Segundo
Leonardo Boff o herege é:
«(…) aquele que se recusa a repetir o discurso da consciência colectiva. (…) Por isso está mais voltado para a criatividade e o futuro do que para a reprodução do passado.».
«(…) aquele que se recusa a repetir o discurso da consciência colectiva. (…) Por isso está mais voltado para a criatividade e o futuro do que para a reprodução do passado.».
Para o catolicismo medieval eram
consideradas heresias todas as formas de pensamento que não obedecessem
estritamente às emanações da hierarquia da Igreja. Ou seja, eram hereges todos
os que ousassem sair do controle rígido efetivado pela Igreja, todos os que não
aceitassem as orientações, práticas, concepções e preconceitos da Igreja como
sendo a verdade «absoluta». Assim, eram hereges todas as pessoas que
acreditavam, aceitavam ou mesmo divulgavam quaisquer ideias que se desviassem
minimamente da doutrina concebida pela Igreja romana, o que incluía,
obviamente, quem ousasse usar perversa e culpadamente a razão em incursões
proibidas pela «má» ciência de Agostinho de Hipona.
A Inquisição foi a forma a que a
Igreja recorreu para perseguir tudo e todos que não se conformassem aos moldes
que esta impunha, nomeadamente que se permitiam ao uso «blasfemo» da razão.
Problema que começou a surgir nos
finais do século XII, quando a dita Reconquista da Península Ibérica começou a
ter sucesso, (dita Reconquista porque o objetivo foi a recuperação de terras
sob domínio árabe às quais os cristãos acreditavam ter direito) graças à
fragmentação do califado de Córdoba. Reconquista que pôs os incultos cristãos
em contacto com uma civilização cultural e cientificamente muito mais avançada
e cujos focos de infecção principal se situaram na Córdoba cosmopolita,
elegante e educada, com uma comunidade judaica muito importante de que se
destaca um dos seus mais prestigiados filósofos, Maimonides (1135-1204), e na
académica Toledo, que expuseram o mundo cristão não só à filosofia aristotélica
sem censuras (o que determinou o período seguinte da escolástica) mas também à
matemática dita árabe.
E especialmente a matemática porque
o crescimento econômico de cidades como Florença, Veneza e Pisa, implicava a
existência de conhecimento impossível de satisfazer pelos mistícos scholasticus.
Conhecimento que possibilitasse cálculos prosaicos como os envolvidos em
empréstimos e juros, preços de revenda, investimentos, custos dos seguros das
viagens, etc. As necessidades econômicas ditaram a criação de uma nova
instituição educativa: a Botteghe ou Scuole d’abaco (Escola de Ábaco), cujo
primeiro Maestri d’abaco (mestre de ábaco, ou cálculo) foi, provavelmente, o
famoso Fibonacci da série que tem o seu nome ou Leonardo de Pisa (ca.
1175-1250).
Estas escolas, dirigidas a um
público diverso desde filhos dos mercadores, aspirantes a funcionários públicos
a aspirantes a pintor (Piero della Francesca frequentou uma escola de Ábaco),
escultor ou arquitecto, ensinavam essencialmente a matemática indo-árabe.
Fibonacci estudou com um mestre árabe e, tal como Fibonacci, cada vez mais
europeus se atreviam a algo proibido até então: usar os neurónios para algo
mais que lucubrações sortidas sobre Deus e os Evangelhos.
Assim a Igreja precisava de um «cão
de fila», a Inquisição, que exercesse não só uma severa vigilância sobre o
comportamento dos fiéis, assegurando que não eram contaminados com toda a
produção cultural e inovações científicas que o contacto com os infiéis
catalizou, como controlar e tentar cercear toda esta produção intelectual
anti-cristã. Na verdade, a Igreja receava que as ideias inovadoras conduzissem os
crentes à dúvida religiosa e à contestação da autoridade do Papa. As novas
propostas filosóficas ou científicas eram examinadas (e cortadas radicalmente)
pela Inquisição, exame que mais tarde, depois da invenção da prensa por
Gutenberg que dificultou o trabalho inquisitoral, culminou na criação do Index
auctorum et librorum prohibitorum, o catálogo dos livros cuja leitura era
proibida aos católicos, sob pena de excomunhão.
A
origem da Inquisição remonta ao século IV, quando se iniciam as perseguições
contra os hereges. Nesta época, o movimento ainda não era institucionalizado, e
no período que vai dos séculos VI ao IX o seu poder era restrito. A partir do
século X, a Inquisição vai assumindo um papel cada vez mais importante. Com o
IV Concílio de Latrão, de 1216, o papa Inocêncio III estabelece o metodo
inquisitio e após o Concílio de Toulouse, em 1229, a sua organização foi
formulada, sendo oficializada em 1231 pelo Papa Gregório IX. Inserido num
cenário ainda de poder eclesiástico absoluto e soberano este Tribunal é
instaurado essencialmente para perseguir os hereges que começavam a incomodar
os alicerces do poder da Igreja católica.
Em 1252 o poder da Inquisição é
reforçado com a santificação da tortura pelo Papa Inocêncio IV que no Ad
Extirpanda, diz que os hereges «podem ser torturados a fim de revelar os
próprios erros e acusar os outros, como se faz com os ladrões e salteadores» e
em que propõe que os heréticos irrecuperáveis devem ser queimados vivos na
fogueira. Na prática, um testemunho era suficiente para justificar o envio para
a câmara de tortura do acusado e quanto mais débil a evidência do crime, mais
severa era a tortura.
O Manual dos Inquisidores, o Directorum
Inquisitorum (escrito em 1376 por Nicolau Eymerich e revisto e ampliado em
1576 por Francisco de la Peña) é uma compilação da praxis da Inquisição desde a
sua criação formal, um tratado dividido em três partes: a) o que é a fé
cristã e seu enraizamento; b) a perversidade da heresia e dos hereges; c)
a prática do ofício do inquisidor que importa perpetuar, dá conta, na secção
b), que:
«Aplicar-se-á,
do ponto de vista jurídico, o adjectivo de herético em oito situações bem
definidas. São heréticos:
a) Os excomungados;
b) Os simoníacos;
c) Quem se opuser à Igreja de Roma e contestar a autoridade que ela recebeu de Deus;
d) Quem cometer erros na interpretação das Sagradas Escrituras;
e) Quem criar uma nova seita ou aderir a uma seita já existente;
f) Quem não aceitar a doutrina romana no que se refere aos sacramentos;
g) Quem tiver opinião diferente da Igreja Romana sobre um ou vários artigos da fé;
h) Quem duvidar da fé cristã.»
Nestas oito alíneas cabem todos os
que não aceitavam de cruz o que a Igreja de Roma determinava ou qualquer um que
se considerasse ter ofendido os costumes (as tradições ainda tão invocadas hoje
em dia) e a fé cristã da Santa Madre Igreja, para além dos culpados do costume:
judeus, cristãos novos, marranos, sodomitas e bruxas (boa parte parteiras que,
inspiradas pelo demo, ajudavam parturientes a «escapar» ao castigo ordenado
pelo Senhor de parirem em dor).
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