O Tribunal Inquisitorial do Santo Ofício existe e está em plena atividade, apenas mudou e aperfeiçoou os métodos.
Leonardo Boff, pseudônimo de Genézio
Darci Boff (Concórdia, 14 de
dezembro de 1938), é um teólogo brasileiro, escritor e professor universitário, expoente da Teologia da Libertação no Brasil. Foi
membro da Ordem dos Frades Menores (franciscanos).
Atualmente dedica-se sobretudo às questões
ambientais.
Leonardo Boff ingressou na Ordem dos Frades Menores em 1959 e foi
ordenado sacerdote em 1964. Em 1970, doutorou-se em Filosofia e Teologia na Universidade de Munique, Alemanha. Ao
retornar ao Brasil, ajudou a consolidar a Teologia da Libertação no país.
Lecionou Teologia Sistemática e Ecumênica no Instituto Teológico Franciscano em Petrópolis (RJ)
durante 22 anos. Foi editor das revistas Concilium (1970-1995) (Revista
Internacional de Teologia), Revista de Cultura Vozes (1984-1992) e Revista
Eclesiástica Brasileira (1970-1984).
Seus conceitos teológicos sobre a doutrina Católica com respeito à
hierarquia da Igreja, expressos no livro Igreja, Carisma e Poder,
renderam-lhe um processo junto à Congregação para a Doutrina da Fé,
então dirigida por Joseph Ratzinger, depois Papa Bento XVI. O
documento final desse processo foi assinado pelo próprio Cardeal
Ratzinger e conclui que "as opções aqui analisadas de
Frei Leonardo Boff são de tal natureza que põem em perigo a sã doutrina da fé,
que esta mesma Congregação tem o dever de promover e tutelar" .
Em 1985, foi condenado a um ano de
"silêncio obsequioso", perdendo sua cátedra
e suas funções editoriais na Igreja Católica. Em 1986, recuperou algumas
funções, mas sempre sob observação de seus superiores. Em 1992, ante novo risco
de punição, desligou-se da Ordem Franciscana e pediu dispensa do sacerdócio.
Sem que esta dispensa lhe fosse concedida, uniu-se, então, à educadora popular e militante dos direitos
humanos Márcia Monteiro da Silva Miranda, divorciada e mãe de seis
filhos, com quem mantinha uma relação amorosa em segredo desde 1981. Boff
afirma que nunca deixou a Igreja: "Continuei e continuo dentro da
Igreja e fazendo teologia como antes", mas deixou de exercer a função
de padre dentro da Igreja.
Sua reflexão teológica abrange os
campos da Ética, Ecologia e
da Espiritualidade, além de assessorar as Comunidades Eclesiais de Base(CEBs) e
movimentos sociais como o MST.
Trabalha também no campo do ecumenismo.
Em 1993 foi aprovado em concurso
público como professor de Ética, Filosofia da Religião e Ecologia na Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, onde é atualmente professor emérito.
Foi professor de Teologia e
Espiritualidade em vários institutos do Brasil e exterior. Como professor
visitante, lecionou nas seguintes instituições: de Universidade de Lisboa (Portugal), Universidade de Salamanca (Espanha), Universidade Harvard (Estados
Unidos), Universidade de Basel (Suíça) e
Universidade de Heidelberg (Alemanha). É doutor honoris causa em Política pela
universidade de Turim,
na Itália,
em Teologia pela universidade de Lund na Suécia e
nas Faculdades EST – Escola Superior de Teologia em São
Leopoldo (Rio Grande do Sul). Boff fala fluentemente alemão.
Sua produção literária e teológica é
superior a 60 livros, entre eles o best-seller A Águia e a Galinha. A maioria de suas
obras foram publicadas no exterior.
Atualmente, viaja pelo Brasil dando
palestras sobre os temas abordados em seus livros, participando também de
encontros da Agenda 21.
Vive em Petrópolis (RJ)
com sua companheira, a educadora popular Márcia Miranda.
MANUAL DOS INQUISIDORES
Ao se terminar a leitura do Manual
dos Inquisidores, a primeira reação é de perplexidade e de espanto: como é
possível tanta desumanidade dentro do cristianismo e em nome do cristianismo?
Os sonhos originais da proposta cristã são de ilimitada generosidade: Deus é
pai com características de mãe; todos são filhos e filhas de Deus; o Verbo
ilumina cada pessoa que vem a este mundo; a redenção resgata toda a humanidade;
e o arco-íris da benevolência divina cobre todas as cabeças e o universo
inteiro. Como se passa deste sonho para o pesadelo da Inquisição?
Não vale chorar nem rir. Importa
compreender. É o que tentaremos sucintamente.
1. A pretensão da verdade absoluta
leva à intolerância
Para entender o comportamento da
Igreja através da Inquisição, entre outros elementos importantes, faz-se mister
considerar a autoconsciência que a própria Igreja fez e, em setores de direção,
ainda faz de si mesma. Como ela constrói religiosamente a realidade? Como se
representa a história humana?
A leitura comum, que se encontra nos
catecismos clássicos, é a seguinte: a humanidade foi criada na graça de Deus. A
criação era um livro aberto que falava do Criador. Porém em Adão e em Eva ela
decaiu. Perdeu os dons sobrenaturais (a graça) e mutilou os dons naturais
(obscureceu a inteligência e enfraqueceu a vontade). As frases da criação se
decompuseram em palavras soltas e sem nexo. Os seres humanos não conseguiam
mais ler a vontade de Deus no alfabeto natural (revelação natural). Deus se
compadeceu e nos entregou um outro livro, escrito por judeus e cristãos, as
Escrituras sagradas, que contêm o alfabeto sobrenatural (revelação
sobrenatural). Mediante ele, podemos refazer as frases da criação e assim ter
acesso às verdades divinas sobre o ser humano e o universo. Nas Escrituras, como
num depósito (depositum lidei), estão todas as verdades necessárias para a
salvação.
Mas o livro pode ser lido de mil
maneiras. Qual é a leitura correta? Deus, novamente, se apiedou da humanidade e
criou o Magistério: o Papa e os bispos. Eles são os representantes de Deus e os
vigários de Cristo. A missão do Magistério é guardar fielmente, defender
ciosamente e interpretar autenticamente o depósito das verdades salvíficas.
Mas eles não são humanos, sujeitos a
erros? Deus novamente se apiedou da fragilidade humana e concedeu ao Papa e aos
bispos reunidos um privilégio único. Em questões que interessam a todos
concernentes à fé e à moral, visando à salvação eterna, seus pronunciamentos
gozam de infalibilidade. Eles não podem errar e por isso, na história, nunca
erraram.
Eis o que reza a doutrina, uma
verdadeira metafísica religiosa, quer dizer, uma interpretação da história a
partir dessa determinada ótica religiosa.
As pessoas agora podem ficar
tranquilas e gozar de plena segurança. Basta ouvir o que o Magistério ensina,
vivê-lo coerentemente e já estão em conformidade com a vontade de Deus. O
efeito é promissor: nada menos que a vida eterna.
O Magistério, portanto, é portador
exclusivo de uma verdade absoluta. A verdade não é objeto de uma busca. Mas de
uma posse agradecida. Por mil formas esta verdade é distribuída por parte do
Magistério cada vez com graus diferentes de certeza, mas sempre sob a
assistência divina no horizonte da infalibilidade: pronunciamentos,
admoestações, encíclicas, declarações dos sínodos e dos concílios, proclamação
de dogmas de fé etc.
Face à verdade absoluta, não cabem
dúvidas e indagações da razão ou do coração. Tudo já está respondido pela
instância suprema e divina. Qualquer experiência ou dado que conflita com as
verdades reveladas só pode significar um equívoco ou um erro. A Igreja detém o
monopólio dos meios que abrem o caminho para a eternidade.
Sendo as coisas assim só existe um
perigo fundamental: a heterodoxia, a heresia e o herege. Em outras palavras, a
grande oposição se dá entre o dogma e a heresia. Para essa compreensão, erro
gravíssimo e radical não é tanto a injustiça, o assassinato, a espoliação de
povos e a opressão de classe, o genocídio e o ecocídio.
Esses são atos e atitudes morais perversos mas corrigíveis; o caminho da eternidade continua aberto pelo arrependimento e o perdão; a fé não é negada, nem as verdades absolutas questionadas. Erro radical é a heresia ou a suspeição de heresia. Aqui se negam as verdades necessárias e se fecha o caminho para a eternidade. A perda é total. O mal, absoluto. O herege é o arquiinimigo da fé. O ser perigosíssimo. Se o perigo é máximo, máximas devem ser a vigilância e a repressão.
Esses são atos e atitudes morais perversos mas corrigíveis; o caminho da eternidade continua aberto pelo arrependimento e o perdão; a fé não é negada, nem as verdades absolutas questionadas. Erro radical é a heresia ou a suspeição de heresia. Aqui se negam as verdades necessárias e se fecha o caminho para a eternidade. A perda é total. O mal, absoluto. O herege é o arquiinimigo da fé. O ser perigosíssimo. Se o perigo é máximo, máximas devem ser a vigilância e a repressão.
Por isso, nessa visão, o portador da
verdade é intolerante. Deve ser intolerante e não tem outra opção. Caso
contrário a verdade não é absoluta. Só os que não possuem a verdade podem ser
tolerantes. Consentir a dúvida. Permitir a busca. Aceitar a verdade de outros
caminhos espirituais. O fiel, este é condenado á intolerância.
Os inimigos da verdade e da reta
doutrina (ortodoxia), os hereges verdadeiros ou presumidos devem ser
perseguidos lá onde estiverem e exterminados. Deve-se esquadrinhar suas mentes,
identificar os acenos do coração, desmascarar idéias que possam levar à
heresia. Contra o mal absoluto – a heresia – valem todos os instrumentos e
todas as armas.
Pois se trata de salvaguardar o bem absoluto – a salvação eterna, apropriada pela adesão irrestrita à verdade absoluta como vem proposta, explicada e difundida pela Igreja. Fora da Igreja não há salvação, porque fora dela não existe revelação divina e por isso verdade absoluta. Podem existir verdades fragmentadas, não sicut opponet ad salutem consquendam (“como devem ser para se conseguir a salvação”, como repetem os textos dos concílios), mas incapazes de abrir caminho pelo matagal das confusões humanas e aceder à destinação eterna. Por isso a Igreja é imprescindível.
Pois se trata de salvaguardar o bem absoluto – a salvação eterna, apropriada pela adesão irrestrita à verdade absoluta como vem proposta, explicada e difundida pela Igreja. Fora da Igreja não há salvação, porque fora dela não existe revelação divina e por isso verdade absoluta. Podem existir verdades fragmentadas, não sicut opponet ad salutem consquendam (“como devem ser para se conseguir a salvação”, como repetem os textos dos concílios), mas incapazes de abrir caminho pelo matagal das confusões humanas e aceder à destinação eterna. Por isso a Igreja é imprescindível.
2. Uma lógica férrea e irretorquível
Ao instaurar a Inquisição, a Igreja
produz e habita esse discurso totalitário e intolerante. Quem quiser entender o
presente Manual dos Inquisidores deverá imbuir-se dessa mentalidade e visão das
coisas. Só assim fará justiça a seus autores. Então tudo aparece lógico e
coerente. O inquisidor é extremamente fiel e imbuído da melhor das intenções. A
arquitetônica de sua argumentação é irretorquível. É obra de mestre.
Assim como quem quiser entender a
repressão e a tortura dos regimes militares latino-americanos deverá entender a
leitura da sociedade feita a partir da ideologia da segurança nacional e repassada
às mentes dos torturadores e de seus mandantes. Da mesma forma as câmaras de
gás e a limpeza genética perpetradas pelo nazifascismo. Ou, num nível maior, a
cultura ocidental, que foi incapaz de acolher a diferença e alteridade e que
por isso, historicamente, cometeu toda sorte de genocídios e exclusões, ainda
hoje, no processo de sua mundialização. Em todos esses antifenômenos há uma
lógica irretorquível. Em nome dela se excluem outros, eventualmente até são
mortos.
Uma vez aceito o sistema de idéias,
tudo flui de forma férrea e coerente. É a verdade intra-sistêmica.
Evidentemente, cabe analisar o sistema. A boa intenção dos torturadores
certamente não é boa, pois produz a morte. O sistema é sacrificialista, pois
exige mais e mais vítimas para se manter. Como pode, como pretende, ter o aval
divino? Mas isso já é outra questão, não mais analítica, mas ética e teológica.
3. Os autores do Manual dos
Inquisidores
Trata-se de dois dominicanos, um do
século XIV e outro do século XVI, peritos em jurisprudência e teologia: Nicolau
Eymerich e Francisco Peña. A importância deles reside no fato de ambos
procederem a uma grandiosa codificação das práticas e das justificativas
(teologias e ideologias) acerca do controle das doutrinas na Igreja que
culminaram na instituição da Inquisição.
Sabemos que desde cedo a Igreja se
viu ás voltas com doutrinas divergentes daquelas comumente estabelecidas pela
tradição. O problema dos hereges perpassa toda a história da Igreja. O herege é
aquele que se recusa a repetir o discurso da consciência coletiva. Ele cria
novos discursos a partir de novas visões da realidade religiosa. Por isso está
mais voltado para a criatividade e o futuro do que para a reprodução e o
passado.
Com efeito, refletindo bem, a
verdade, por mais absoluta que se apresente, não pode se fundir numa única
fórmula. Uma coisa é a verdade nela mesma. Outra coisa são as suas várias
formulações históricas. A verdade, como se vê nas várias culturas, permite
várias linguagens. E as várias linguagens comunicam novas significações. Por
isso a definição da verdade não pode cair sob o domínio da posse exclusiva de
alguém, detentor de algum código. Mesmo participando da verdade e, de certa
forma, possuindo-a, o ser humano pode buscá-la sempre de novo e sob mil formas.
Mas eis que emerge o conflito. Como
sobrevivem aqueles que buscam a verdade no meio daqueles que presumem havê-la
encontrado? Pergunta-se: buscar a verdade não significa que ela ainda não foi
encontrada? E se não a encontramos, estamos no erro e então não estamos em
risco de perdição eterna? A conseqüência é previsível: o rompimento da comunhão
entre um e outro. E aí começam os processos de exclusão.
Nos primeiros séculos, os portadores
de pensamento divergente eram punidos com a excomunhão, vale dizer, eram excluídos
da comunidade eclesial. Portanto, era uma questão meramente intra-eclesial.
Mas, quando o cristianismo se transformou em religião oficial do Império, a
questão virou política. O cristianismo era considerado o fator principal de
coesão e união política. Então, qualquer doutrina divergente colocava em risco
a unidade política. Os representantes das novas doutrinas eram tidos por
hereges. A punição era a excomunhão, o confisco dos bens, o banimento e mesmo a
condenação à morte.
A perseguição aos divergentes já
ocorreu nos séculos IV e V com a crise do donatismo (os rigoristas no norte da
África que não concediam o perdão aos que fraquejaram nas perseguições e não
reconheciam os sacramentos administrados por eles). O controle e a repressão
das novas doutrinas ganharam força no final do século XII e inicio do século
XIII com a eclosão do movimento popular dos cátaros e valdenses no sul da
França. Eram movimentos rigoristas, de volta ao espírito simples dos Atos dos
Apóstolos, com a pregação itinerante do evangelho na linguagem do povo, levada
a efeito, em sua grande maioria, por leigos.
A Inquisição propriamente surgiu
quando em 1232 o imperador Frederico II lançou editos de perseguição aos
hereges em todo o Império pelo receio de divisões internas. O Papa Gregório IX,
temendo as ambições político-religiosas do imperador, reivindicou para si essa
tarefa e instituiu inquisidores papais. Estes foram recrutados entre os membros
da ordem dos dominicanos (a partir de 1233), seja por sua rigorosa formação
teológica (eram tomistas), seja também pelo fato de serem mendicantes e por
isso presumivelmente desapegados de interesses mundanos.
A partir de então se foi criando uma
prática de controle severo das doutrinas, legitimadas com sucessivos documentos
pontifícios como a bula de Inocência IV (Ad extirpanda) de 1252, que permitia a
tortura nos acusados para quebrar-lhes a resistência. Até que em 1542 o Papa
Paulo III estatuiu a Sagrada Congregação da
Inquisição Romana e Universal ou Santo Ofício como corte suprema de resolução
de todas as questões ligadas à fé e à moral.
O mérito de Nicolau Eymerich foi
elaborar o Directorium inquisitorum (Diretório dos inquisidores), um verdadeiro
tratado sistemático em três partes:
(1) o que é a fé cristã e seu enraizamento;
(2) a perversidade da heresia e dos hereges;
(3) a prática do ofício de
inquisidor que importa perpetuar.
Trata-se de um manual de “como
fazer”, extremamente prático e direto, baseado em toda a documentação anterior
e na própria prática inquisitorial do autor Nicolau Eymerich. Pouca coisa do
seu manual é obra de reflexão pessoal. Tudo é remetido a textos bíblicos,
pontifícios, conciliares, imperiais. A astúcia teológica (e os inquisidores
eram mestres nisso) vem sempre justificada pelos teólogos mais eminentes. Em
casos controversos, expõe todas as teses correntes com seus prós e contras e
suas convergências e divergências. Numa palavra: nele encontra-se tudo, como
ele mesmo reconhece, o que é necessário para o bom exercício da Inquisição.
Sua importância é tão grande que,
depois da Bíblia (o Livro dos Salmos é de 1457), foi um dos primeiros textos a
serem impressos, em 1503, em Barcelona. E quando o Vaticano quis reanimar a
Inquisição para fazer frente à Reforma protestante mandou reeditar o livro como
manual para todos os inquisidores, primeiro em Roma, em 1578, 1585 e 1587, e
depois em Veneza, em 1595 e 1607. Quem são os autores?
Nicolau Eymerich nasceu em 1320 em
Gerona, no reino de Catalunha e Aragão. Fez-se dominicano, com excelente
formação jurídica e teológica. Em 1357 já é inquisidor-geral do reino até 1392,
com duas interrupções mais ou menos longas. Pelo excesso de zelo inquisitorial,
foi exilado dos territórios de Catalunha e Aragão. Mas foi compensado em 1371
com o convite para ser o capelão do Papa Gregório IX (o criador da Inquisição)
quando ainda estava no exílio em Avinhão e depois em Roma. Em 1376, ainda em
Avinhão, escreveu o Manual que o tornou famoso. Morreu em Gerona em 1399.
Devido ao surgimento de novas
heresias no século XVI, fazia-se urgente atualizar o manual de Nicolau
Eymerich. Foi quando o comissário geral da Inquisição romana, Thoma Zobbio, em
nome do Senado da Inquisição Romana, solicitou a outro dominicano, o canonista
espanhol Francisco Pefia transcrever e completar o manual de Eymerich com todos
os textos, disposições, regulamentos e instruções aparecidos depois de sua
morte, em 1399. Penã redigiu uma obra minuciosa de 744 páginas de texto com 240
outras de apêndices, publicada em 1585.
Não obstante as inquisições locais
com suas singularidades e privilégios, o autor fortalece “o direito comum
inquisitorial” como norma geral a ser seguida, o quanto possível, por todos os
inquisidores em todas as partes. Sabemos que havia duas Inquisições oficiais, a
romana e a espanhola. Peña consegue uma síntese processual e doutrinária tal
que se transformou em referência necessária e comum para as duas e para todos
os inquisidores.
A obra de Peña é uma transcrição e
complementação de Eymerich. Por isso, segue-lhe o mesmo esquema em três partes,
referidas acima. Não seria viável nem legível publicar tudo. Ascenderia a quase
mil páginas. Nesta edição, se aproveitou apenas a terceira parte, que trata dos
procedimentos do inquisidor. Como o leitor irá perceber, somos informados, de
saída, o que é a heresia, quem são os hereges e, depois sim, quem é o
inquisidor e como trabalha.
A obra é retilínea e severa. Não se
perde em relatos circunstanciais para não perder o rigor da argumentação. A
prática da Inquisição está aí com toda a sua inclemência, O autor possui um
sentido prático formidável. No final da obra, faz um inventário das 22 rubricas
mais recorrentes que o inquisidor pode consultar rapidamente como se fosse um
fichário. Aí estão as respostas claras para serem aplicadas sem qualquer
titubeio.
4. Como funciona a lógica
inquisitorial
Vejamos rapidamente como funciona a
lógica inquisitorial. Como já consideramos, a centralidade está na verdade
absoluta revelada para nossa salvação, a ser sempre defendida a todo preço.
Herética, segundo o manual, é “toda
proposição que se oponha:
(a) a tudo o que esteja expressamente
contido nas Escrituras;
(b) a tudo que decorra necessariamente do sentido das
Escrituras;
(c) ao conteúdo das palavras de Cristo, transmitidas aos apóstolos,
que, por sua vez, as transmitiram à Igreja;
(d) a tudo o que tenha sido objeto
de uma definição em algum dos concílios ecumênicos;
(e) a tudo o que a Igreja
tenha proposto à fé dos fiéis;
(f) a tudo o que tenha sido proclamado, por
unanimidade, pelos Padres da Igreja, no que diz respeito à reputação da
heresia;
(g) a tudo o que decorra, necessariamente, dos princípios
estabelecidos nos itens c, d, e, f” (parte 1, A, 2).
Como se depreende, nenhum desvio da
doutrina era permitido.
A Bíblia e a doutrina tradicional
somente podiam ser apresentadas como verdade divina e Palavra de Deus, sob a
condição de tudo nelas ser verdadeiro. A concessão de algum erro, em alguma
frase da Bíblia, ou em algum ensinamento da Igreja, seria fatal. Destruiria a
base da afirmação de que a Igreja seria a portadora da verdade absoluta que se
encontra na Bíblia e na tradição. Ela tem que afirmar como verdade, indistintamente,
tudo, que o Sol gira ao redor da Terra e a burra de Balaão falou de verdade.
Assim, no século XIV, a Inquisição condenou o médico e filósofo Pietro d’Abano
e seu conterrâneo Cecco d’Ascoli porque afirmavam a existência dos antípodas.
Partiam da acepção de que a Terra era uma esfera redonda; portanto, os que
viviam do outro lado dela eram antípodas. Os inquisidores argumentavam: segundo
a Bíblia, a Terra não é uma bola redonda, mas uma chapa redonda e chata. E a
Bíblia, porque é Palavra de Deus, não pode ensinar erros.
Aceitar a Terra como
uma esfera seria assumir a visão pagã e admitir que a Bíblia está errada e a
Igreja não é infalível. Ambos foram condenados à fogueira, não por terem
proferido uma heresia ou negado alguma verdade de fé, mas porque afirmavam uma
verdade física do mundo que, indiretamente, entrava em conflito com a visão
cosmológica da Bíblia.
Como se depreende, praticamente tudo
cai sob a suspeita de heresia. Portanto, todos são condenados à repetição do
discurso oficial.
o império da monotonia do status quo.
O congelamento da história. Todos se tornam suspeitos. Razão por que a
Inquisição vem sendo considerada uma instituição perene e os bispos, junto com
o poder pastoral, devem exercer, em sintonia com o inquisidor, o poder inquisitorial
de “investigar, interrogar, convocar, prender, torturar e sentenciar
Por que o rigor da detectação da
heresia? Pelas consequências funestas que ela comporta. Os autores, quase
obsessivamente, elencam as perniciosas: “por causa da heresia, a verdade católica
se enfraquece e se apaga nos corações, os corpos e os bens materiais se acabam,
surgem tumultos e insurreições, há perturbação da paz e da ordem pública, de
maneira que todo povo, toda nação que deixa eclodir em seu interior a heresia,
que a alimenta, que não a elimina logo, corrompe-se, caminha para a subversão e
pode até desaparecer; a história dos antigos prova isso, e o presente também,
mostrando-nos o exemplo de prósperas regiões e remos em franco desenvolvimento
atingidos por grandes calamidades por causa da heresia” (parte 1, A, 1).
Em razão desses malefícios se entende
a severidade na repressão do pensamento divergente e da mais leve suspeita,
perseguição dos seguidores dos hereges, de quem os hospeda ou de qualquer forma
os favoreça. Como se percebe, persiste a visão antiga (a partir do século IV):
a heresia é tida como um crime político de lesa-majestade.
Consoante o Manual, em primeiro
lugar, o inquisidor se apresenta com poder apostólico, investido da autoridade
papal; outras vezes se apresenta como “um enviado especial de Deus” (parte
II,A,I).
Em seguida mobiliza todas as forças eclesiais. Num determinado domingo
na catedral, todos são obrigados a ouvir o sermão geral proferido pelo
inquisidor. AI ouve que “se alguém souber que alguém disse ou fez algo contra a
fé, que alguém admite tal ou tal erro, é obrigado a revelar ao inquisidor”, sob
pena de excomunhão. Os delatores são animados a delatar, pois a delação os faz
obedientes à fé divina (parte II,B,6).
Mobiliza também todas as autoridades
civis para que prestem juramento, sob pena de excomunhão, caso não dêem
“assistência em tudo ao inquisidor, aplicando todas as leis canônicas contra os
hereges, seus defensores, filhos e netos” (parte II,A,2).
Começa ai o trabalho de recepção das
denúncias a partir das delações ou da apresentação espontânea dos que se
consideram em erro de doutrina. Há três tipos de processo: por acusação, por
denúncia (delação), por investigação. A mais longa e complicada cabe aos
interrogatórios dos hereges e das testemunhas.
Curiosíssimos são os “dez truques dos
hereges para responder sem confessar” e os “dez truques do inquisidor para
neutralizar os truques dos hereges”. A malícia da mente do inquisidor é
completa. A astúcia, refinadíssima. Como faziam os interrogadores militares da
repressão política, deve-se, diz o Manual, dar a impressão de que se sabe de
tudo: “Confessa logo, porque, como estás vendo, sei de tudo” (parte II, E, 23,
4).
Os acusados são submetidos a todo
tipo de pressão, são induzidos à confusão, os amigos são obrigados a
pressioná-los, até a dormir com eles na cela, para obrigá-los a falar. Mas
“colocam-se as testemunhas, além do escrivão inquisitorial, num bom lugar, na
escuta, com a cumplicidade da escuridão” (parte II,E,23,9). E então são apanhados
em confissão e condenados. Tudo sem maiores escrúpulos éticos. E, quando
surgem, vale a acribia da sofistica teológica para justificar o que, no bom
senso, é injustificável.
Por exemplo: o inquisidor não deve
prometer perdoar o acusado de heresia caso este confesse. O inquisidor sabe que
não pode prometer perdão, porque a heresia não conhece perdão. Perguntam-se os
autores do Manual: “Isto não é simplesmente uma desonestidade?” A resposta é
rabulística: “reduzindo, mesmo numa proporção mínima, a pena atribuída a um
delito (e é raríssimo que o culpado não tenha cometido vários delitos), o
inquisitor que tiver prometido ‘perdoar’ terá mantido sua palavra” (parte
II,E,23,1O). Portanto, não é desonestidade. O inquisidor mantém a boa
consciência, porque, como se explica pouco antes no Manual, “tudo o que se
fizer para a conversão de hereges é perdão; e as penitências são perdão e
remédio” (parte II,E,23,8).
Outro exemplo clamoroso é o processo
contra mortos denunciados de heresia. Para isso “não há limite de tempo”, diz o
Manual. O morto é processado. Se condenado, lança-se o anátema sobre sua
memória: “os filhos dos hereges serão declarados infames e inaptos a qualquer
cargo público ou privilégio” (parte 111,22). E a efígie do condenado já
falecido é queimada publicamente. Outras vezes, como os próprios autores do
Manual contam, exumavam-se os cadáveres e abriam-se os processos contra eles.
Sob o Papa Clemente VI (1342-1352), por exemplo, em Béziers, foi exumado, por
ordem deste papa beneditino, o cadáver de frei Pedro João, dos franciscanos
menores. Acusado publicamente de herege, o frade já morto foi condenado,
quebraram-lhe os ossos e os queimaram (parte 1, 12). Os autores justificam:
“Trata-se de uma sentença perfeitamente de acordo com o Direito, se bem que acabe,
lamentavelmente, punindo quem não cometeu crime nenhum” (os filhos dos
hereges).
Mas continuam com escrúpulos e
perguntam-se a si mesmos: “Como proceder contra um morto? Uma questão difícil,
porque será que se pode abrir um processo contra quem, por definição, não pode
comparecer? Não seria melhor falar claramente de ‘condenação da memória de
Fulano’ do que ‘processo’? Sim, em direito
civil. Mas evidente que não, em se tratando de um delito de lesa-majestade
divina” (parte 111,22).
Em vários lugares do Manual os
autores concedem que são mais rigorosos que qualquer outro tribunal humano. Mas
justificam: tratam dos crimes mais hediondos e terríveis, aqueles que ameaçam a
salvação eterna que são as heresias.
Lugar à parte ocupa o capítulo das
torturas. Há precauções, pois os autores têm consciência dos abusos; nem o
inquisidor sozinho deve torturar; precisa da permissão do bispo local. Mas
praticamente todos os suspeitos e acusados passavam por vários tipos de
tortura. “Tortura-se o acusado que vacilar nas respostas”; “o suspeito que só
tem uma testemunha contra ele é torturado” (parte I1I,F,28), e por ai vai.
A regra básica é esta: “É bom lembrar, antes de proceder à tortura, de que sua finalidade é menos provar um fato do que obrigar o suspeito a confessar a culpa que cala...; a tortura serve apenas como paliativo na falta de provas” (parte III,F,28,7).
Por isso, para a Inquisição não há pessoas não-torturáveis. “Este é um direito que não conta nas questões de heresia: nenhuma das pessoas isentas de tortura a propósito de qualquer delito não o será, tratando-se de heresia”, embora, de fato, se prevejam exceções a membros da alta hierarquia e da nobreza superior. Nem escapam os velhos e as crianças: “Pode-se torturá-los, mas com uma certa moderação; devem apanhar com pauladas ou, então, com chicotadas” (parte II,H).
A regra básica é esta: “É bom lembrar, antes de proceder à tortura, de que sua finalidade é menos provar um fato do que obrigar o suspeito a confessar a culpa que cala...; a tortura serve apenas como paliativo na falta de provas” (parte III,F,28,7).
Por isso, para a Inquisição não há pessoas não-torturáveis. “Este é um direito que não conta nas questões de heresia: nenhuma das pessoas isentas de tortura a propósito de qualquer delito não o será, tratando-se de heresia”, embora, de fato, se prevejam exceções a membros da alta hierarquia e da nobreza superior. Nem escapam os velhos e as crianças: “Pode-se torturá-los, mas com uma certa moderação; devem apanhar com pauladas ou, então, com chicotadas” (parte II,H).
A confissão é tudo na Inquisição, não
as provas, contrariamente ao senso do direito universal, pois, sabemos, a
confissão pode ser extorquida sob coação. Os autores do Manual dos
Inquisidores, num outro lugar, esclarecem: “Diante do tribunal da Inquisição
basta a confissão do réu para condená-lo. O crime de heresia é concebido no
cérebro e fica escondido na alma: portanto, é evidente que nada prova mais do
que a confissão do réu. Eymerich tem razão (glosa do compilador e atualizador
Peña) quando fala da total inutilidade da defesa” (parte lI,G,31).
Com efeito, a defesa tem uma função
meramente nominal, diria até perversa, pois não trata de defender o réu, mas de
agilizar a sua condenação. O Manual ensina que “o papel do advogado é fazer o
réu confessar logo e se arrepender, além de pedir a pena para o crime cometido”
(parte II,G,3 1).
O estatuto do defensor não é assegurado, como em qualquer legislação de Hamurabi (século XV a.C.) a Stalin ou Hitler. O lugar do defensor é no capitulo sobre “obstáculos à rapidez de um processo”. Os autores começam o capítulo acerca da “admissão de um defensor” com esta sentença: “O fato de dar direito de defesa ao réu também é motivo de lentidão no processo e de atraso na proclamação da sentença; essa concessão algumas vezes é necessária (no sentido de agilizar a sentença, porque o acusado não confessa: aclaração minha), outras não” (quando confessa: parte II,F,31).
O estatuto do defensor não é assegurado, como em qualquer legislação de Hamurabi (século XV a.C.) a Stalin ou Hitler. O lugar do defensor é no capitulo sobre “obstáculos à rapidez de um processo”. Os autores começam o capítulo acerca da “admissão de um defensor” com esta sentença: “O fato de dar direito de defesa ao réu também é motivo de lentidão no processo e de atraso na proclamação da sentença; essa concessão algumas vezes é necessária (no sentido de agilizar a sentença, porque o acusado não confessa: aclaração minha), outras não” (quando confessa: parte II,F,31).
Ademais, o inquisidor deve ter o
campo totalmente aberto à sua ação. Por isso “pode punir quem coloque entraves
ao exercício da Inquisição; deve excomungar qualquer leigo que publicamente ou
não discuta questões teológicas; ‘procederá’ (abrirá processo) contra qualquer
advogado ou escrivão que der assistência a um herege” (parte 111,18). Como, em
condições dessas, haver lugar para um advogado de defesa?
O medo da heresia era tanto que
implicava violação das comezinhas regras do sentido do direito universal e
também a estupidificação dos leigos, que jamais podiam se ocupar com a
teologia. A fé devia ser aceita, jamais pensada. A reflexão religiosa era
monopólio exclusivo da hierarquia. Quem pensasse a fé, e pensar a fé significa
discutir questões teológicas, era já suspeito de heresia, portanto, objeto da
repressão. Não pensavam assim os agentes da repressão militar em regime de
segurança nacional: quem discutir publicamente política é já suspeito de
subversão e, logo, de sequestro, de tortura e de cárcere? Mudem os sinais, mas
não a lógica de um sistema totalitário e por isso repressivo de toda e qualquer
diferença.
As punições variavam consoante o grau
de adesão do acusado às doutrinas consideradas heréticas ou suspeitas de
heresia, que vão desde a simples abjuração, expiação canônica, pagamento de multas, expropriação dos
bens, excomunhão, prisões e a fogueira pelo braço secular.
Os leitores verão a severidade das penas e também os processos psicológicos para demover os hereges convictos de suas doutrinas. Vão dos flagelos das prisões escuras, das torturas, das humilhações, tudo para “acordar a inteligência” e desdizer o que diz (parte II,H).
Se este método não funcionar, então se utiliza a bondade, a presença da esposa e dos filhos. Se nada adiantar, será entregue ao braço secular e irá para o auto-de-fé.
O Manual é claro ao subordinar o bem individual ao bem da Igreja: é preciso lembrar que a finalidade mais importante do processo e da condenação à morte não é salvar a alma do acusado, mas buscar o bem comum e aterrorizar os outros (ut alii terreantur); ora, o bem comum deve estar acima de quaisquer outras considerações sobre a caridade visando ao bem de um indivíduo” (parte 11,22,10).
Os leitores verão a severidade das penas e também os processos psicológicos para demover os hereges convictos de suas doutrinas. Vão dos flagelos das prisões escuras, das torturas, das humilhações, tudo para “acordar a inteligência” e desdizer o que diz (parte II,H).
Se este método não funcionar, então se utiliza a bondade, a presença da esposa e dos filhos. Se nada adiantar, será entregue ao braço secular e irá para o auto-de-fé.
O Manual é claro ao subordinar o bem individual ao bem da Igreja: é preciso lembrar que a finalidade mais importante do processo e da condenação à morte não é salvar a alma do acusado, mas buscar o bem comum e aterrorizar os outros (ut alii terreantur); ora, o bem comum deve estar acima de quaisquer outras considerações sobre a caridade visando ao bem de um indivíduo” (parte 11,22,10).
Efetivamente, o mundo da Inquisição é
marcado de medos, sermões aterradores dos inquisidores, delações, suspeitas,
vinditas, perseguições e sobretudo autos-de-fé macabros, com condenados à
fogueira in conspectu omnium. Que sobrou aqui do cristianismo como boa e
alvissareira notícia de libertação, de fraternidade e sororidade universais, de
amor ilimitado?
5. O que tornou possível a Inquisição
e a continuação de seu espírito
A Inquisição foi possível na Igreja
romano-católica com processos de exclusão, torturas e condenações porque nas
relações internas dela existem violências. A Inquisição é ponto de
cristalização de uma violência anterior. A violência interna da Igreja
romano-católica se dá na forma como o poder sagrado é distribuído. Ele sofre
uma profunda dissimetria. Um pequeno grupo (é menos que 0,3% de toda a Igreja),
a hierarquia (papa, bispos e padres), detém todos os meios de produção
simbólica de forma excludente. Os demais não participam, não devem nem podem
participar. São dependentes e meros beneficiários desses portadores exclusivos
de poder.
Não cabe aqui detalhar essa questão,
feita por nós em outras obras (Igreja, carisma e poder; E a Igreja se fez povo;
Leigos e ministérios). Basta a indicação de algumas pistas.
Inicialmente o cristianismo era uma
comunidade fraternal e sororal. A comunidade inteira se sentia herdeira de
Jesus e portadora de seu poder. Este poder se diversificava em vários serviços
e ministérios, consoante as necessidades da comunidade. Mais que ministérios
institucionalizados e institucionais, havia ministros, pessoas geralmente com
características carismáticas. A autoridade era moral, portanto, autoridade no
sentido originário da palavra (aquilo que faz crescer os outros e que reforça e
não tira o poder dos outros) e quase nada jurídica, embora essa dimensão
estivesse também presente como em todas as comunidades que buscam certa ordem e
funcionamento de sua vida interna. Mas o jurídico de forma alguma era
hegemônico e era vivido dentro do espírito evangélico do poder como serviço
desinteressado à comunidade. A Igreja se definia como comunidade dos seguidores
de Jesus; a rede de comunicações formava o novo povo de Deus, em solidariedade
com os demais povos.
Com a transformação do cristianismo
em religião do Império (séculos IV e V), novas responsabilidades tiveram que
ser assumidas pelos cristãos (eram menos que 1/6 dos habitantes). Estes
sentiram a necessidade de organizar-se e institucionalizar certas funções. Foi
então que o aspecto jurídico ganhou corpo, assimilando a da tradição jurídica
romana, que sempre foi fascinante.
Surgiu o corpo clerical, distinto do corpo laical. Emergiu um corpo de peritos do sagrado que acumulou toda a responsabilidade pelo espaço da fé: produziu o discurso, o ethos e o rito. E articulou o poder religioso com o poder político dominante. O que se criou foi considerado oficial. Lentamente se impôs à produção mais espontânea das expressões da fé, das celebrações e dos costumes cristãos, feitos pelos fiéis, homens e mulheres, no quotidiano de suas vidas.
Surgiu o corpo clerical, distinto do corpo laical. Emergiu um corpo de peritos do sagrado que acumulou toda a responsabilidade pelo espaço da fé: produziu o discurso, o ethos e o rito. E articulou o poder religioso com o poder político dominante. O que se criou foi considerado oficial. Lentamente se impôs à produção mais espontânea das expressões da fé, das celebrações e dos costumes cristãos, feitos pelos fiéis, homens e mulheres, no quotidiano de suas vidas.
O conceito dominante de Igreja agora
é de hierarquia, o grupo dos consagrados pelo sacramento da ordem e que detém o
poder sagrado na comunidade. De tal forma que a Igreja ficou sendo simplesmente
sinônimo de hierarquia, presente ainda hoje na compreensão comum. Quando se diz: que pensa a Igreja, que diz ela
sobre a família, o socialismo e o mercado mundial, se pensa: que diz o Papa,
que ensinam os bispos acerca dessas questões?
A partir do século X, se configurou
de forma severa a divisão na Igreja entre o corpo clerical e o corpo laical. A
primeira codificação jurídica da Igreja, o Código de Graciano (século XII),
consagra definitivamente essa visão como direito divino. E isso veio pelos
séculos afora. Não admira que, na crise do pensamento cristão em confronto com
a modernidade, o Papa Gregório XVI (1831-1846) tenha reafirmado para toda a
Igreja: “Ninguém pode desconhecer que a Igreja é uma sociedade desigual, na
qual Deus destinou a uns como governantes, a outros como servidores. Estes são
os leigos, aqueles são os clérigos.”
Pio X, em 1904, o repete de forma quase grosseira: “Somente o colégio dos pastores tem o direito e a autoridade de dirigir e governar. A massa não tem direito algum, a não ser o de deixar-se governar qual rebanho obediente que segue seu Pastor.”
Pio X, em 1904, o repete de forma quase grosseira: “Somente o colégio dos pastores tem o direito e a autoridade de dirigir e governar. A massa não tem direito algum, a não ser o de deixar-se governar qual rebanho obediente que segue seu Pastor.”
Por mais que a teologia posterior e o
Concílio Vaticano II (1962-1965) tenham enfatizado a natureza comunitária da
Igreja, prevalece ainda na doutrina e na mente do Magistério e dos fiéis (e em
textos importantes do próprio Vaticano II) a noção de que Igreja é
fundamentalmente a Hierarquia. O direito canônico de 1983 reafirma de novo que
é de instituição divina a existência entre os fiéis dos que são clérigos e os
outros também denominados leigos (cânon 207).
Ora, essa divisão traz desigualdades.
E as desigualdades são sempre odiosas, porque implicam relações tensas e, de
certa forma, injustas. Por que o leigo, por mais inteligente e sábio que seja
na sociedade civil, na sua vida profissional de reconhecido cientista, notável
escritor, notório jurista, deva crer, pelo fato de ser leigo, que no interior
da Igreja-comunidade pouco ou nada vale, que tenha que estar sempre e
inapelavelmente submetido a um grupo que alega um poder recebido de cima e por
isso infenso a qualquer crítica e correção?
Essa divisão entre os clérigos que
tudo têm e os leigos despojados de tudo criou incontáveis polêmicas, rebeliões
e rupturas do corpo eclesial, primeiramente entre Igreja grega ortodoxa e
Igreja romano-católica, depois as Igrejas da Reforma com suas sequelas até os
dias de hoje, e em seguida o enfrentamento cada vez mais rígido e tenso entre
os cristãos e os portadores de poder sagrado, na medida em que universalmente
cresce o espírito de participação, de co-responsabilidade, de maturidade e
autonomia de cada pessoa humana com seus direitos e deveres pessoais e sociais.
Para fazer frente a essa crise, já há
séculos, os clérigos criaram um discurso de legitimação. Dogmatizaram-no.
Atribuíram origem divina ao seu poder. Elaboraram uma visão do mundo, da
revelação de Deus, em que eles constituem o pivô de todas as questões. Eles são
decisivos para a salvação da humanidade. A leitura da história que referimos no
início destas reflexões constitui a peça de legitimação do corpo clerical e de seus
poderes.
É um discurso ideológico, porque todo discurso ideológico é um discurso do interesse real ou escuso do ator à custa do interesse dos outros. Este discurso é apresentado como intocável e inquestionável porque de origem divina. Todos os professantes da fé cristã devem aceitá-lo humildemente e jamais colocá-lo sob qualquer dúvida. Na verdade, trata-se de um discurso humano, demasiadamente humano, legitimador dos direitos, privilégios e interesses históricos dos detentores de poder na Igreja.
É um discurso ideológico, porque todo discurso ideológico é um discurso do interesse real ou escuso do ator à custa do interesse dos outros. Este discurso é apresentado como intocável e inquestionável porque de origem divina. Todos os professantes da fé cristã devem aceitá-lo humildemente e jamais colocá-lo sob qualquer dúvida. Na verdade, trata-se de um discurso humano, demasiadamente humano, legitimador dos direitos, privilégios e interesses históricos dos detentores de poder na Igreja.
Hoje ele já se fez um discurso
inconsciente, tal é o nível de imposição e internalização da maioria dos
cristãos e nos próprios portadores de poder.
A característica desse sistema de
poder é o autoritarismo. Autoritário é um sistema quando os portadores de poder
não necessitam do reconhecimento livre e espontâneo dos membros da comunidade
para se constituir e exercer. Por isso temos a ver com um sistema de dominação.
Quando há aceitação livre e espontânea de uma pessoa ou instituição de direção
por parte dos membros da comunidade, então estamos diante da legitima
autoridade. Separada desse reconhecimento, a autoridade decai para
autoritarismo. É o que vigorou e vigora na Igreja romano-católica já há
séculos.
Para se entender no nível estrutural um fenômeno como este da dominação clerical, não se deve partir daquilo que os clérigos pensam e dizem de si mesmos (a origem divina de seu poder etc), mas daquilo que eles efetivamente fazem no seu processo real de vida eclesial. O que eles fazem é manifesto: conservam em suas mãos, de forma corporativo-privada, os meios de produção simbólica, controlam sua distribuição, hierarquizam as formas de participação subordinada (mas em nenhum caso em termos de decisão; esta é reservada somente aos clérigos.
As mulheres, que constituem mais da metade da Igreja e são mães ou irmãs da outra metade, vêm excluídas, e os leigos, atrelados), limitam as formas de consumo religioso-simbólico. Fundamentalmente se dá esse dualismo, reforçado enormemente sob o Pontificado de João Paulo II: de um lado está o ordenado, homem, celibatário que pode produzir, celebrar, fazer o discurso oficial, decidir; do outro está o não-ordenado que assiste e é convidado a se associar ao projeto e à visão do ordenado, devendo sempre obedecer.
Dessa forma, toda a capacidade de criar, de produzir, de decidir dos não-ordenados, dos leigos, deixa de ser aproveitada, ou o é de forma atrelada. O corpo eclesial aparece depauperado, formalizado, marcadamente machista, enrijecido e mandonista. A dimensão da anima, pela exclusão das mulheres e pelo recalque da dimensão feminina nos homens de poder, subtrai ao corpo clerical de qualquer irradiação benfazeja e humanizadora. O excesso de poder mostra dimensões necrófilas em quase tudo o que pensa, diz e faz. Não há um interesse real e ousado pelos problemas dos homens e das mulheres, mas uma preocupação quase neurótica pelos interesses da Igreja-hierarquia, de sua identidade, de sua preservação, de sua imagem.
Para se entender no nível estrutural um fenômeno como este da dominação clerical, não se deve partir daquilo que os clérigos pensam e dizem de si mesmos (a origem divina de seu poder etc), mas daquilo que eles efetivamente fazem no seu processo real de vida eclesial. O que eles fazem é manifesto: conservam em suas mãos, de forma corporativo-privada, os meios de produção simbólica, controlam sua distribuição, hierarquizam as formas de participação subordinada (mas em nenhum caso em termos de decisão; esta é reservada somente aos clérigos.
As mulheres, que constituem mais da metade da Igreja e são mães ou irmãs da outra metade, vêm excluídas, e os leigos, atrelados), limitam as formas de consumo religioso-simbólico. Fundamentalmente se dá esse dualismo, reforçado enormemente sob o Pontificado de João Paulo II: de um lado está o ordenado, homem, celibatário que pode produzir, celebrar, fazer o discurso oficial, decidir; do outro está o não-ordenado que assiste e é convidado a se associar ao projeto e à visão do ordenado, devendo sempre obedecer.
Dessa forma, toda a capacidade de criar, de produzir, de decidir dos não-ordenados, dos leigos, deixa de ser aproveitada, ou o é de forma atrelada. O corpo eclesial aparece depauperado, formalizado, marcadamente machista, enrijecido e mandonista. A dimensão da anima, pela exclusão das mulheres e pelo recalque da dimensão feminina nos homens de poder, subtrai ao corpo clerical de qualquer irradiação benfazeja e humanizadora. O excesso de poder mostra dimensões necrófilas em quase tudo o que pensa, diz e faz. Não há um interesse real e ousado pelos problemas dos homens e das mulheres, mas uma preocupação quase neurótica pelos interesses da Igreja-hierarquia, de sua identidade, de sua preservação, de sua imagem.
A leitura doutrinária da revelação de
verdades absolutas mascara o real conflito subjacente à Igreja: o poder de uns
sobre outros. Alguns detém o poder de decidir sobre a verdade, dar-lhe uma
formulação única, de definir qual é o caminho necessário para a eternidade.
Decretam que a sua verdade é absoluta. E a impõem aos outros. Por isso o
discurso do outro é um discurso impossível. Deve ser silenciado, perseguido,
estrangulado. Daí se entende o rigor da Inquisição. O que está em jogo,
realmente, é o poder do corpo clerical, que não tolera nenhum concorrente ou
nenhum confronto. Ele quer se manter como o único. É ele que se entende como
absoluto e terminal. Não a verdade e a revelação, pois estas, por serem
realidades divinas, são sempre abertas e passíveis de novas achegas e novas
leituras, sem jamais esgotar sua riqueza interior.
O espírito que fez surgir a
Inquisição perdura na Igreja romano-católica, pois persiste a predominância do
corpo clerical sobre toda a comunidade e a visão piramidal de Igreja, centrada
no poder sagrado. Enquanto perdurar esse tipo de prática com a sua
correspondente teologia (ideologia), haverá sempre condições psicológicas,
espirituais e materiais para a ativação do espírito inquisitorial e dos
instrumentos de sua implementação (controle, repressão, silenciamento,
condenações etc.).
Ele continua na mentalidade e nos
métodos da atual Congregação para a Doutrina da Fé. As modificações históricas,
ao nível estrutural, são praticamente nulas. Evidentemente, não se condena mais
à morte física, mas claramente não se evita a morte psicológica. Pressiona os acusados
até o limite da suportabilidade psicológica. São desmoralizados, faz-se perder
a confiança em sua pessoa e palavra; por isso proíbe-se que sejam convidados
para conferências, assessorias e retiros espirituais; muitos são transferidos
para outros países, são forçados a tomar “anos sabáticos” eufemisticamente,
quer dizer, devem deixar as cátedras; pressionam-se as editoras a não publicar
seus escritos e proíbem-se as livrarias religiosas de expor e de vender seus
escritos.
Praticamente a maioria das vítimas da ex-Inquisição, para poderem sobreviver humanamente, se vê obrigada a abandonar suas atividades ministeriais e teológicas. Mas sejamos sensatos: porém, mais vale um herege vivo e feliz em sua fé, que um teólogo ortodoxo infeliz, castrado e recastrado pelo ex-Santo Ofício.
Praticamente a maioria das vítimas da ex-Inquisição, para poderem sobreviver humanamente, se vê obrigada a abandonar suas atividades ministeriais e teológicas. Mas sejamos sensatos: porém, mais vale um herege vivo e feliz em sua fé, que um teólogo ortodoxo infeliz, castrado e recastrado pelo ex-Santo Ofício.
Ainda perdura o processo de delação,
a negação ao acesso às atas dos processos, a inexistência de um advogado e a
impossibilidade de apelação. A mesma instância acusa, julga e pune. Isso é uma
perversidade jurídica em qualquer Estado de direito, pagão, ateu ou cristão.
Não há a salvaguarda suficiente do direito de defesa.
As punições impostas são ainda
compreendidas como benevolência e misericórdia da Igreja. Após a punição que o
autor desta introdução recebeu da ex-Inquisição em 1984 (deposição como editor
da Editora Vozes, deposição de redator da Revista Eclesiástica Brasileira,
proibição de dar aulas, de falar publicamente, de dar entrevistas, de publicar
qualquer texto e por fim a imposição de um “silêncio obsequioso” por tempo indeterminado,
portanto punições nada banais para um intelectual cujo único instrumento e arma
é a palavra falada e escrita), o atual Pontífice, através de seu Secretário de
Estado, Cardeal Agostino Casaroli, me escreveu com data de 29 de julho de 1985:
“Aquilo que, efetivamente, é
requerido ao Rev. Padre, ou seja, ater-se a algumas limitações, entre as quais
o obsequjosum silentium, visa como finalidade ajudá-lo a ter um período de
pausa para repensar diante de Deus problemas que são de grande importância para
um teólogo e para refletir nas suas responsabilidades diante dos irmãos de fé”
(cf. Roma locuta: documentos sobre o livro Igreja: Carisma e Poder, CDDH,
Petrópolis 1985, p.l52).
A subjetividade das pessoas que
sentem, que desenvolveram um sentido de justiça e de equidade dentro da Igreja,
que militam, com riscos pessoais, até de ameaça de morte, na defesa e promoção
dos direitos humanos pisoteados nas sociedades autoritárias do Terceiro Mundo,
nada conta. Conta a objetividade da doutrina (fruto da subjetividade coletiva
do corpo clerical que a impõe como objetiva aos Outros), que deve ser
salvaguardada a preço do escândalo dos mais simples, daqueles que sofrem a
contradição de uma Igreja que se compromete na observância dos direitos humanos
na sociedade e não consegue fazer valê-los nas relações internas dela mesma.
Não cabe refutar a lógica do sistema.
Mas questionar o sistema mesmo. Dispensamo-nos desta tarefa, pois transcende o
sentido da introdução deste Manual dos Inquisidores. Mas não será difícil o
próprio leitor fazê-lo, pois:
a) A Inquisição contradiz o bom senso
das pessoas. Como se pode, em nome da verdade e ainda mais da verdade
religiosa, perseguir, torturar, matar tanto e de forma tão obsessiva? Importa
enfatizar que, mediante a Inquisição, a Igreja hierárquica introduziu os
sacrifícios humanos. O auge do sacrificialismo furibundo da Inquisição no
século XVI na Europa corresponde aos sacrifícios humanos perpetrados pelos
colonizadores espanhóis chegados ao nosso Continente contra as culturas
originárias dos astecas, maias, incas, chibchas e outras. Quando Hernán Cortez
penetrou em 1519 no planalto de Anahuac no México, havia no Império asteca
25.200.000 habitantes. Menos de 80 anos, em 1595, só restaram 1.375.000
habitantes.
A dizimação global, por guerras, doenças, excesso de trabalho-escravo na encomiendas, desestruturação cultural, nos dois primeiros séculos da colonização-invasão, foi da ordem de 25 por 1. Quem oferecia mais sacrifícios humanos: os astecas, que faziam sacrifícios rituais ao deus Sol para que sempre voltasse a nascer e assim garantisse a vida para todos os povos e para o universo, ou os espanhóis, que sacrificavam ao deus Mamona para serem ricos e fidalgos na Espanha? E sobre isso os bispos reunidos no Concílio de Trento (1545-1563), contemporâneo a todos esses fatos, não dizem sequer uma palavra. Estavam ocupados com questões internas da Instituição em confronto com a Reforma de Lutero.
A dizimação global, por guerras, doenças, excesso de trabalho-escravo na encomiendas, desestruturação cultural, nos dois primeiros séculos da colonização-invasão, foi da ordem de 25 por 1. Quem oferecia mais sacrifícios humanos: os astecas, que faziam sacrifícios rituais ao deus Sol para que sempre voltasse a nascer e assim garantisse a vida para todos os povos e para o universo, ou os espanhóis, que sacrificavam ao deus Mamona para serem ricos e fidalgos na Espanha? E sobre isso os bispos reunidos no Concílio de Trento (1545-1563), contemporâneo a todos esses fatos, não dizem sequer uma palavra. Estavam ocupados com questões internas da Instituição em confronto com a Reforma de Lutero.
A verdade possui, em si, uma dimensão
de libertação e humanização. Na Inquisição ela é afogada. Repugna à
inteligência assumir uma pretensa verdade à força do terror.
b) A Inquisição contradiz o sentido
da verdade religiosa, da verdade simplesmente e a natureza da religião. A
verdade é como o sol. Ele ilumina a todos e a todos se dá. Pode dizer a
montanha à planta que está ao seu pé: por que sou mais alta e sou a primeira a
ser bafejada pelo sol, você, plantazinha ao meu pé, não tem direito de receber
sol nenhum? E a luz que tens não é luz e não vem do sol? Seria absurdo o
discurso da montanha. E seria menos absurdo o discurso da teologia (ideologia)
da verdade absoluta que subjaz aos órgãos de controle e repressão das doutrinas
na Igreja romano-católica que nega verdade às outras religiões e a outras
confissões cristãs?
Todos estamos em algum nível da
verdade. Como também todos estamos a caminho de uma verdade mais plena. A
verdade não está apenas nas frases verdadeiras. Ela está fundamentalmente na
vida, na profundidade do coração, nas relações entre as pessoas, no curso da
história. Ela pode ser expressa de mil formas, num poema, numa música, numa
catedral, numa parábola e num discurso.
Na história, nossas formulações
exprimem a verdade absoluta que está em todos, mas não logram exprimir todo o
absoluto da Verdade. No dito fica sempre o não-dito. E todo ponto de vista é
sempre a vista de um ponto. Por isso haverá sempre possibilidade de se dizer a
verdade e a fé em doutrinas expressas em marcos inteligíveis de uma outra
cultura, de uma outra tradição espiritual e, por que não dizê-lo também, no
código de uma outra classe social. A Inquisição é contra a natureza da
religião. Esta trabalha o sagrado que está na profundidade de cada pessoa, na
história e no cosmos. O efeito da prática religiosa é a potenciação do sentido
da vida, do sentimento de salvação, da formulação de uma esperança contra toda
esperança e do apreço e salvaguarda da vida e do menor sinal de vida. Uma
religião que produz morte e exige sacrifícios humanos desnatura a religião e se
transforma num aparelho de controle social.
c) A Inquisição nada tem a ver com
Cristo, nem com o seu Evangelho. Se tem a ver, é contra eles. O próprio Cristo
foi vitima da inquisição judaica de seu tempo. Como em seu nome instaurar uma
inquisição? Não esqueçamos que o Grande Inquisidor de Dostoievski acabou
condenando Jesus Cristo. Nem tem a ver com a Igreja em sua compreensão maior,
teológica e sacramental. Pois a Igreja como comunidade dos professantes procura
manter viva a memória de Jesus, do seu sonho, da irradiação do seu Espírito, na
profunda alegria de sermos todos filhos e filhas de Deus e por isso irmãos e
irmãs de toda humana criatura e de cada ser do universo. A Inquisição tem a ver
sim com a patologia como distorção dessa convicção, e com o pecado como negação
prática dessa proposta, carregada de promessa e de utopia. Mas sejamos
realistas: quem é são pode ficar doente. E quem está na graça pode pecar.
A “Santa” Inquisição é expressão de
um componente neurótico-obsessivo do corpo clerical e cristaliza a dimensão de
pecado que existe nas relações internas da Igreja. Pois, a própria
Igreja-comunidade de fiéis se confessa santa e pecadora. Se assim é então aqui
é o pecado Institucional que ganha a cena e a ocupa durante séculos. Seu
espírito vaga assustador até os dias de hoje. E devemos nos precaver contra
ele. Antes, ajudar a própria instituição eclesial a ser fiel à sua utopia
originária e a ser um lugar de exercício de liberdade e de experimentação da
graça humanitária de Deus. E isso se fará na medida em que os professantes da
fé romano-católica se reapropriarem daquilo de que foram historicamente
despojados: sua capacidade de experimentar o sonho de Jesus, de dizê-lo de
forma criativa e responsável no interior da comunidade, de confrontá-lo
solidariamente com outras experiências do evangelho de Deus na história e
articulá-lo com o curso do mundo, onde se revela também e principalmente o
desígnio de benquerença e de amor de Deus.
A comunidade cristã viveu séculos sem
a Inquisição. Isto significa que não precisou dela para viver e sobreviver.
Portanto, ela é supérflua. Sua existência mantém o mesmo escândalo, denota uma
patologia e concretiza um pecado. Nunca teve direito a existir. Não deve mais
existir. Por amor a Deus, por fidelidade a Jesus Cristo e por respeito às
opiniões religiosas diferentes nas sociedades humanas.
LEONARDO BOFF Prof. de ética e
Teologia na UERJ Rio de Janeiro, Sexta-feira Santa da Paixão de 1993.
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