Jó.

Apesar de todo o discurso defensivo de Deus no meio do redemoinho, ao final permanece um silêncio inquietador: o silêncio de Deus, o silêncio de Jó, o silêncio de todos nós... O livro de Jó revela um sedutor e perigoso jogo, um jogo labiríntico de espelhos e sombras.

Quem afinal espelha quem? A pergunta sobre quem é responsável pelo mal continua, continua sem resposta, não sabemos quem é espelho e quem é sombra...


Referências
AGUIAR E SILVA, Vitor M. Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa. Coimbra: Centro de Estudos Românicos, 1971. ALTER, Robert; KERMOND, Frank. Jó. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. In: Guia Literário da Bíblia. São Paulo: UNESP, 1997. CAMÕES. Lírica, Redondilhas e Sonetos. Introd. Geir Campos. Rio de Janeiro: Ediouro, 1980. COUSTÉ, Alberto. Biografia do Diabo: O Diabo como a sombra de Deus na História. Trad. Luca Albuquerque. Rio de Janeiro: Record; Rosa dos Tempos, 1996. GREENBERG, Moshe. Jó. In: Guia Literário da Bíblia. São Paulo: UNESP, 1997. JUNG, C. G. Resposta a Jó. Trad. Pe. Dom Matheus Ramalho Rocha. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2001. MACIEL, Alejandro. Job o la depravación de la justicia. Disponível em: . Acesso em 02 jun. 2008. MILES, Jack. Confronto. In: Deus: Uma biografia. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. NEGRI, Antonio. Jó, a força de um escravo. Trad. Eliana Aguiar. São Paulo: Record, 2007. PAPINI, Giovanni. O Diabo: apontamentos para uma futura Diabologia. Trad. Fernando Amado. Lisboa: Livros do Brasil, 1953. QUEIROZ, Júlio de. O Preço da Madrugada. Florianópolis: Insular, 2007. SARAMAGO, José. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. São Paulo: 89 Companhia das Letras, 1991. SOUSA, Fewrimar Dantas. O Livro de Jó na poética de Hilda Hilst e Adélia Prado. Disponível em: . Acesso em 02 jun. 2008. TORGA, Miguel. O Outro livro de Job. 4ª ed. Coimbra: 1958.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

DELÍRIOS RELIGIOSOS

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Uma discussão contemporânea sobre os delírios religiosos




“A ilusão religiosa é a mais implacável e a mais tenaz, ela vincula uma pulsão e está próxima aos delírios psiquiátricos" (Freud, 1927)







Desde que há homens e que eles pensam, idéias religiosas permeiam a maioria das mentes, fazendo com que as questões de ordem religiosa acompanhem a humanidade ao longo de toda a sua história. Elas estão presentes nas perseguições da inquisição, nas guerras religiosas, em disputas políticas, entre outros. Estes temas são explorados nas telas dos cinemas desde a invenção deste e na literatura em geral, como no grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, cuja obra questiona a existência do Diabo. Portanto, dentre as inúmeras formas de expressões psíquicas, me proponho a investigar aquelas que se referem às manifestações psicológicas delirantes de temática religiosa, isto é, os delírios religiosos.

Aqui é importante esclarecer, os próprios delírios religiosos mudam ao longo do tempo, mas, além disso, mudam também as concepções. Apresentarei três: uma concepção na antiguidade; uma leitura da psiquiatria do sec. XIX; e outra do século final do sec. XX e início do XXI. Primeiramente na antiguidade, todas as superstições, ou seja, tudo aquilo que não fosse da religião “oficial”, sob certas condições, tornavam-se verdadeiras ilusões e delírios. Já para os autores da psiquiatria moderna o delírio religioso não é apenas um sintoma. Este constituía uma patologia à parte, a “mania religiosa”, devido a sua consistência e sua tamanha complexidade. 

Hoje, os delírios religiosos são considerados como um sintoma, sendo que a presença de um delírio de conteúdo religioso preenche critérios do DSM-IV para transtorno delirante ou parte do critério A para esquizofrenia constituindo um quadro Psicótico, e caracteriza-se pelo seu conteúdo espiritual, místico ou religioso, com a presença de alucinações visuais e auditivas, podendo ocorrer de forma individual ou coletiva, ocasionando no pior dos casos: o assassinato, suicídio e a automutilação. Estes delírios podem ser combinados com outros delírios, como delírios de grandeza (a crença de que a pessoa afetada foi escolhida por Deus, por exemplo), os delírios de controle ou delírios de culpa. 

Pensemos em alguns acontecimentos históricos onde este sintoma aparece, por vezes em forma de delírio epidêmico¹, como no episódio de Canudos, liderada pelo místico Antônio Conselheiro, que acreditando em uma terra santa constrói um povoado, ou no caso do grande líder religioso nordestino Padre Cícero do Crato (e de sua Juazeiro), este era autor de muitos milagres, ou Jacobina Mucker que liderou o movimento messiânico em São Leopoldo(RS), esta era acometida por transes espirituais, nos quais obtinha poder de cura, sendo considerada por todos como um “cristo feminino”, ou mesmo Joana D`arc que tinha visões e se dizia enviada para liderar os exércitos Franceses. Também cabe citar o caso norte-americano de Charles Manson, o qual se glorificava de ser a personificação do Mal, e que realizou, na noite de 9 de agosto de 1969, o assassinato da atriz Sharon Tate, esposa do cineasta Roman Polanski, autor do filme sobre a presença do Diabo na nossa sociedade (O bebê de Rosemary, 1968). Atribuiu-se a Charles cerca de 50 crimes similares, pois este induzia pessoas a cometerem crimes, hoje ele tem um lote de fãs que ostentam orgulhosamente camisetas com sua imagem, incluindo o músico gótico Mariliyn Manson, que tem composição inspirada em Charles Manson.

Quanto a nossa pergunta norteadora, de forma geral, a literatura nos fala que existem vários modos de distinguir experiências psicóticas de experiência religiosa normal. Lukoff (1985) e Pierre (2001) afirmam que para que as crenças ou as experiências religiosas sejam patológicas, precisam prejudicar a capacidade de a pessoa desempenhar suas atividades diárias. Se o desempenho social ou ocupacional não for prejudicado, então a crença ou experiência religiosa não será patológica, pois, a pessoa psicótica terá dificuldade em estabelecer a relação com outras pessoas no seu ambiente social ou religioso, principalmente porque apresentará outros sintomas da doença psicótica que prejudicarão sua habilidade de se relacionar com os outros. Exemplos de problemas no desempenho são perda da capacidade de manter um emprego, problemas legais com a polícia ou por não conseguir realizar suas obrigações, comportamentos ou ameaças suicidas ou homicidas e dificuldades de pensar com clareza.

Há, então, um certo consenso geral de que critérios específicos existem e podem ajudar a distinguir a pessoa mentalmente doente com psicose da pessoa religiosa e devota que tem experiências místicas. A pessoa religiosa tem insight na natureza extraordinária dos seus relatos, normalmente faz parte de um grupo de pessoas que compartilha as suas crenças e experiências (culturalmente apropriado), não tem outros sintomas de doença mental que afetem o processo de seus pensamentos, é capaz de manter um trabalho e evitar problemas legais, não causar danos a si mesma e, normalmente, tem resultado positivo com o passar do tempo.

Embora existam modos, assim descritos na literatura, para um efetivo diagnóstico, me questiono se isto realmente é suficiente, pois acredito que seja muito mais difícil, em alguns casos, distinguir crenças de experiências psicóticas das não-psicóticas, pois os estados psicóticos e místicos podem ter tantas sobreposições que seja difícil distinguir um do outro. Assim, Dalagarrondo (2008) nos alerta que “(...)não existe um limite nítido, e que isto também depende da cultura e das idéias prevalentes, sendo difícil distinguir as crenças religiosas culturalmente sancionadas² de sintomas psicóticos, pois os delírios religiosos existem em um continuum entre as crenças normais de indivíduos saudáveis e as crenças fantásticas de pacientes psicóticos(...)”. 

Assim, a cultura também pode contribuir para sintomas patológicos, como mostram estudos recentes que analisam a influência que variáveis socioculturais exercem sobre a freqüência, constituição e as formas de manifestações das diversas síndromes psicopatológicas. Desta forma, Dalgalarrando (2008) nos apresenta algumas síndromes “culturais” Brasileiras; estas seriam as Obsessões ou “estar obsedado ou obsididiado” cujo grupo afetado são os espíritas Kardecistas e grupos de religiões afro-brasileiras.(2008,p.389). A partir disto gostaria de levantar a possibilidade de que mesmo o sujeito não possuindo outros sintomas para o diagnóstico de esquizofrenia ou transtorno delirante, este ainda pode possuir um delírio místico-religioso, pois considero que alguém que diz ouvir espíritos já se encontre, em alguma medida, em um estado sintomático/patológico. Por isso, acredito que estas informações, que Pierre(1995) e Luckof(1985) nos colocam sejam insuficientes para o contexto atual.

Sendo assim julgo que estamos dando pouca atenção para um tema muito delicado, estamos olhando pouco para o delírio religioso e sua dimensão na contemporaneidade, esquecendo-nos do tamanho que esta pode alcançar. Não é sem motivo que a cada dia vemos a expansão do número crescente de pessoas recorrendo ao exorcismo, o fenômeno cresce tanto que o Instituto Sacerdos Pontificio Regina Apostolorum (a universidade do vaticano) e o Grupo de pesquisa e Informação Sócio-religiosa (GRIS) decidiram montar um curso intitulado “Exorcismo e oração de libertação”, esta é uma das respostas do vaticano frente ao aumento dos “endemoniados”. São pessoas dizendo-se possuídas pelo demônio, provocando automutilações, suicídios e assassinatos, como o grupo Beasts of Satan, que teve dois integrantes condenados por três rituais assassinos. Assim, o filme “O Ritual” que teve estréia no Brasil em fevereiro de 2011, também demonstra a crescente preocupação da igreja em atender esta demanda que aumenta a cada ano. 

Sugere-se, portanto, um avanço nas pesquisas em torno dos delírios religiosos, tanto individuais, quanto epidêmicos, a fim de que possamos expandir nosso campo de saber, e assim, modificar/criar novas formas de diagnóstico/classificações, pois trata-se de um tema complexo e que apesar de todos os estudos, ainda cabe a ciência fazer um novo movimento. Desta forma, o objetivo deste estudo não é somente fazer uma apresentação dos delírios de temática religiosa, mas levantar hipóteses, suscitar questionamentos e despertar novas discussões.

Sugestão: Leia também um estudo quantitativo

1. Este termo foi utilizado no séc. XX por C. Almeil, este estudou as epidemias no de ordem religiosa. Hoje esta definição não possui classificação em nenhum manual de diagnóstico. Utilizarei esta definição, uma vez que julgo o termo adequado para o presente estudo.

Referências

Harold G. Koenig (2007).Religião, espiritualidade e transtornos psicóticos . Rev. Psiq. Clín. 34, supl 1; 95-104.Ed.Escala.

Alvarado C.S. et al.(2007). Da possessão ao delírio . Rev. Psiq. Clín; 34 ( supl ): 42-53.Ed.Escala.

Dantas, Clarissa de Rosalmeida; Pavarin, Lilian Bianchi; Dalgalarrondo, Paulo. (2008) Sintomas de conteúdo religioso em pacientes psiquiátricos. Rev. Bras. Psiquiatr. vol.21 n.3 São Paulo Sept. 1999

Dalgalarrondo, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2. ed. Porto Alegre : ArtMed, 2008. 440 p.

Freud, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Porto Alegre : L&PM, 2010. 139 p.

Dalgalarrondo, Paulo. (2007).Estudos sobre religião e saúde mental realizados no Brasil: histórico e perspectivas atuais. Rev. psiquiatr. clín. vol.34 suppl.1 São Paulo.

Modólo, Heloisa Mara Luchesi (2006). Delírios religiosos e a estruturação psíquica: O caso Jacobina Mucker-Uma releitura fundamentada na psicologia analítica. São Paulo.

Cambuy, Karine.(2006). Psicologia Clínica e Experiência Religiosa. Rev. De Estudos da Religião. Vol.3, p.77-94.

Historia Viva. Grandes temas:sob a sombra do Diabo nº 12, 2009, Sp.

Dupain (1888) . Clínica de estudo no delírio religioso. [1]

Maria Danielle Figueira Tavares

Enfim, a fobia talvez seja o modo de manterem as coisas no lugar, enquanto o cognitivo , o emocional e a libido se reequilibram. 



Leitura Sugerida

RELIGIÃO E EPILEPSIA




quinta-feira, 27 de julho de 2017

sábado, 10 de junho de 2017

SERMÕES DA MONTANHA




Tomaz da Fonseca
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Excertos

"... Sempre que uma grande e luminosa descoberta fornece benefícios aos mortais, facilitando e adoçando a vida, logo surgem os padres nos púlpitos, condenando-a como obra contra Deus e contra a fé de nossos pais.


Foi deste modo que perseguiram, sacrificaram e desonraram (quantos morreram cobertos de ignomínia e de miséria irresgatável!) Copérnico, que descobrira o movimento da Terra; Newton e La Place, que ensinaram o sistema do mundo; Franklin e Dawis, que abrigaram do raio e das explosões do grisu; Galvani e Volta, que revelaram as correntes eléctricas, hoje dominadoras do mundo; Wheratstone e Morse, que, por meio do telégrafo, fizeram voar o pensamento com a velocidade dum raio... Perseguiram Bacon e Descartes, ultrajaram Look e Espinosa. Le Bon, que iluminou as cidades a gás, foi obrigado a emigrar; Galileu, que nos legou o termómetro, a balança hidrostática e nos revelou o movimento da Terra, foi agarrado e torturado pelo dedo de Deus, nesse tempo ao serviço da Inquisição; Rousseau, que nos ensinou a arte de educar as crianças, foi um dos homens mais perseguido e mais repetidas vezes condenado pela igreja.


Filhos do diabo eram também Quinguet, autor dos candeeiros; Mariotte, dos manómetros; Paulino de Campânia, dos sinos; Finiguerra, da gravura a buril; Dombarle, da charrua; Senefelder, da litografia. Filhos do Diabo foram ainda Pironet, que descobriu a bomba; Sauvage, a hélice; Margraf, o açúcar de beterraba; Fresman, a borracha; Cromston, a fiação mecânica; Robert, a máquina de fabricar papel; Filipps, o sino de mergulhar; Fresnel, os faróis das costas; Deville, o alumínio; Soubeiram, o clorofórmio; Deschamps, a lâmpada económica; Vaucauson, os autómatos; Filippe Chiese, as diligências; Otho Guericke as máquinas pneumáticas; Fischer, as bombas de incêndio; Montgolfier, o carneiro hidráulico; E. Adour, o alambique, Gay Lussac, o alcoómetro; Lee, as pontes pênsis; Baptista Chambrai, a cambraia, e os esposos Curie, o radium. Nenhum deles teve jamais as atenções da Igreja para outro fim que não fosse a perseguição, a calúnia, o extermínio.


Lincoln, que pacificou a América, e Garibaldi, que libertou a Itália, eram dois filhos do Inferno, às ordens de Satanás"...

Montalembert e Lamenais, que defenderam a liberdade da Ciência e a supremacia do livre-exame, foram anatematizados pelo Papa, como inimigos da Verdade. Entre nós: quantas vítimas inocentes, sacrificadas em nome desse Deus? Lembro apenas duas: Damião de Gois, glória de Portugal, condenado pela Inquisição a apodrecer no fundo de um cárcere abominável; e Alves Martins, bispo de Viseu e ministro de Estado, que dava tudo aos pobres, que não tinha guarda-roupa nem cruz de brilhantes, morreu amaldiçoado pela Igreja, chegando os seus próprios colegas a negar-lhe uma missa, a missa fúnebre, a missa que se diz a toda a gente!

À vista destes factos, quais são as obras de Deus? Quais os seus homens? Quem manda ele para nos dirigir e resgatar? Inácio de Loiola, que ensinou à Humanidade a arte de sofrer e ser cadáver; Torquemada, que inaugurou a Inquisição da Espanha, encarcerando, degolando e queimando muitos milhares de cidadãos prestantes; Carlos 9º e Catarina de Médicis, que, em uma noite apenas, cobriram de sangue as ruas de Paris, matando e afogando cegamente o seu povo indefeso; Pedro, o Eremita, e Urbano 2º, os fautores das Cruzadas, onde morreu, com fomes, febres e guerras inúteis, a flor da mocidade de toda a Europa; o patriarca S. Domingos, que fundou o mais tenebroso e sanguinário dos tribunais - a Inquisição -; Simão de Monfort, que massacrou os albigenses, gente simples e de bons costumes que havia numa província ao sul da França; e o abade Citeaux, que nessa guerra de extermínio mandava matar indistintamente velhos e moços, mulheres e crianças, culpados e inocentes, alegando que Deus saberia distinguir os ímpios dos católicos, chegando, desse modo, e num só dia a massacrar 60.000!... Três pessoas distintas, mas todas elas realizando o pensamento e a obra do deus Verdadeiro.


Os soldados do general russo Anhalt, quando atiravam ao ar com as crianças turcas, aparando-as em seguida na ponta das lanças, faziam-no em nome de Deus, entre orações e missas. Igual procedimento tinham os companheiros de Fernão Mendes Pinto, quando, no Oriente, queimavam, gotejando sangue no meio dos incêndios.


Filhos de Deus foram também o frade Jacques Clement e Ravaillac, que apunhalaram respectivamente os reis de França Henrique 3º e 4º, este último o bom, o justiceiro, o laborioso e grande Henrique. Filhos de Deus eram os papas Sérgio 3º, que teve de Marosia um filho adulterino, mais tarde o papa João 11º, que, tendo roubado em Nápoles uma mulher ilustre, viveu depois com ela, publicamente amancebado; Alexandre 6º, que teve de Vanosia, dama romana, quatro filhos e uma filha, e dava banquetes às prostitutas e envenenava os seus inimigos; Paulo 3º que passava o melhor do seu tempo a gerar filhos, que depois elevava a cardeais; Júlio 3º que tinha por amante um lindo moço, de que fez um pequeno cardeal; João 22º, que, mediante 80 soldos pagos à Santa Sé, consentia que os leigos dormissem com as mães e irmãs, e por pouco mais os pais com as filhas; que permitia aos diáconos o assassínio com as condições de darem 240 soldos; aos bispos e aos abades um pouco mais abonados, o direito de apunhalarem o semelhante, se dessem 300 libras."


"Pois são factos há muito averiguados e bem conhecidos dos que estudam e lêem. Mas se ainda fosse só isso!... Que pensaríeis então se vos dissesse, por exemplo, que só uma das obras de Deus, as tais cruzadas à Terra Santa, custaram inutilmente a vida a dois milhões de crentes? Que direis que só desde o papado de Leão 10º a Clemente 9º, os carrascos zelosos da fé, espalhados pela França, Holanda, Alemanha, Flandres e Inglaterra; a Saint-Barthelemy, os missionários da Vendea, de Cevennes, da Irlanda, queimaram degolaram e massacraram para cima de outros dois milhões de seres humanos?

Las Casas, bispo espanhol e testemunha ocular de muitas perseguições e autos de fé, atesta que só na América, se imolaram a Deus, por imposição do clero, dose milhões de indígenas! As guerras religiosas do Japão, provocadas pelos missionários europeus, que iam propagar o catolicismo, custaram o melhor de 400.000 vidas! E à sua parte, a Inquisição, no resto dos países, fez queimar igual número de pessoas, sob o pretexto de heresia ou de fé morta.

Os massacres de Meridol e Cabrières são também dignos de Deus: 22 grandes bairros incendiados, crianças de peito lançadas às chamas, jovens desfloradas e cortadas aos bocados, pobres velhas sem préstimo obrigadas a arrastar-se por cima de brasas vivas, tendo cheios de pólvora os orifícios da maternidade e do anus; os maridos, os pais, os irmãos, tratados pouco mais ou menos da mesma sorte; tudo isto junta mais ao rol de Deus o melhor de 18.000 vidas! A guerra religiosa, que se seguiu ao suplício de João Huss e Jerónimo de Praga, custou 150.000 existências. E, no século 14, o grande cisma do Ocidente cobriu a Europa de cadáveres, pois nada menos de 50.000 foram as vítimas dessa raiva papal.


As cruzadas contra os imperadores, desde Gregório 7º, roubaram à Europa 300.000 homens, pelo menos. Nas dos frades cavaleiros (porque também esses tiveram as suas cruzadas) que desbastaram todas as terras marginais do Báltico, os sacrificados não ficaram abaixo dos 100.000. Igual número sucumbiu na cruzada contra o Languedoc, largo tempo coberto pelas cinzas das fogueiras. As guerras movidas pelos papas e bispos entre si custaram 20.000. A imperatriz Teodora, viuva de Teófilo, em cumprimento da penitência imposta pelo seu confessor, fez massacrar 120.000 maniqueus, em 845. As querelas religiosas entre iconoclastas e iconólatras, eliminaram mais de 60.000 vidas. As disputas sobre a consubstancialidade, em matéria de sacramentos, desbastaram muitas províncias, sendo mais de 300.000 cristãos degolados e queimados por outros igualmente cristãos. E como estas outras vítimas: como estes outros atentados, iníquos, monstruosos!"


Que leia por exemplo, as páginas que tratam do ano mil. Ah! os falsos pavores dessa era terrível, que tantas desgraças e tão grande retrocesso social motivaram no mundo! Foi isso, como digo, no ano mil da nossa era. A igreja e com ela toda a cristandade, clamava que fizessem penitência, porque Deus ia dar fim ao mundo. Pois bem, Deus, que sabia tudo, Deus, que todos os dias falava com os seus padres, e estes que toda a hora recebiam, possuíam a Deus, nenhum disse a verdade às multidões. Deus consentiu que os homens deixassem de cultivar os campos, construir as casas, abrir estradas, educar a mocidade, amar e procriar, ordenando-lhes apenas que rezassem, chorassem e morressem de dor, esterilmente, como lobos famintos num deserto! E isto, durante anos e anos!


Muitos, para não assistirem à pavorosa e universal catástrofe, iam afogar-se nos rios, asfixiar-se nas adegas, abrasar-se nos fornos e, quantos, quantos, não foram sepultar-se vivos, em fundas valas e em negras cavidades subterrâneas! Tudo era desolação e morte, na expectativa , desse fim, E Deus viu tudo, Deus quis tudo, e a Igreja a tudo assistiu, como executora dos mandatos divinos.


Pois bem, todas essas lágrimas essas mortes, essas sepulturas vivas, esses ventres estéreis e, principalmente, esses irreparáveis retrocessos intelectuais, morais e económicos, tudo isso se teria evitado se Deus quisesse ser, por um instante que fosse, não digo já pai amantíssimo, mas simplesmente juiz consciencioso, alma de bom sentir e bom querer. Bastava que dissesse ao seu vigário na Terra uma palavra só; bastava um gesto, um aceno, e tudo se teria remediado e evitado. Mas não quis. E ate parecia ser ele o primeiro a sentir e a confessar o medo. Pois o ano mil passou e tudo continuou como dantes menos as terras e outros bens da gente ignara e simples, que passaram a posse dos conventos.


Duvidais também, porventura, das fomes, dos incêndios e das pestes, que no século 17 encheram de luto o mundo inteiro?


Só nas ruas de Londres, em 1664, caíram 50.000 ingleses fulminados pelas epidemias. Para cúmulo de infortúnio, sobreveio, depois, um tão formidável incêndio, que destruiu quase toda a cidade. E na França, ainda o quadro de luto e de miséria foi mais horrorizante. Do alto do seu trono de nuvens, Deus viu a Franca, agonizando com a cólera; viu morrer, viu pedir misericórdia, e ficou mudo, e conservou-se inerte! Ruas inteiras, bairros completes das mais populosas cidades ficaram desertos e sem vida. E quando, à noite, nas ruas, onde a vida palpitava ainda, alguém passava, acossado de pânico, via constantemente abrirem-se janelas, onde caía um corpo, fechando-se em seguida, muitas vezes para não mais se abrirem. De espaço a espaço, passava pelas ruas o carroção lutuoso e sinistro, que recolhia os mortos e seguia para a vala comum. Por fim não havia já quem os enterrasse. Os corpos eram lançados fora, ao acaso, por todos os pontos da cidade, e assim ficavam, decompondo-se, à vista de Deus, que lá das cumeadas do Infinito se estava revendo e regalando com a perfeição da sua obra.


E o Diabo? Esse não se esquece nunca do bem que precisamos, e por isso nos manda de pronto os seus agentes - Apolónio, Galeno, Gutenberg, Watt Palissy, Lavoisier - recomendando-lhes sempre que trabalhem e lutem no sentido do Bem e da Verdade, comuns a todo o ser criado; que sejam moderados, económicos, magnânimos e justos, a fim de podermos e sabermos, para que mutuamente nos amemos e libertemos da dor e da miséria, até que um dia possamos realizar o nosso grande sonho de beleza, pairando, como águias, por sobre toda a imperfeição das coisas.


Que diferença, pois, entre o bom Deus e o mau Diabo, o qual, apenas pressente estas desgraças, estas crises morais e económicas, logo corre a chamar os seus amigos, a quem vai levar o segredo da maior felicidade, ensinando-Ihes a procurar o ferro, o ouro, a prata, o cobre e a platina; indica os bons terrenos, tanto os que produzem frutos, como os que encerram minas de hulha; marca os pontos onde a vida melhor se poderá viver e dilatar; aplica à indústria o carvão e o vapor, funde os metais, prepara enxadas e charruas. Foi ele que nos ensinou a domesticar o boi e o cavalo, que nos levou ao fundo das minas, aos grandes e inesgotáveis depósitos carboníferos; conduziu-nos através das florestas, desceu connosco ao fundo dos oceanos e, não farto de nos prestar todo este apoio, ajudou-nos ainda a erguer os muros e lançar os telhados da nossa habitação, preparou-nos os remédios na doença, evitou-nos as correntes de ar, as chuvas, as pestes, os tormentos contínuos, as misérias sem fim, e, finalmente, deu-nos a paz, a abundância, a liberdade e o sonho, a resignação e o amor.


E Deus maquinando na sombra! Que virá agora? Que nos dará ele em desconto do bem que o outro nos mandou ?- pergunta a cristandade suplicante, interroga o mundo em desalento ! Ah! dá-nos, por exemplo, o Santo Oficio, Inácio de Loiola e Torquemada, para que seja castigado e destruído esse povo rebelde, que assim tenta desobedecer-lhe, inventando artes de prosperar e ser feliz.


Mas o Diabo surge. E no ponto em que mais acesa encontra a guerra do Absoluto contra o Relativo, aí mesmo alicia os seus agentes. Enquanto um lança ao mar o seu navio, outro faz circular comboios, outro voa nos ares, como as águias do Cáucaso, o povo fraterniza, atenuando assim as cóleras de Deus. Emigra para novas terras, procura novos horizontes, sulca os mares, interna-se em florestas, ama, luta e é feliz, quanto pode sê-lo um perseguido do Infinito.


E Deus sempre descontente. De Roma chovem os anátemas, e os papas, seus intérpretes, ameaçam de morte a humanidade, exigindo suplícios, martírios, agonias. A sociedade clama? Tem fome de pão e sede de justiça? Deus não hesita, manda-a encarcerar, banir, privar dos sentidos, da alegria, do trabalho que redime, do amor que adoça e santifica as almas, do espírito que liberta as consciências, da luz que move o mundo e anima a vida.


E o Diabo contente, porque vê os homens cumprindo os seus deveres. E porque espera e crê na sua obra de resgate, leva-os às fabricas e às minas, ensina-lhes a tecer o linho, cardar a lã, canalizar o gás e a água, sanear as ruas e os pântanos, arborizar os montes, evitar os perigos, prever o tempo, conhecer os astros, anunciar os eclipses e redimir consciências, formando caracteres e organizando povos em comunas livres na livre comunhão de todo o bem. Pio 9º, esse filho de Deus, escreve o Sílabus! Condena humanidade à escravidão e à ignorância! Embora : não conseguirá realizar os seu s planos, porque o Diabo chama Garibaldi, Cavour e Mazzini e manda dar trabalho aos ociosos, pão aos famintos, escola aos ignorantes, património aos deserdados, paz aos perseguidos e felicidade aos miseráveis.


Mas para que vamos tão longe buscar factos que todos vimos já, perto da nossa porta? Lembram-se de quando, há anos, aqui caiu um raio que matou uma família inteira, à hora em que, no campo, preparava o pão de cada dia, abatendo também os bois com que lavravam a terra? Pois toda a gente, de um ao outro extremo do concelho, atribuiu a Deus essa calamidade irreparável. E quando tempos depois, aqui passou o comboio, a que já fizemos referência, comboio que nos conduzia à vida, ao trabalho, à liberdade, fazendo com que as nossas propriedades rendessem o dobro e a nossa produção tivesse mercado e venda pronta, todos disseram à uma: É o Diabo, é o Diabo! Por essa altura voltavam a perturbação e a dor ao coração do povo, sob a forma de cólera-morbus e varíola, que, caindo no seio das famílias, levou filhos e pais parentes e amigos. Debalde se fartaram todos de pedir a Deus misericórdia, para que suspendesse a cólera divina. Fizeram-se preces públicas, prometeram-se juntas de bois aos santos, tranças de cabelo virgem ás santas, romagens de joelhos ás ermidas, jejuns de um ano ao Santíssimo, e de nada valeu a nossa fé. Lembram-se bem não é verdade?...


...Deus, que nos ouve e nos vê decerto nos aplaude, pois está-nos fazendo o mesmo que tem feito aos que na Terra se dizem seus representantes... Querem vocês saber como ele usa assistir aos concílios e outras reuniões da Igreja? Em qualquer dessas assembleias, a que o papa assiste muitas vezes e onde estão cardeais, patriarcas, bispos e padres, ergue-se de lá um, muito solene, muito grave e, dirigindo-se ao espirito invisível, ao mistério, exclama Se Deus aprova, que se deixe estar. Por conseguinte, se o vosso receio é que Deus não esteja satisfeito connosco, digamos nós também, como esses padres, ao começar este serão: - Se Deus não está contente connosco, se não aprova as nossas intenções e decisões que vão seguir-se, que faça o favor de se manifestar, erguendo-se, falando, exteriorizando-se, enfim. ...Como vêem, Deus conforma-se, aprova as nossas decisões. Dá-nos o mesmo apoio que deu aos 318 bispos que, no ano 325, se reuniram em Niceia, para condenarem Ario, que negava a consubstancialidade do filho com o pai, o mesmo que deu aos 150 que, em 381, em Constantinopla, acrescentaram ao símbolo a palavra filioque, o mesmo ainda que deu aos 198 que, em Efeso, no ano de 341, se congregaram para condenar Nestório, que negara a União das duas naturezas em Cristo... Presta-nos o mesmo auxílio que prestou aos 135 bispos reunidos em Efeso, em 449, para excomungarem Flaviano e aplaudirem Eutiques; o mesmíssimo que prestou ainda aos 600 bispos do Oriente que, em 451, voltaram a reunir-se em Calcedónia para aprovarem agora o que haviam reprovado antes, excomungando Eutiques e louvando Flaviano... que morrera na Lídia, desterrado, abandonado, faminto e desonrado.


Deus, emudecendo aqui, junto a nós dá-nos as mesmas provas de amizade e protecção, que deu aos 150 bispos chamados a Constantinopla, em 553, para debaterem a poderosa questão dos três capítulos! Faz-nos a mesma justiça que fez aos 174 bispos reunidos no concílio de; Trulo, em 680, para condenarem o monoteísmo e proclamarem duas vontades em Cristo. (Quando, em 754 compareceram em Constantinopla 338 bispos a fim de condenarem o culto das imagens, anatematizando todo aquele que o defendesse, Deus, que estava tão presente como aqui, fez-lhes o mesmo que acaba de fazer-nos e o mesmo ainda que, 33 anos depois, lhes voltou a fazer, em novo concilio ecuménico, onde voltaram muitos daqueles que viviam ainda, a fim de ser restabelecido o culto das imagens, tão duramente excomungado antes e com à mesmíssima aprovação divina). Aplaude-nos, como aplaudiu os 319 bispos que no ano 861, se reuniram, sob a presidência de Focius, bispo de Siracusa, e com a assistência dos legados pontifícios, condenaram Inácio, patriarca de Constantinopla, bem como igualmente aplaudiu os bispos que, um ano depois, restabeleceram Inácio e excomungaram Focius, voltando ainda a excomungar Inácio e a louvar Focius com os bispos que de novo se juntaram, sempre de acordo com o papa e os seus legados.


Deus mostra por nós a mesma solicitude e carinho que mostrou em 867, aprovando as futuras decisões do grande concílio que em Constantinopla excomungou depois o papa Nicolau. A sua divina misericórdia assiste-nos, tão onipresentemente, como assistiu; ao papa Urbano 2º e seus súbditos, Placença e Clermont, no ano 1095, onde se decidiram e proclamaram as cruzadas. Dá-se aqui o mesmo que em 1074, quando Gregório 7º, cercado da sua corte e assistido, como nós, do Espírito Santo, condenou os padres simoníacos; o mesmo que, dois anos mais tarde, sucedeu em Worms, onde Deus deu a sua plena e incondicional aprovação aos bispos que depuseram o mesmo papa que, por sua vez, reuniu em Roma, na presença do mesmo Deus, 110 bispos, que tiveram licença para excomungar os promotores do concílio anterior. Deus, que logo se passou, indo aprovar e aplaudir as decisões daqueles bispos venerandos que, por sua vez, excomungaram e depuseram o papa, o qual foi obrigado a fugir, indo esconder-se na Torre de Santo Angelo, de onde fugiu, também, para ir morrer abandonado e inconsolável, na pequena Salerno! Esse Deus, justo e clemente, está junto de nós, afirmando-nos a sua adesão, tal como, no 4º concílio de Latrão, aos 71 primazes e metropolitas, aos 412 bispos e patriarcas, aos 800 abades e priores, além de muitos príncipes e embaixadores de vários reinos, que condenaram ao extermínio e à morte os desgraçados albigenses. E quando, mais tarde, o papa Clemente 7." excomungava o seu rival Urbano 7º , também papa, que por sua vez o excomungou a ele, era ainda Deus que presidia aos seus juízos, tal como está hoje presidindo aos nossos. Está aqui como esteve no concílio ecuménico de Pisa, onde, com a sua divina aprovação, foram excomungados os seus vigários infalíveis, Gregório 12º e Bento 13º. Está aqui e tão divinamente como esteve no célebre concílio em que João 22º foi obrigado a abdicar; em que, na sua 4ª e 5ª sessões, foi proclamada a supremacia dos concílios sobre os papas; em que na sessão 37ª, foi deposto o papa Bento 13, que o mesmo concilio havia eleito; e em que finalmente, foi condenado João Huss e Jerónimo de Praga, por haverem proclamado a suprema e única autoridade de Cristo sobre os papas eleitos a poder de dinheiro e capricho dos reis, pelo que se determinou fossem queimados vivos! E isto sempre sobre o olhar magnânimo do supremo Senhor, que, como aqui, não cessava de louvar e aplaudir esse procedimento!


Sim Deus aplaude a nossa obra, com a mesma veemência com que aplaudiu, por dezoito longos anos, a grande multidão de legados pontifícios, cardeais, patriarcas, arcebispos, abades, generais, príncipes e fiéis de todas as categorias, que no concilio de Trento estabeleceram o dogma do Purgatório, definiram a invocação dos Santos, o culto das imagens e relíquias, a doutrina das indulgências, acabando por condenar todos os livros que de algum modo pudessem instruir, esclarecer, aperfeiçoar e libertar a humanidade, ainda semi-cega dos terrores da Idade Media, em que os pregadores eram analfabetos e os santos se recusavam a aprender a ler e a lavar-se. Sim. Deus assiste à nossa obra com tão absoluta omnipresença como assistiu a Gregório 13 e ao seu sacro colégio, quando, em Roma, celebraram e mandaram celebrar festas de publico regozijo pela matança de S. Bartolomeu. Enfim, meus amigos, para terminarmos esta apresentação dos divinos poderes, Deus está tão presente à nossa assembleia, como estava, em 1869 à dos 747 bispos, que, na bastilha de S. Pedro, cheios de medo pelos destinos da Igreja, debateram o dogma da infalibilidade papal, dos quais, por sinal, só 535 o aprovaram, condenando assim a liberdade e a razão, pelo que foram obrigados a suspender as sessões e saírem de Roma a toda a pressa, para não serem escorraçados pela bota irreverente dos piemonteses, supremos senhores da Cidade Eterna.


Portanto Deus calando-se aqui, como sempre fez nesses grandes concílios do passado, mostra que está contente com o que temos feito e, sobretudo, com o que vamos dizer neste sentido...


Lisboa, 5 Janeiro de 1998


(Núcleo de Cidadãos amigos de Tomás da Fonseca)