Anarquia
sexual nos conventos. Evangelização forçada na Casa dos Catecúmenos, inclusive
com prisões de adultos e crianças. Batismo contra a vontade dos pais. Perda da
guarda dos filhos e até sequestro de crianças batizadas a revelia dos pais.
Escândalo internacional com intervenção da comunidade judaica, Inglaterra e
França.
A partir do século
XI, a Igreja Católica deu início a um poderoso esforço de moralização da
população, para tentar mudar a visão da sexualidade, ainda muito ligada à
concepção paga da vida.
Os alvos centrais
dessa tentativa foram os banhos públicos. Eram lugares formados por banheiras
de água quente, saunas e salas onde se cortavam cabelos, arrancavam-se dentes
ou se faziam massagens. Nos banhos públicos medievais (ao contrário do que
acontecia na Roma Antiga), a cada domingo homens e mulheres se banhavam juntos.
Todos se vestiam apenas com roupas rústicas e velhas, fossem pobres (porque não
tinham outra coisa) ou ricos, por medo de que lhes roubassem as roupas
melhores.
Essa promiscuidade
social e sexual era agravada pelo fato de que, em algumas regiões, todos se
banhavam juntos nus, enquanto eram servidas bebidas.
O clero se
preocupava com tanta promiscuidade e decidiu intervir. Não foi fácil convencer
os europeus de que as termas públicas eram algo ruim. A idéia da Igreja foi
simples: impedir que mulheres honestas frequentassem os banhos,
transformando-os em verdadeiros bordéis. Assim foi possível separar o bem do
mal de forma clara.
Foram necessários
pelo menos três séculos para transformar boa parte dos banhos em casas de
tolerância e fechar os outros. Mas afinal foi feito. As termas eram frequentadas apenas por prostitutas e seus clientes, e se mostrar nu tornou-se
cada vez mais vergonhoso.
E finalmente a
Igreja conseguiu realizar o que tentava pregar há um milênio. No século XIV,
São Jerônimo já aconselhava que as jovens nobres não fossem aos banhos quando
crescidas e que não se banhassem com eunucos ou mulheres grávidas, pois os
primeiros conservariam o instinto masculino, e as segundas ofereceriam um
espetáculo "torpe". E, chegando à fase adulta, as mulheres deveriam
renunciar completamente aos banhos, ter vergonha de si mesmas e não suportar se
verem nuas.1 Os únicos que resistiram foram os povos nórdicos, para
os quais renunciar à sauna era impossível, por causa do frio.
Os primeiros frutos
desse "achado" papal não demoraram a ser colhidos: a prostituição
aumentou, junto com as doenças venéreas e todos os males que a sujeira e a
desnutrição trazem.2 Estas últimas contribuíram para espalhar as
epidemias de peste negra que, a partir de 1347, devastaram a Europa com
recorrência cíclica até a segunda metade do século XVII. O balanço estimado foi
de uma perda repetida de 30 a 40% da população européia sobre um total de
oitenta milhões de habitantes. Só no século XVI, a população voltou ao nível numérico
que tinha em 1340. E quando a peste desapareceu, foi substituída por outras
doenças, como o tifo.
O clero
concubinário
Uma decisiva medida
de moralização foi a imposição definitiva de celibato ao clero. Mas como muitas
vezes acontece quando a moral é imposta por força de lei, em vez de aumentar a
moralidade, aumentou a hipocrisia.
As mulheres foram
substituídas por concubinas ou prostitutas, e foram necessários séculos de
duras imposições antes que o clero assumisse uma aparência de castidade. Os
altos prelados da Cúria romana eram os primeiros a não dar bom exemplo. Para
entender melhor como era a situação, basta ler os testemunhos que chegavam de
dentro da corte pontifícia. O secretário apostólico do papa Bonifácio IX,
Poggio Bracciolini (1380-1459), foi uma figura de extrema importância,
encarregado, entre outras coisas, de escrever os discursos do pontífice. Quando
queria relaxar, ia com os amigos para uma sala do palácio apostólico chamada de
"Bugiale" (da mentira), onde se contavam as últimas piadas e fofocas
do clero. Bracciolini deu-se o trabalho de anotar algumas historinhas e, ao se
mudar para o campo, em 1450, escreveu um livro com os "feitos", o
qual seria traduzido em toda a Europa.
São 273 anedotas
que contam fatos e boatos de cunho sexual. O volume é uma espécie de
"besteirol eclesiástico". Por exemplo, um padre de Tívoli, falando do
adultério, tomado pelo calor do sermão, gritou do púlpito que "este pecado
era tão grave que ele preferia amar dez virgens a amar uma única mulher
casada".
Há, ainda, a
história do frei Paulo, que, durante um sermão contra a luxúria, denunciou,
escandalizado, que havia maridos que, para sentir mais prazer durante o coito,
colocavam um travesseiro sob o traseiro da mulher: "É inútil dizer que a
posição, desconhecida para alguns, agradou e que, em casa, foi logo colocada em
prática."3
Das histórias de
Bracciolini, emerge o retrato de um alto clero muito mais ocupado com a
política e a luta pelo poder do que com a guerra e a luxúria. Os próprios
funcionários da Cúria eram homens "do mundo", pessoas cultas e
requintadas que riam elegantemente do bigotismo sexual do clero menor. Nada os
diferenciava dos diplomatas dos governos "leigos". De resto, entre os
séculos XV e XVI, era freqüente ver cardeais (alguns ordenados na adolescência)
com "mulheres", filhos (muitas vezes também destinados à carreira
eclesiástica) e amantes.
Nem os papas eram
campeões de castidade. Pio II (1458-1464), intelectual "neopagão",
quando jovem era conhecido por escrever poesias e contos eróticos. É verdade
que, quando pontífice, ostentou grande sobriedade, mas absolutamente duvidada
por seus contemporâneos.4 Dentre seus sucessores, havia personagens
como Alexandre IV Bórgia, cuja crueldade era bem conhecida, ou Júlio II, o papa
guerreiro, que dizem ter tido três filhos antes de ascender ao trono
pontifício.
Quando falamos de
promiscuidade e transgressão às regras do celibato, temos de tomar cuidado para
não confundir fenômenos bem diferentes. Uma coisa é a transgressão individual
do homem solteiro que não consegue se adaptar à moral imposta e que talvez viva
sua condição de "pecador" com um sentimento de culpa. Outra é uma
concepção bem diferente da sexualidade veiculada a algumas doutrinas heréticas.
Mais ou menos
durante toda a história do cristianismo, movimentos heréticos de conteúdo
similar nasceram em períodos cíclicos. Havia quem afirmasse que a pureza era um
estado inferior e que todas as ações externas de uma pessoa pura, incluindo as
relações sexuais, também eram puras por definição. Outros movimentos, como os
Irmãos do Espírito Livre, inspiravam-se em concepções panteísticas e diziam que
o Reino dos Céus já havia descido sobre a Terra, tornando lícito tudo o que
antes era proibido. Fala-se até de grandes mosteiros transformados em comunidades
orgiásticas, provavelmente seguindo a onda dessas doutrinas e se tornando uma
ameaça não só para a Igreja, mas também para a ordem social.
Um caso conhecido foi o da Abadia de Montel'Abate, perto de Perúgia, onde pouco depois do ano 1000 monges e freiras viviam em tal estado de promiscuidade que o papa nomeou um prior com autoridade de bispo e uma companhia de homens armados para cuidar do assunto. A ordem foi restabelecida, mas o prior-bispo precisou construir um castelo e manter uma guarnição para garantir o controle da situação.
Um caso conhecido foi o da Abadia de Montel'Abate, perto de Perúgia, onde pouco depois do ano 1000 monges e freiras viviam em tal estado de promiscuidade que o papa nomeou um prior com autoridade de bispo e uma companhia de homens armados para cuidar do assunto. A ordem foi restabelecida, mas o prior-bispo precisou construir um castelo e manter uma guarnição para garantir o controle da situação.
Com a
Contra-Reforma, tudo mudou. Os mosteiros e conventos deixaram de ser lugares de
anarquia sexual. Pouco se sabe de como se realizou essa moralização interna,
pois a Igreja não deixou que ninguém se infiltrasse, mas com certeza deu
resultado, pois os excessos se tornaram exceção à regra.
A loucura da
Inquisição também influiu nesse processo. Ao tornarem-se ferozes repressores
dos comportamentos heréticos, satânicos e pagãos, os padres se viram voltando
seu zelo persecutório contra os próprios colegas.
Os batismos
forçados
Na Idade Média e da
Idade Moderna, os judeus da Europa eram considerados cidadãos de segunda
classe. Quem professava a religião judaica não podia exercer profissão liberal
nem possuir bens, nem escolher livremente onde viver, sendo obrigado a morar
nos guetos, muitas vezes superpovoados, e a usar sinais de reconhecimento que
os distinguissem dos cristãos.
Os rituais judaicos
deviam ser celebrados de maneira reservada, sem nenhuma solenidade e sem a
presença de nenhum cristão, e muitas vezes as cópias do Talmude, a compilação
histórica de comentários sobre as Escrituras, eram objeto de apreensão e
destruição.
Os judeus também eram proibidos de discutir sobre a própria religião com os cristãos, e suas relações com estes eram limitadas por leis rígidas, sobretudo com os ex-correligionários convertidos. As autoridade leigas e eclesiásticas promoviam de maneira decisiva a conversão deles ao cristianismo, com todos os meios possíveis.
Os judeus também eram proibidos de discutir sobre a própria religião com os cristãos, e suas relações com estes eram limitadas por leis rígidas, sobretudo com os ex-correligionários convertidos. As autoridade leigas e eclesiásticas promoviam de maneira decisiva a conversão deles ao cristianismo, com todos os meios possíveis.
Os judeus dispostos
a se batizar tinham a garantia de facilidade para encontrar trabalho, subsídios
em dinheiro, isenções tributárias, a remissão das dívidas e a anulação de
eventuais condenações penais. Para muitos, a conversão representava a única
alternativa possível à morte de fome.
Em 1543, foi criada
em Roma a Casa dos Catecúmenos, um instituto destinado a acolher (muitas vezes
contra a vontade) "infiéis" convertidos ou a serem convertidos, cujas
despesas de manutenção eram descontadas da comunidade judaica.
Dentre os hóspedes do
instituto, havia crianças judias batizadas às escondidas ou contra a vontade
dos pais, subtraídas às famílias para que recebessem uma educação cristã. Ainda
hoje, o cânone 868 do Código de Direito Canônico traz o parágrafo 2: "O
filho de pais católicos e até não católicos que esteja em risco de vida será
batizado licitamente mesmo contra a vontade dos pais."
Outro tipo de
hóspedes eram os judeus "denunciados". A denúncia era a "prática
social com que cristãos ou convertidos denunciavam formalmente às autoridades
aqueles que, segundo seu testemunho, ainda que suspeito ou interessado, tenha
expressado, em público ou particular, a vontade de se converter, sozinho ou com
toda a família."5 Os denunciados eram levados à força à Casa
dos Catecúmenos, onde eram incessantemente submetidos a coerções psicológicas
para se converter. Teoricamente, não poderiam ser presos por mais de 12 dias,
mas na verdade a permanência durava muito mais. Os que se demonstrassem
"irremediavelmente obstinados" eram mandados de volta ao gueto e
condenados a pagar os custos de todo o tempo passado no instituto.
Um caso marcante
foi o do rabino-chefe de Roma, Josué Ascarelli: "Em novembro de 1604, ele
foi preso nos Catecúmenos com a mulher e os quatro filhos.
Após 43 dias, o
rabino Ascarelli, 'obstinado' com sua profissão de fé, foi liberado junto com a
mulher. Outro destino foi reservado a seus filhos: Camila, de 12 anos, após dez
dias de segregação, converteu-se; Belluccia, de 8 anos, cedeu após oito dias; e
Manoello, de apenas 4 anos, após quatro dias, 'disse que queria ser batizado'.
Os quatro logo foram feitos cristãos e tirados dos pais, que nunca mais os
viram."6
Os que fugiam da
Casa dos Catecúmenos eram punidos com cinco anos de prisão, se fossem homens,
ou o açoite e o confisco dos bens,, se mulheres. No século XVIII, foram
cominadas penas severas também para os judeus que se aproximassem do instituto,
por temer-se que influenciassem negativamente os batizandos.7
Dentre os
catecúmenos, havia também os "oferecidos": um judeu convertido podia
"oferecer" à Igreja os parentes sob sua guarda. Por exemplo, o pai ou
a mãe podiam levar à Casa dos Catecúmenos os filhos, ainda que o outro
progenitor fosse contrário à ideia.
O papa Bento XIV
(1740-1758) aprovou uma legislação que interpretava de maneira amplamente
extensiva o conceito de "tutela". Por exemplo, o avô ou avó paterna
convertido podia oferecer os netos, mesmo contra a vontade dos pais legítimos;
o tio paterno podia oferecer os sobrinhos órfãos de pai, mesmo contra a vontade
da mãe; e daí por diante.8
Até o marido podia
oferecer a mulher. Se esta, após uma estadia forçada na Casa dos Catecúmenos,
não aceitasse seguir o cônjuge na nova fé, perdia a guarda dos filhos, e o
vínculo matrimonial era declarado extinto. Mas o casamento continuava sendo
considerado válido na comunidade hebraica, já que o marido convertido não podia
mais repudiar a esposa de acordo com os costumes judaicos, e a mulher era
condenada a uma vida de solidão.
Alguns neófitos
(judeus convertidos) conseguiam obter também a segregação de mulheres com quem
não tinham qualquer laço de parentesco, declarando terem se casado em segredo.9
As discriminações
anti-semitas duraram toda a Idade Moderna. Só em 1791, a França revolucionária
reconheceu a plena igualdade jurídica aos cidadãos de religião judaica. Em
seguida, os exércitos napoleônicos "exportaram" a igualdade de
direitos para o resto da Europa. Mas com o Império Napoleônico e a sucessiva
restauração, as medidas discriminatórias tornaram a vigorar.
No Estado
Pontifício, as leis anti-semitas foram restabelecidas com peculiar rigidez: os
judeus foram mais uma vez relegados aos guetos e obrigados a usar símbolos
amarelos nas roupas. Também foram expulsos do serviço público e das
universidades, espoliados dos bens imóveis localizados fora do bairro judeu e
obrigados a fechar as lojas que haviam aberto fora do gueto.10
Nos anos
sucessivos, foram adotadas medidas ainda mais severas. O papa Leão XII
(1823-1829) reintroduziu o Edito sobre os judeus, emanado por Pio VI em
1775: "Trata-se [...] de 'um monstruoso código de rejeição a qualquer
dignidade humana composto de 48 artigos que prevêem, dentre outras coisas, a
proibição de ler e explicar o Talmude e a obrigação, para a autoridade
religiosa, de permitir qualquer outro livro [...] a obrigação de só celebrar os
ritos fúnebres na sinagoga ou no cemitério, sem que nenhum cortejo fúnebre
seguisse o caixão e nenhuma lápide marcasse a tumba. Era proibido qualquer
contato com os convertidos, e os judeus não podiam chegar a menos de 150 metros
da Casa dos Catecúmenos. Qualquer licença de exercício profissional foi
revogada, com exceção da de vendedor de pano.
Eles foram lembrados de que eram proibidos de pedir ajuda a parteiras ou amas, servas ou lavadeiras cristãs. Era proibido convidar ou permitir o acesso de cristãos na sinagoga, conversar com eles na rua, comer com eles em qualquer lugar, pernoitar fora do gueto e ir a outra cidade sem uma permissão específica.
Era proibido usar carroça, e os rabinos não podiam usar roupas que os distinguissem.
Também foi restabelecido o odioso costume dos sermões forçados, antigo tormento celebrado por padres dominicanos na igreja de San'Angelo em Peschiera, aos quais todos os judeus de mais de 18 anos deveriam assistir." (Scalise, 1997, p. 31.) Os judeus eram proibidos de se tratar em hospitais, os moribundos não podiam receber o conforto de um rabino, e toda a comunidade era obrigada a homenagear periodicamente o magistrado e o senador de Roma diante das zombarias e insultos da população.
Eles foram lembrados de que eram proibidos de pedir ajuda a parteiras ou amas, servas ou lavadeiras cristãs. Era proibido convidar ou permitir o acesso de cristãos na sinagoga, conversar com eles na rua, comer com eles em qualquer lugar, pernoitar fora do gueto e ir a outra cidade sem uma permissão específica.
Era proibido usar carroça, e os rabinos não podiam usar roupas que os distinguissem.
Também foi restabelecido o odioso costume dos sermões forçados, antigo tormento celebrado por padres dominicanos na igreja de San'Angelo em Peschiera, aos quais todos os judeus de mais de 18 anos deveriam assistir." (Scalise, 1997, p. 31.) Os judeus eram proibidos de se tratar em hospitais, os moribundos não podiam receber o conforto de um rabino, e toda a comunidade era obrigada a homenagear periodicamente o magistrado e o senador de Roma diante das zombarias e insultos da população.
As condições do
bairro judaico desmentiam claramente o estereótipo do "judeu rico". O
gueto de Roma era um lugar escuro, sujo, sufocante no verão e gélido no
inverno. Dos 3.500 judeus ali reunidos, quase metade vivia em um estado de
completa indigência, e apenas quatro tinham renda suficiente para pagar os
impostos. O bairro era cercado por muros com oito portões que eram fechados por
um guardião cristão cujo salário era cobrado da comunidade judaica.
Em 1843, a Santa
Inquisição emanou um edito bastante rígido.
Nenhum israelita
residente em Ancona e Sinigaglia poderá mais dar casa ou comida aos cristãos ou
receber cristãos para trabalhar em sua casa, sob pena de ser punido de acordo
com os decretos pontifícios.
Todos os israelitas
do Estado têm três meses para vender seus bens móveis e imóveis, do contrário
serão vendidos em leilão.
Nenhum israelita
poderá morar em qualquer cidade sem a autorização do governo; em caso de
contravenção, os culpados serão reconduzidos a seus respectivos guetos.
Nenhum israelita
poderá passar a noite fora do gueto.
Nenhum israelita
poderá ter relações amigáveis com os cristãos.
Os israelitas não
poderão comercializar ornamentos sagrados ou livros de qualquer espécie, sob
pena de cem escudos de multa e sete anos de prisão.
Os israelitas, ao
sepultar seus mortos, não devem celebrar qualquer cerimônia. E não podem usar
velas, sob pena de confisco.
Os que violarem as
disposições acima sofrerão os castigos da Santa Inquisição.
A presente medida
será comunicada aos guetos e publicada nas sinagogas."
O papa Pio IX
(1846-1878), que inicialmente gozava da simpatia dos ambientes liberais, adotou
uma política oscilante e sem preconceitos com relação aos judeus, alternando
gestos de relativa clemência com ferrenhas repressões. Por exemplo, em 1846,
permitiu que algumas famílias judaicas mudassem temporariamente para fora do
gueto de Roma por causa do risco de transbordamento do Tibre.
Em 1849, em
compensação, para punir os judeus, que figuravam entre os responsáveis pelos
levantes que no ano anterior instauraram a República de Roma, mandou as tropas
francesas demolirem o bairro hebreu. Por dois dias, as casas foram devastadas,
muitos homens foram presos, os médicos e as parteiras foram impedidos de
assistir os doentes e parturientes e nenhum judeu pôde descer às ruas para
comprar comida.
No século XIX, a
política do batismo forçado não foi alterada, tendo aumentado na primeira
metade do século. Calcula-se em pelo menos 196 os casos de
"conversão" entre 1813 e 1869, na maioria crianças batizadas às
escondidas e tiradas de suas famílias ou jovens afastados de casa em
circunstâncias misteriosas e presos nos Catecúmenos, sem voltar mais para seu
lar.
O caso de batismo
forçado mais famoso foi o de Edgardo Mortara, nascido em Bolonha (cidade que,
na época, fazia fronteira com o Estado Pontifício), em 1851. Na noite de 23 de
junho de 1858, alguns guardas se apresentaram à casa da família Mortara com uma
ordem firmada pelo padre inquisidor de Bolonha para realizar "a prisão e
seqüestro do rapaz Edgardo Mortara Israelita". O menino passou a noite em
casa, vigiado pelos guardas papais. Assim que amanheceu, foi tirado da família
e levado de carro até Roma, para a famigerada Casa dos Catecúmenos. Lá, seu
batismo foi "aperfeiçoado" e foi-lhe dado o nome de Pio, em homenagem
ao papa regente.
Só depois do sequestro, o pai descobriu que meses antes, à total revelia dos interessados,
obviamente, fora julgado um processo regular da Inquisição, no qual os pais
foram representados por um jurista. Durante a fase de instrução, Anna Morisi, cristã
que trabalhara para a família Mortara e fora demitida, declarou ter batizado o
pequeno Edgardo, à época gravemente doente, sem que os pais soubessem.
O pai de Edgardo
dirigiu-se a Roma e tentou inutilmente recorrer junto à Santa Sé. Um memorando
enviado pelo secretário de Estado, cardeal Giacomo Antonelli, tirou-lhe
qualquer esperança:"[...] existe prova canônica do batismo, não havendo
mais razão ou direito para chamar o filho ao pátrio poder [...] A Igreja, mãe,
mestra e soberana dos homens não ofende nenhum direito, não carrega nenhum tipo
de vergonha, mas cumpre sua missão Divina ao tutelar seus filhos batizados,
tirando-os do perigo da apostasia."
O que ficaria na
história como o "caso Mortara" logo se tornou um escândalo
internacional. As comunidades judaicas piemontesa, francesa e inglesa tomaram
providências para que o caso fosse conhecido pela opinião pública e se
conseguisse a libertação de Edgardo, pressionando os respectivos governos. A
imprensa liberal e anticlerical também se interessou pelo fato, dando um grande
destaque a ele.
Os jornais
católicos, por outro lado, defenderam as decisões da Santa Sé, protestando
contra a intrusão das autoridades civis em uma questão religiosa, culpando os
pais do garoto pelo "crime" de ter contratado uma mulher cristã,
causa de todos os seus problemas seguintes, ou defendendo a notícia, totalmente
falsa, de que as autoridades eclesiásticas tinham tentado um acordo com a
família Mortara, tendo decidido pegar o menino apenas quando os pais se recusaram
a educá-lo segundo a religião cristã. Os diplomatas franceses, piemonteses e
ingleses pressionaram o governo pontifício para obter a libertação de Edgardo
Mortara, mas seus esforços foram em vão.
O próprio Pio IX
defendeu com vigor a escolha do sequestro. Chegou até a se declarar
publicamente "pai e protetor" de Pio Edgardo Mortara, que fora
destinado à carreira eclesiástica e confiado ao Colégio da Ordem dos Canônicos
de Latrão.
Em 20 de setembro
de 1870, os atiradores do Reino da Itália entraram em Roma e puseram um fim ao
poder temporal do papa. Poucos dias depois, chegaram à cidade o pai e um dos
irmãos de Edgardo, já com 19 anos, para levá-lo para casa. Mas os anos de
doutrinamento e coerção psicológica deram resultado, e o rapaz se recusou a
acompanhá-los. Pior, temendo ser sequestrado pelos familiares, em 22 de outubro
fugiu de Roma à paisana, ajudado pelos membros de sua Ordem, e se refugiou em
Bressanone. Dois anos depois, mudou-se para a França, para Beauchêne, onde foi
ordenado.
Pio Edgardo Mortara
nunca abjurou a religião católica, tornando-se um missionário zeloso e honrando
sempre a memória de Pio IX. Durante toda sua longa vida, foi atormentado por
graves crises depressivas e estados de verdadeira paranóia, que repetidas vezes
prejudicaram sua relação com os irmãos de Ordem. Morreu com quase 89 anos, no
dia lº de março de 1940, na Abadia de Bouhay, na Bélgica.
FONTES PARA ESTUDO
1. Mariella Carpinello, Libere donne di Dio.
Figure femminili nei primi secoli cristiani. Milão, Mondadori, 1997.
2. Livi Bacci Massimo, Storia minima delia
popolazione del mondo. Società editrice II Mulino, Bolonha, 1998.
3. Poggio Bracciolini. Facezie di Poggio
Florentino. Città di Castello (PG), Barabba, 1911.
4. Cario Falconi, I papi sul divano. Milão,
Sugarco Edizioni, 1975.
5. Marina Caffiero, Battesimi forzati:
storie di ebrei, cristiani e convertiti nella Roma dei papi. Roma, Viella,
2004, p. 203.
6. Daniele Scalise, // caso Mortara: Ia vera
storia dei bambino ebreo rapito dal papa. Milão, Mondadori, 1997,p.65.
7. Ibid., p. 63.
8. Marina Caffiero, op. cit, p. 74-104.
9. Ibid., p. 206-7.
10. Daniele Scalise, op. cit, p. 31.
11. Edito da Santa
Inquisição contra os judeus dos Estados Pontifícios, emanado em 1843, por
Achille Gennarelli. Il governo pontifício e Io Stato romano: documenti, citado
em Denis MackSmith, Il Risorgimento italiano, storia e testi. Roma-Bari,
Laterza, 1999, p. 73.
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