terça-feira, 5 de março de 2013

PROCURA-SE DEUS.



Em pleno século 21, a humanidade continua tentando conciliar fé e razão. Mas será que algum dia a ciência terá condições de provar que foi mesmo Deus (ou alguma outra entidade superior) quem criou o Universo e determinou os rumos da evolução?

Rodrigo Cavalcante


O zoólogo Richard Dawkins e o paleontólogo Simon Conway Morris têm muito em comum: lecionam nas mais prestigiadas universidades da Grã-Bretanha (Dawkins em Oxford e Morris em Cambridge) e compartilham opiniões e crenças científicas quando o tema é a origem da vida. Para ambos, a riqueza da biosfera na Terra é explicada mais do que satisfatoriamente pela teoria da seleção natural, de Charles Darwin. Os dois também concordam que, caso a história do nosso planeta pudesse ser reproduzida em outro lugar, a evolução provavelmente seguiria um rumo bem parecido ao observado por aqui, inclusive com o aparecimento de animais de sangue quente, como nós.

Num encontro realizado na Universidade de Cambridge em outubro, porém, eles protagonizaram um novo round de um debate que divide a humanidade desde que o mundo é mundo: Deus existe? Morris, cristão convicto, afirmou na palestra promovida pela Fundação John Templeton (cuja missão é “explorar as fronteiras entre teologia e ciência”) que a “misteriosa habilidade” da natureza para convergir em criaturas morais e adoráveis como os seres humanos é uma prova de que o processo evolutivo é obra de Deus.

Já o agnóstico Dawkins disse que o poder criativo da evolução reforçou sua convicção de que vivemos num mundo puramente material. O debate entre Dawkins e Morris, como já foi dito, não é novo, longe disso. De um lado, é óbvio que sempre haverá bilhões de pessoas que acreditam em Deus. Ao mesmo tempo, dificilmente vamos viver para comprovar Sua existência (ou inexistência). Entender alguns laços que unem ciência e religião e mostrar como essa relação vem mudando ao longo dos tempos é o tema desta reportagem.

Durante muitos séculos, Deus (e só Ele) foi apresentado como o principal responsável pelo sucesso da aventura humana sobre o planeta – nas artes, nos livros, nas escolas e nas igrejas. Até que a ciência começou a mostrar que isso não era necessariamente verdade. Na década de 1860, a teoria da seleção natural e da evolução das espécies, de Charles Darwin, lançou as primeiras dúvidas consistentes acerca da influência divina sobre a ordem da vida na Terra.

Com o passar dos anos, mais e mais pesquisadores passaram a defender que o destino da humanidade era abandonar gradativamente a fé e a religião em nome da crença em explicações “objetivas” para os fenômenos naturais. “No fim do século 19, os cientistas acreditavam estar muito próximos de uma descricão completa e definitiva do Universo”, escreveu o físico britânico Stephen Hawking.

No século 20, Nietzsche, Marx, Freud, Sartre e outros chegaram a apostar na “morte” de Deus e no início de uma “era da razão”. Não é preciso ser um especialista para saber que esse triunfo não se concretizou. Ao contrário. O que se observa hoje é uma revalorização da fé, inclusive entre os cientistas, como Simon Morris.

“Ao longo da história, a relação do homem com o sagrado tem se mostrado um traço extremamente persistente”, diz Oswaldo Giacoia Júnior, professor de história da filosofia moderna e contemporânea da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp. “Nos regimes socialistas em que a religião era proibida as pessoas substituíam a fé por uma ideologia.”

Cabe, então, à ciência provar a existência de Deus?
O paleontólogo americano Stephen Jay Gould acredita que nenhuma teoria (nem mesmo a da evolução) pode ser vista como uma ameaça às crenças religiosas, “porque essas duas grandes ferramentas da compreensão humana trabalham de forma complementar, e não oposta: a ciência para explicar os fenômenos naturais e a religião como pilar dos valores éticos e da busca por um sentido espiritual para a vida”. É por pensar assim que ele sempre se colocou do lado dos pesquisadores que são contra misturar ciência com religião.


Quem é Deus?

O cabelo e a barba grisalhos denunciam a idade, mas o corpo é forte e musculoso. Os traços da face transmitem a autoridade de quem não hesitará em agir sobre o mundo caso seja necessário. Para bilhões de ocidentais, a pintura de Michelangelo no teto da capela Sistina, no Vaticano, é a síntese perfeita de Iavé, o Deus bíblico, aquele que “criou tudo em 6 dias”. Como diz o escritor americano e ex-jesuíta Jack Miles, autor de Deus, uma Biografia, mesmo quem não acredita continua moldando seu caráter por influência dessa imagem.

Miles faz uma análise surpreendente da Bíblia, ao tratar de Deus como um personagem literário. O resultado é que, como protagonista do livro mais influente da história, Iavé revela uma personalidade que oscila bastante em relação à sua criação – como no momento em que ordena o dilúvio, para tentar “consertar” tudo.

Mas esse Deus é apenas uma entre inúmeras concepções de divindades. Não há sequer consenso em torno do número de deuses. Para mais de 750 milhões de hindus, existem centenas deles, como Brahma, Shiva e Krishna, para ficar nos mais conhecidos. Em rituais xamânicos de origem indígena, os deuses incorporam até em plantas e animais. E para mais de 350 milhões de seguidores do budismo, não há sequer uma divindade a cultuar – apenas Buda, um homem que atingiu a iluminação e virou guia espiritual. Como, então, a ciência pode encontrar Deus?

Apesar disso, os estudiosos sabem que há algo em comum entre essas crenças. Sem exceção, elas acreditam que há uma ordem, uma espécie de propósito (ou, se você preferir, sentido) no Universo. Nenhuma religião trabalha com o pressuposto de que o acaso e a indiferença regem as nossas vidas. Curiosamente, foi a busca por essa ordem que acabou impulsionando o avanço da própria ciência.


Da geometria ao acaso

No século 18, a maioria dos filósofos e cientistas acreditava piamente que a humanidade estava prestes a decifrar (integral e definitivamente) a ordem do Cosmos. Na época, havia motivos de sobra para tamanho otimismo: fazia mais de 100 anos que Isaac Newton publicara Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, considerada até hoje a obra mais importante da história da física. Nela, Newton não apenas descreveu como os corpos se deslocam no espaço e no tempo, mas desenvolveu a complexa matemática necessária para analisar esses movimentos.

Segundo essa teoria, as leis do Universo eram estáveis e previsíveis, como se tivessem sido projetadas por um craque da geometria. Em 1794, o escritor, poeta e artista plástico inglês William Blake resumiu essa idéia ao desenhar Deus (um velho barbudo, como o de Michelangelo) criando o mundo com um compasso na mão. “A metáfora do Deus geômetra deriva da velha idéia platônica de um Universo dualista, em que há a necessidade de existir uma ordem, mas continua influenciando a ciência até hoje”, diz o brasileiro Marcelo Gleiser, autor de O Fim da Terra e do Céu e professor de física e astronomia da Faculdade de Dartmouth, nos EUA.

A imagem de Deus, nesse sentido, era perfeitamente compatível com a visão científica do mundo da época. Os problemas só surgiam quando alguém tentava juntar as mais recentes descobertas da ciência com a história bíblica da Criação. Afinal, o estudo das camadas geológicas que formaram a Terra já provava que nosso planeta tinha milhões de anos – e não 5 mil, de acordo com os cálculos de Santo Agostinho. Mas bastava esquecer “detalhes” como esse para que todos fossem dormir felizes, conscientes de que o Universo tinha sido mesmo obra do Criador. Até que...

Se havia uma ordem no Universo, nada mais natural que ela comandasse todas as forças da natureza. E o homem, é claro, era visto como o exemplo máximo da perfeição da vida sobre a Terra. Mas Charles Darwin apresentou sua teoria sobre a seleção natural das espécies e colocou em xeque a idéia de que Deus era o responsável por tudo isso que está aí. Vale lembrar que Darwin nunca disse que o homem descendia dos macacos – apenas que homens e macacos eram parentes evolutivos com um ancestral comum (os paleantropólogos estimam, hoje, que esse “tataravô” viveu em algum momento entre 4 milhões e 6 milhões de anos atrás).

Ainda assim, muita gente não aceitou a idéia de que as espécies vivas, incluindo a nossa, possam ter se desenvolvido graças apenas à seleção natural, tendo evoluído quase por acaso em meio a tantas outras espécies. O fato é que o estudo da história da vida em nosso planeta comprovou que, durante milhões de anos, outras espécies reinaram por aqui sem que houvesse nenhuma necessidade da existência dos homens. Como bem resume o cientista americano Carl Sagan no seriado de televisão Cosmos, recentemente relançado em DVD pela super, se a história do Universo fosse condensada em apenas um ano, o aparecimento da espécie humana teria ocorrido nos últimos instantes do dia 31 de dezembro.

E o avanço da física deixou claro que, se o Universo fosse um relógio, nem sequer o tempo marcado por ele seria preciso. Em 1905, Albert Einstein publicou seu estudo da Teoria da Relatividade que, resumidamente, pôs fim à idéia de tempo absoluto. A estabilidade perfeita das leis de Newton começou a se despedaçar para sempre. Logo em seguida, o estudo da mecânica quântica revelou que não é possível sequer prever a posição exata de partículas subatômicas, obrigando os cientistas a se contentar em trabalhar com probabilidades.

Apesar de ter ajudado a destruir a velha noção de ordem no espaço e no tempo, Einstein acreditava cegamente que a natureza funcionava (ou deveria funcionar) segundo regras bem definidas – e não de maneira aleatória, como num grande jogo de azar. Numa carta para o físico Max Born, Einstein escreveu: “Você crê em um Deus que joga dados e eu, na lei e na ordem absolutas.” Se para um cientista como Albert Einstein não era fácil lidar com o acaso e o caos, imagine para os que acreditam na religião.

Do ponto de vista da física pura, porém, é importante ressaltar que todo esse papo de criação do Universo tem pouca (ou nenhuma) importância. Não fosse pela descoberta da teoria do big-bang (segundo a qual ele surgiu após uma grande explosão), nem sequer haveria a necessidade de provar que houve uma “hora zero”, afinal o tempo e o espaço são mesmo relativos, não é mesmo?

Curiosamente, o big-bang passou a ser considerado por muitos fiéis a “evidência científica” de que a Bíblia está certa ao descrever o “início de tudo”. Talvez para tentar explicar a incompatibilidade existente entre a física das partículas subatômicas e a Teoria da Relatividade, muitos pesquisadores têm discutido atualmente a chamada Teoria das Supercordas, que propõe uma explicação unificada capaz de preencher essas lacunas. “De qualquer maneira, essa tese é mais um desejo de encontrar uma ordem do que algo validado cientificamente”, diz o físico Marcelo Gleiser.

E se a ciência conseguisse achar essa tal ordem no Universo, será que isso seria a prova da existência de Deus? Ou será que a busca pelo divino não passa de uma necessidade inventada pelo homem para colocar um sentido em tudo (afinal, até onde se sabe, somos os únicos animais que tentam entender por que existe a morte)? 

Nas últimas décadas, o que se tem visto é um acirramento das diferenças entre aqueles que acreditam que a complexidade da vida só pode ser explicada por uma inteligência superior e aqueles que defendem que a inclinação para acreditar em Deus é apenas um traço biológico da nossa espécie, ou seja, somos programados para ter fé. É o que veremos nas próximas páginas.

Deus vai à escola

Dover, no estado americano da Pensilvânia, é uma daquelas cidades tão pequenas que mal dá para avistar seu núcleo urbano da altura média de vôo de um jato comercial. A pacata vida de seus 1814 habitantes, a maioria descendente de alemães, quase nunca foi notícia nos grandes jornais dos EUA. 

Tudo mudou no dia 18 de outubro de 2005, quando teve início o julgamento sobre a grade curricular de uma escola pública local que decidiu dedicar parte das aulas de biologia ao estudo de uma teoria conhecida em inglês como intelligent design (algo como projeto ou desenho inteligente, numa tradução livre para o português). Seu principal cartão de visita é o fato de se contrapor à tese de Darwin sobre a seleção natural e a evolução das espécies. Como a Constituição americana garante a total separação entre a Igreja e o Estado, alguns pais acharam que a direção do colégio estava muito perto de misturar ciência e religião, apelaram para a intervenção da Justiça e o debate pegou fogo no país.

Nas salas de aula em questão, as crianças e jovens aprendem que várias tarefas altamente especializadas e complexas do organismo humano – como a visão, o transporte celular e a coagulação, entre outras – só podem ser explicadas pela ação de uma força maior ou, em outras palavras, pela intervenção de um ser superior, capaz de bolar o tal desenho inteligente do nosso corpo e da nossa mente. 

Para a maioria dos biólogos do planeta, contudo, essa tal inteligência não passa de um novo nome para um velho conceito: o criacionismo bíblico, segundo o qual estamos na Terra apenas porque saímos da prancheta (ou da imaginação) divina para nos reproduzir “à Sua imagem e semelhança”.

Se, como já foi dito no início do texto, há muitos cientistas que não vêem motivos para buscar as impressões digitais de Deus na história do Universo, outros tantos acreditam que as teses de Darwin têm falhas e, como tal, precisam ser ensinadas nas escolas “em toda sua amplitude”, ou seja, alertando os alunos para o fato de que há controvérsias a respeito das descobertas que o jovem naturalista inglês fez a bordo do navio Beagle. 

Os defensores do desenho inteligente juram que não têm nenhuma ligação com os criacionistas do século 19, que difundiam uma interpretação literal do Gênese para conter a rápida e eficaz disseminação das teorias darwinistas – apesar das críticas da maior parte dos colegas da comunidade científica.

“Uma coisa é você tentar justificar uma fé usando argumentos científicos, outra é descobrir uma teoria científica que pode ser compatível com a fé”, disse à Super o bioquímico Michael J. Behe, pouco depois de depor no julgamento em defesa da “nova tese”. 

Professor da Universidade de Lehigh, na Pensilvânia, e autor do livro A Caixa-Preta de Darwin, ele diz que, se toda formulação científica compatível com uma crença religiosa tivesse de ser descartada automaticamente pelos pesquisadores, os astrônomos jamais poderiam aceitar os estudos sobre o big-bang. “Estou apenas defendendo o direito dos estudantes de terem acesso a outras idéias sobre a criação do Universo”, afirmou Behe.

A discussão em torno do ensino de ciências – inclusive com a interferência do Poder Judiciário – não é nenhuma novidade nos EUA. No início dos anos 20, muitos estados americanos simplesmente proibiram os alunos de ter aulas sobre as teorias evolutivas de Darwin. Em 1925, teve início um julgamento que, num primeiro momento, levou à condenação de um professor do ensino médio do Tennessee simplesmente porque ele acreditava que somos parentes dos macacos (e dizia isso em classe). Após sucessivos recursos de ambos os lados, o processo só terminou em 1968, quando a Suprema Corte decidiu que qualquer iniciativa no sentido de definir o currículo escolar com base em crenças religiosas era inconstitucional.

É por isso que tantos vêem o desenho inteligente como uma espécie de cortina de fumaça para colocar Deus de volta nas salas de aula? Será que, do ponto de vista científico, o desenho inteligente tem consistência? “Por enquanto, não”, afirma Vera Volferini, professora de genética e evolução da Unicamp. Segundo a bióloga, não existem ainda argumentos científicos que sejam tranqüilamente aceitos pela maioria dos pesquisadores.

“Teorias como essa presumem que o ser humano é o resultado de um projeto perfeito, o que não é verdade. É consenso entre os especialistas que o design humano, apesar de eficiente, está longe de ser inatacável biologicamente. A próstata do homem, para ficar em apenas um exemplo, não segue um desenho anatômico ideal”, diz ela. E é justamente essa falha na concepção que provoca muitos problemas que afetam boa parte dos machos da espécie. Além disso, por que não poderíamos ter mais de 5 dedos em cada mão? Vera explica que, ao menos do ponto de vista biológico, temos esse número de dedos não porque seria um problema ter um ou dois a mais, mas porque fazemos parte de uma espécie cujo ancestral, há milhões de anos, tinha (por acaso) 5 dedos.

No Brasil, a teoria criacionista já desembarcou também – nos colégios públicos do Rio de Janeiro e, por enquanto apenas nas aulas de religião (em 2002, um lei proposta pelo governador Anthony Garotinho incluiu a disciplina “religião confessional” no currículo escolar). E a atual governadora do estado, a presbiteriana Rosinha Matheus (mulher de Garotinho), afirmou recentemente ao jornal O Globo que não acredita nas teses darwinianas. 

Apesar de o assunto não ser tratado nas aulas de biologia por aqui, o tema vem preocupando entidades como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que já se manifestou contra a disseminação do criacionismo nas escolas fluminenses. “O problema não é ter ou não uma crença pessoal”, diz Marcelo Menossi, professor de genética molecular da Unicamp. “O problema é tentar justificar e espalhar essa crença usando falsos argumentos científicos.”

Genética da religião

Nos anos 60, a britânica Jane Goodall afirmou que algumas espécies podem ter a religiosidade gravada nos próprios genes. A pesquisadora ficou famosa ao estudar o comportamento de chimpanzés na Tanzânia. Numa de suas numerosas observações, descobriu que os macacos agiam de maneira nada usual diante de uma cachoeira, demonstrando o que ela batizou de senso místico e de reverência. 

“Alguns permaneciam sentados numa rocha em frente à queda d’água, como se estivessem encantados. Outros ficavam sob a queda d’água por mais de 50 minutos, quando normalmente nem gostavam de se molhar.” 

Goodall concluiu que esse comportamento é um traço de religiosidade primitiva. E nós? Será que também nós humanos fomos “programados” para acreditar em Deus?

Para o biólogo Edward O. Wilson, um dos pioneiros da sociobiologia (ciência que se dedica a compreender o comportamento humano por meio da biologia), a predisposição para a religião é mesmo resultado da evolução genética do cérebro. Segundo ele, nossa inclinação para acreditar num ser superior pode ser resultado da submissão animal. 

Ele conta que entre macacos rhesus o macho dominante caminha com a cauda e a cabeça erguidas, enquanto os dominados mantêm a cabeça e a cauda baixas, em sinal de respeito ao líder – em troca, eles têm proteção contra os inimigos e acesso a abrigo e alimento. Segundo Wilson, a tendência de se submeter a um ser superior é herança dessas ações. “O dilema humano é que evoluímos geneticamente para acreditar em Deus, não para acreditar na biologia.”

Essa seria uma das razões pelas quais Deus é sempre invocado quando precisamos lidar com temas etéreos (e muitas vezes polêmicos, como a bondade, a solidariedade etc.). “Afinal, se Deus for apenas uma constante física, é óbvio que ele não terá nada a dizer sobre ética, certo e errado ou qualquer outra questão moral”, diz o britânico Richard Dawkins.

O radiologista Andrew Newberg e o psiquiatra Eugene D’Aquili (que morreu há 5 anos) resolveram buscar diretamente no cérebro a origem da experiência religiosa. Utilizando aparelhos de tomografia, eles revelaram as áreas mais ativadas pela meditação em 8 budistas e em um grupo de freiras franciscanas. A pesquisa, cujos resultados foram publicados no livro Why God Won’t Go Away (“Por que Deus não Vai Embora”, sem tradução no Brasil), mostrou que durante as orações havia uma diminuição da atividade no lobo parietal superior, a área do cérebro responsável pela nossa orientação de tempo e espaço, pela sensação de separação entre o corpo e o indivíduo e pela delimitação entre o “eu” e os “outros”. Ou seja, ao meditar criamos um bloqueio que provoca a sensação de unicidade típica do êxtase religioso.

Além disso, várias outras pesquisas comprovam que ter fé, independentemente de acreditar em um ou mais deuses, faz bem para o corpo e a mente, pois melhora as condições de saúde e aumenta a sensação de felicidade. A ciência ainda não conseguiu explicar se Deus criou o nosso cérebro com essa habilidade ou se foi a evolução que fez o cérebro criar esse portal para Deus. Mas nesta nova era de espiritualidade talvez isso não seja tão importante assim. O que conforta muita gente é acreditar que é possível melhorar o mundo pela fé.

"A relação do homem com o sagrado tem se mostrado um traço persistente."

Oswaldo Giacoia Júnior, professor de história da filosofia moderna e contemporânea da Unicamp.
"A metáfora do deus geômetra deriva da velha idéia platônica de um universo dualista, em que há a necessidade de existir uma ordem superior, mas continua influenciando a ciência até hoje."

Marcelo Gleiser, professor de física e astronomia da Faculdade de Dartmouth, nos EUA.
"Uma coisa é você tentar justificar uma fé usando argumentos científicos, outra é você descobrir uma teoria científica que pode ser compatível com a fé."

Michael J. Behe, bioquímico e um dos principais defensores da tese do “desenho inteligente”.

"Se Deus for só uma constante física, é óbvio que ele não terá nada a dizer sobre o que é certo ou errado em questões morais."

Richard Dawkins, zoólogo e professor da Universidade de Oxford, na Inglaterra.

A indiferença do universo

Para muitos pesquisadores, o que distingue a ciência de outras visões de mundo é exatamente sua recusa em aceitar cegamente qualquer informação e sua determinação de submeter qualquer tese a testes constantes até que novos dados possam confirmá-la ou refutá-la. 

Essa visão baseia-se, entre outras coisas, na obra do filósofo vienense Karl Popper, que morreu em 1994. Segundo Popper, a ciência só pode tratar de temas que resistam ao que ele chamou de “critério de falseabilidade”. 

Resumidamente, o papel do verdadeiro cientista é buscar, com persistência, erros em sua teoria – em vez de tentar achar dados que provem sua correção. Quanto mais genérica e exposta a falhas (ou seja, quanto mais “falseável”), menos provável ela é. 

Por outro lado, quanto mais resistente (menos falseável), maiores as chances de acerto, pelo menos até o próximo teste. É por isso que um grande número de estudiosos argumenta que não é papel da ciência provar a existência de Deus. 

“Não faz sentido alguém afirmar que, ao descobrir um mistério do Universo, está ajudando a decifrar a mente divina”, diz o zoólogo britânco Richard Dawkins. 

Apesar disso, ele reconhece que é fascinante encantar-se diante dos mistérios da natureza – e das limitações científicas para explicá-los. Esse sentimento foi batizado pelo físico brasileiro Marcelo Gleiser de “misticismo racional”. Em outras palavras, é uma espécie de declaração de amor pelos fenômenos naturais, que se concretiza por meio da pesquisa científica. Segundo ele, há um paradoxo por trás da incansável busca por uma ordem e um sentido no Cosmos. “Como o homem é o único ser capaz de amar, tem uma imensa dificuldade em aceitar que o Universo pode ser totalmente indiferente a ele”, afirma.

A ética num mundo sem "ele"

“Se Deus não existe, tudo é permitido.” A frase, que ficou célebre no livro Os Irmãos Karamazov, do russo Fiodor Dostoievski, resume uma das questões mais cruciais do mundo moderno: sem uma referência divina, passaríamos a viver numa espécie de vale-tudo moral?

“Não necessariamente”, diz o filósofo Oswaldo Giacoia Júnior, da Unicamp. “A busca de um código de valores sempre foi uma preocupação central da filosofia, sem necessidade de uma legitimação divina.” 

No século 18, por exemplo, os ideais de igualdade e justiça social, aceitos hoje como uma preocupação ética, surgiram de formulações dos filósofos iluministas – que acreditavam ser possível defendê-los com base na razão, não na religião (na época, esse tema não era nada popular no Vaticano). 

Em meados do século 20, o francês Jean Paul Sartre, o pai do existencialismo – segundo o qual de nada adianta buscar um propósito da existência para além da vida humana –, disse que a nossa própria condição de seres que vivem em sociedade é suficiente para justificar a prática de valores solidários.
E ainda hoje filósofos como o vienense Peter Singer (um dos mais ferrenhos defensores dos direitos dos animais) continuam defendendo uma série de condutas éticas baseadas na razão, não na fé. 

Mas será que a adoção pura e simples de uma ética sem Deus não pode nos levar a um racionalismo frio, capaz de ofuscar valores menos palpáveis, como a bondade? “A fé não se traduziu apenas em atos de paz e harmonia ao longo dos tempos”, lembra Giacoia. “Dos grandes conflitos religiosos do passado ao moderno terrorismo fundamentalista, já foram cometidas inúmeras atrocidades em nome da ética religiosa em todo o mundo.”

Para saber mais
Deus, uma Biografia - Jack Miles, Companhia das Letras, 2002
Desvendando o Arco-Íris - Richard Dawkins, Companhia das Letras, 2000
Consiliência - Edward O. Wilson, Editora Campus, 1999
O Romance da Ciência - Carl Sagan, Francisco Alves, 1982
Why God Won´t Go Away - Andrew Newberg e Eugene D·Aquili, Ballantine Books, 2002
A Caixa-Preta de Darwin - Michael Behe, Jorge Zahar Editor, 1997




segunda-feira, 4 de março de 2013

DEUS BÍBLICO PODE SER FUSÃO DE VÁRIOS DEUSES PAGÃOS, DIZEM ESPECIALISTAS.



Personalidade e atributos de Javé são compartilhados com outras divindades do Oriente.
Pai celestial El, jovem guerreiro Baal e até 'senhora' Asherah teriam sido influências.


Reinaldo José Lopes Do G1, em São Paulo



A afirmação pode soar desrespeitosa para judeus ou cristãos, mas não está muito longe da verdade: Javé, o Deus do Antigo Testamento, parece ter múltiplas personalidades. Para ser mais exato, especialistas que estudam os textos bíblicos, lêem antigas inscrições encontradas nos arredores de Israel ou escavam sítios arqueólogicos estão reconhecendo a influência conjunta de diversos deuses pagãos antigos no retrato de Javé traçado pela Bíblia.


A idéia não é demonstrar que o Deus bíblico não passa de mais um personagem da mitologia. Os pesquisadores querem apenas entender como elementos comuns à cultura do antigo Oriente Próximo, e principalmente da região onde hoje ficam o estado de Israel, os territórios palestinos, o Líbano e a Síria, contribuíram para as idéias que os antigos israelitas tinham sobre os seres divinos. As conclusões ainda são preliminares, mas há bons indícios de que Javé é uma fusão entre um deus idoso e paternal e um jovem deus guerreiro, com pitadas de outras divindades – uma delas do sexo feminino. 

Inscrição feita por ordem de Mesa, rei de Moab (país vizinho do antigo Israel): texto fala de genocídio por ordem divina, tal como se vê nos textos bíblicos (Foto: Reprodução )



O ponto de partida dessas análises é o fundo cultural comum entre o antigo povo de Israel e seus vizinhos e adversários, os cananeus (moradores da terra de Canaã, como era chamada a região entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo em tempos antigos). A Bíblia retrata os israelitas como um povo quase totalmente distinto dos cananeus, mas os dados arqueólogicos revelam profundas semelhanças de língua, costumes e cultura material – a língua de Canaã, por exemplo, era só um dialeto um pouco diferente do hebraico bíblico.
Memórias de Ugarit 

Os cananeus não deixaram para trás uma herança literária tão rica quanto a Bíblia. No entanto, poucos quilômetros ao norte de Canaã, na atual Síria, ficava a cidade-Estado de Ugarit, cuja língua e cultura eram praticamente idênticas às de seus primos do sul. Ugarit foi destruída por invasores bárbaros em 1200 a.C., mas os arqueólogos recuperaram numerosas inscrições da cidade, nas quais dá para entrever uma mitologia que apresenta semelhanças (e diferenças) impressionantes com as narrativas da Bíblia. “Por isso, Ugarit é uma parte importante do fundo cultural que, mais tarde, daria origem às tribos de Israel”, resume Christine Hayes, professora de estudos clássicos judaicos da Universidade Yale (EUA).

Uma das figuras mais proeminentes nesses textos é El – nome que quer dizer simplesmente “deus” nas antigas línguas da região, mas que também se refere a uma divindade específica, o patriarca, ou chefe de família, dos deuses. “Patriarca” é a palavra-chave: o El de Ugarit tem paralelos muito específicos com a figura de Deus durante o período patriarcal, retratado no livro do Gênesis e personificado pelos ancestrais dos israelitas: Abraão, Isaac e Jacó.

Nesses textos da Bíblia há, por exemplo, referências a El Shadday (literalmente “El da Montanha”, embora a expressão normalmente seja traduzida como “Deus Todo-Poderoso”), El Elyon (“Deus Altíssimo”) e El Olam (“Deus Eterno”). O curioso é que, na mitologia ugarítica, El também é imaginado vivendo no alto de uma montanha e visto como um ancião sábio, de vida eterna.

Tal como os patriarcas bíblicos, El é uma espécie de nômade, vivendo numa versão divina da tenda dos beduínos; e, mais importante ainda, El tem uma relação especial com os chefes dos clãs, tal como Abraão, Isaac e Jacó: eles os protege e lhes promete uma descendência numerosa. Ora, a maior parte do livro do Gênesis é o relato da amizade de Deus com os patriarcas israelitas, guiando suas migrações e fazendo a promessa solene de transformar a descendência deles num povo “mais numeroso que as estrelas do céu”.
Israel ou “Israías”?
 
Outros dados, mais circunstanciais, traçam outros elos entre o Deus do Gênesis e El: num dos trechos aparentemente mais antigos do livro bíblico, Deus é chamado pelo epíteto poético de “Touro de Jacó” (frase às vezes traduzida como “Poderoso de Jacó”), enquanto a mitologia ugarítica compara El freqüentemente a um touro. Finalmente, o próprio nome do povo escolhido – Israel, originalmente dado como alcunha ao patriarca Jacó – carrega o elemento “-el”, lembra Airton José da Silva, professor de Antigo Testamento do Centro de Estudos da Arquidiocese de Ribeirão Preto (SP).

“É o nome do deus cananeu, mais um indício de que Israel surge dentro de Canaã, por um processo gradual”, diz Silva. Ele argumenta que, se Javé fosse desde sempre a divindade dos israelitas, o nome desse povo seria “Israías”. Isso porque o elemento adaptado como “-ías” em português (algo como -yahu) era, em hebraico, uma forma contrata do nome “Javé”. Curiosamente, o elemento se torna dominante nos chamados nomes teofóricos (ligados a uma divindade) dados a israelitas no período da monarquia, a partir dos séculos 10 a.C. e 9 a.C.

E esse nome (provavelmente Yahweh em hebraico; a sonoridade original foi obscurecida pelo costume de não pronunciar a palavra por respeito) é um enigma e tanto. As tradições bíblicas são um tanto contraditórias, mas pelo menos uma fonte das Escrituras afirma que Javé só deu a conhecer seu verdadeiro nome aos israelitas quando convocou Moisés para ser seu profeta e arrancar os descendentes de Jacó da escravidão no Egito. (A Moisés, Deus diz que apareceu a Abraão, Isaac e Jacó como “El Shadday”.) O problema é que ninguém sabe qual a origem de Javé, o qual nunca parece ter sido uma divindade cananéia, exatamente como diz o autor bíblico.
Senhor do deserto
 
A esmagadora maioria dos arqueólogos e historiadores modernos não coloca suas fichas no Êxodo maciço de 600 mil israelitas (sem contar mulheres e crianças) do Egito, por dois motivos: a semelhança entre Israel e os cananeus e a falta de qualquer indício direto da fuga. Mas muitos supõem que um pequeno componente dos grupos que se juntaram para formar a nação israelita tenha sido formado por adoradores de Javé, que acabaram popularizando o culto. Quem seriam esses primeiros javistas? Uma pista pode vir de alguns documentos egípcios, que os chamam de Shasu – algo como “nômades” ou “beduínos”.

“Duas ou três inscrições egípcias mencionam um lugar chamado 'Yhwh dos Shasu', o que, para alguns especialistas, parece ser 'Javé dos Shasu'. Talvez sim, talvez não. Não temos como saber ao certo”, diz Mark S. Smith, pesquisador da Universidade de Nova York e autor do livro “The Early History of God” (“A História Antiga de Deus”, ainda sem tradução para o português).

“É menos provável que o culto a Javé venha de dentro da Palestina e da Síria, e um pouco mais plausível que ele tenha se originado em certas regiões da Arábia”, diz Airton da Silva. Mark Smith lembra que algumas das passagens poéticas consideradas as mais antigas da Bíblia – nos livros dos Juízes e nos Salmos, por exemplo – referem-se ao “lar” de Javé em locais denominados “Teiman” ou “Paran”. Aparentemente, são áreas desérticas, apropriadas para a vida de nomadismo. “Muitos especialistas localizam essa região no que seria o noroeste da atual Arábia Saudita, ao sul da antiga Judá [parte mais meridional dos territórios israelitas]”, diz Smith. 

Baal, retratado como guerreiro (provavelmente a estatueta tinha uma lança na mão), lembra Javé por causa de sua luta contra monstros marinhos (Foto: Reprodução )    


Guerreiro divino 

Seja como for, quando Javé entra em cena com seu “nome oficial” durante o Êxodo bíblico, a impressão que se tem é que ele já absorveu boa parte das características de um outro deus cananeu: Baal (literalmente “senhor”, “mestre” e, em certos contextos, até “marido”), um guerreiro jovem e impetuoso que acabou assumindo, na mitologia de Ugarit e da Fenícia (atual Líbano), o papel de comando que era de El.

Indícios dessa nova “personalidade” de Deus surgem no fato de que, pela primeira vez na narrativa bíblica, Javé é visto como um guerreiro, destruindo os “carros de guerra e cavaleiros” do Faraó e, mais tarde, guiando as tribos de Israel à vitória durante a conquista da terra de Canaã. Tal como Baal, Javé é descrita como “cavalgando as nuvens” e “trovejando”. E, mais importante ainda, uma série de textos bíblicos falam de Deus impondo sua vontade contra os mares impetuosos (como no caso do Mar Vermelho, em que as águas engolem o exército egípcio por ordem divina) ou derrotando monstros marinhos.

Há aí uma série de semelhanças com a mitologia cananéia sobre Baal, o qual derrotou em combate o deus-monstro marinho Yamm (o nome quer dizer simplesmente “mar” em hebraico) ou “o Rio” personificado. Na mitologia do Oriente Próximo, as águas marinhas eram vistas como símbolos do caos primitivo, e por isso tinham de ser derrotadas e domadas pelos deuses.

Javé também é associado à chuva e à fertilidade da terra pelos antigos autores bíblicos – atributos que aparecem entre as funções de Baal. Há, porém, uma diferença importante entre os dois deuses: outra narrativa de Ugarit fala do assassinato de Baal pelas mãos de Mot, o deus da morte, e da ressurreição do jovem guerreiro – provavelmente uma representação mítica do ciclo das estações do ano, essencial para a agricultura, já que Baal era um deus que abençoava a lavoura.

O lado guerreiro de Javé é talvez o mais difícil de aceitar para a sensibilidade moderna: quando os israelitas realizam a conquista da terra de Canaã, a ordem dada por Deus é de simplesmente exterminar todos os habitantes, e às vezes até os animais (embora, em alguns casos, os homens de Israel recebam permissão para transformar as mulheres do inimigo em concubinas).


Inscrição feita por ordem de Mesa, rei de Moab (país vizinho do antigo Israel): texto fala de genocídio por ordem divina, tal como se vê nos textos bíblicos   



Textos de outra nação da área, os moabitas (habitantes de Moab, a leste do Jordão) ajudam a lançar luz sobre esse costume aparentemente bárbaro. Um monumento de pedra conhecido como a estela de Mesa (nome de um rei de Moab em meados do século 9 a.C.) fala, ironicamente, de uma guerra de Mesa com Israel na qual o rei moabita, por ordem de seu deus, Chemosh, decreta o herem, ou “interdito”. E o herem nada mais é que a execução de todos os prisioneiros inimigos como um ato sagrado. Tratava-se, portanto, de um elemento cultural de toda a região.
Lado feminino 

Se a “múltipla personalidade” de Javé pode ser basicamente descrita como uma combinação de El e Baal, há uma influência mais sutil, mas também perceptível, de um elemento feminino: a deusa da fertilidade Asherah, originalmente a esposa de Baal na mitologia cananéia. Normalmente, Deus se comporta de forma masculina na Bíblia, e a linguagem utilizada para falar de sua relação com os israelitas é, muitas vezes, a de um marido (Deus) e a esposa (o povo de Israel). Mas o livro bíblico dos Provérbios, bem como alguns outras fontes israelitas, apresenta a figura da Sabedoria personificada, uma espécie de “auxiliar” ou “primeira criatura” de Deus que o teria auxiliado na obra da criação do mundo.

Segundo o texto dos Provérbios, Deus “se deleita” com a Sabedoria e a usa para inspirar atos sábios nos seres humanos. Para muitos pesquisadores, a figura da Sabedoria incorpora aspectos da antiga Asherah na maneira como os antigos israelitas viam Deus, criando uma espécie de tensão: embora o próprio Deus não seja descrito como feminino, haveria uma complementaridade entre ele e sua principal auxiliar.


 

domingo, 3 de março de 2013

DEUS - UMA BIOGRAFIA



Pesquisadores revelam que Javé, o grande personagem da Bíblia, não foi visto sempre como Deus único. Antes do Livro Sagrado, ele era só mais um entre muitas divindades. Saiba como Deus conquistou seu espaço no céu. E na Terra 

por José Lopes e Alexandre Versignassi 



Cada sociedade vê a figura do Criador à sua maneira. Cada indivíduo, até. Para Einstein, Ele era as leis que governam o tempo e o espaço - a natureza em sua acepção mais profunda. Para os ateus, Deus é uma ilusão. Para o papa Bento 16, é o amor, a caridade. "Quem ama habita Deus; ao mesmo tempo, Deus habita quem ama", escreveu em sua primeira encíclica.

Pontos de vista à parte, toda cultura humana já teve seu Deus. Seus deuses, na maioria dos casos: seres divinos que interagiam entre si em mitologias de enredo farto, recheadas de brigas, lágrimas, reconciliações. Os deuses eram humanos.

Mas isso mudou. A imagem divina que se consolidou é bem diferente. Deus ganhou letra maiúscula na cultura ocidental. Os panteões divinos acabaram. Deus tornou-se único. É o Deus da Bíblia, Javé, o criador da luz e da humanidade. O pai de Jesus. Essa concepção, que hoje parece eterna, de tanto que a conhecemos, não nasceu pronta. Ela é fruto de fatos históricos que aconteceram antes de a Bíblia ter sido escrita. 

O próprio Javé já foi uma divindade entre muitas. Fez parte de um panteão do qual não era nem o chefe. O fato de ele ter se tornado o Deus supremo, então, é marcante: se fosse entre os deuses gregos, seria como se uma divindade de baixo escalão, como o Cupido, tivesse ascendido a uma posição maior que a de Zeus É essa história que vamos contar aqui. A história de Javé, a figura que começou como um pequeno deus do deserto e depois moldaria a forma como cada um de nós entende a ideia de Deus, não importando quem ou o que Deus seja para você.

Criança
No princípio, Ele não sabia falar. Só chorava, grunhia e balbuciava. Deus era uma criança. Uma não, muitas: um deus era a chuva, outro deus, o Sol, mais outro, o trovão... Os deuses eram as forças por trás de uma natureza inexplicável para os primeiros humanos da Terra. Facetas de divindades borbulhavam em cachoeiras, galopavam com os cavalos selvagens, voavam com o vento, escondiam-se em cada rochedo, bosque ou duna do deserto. E do deserto veio a que daria origem ao Deus para valer.

Deuses nasceram do pôquer. A crença em divindades provavelmente vem da capacidade humana de detectar as intenções das outras pessoas. Somos muito bons nisso desde que surgimos, há 200 mil anos, e precisamos ser mesmo, porque o Homo sapiens sempre levou a vida social mais complicada do reino animal, sempre em comunidades cheias de intrigas, fingimentos, traições. Saber o que se passa na cabeça do outro era questão de sobrevivência - e até certo ponto ainda é.

E a melhor maneira de tentar se antecipar a um adversário nos jogos mentais do dia a dia é imaginar as intenções dele: "O que será que ele pensa que eu estou pensando?" Nosso cérebro é uma máquina de pôquer.

Pesquisadores como o antropólogo francês Pascal Boyer defendem que esse sistema de detecção de intenções pode acabar aplicado a coisas que não têm intenções de nenhum tipo - como a chuva, ou o Sol. A ideia de que há espíritos de toda sorte da natureza seria, assim, um efeito colateral do nosso sistema de detecção de mentes, tão hiperativo.

Por esse ponto de vista, a espiritualidade faz parte dos nossos instintos. É quase tão natural acreditar em divindades quanto comer ou dormir.

Cada fenômeno da natureza, então, representava as intenções de alguma divindade. É como ainda acontece nas tribos de caçadores-coletores de hoje. Entre os índios tupis, os trovões são a raiva do deus Tupã. E fim de papo.

Obras de arte de mais de 30 mil anos atrás dão outra pista sobre essa espiritualidade primitiva - que podemos chamar de "infância de Deus" (no caso, dos deuses). Elas mostram seres que misturam características humanas e animais - sujeitos com cabeça de leão ou de rena e corpo de gente, por exemplo.

Acredita-se que essas criaturas híbridas representem um tipo de crença que ainda é comum nas tribos indígenas: a de que não haveria separação rígida entre o mundo dos humanos, o dos animais e o dos espíritos. Seria possível transitar entre essas esferas se você possuísse o conhecimento correto, e, em tese, qualquer falecido, seja pessoa, seja bicho, pode ter um papel parecido com o que associamos normalmente a um deus.

Os deuses abandonam de vez as feições animais quando os bichos se tornam menos importantes no nosso cotidiano. Foi precisamente o que aconteceu quando a agricultura foi criada, há 10 mil anos, no Oriente Médio. Graças a ela, montamos as primeiras cidades. E a nossa espiritualidade progrediria junto: acabaria bem mais centrada nas pessoas que na natureza selvagem.

Há sinais de que ancestrais mortos eram as grandes entidades com status divino nessas primeiras cidades. Um exemplo arqueológico vem de escavações em Jericó, uma das mais antigas aglomerações humanas, que hoje fica no território palestino da Cisjordânia. Os habitantes de Jericó enterravam o corpo de seus mortos, mas guardavam o crânio, que era recoberto com camadas de gesso e tinta, simulando o rosto humano. Assim preparada, a caveira talvez servisse de oráculo doméstico - uma espécie de deus particular para cada família.

Os artesãos de crânios de Jericó não tinham escrita - aliás, passariam mais de 5 mil anos até que essa tecnologia fosse inventada. Quando isso finalmente aconteceu, em torno do ano 2000 a.C., os deus ficaram bem mais sofisticados.

Entraram em cena criaturas ao estilo dos habitantes do Olimpo na mitologia grega. Em parte, alguns deles até eram mesmo personificações das forças da natureza, mas agora eles ganhavam personalidades e biografias complexas.

É aí que está a origem do grande personagem desta história: Javé, uma divindade que provavelmente começou como um deus menor, cultuado por nômades. Bem antes de a Bíblia ser escrita.


Cabeça de leão
Estátuas e pinturas de povos caçadores, que viviam nas cavernas da Europa há 30 mil anos, mostram figuras que misturam formas de homens e de animais. Tudo indica que esses foram os primeiros deuses a habitar a mente humana.


Jovem
O rapaz era uma divindade dos desertos do sul. Junto com seus poucos súditos, chegaria à pulsante Canãa, domínio do deus El, o altíssimo. Ao lado do soberano, a mãe de divindades e homens, Asherah, senhora de tudo o que é fértil, e seu sucessor, Baal, o deus que dava chuvas àquelas paisagens àridas. Tudo na santa paz. Eles só não imaginavam que Javé tramava a destruição deles.

Ele começou de baixo. Era só mais um deus entre vários outros de sua região. Só que na Bíblia Javé é identificado como o Deus único. Hoje, cogitar a existência de outras divindades que teriam convivido com o Senhor da Bíblia é um absurdo do ponto de vista religioso. Mas não do ponto de vista científico. Pesquisadores de várias áreas - arqueólogos, linguistas, teólogos - estão encontrando pistas sobre uma provável "vida pregressa" de Javé. Uma vida mitológica que ele teve antes de seu nome ir parar na Bíblia como o da entidade que criou tudo.

Onde pesquisar isso? A própria Bíblia é uma fonte. O Livro Sagrado não foi feito de uma vez. Trata-se de uma coleção de textos escritos ao longo de séculos. O Pentateuco, os 5 primeiros livros da Bíblia, foi finalizado por volta de 550 a.C. Mas há textos ali de 1000 a.C., ou de antes. E nada disso foi editado em ordem cronológica - em grande parte, a Bíblia é uma junção de textos independentes, cada um escrito em tempos e realidades diferentes.

Como saber a que tempo e a que realidade cada um pertence? Pela linguagem. Pesquisadores analisam as expressões do texto original, em hebraico, e vão comparando com a de documentos encontrados em escavações arqueológicas, cuja datação é fácil de determinar. Com esse método, chegaram a uma descoberta reveladora. Alguns poemas da Bíblia dão a entender que Javé era uma divindade de lugares chamados Teiman ou Paran - dizendo literalmente que o deus veio dessas regiões. E esses textos estão justamente entre os mais antigos - se a língua do livro fosse o português moderno, eles estariam mais para Camões.

Teiman e Paran eram lugares desérticos fora das fronteiras onde viviam os homens que escreveram a Bíblia. Não se sabe exatamente que regiões eram essas, já que os nomes dos territórios vão mudando ao longo dos séculos. "Mas arqueólogos supõem que essa região seja no noroeste da atual Arábia Saudita", diz Mark Smith, professor de estudos bíblicos da Universidade de Nova York. E isso diz muito.

Os autores dos primeiros textos da Bíblia viviam na antiga Canaã - uma região do Oriente Médio onde hoje estão Israel, os territórios palestinos e partes da Síria e do Líbano. Ali se formaram algumas das primeiras civilizações da história, há 10 mil anos. E por volta de 1000 a.C. já era um território disputado (como nunca deixou de ser, por sinal). Estava dividido numa miríade de tribos, as dos israelitas, a dos hititas, a dos jebedeus...

Apesar das rivalidades, todas tinham culturas parecidas. Reverenciavam o mesmo panteão de deuses, por exemplo. Mas Javé, pelo jeito, não era um deles. Teria sido importado das áreas mais desérticas do sul.

Outra evidência disso é a associação de seu nome com os chamados shasu. Shasu é um termo egípcio que significa "nômade" ou "beduíno". Algumas inscrições egípcias mencionam um "Javé dos Shasu".

Uma possibilidade, então, é que nômades do deserto teriam se incorporado às tribos israelitas, trazendo o novo deus com eles. Essa divindade se embrenharia no meio da grande mitologia desse povo: o panteão de deuses cananeus. Mas quem eram essas divindades? As melhores pistas a esse respeito vêm de Ugarit, uma antiga cidade encontrada durante escavações arqueológicas na atual Síria. Ela foi destruída por invasores em 1200 a.C., quando os israelitas ainda eram um povo em formação. 

As inscrições encontradas ali, então, servem como uma cápsula do tempo. Revelam o contexto cultural em que nasceu a mitologia israelita, mostra como era a mitologia dos antepassados dos escritores da Bíblia. E os deuses em que eles acreditavam seriam fundamentais para a biografia de Javé. O panteão de Ugarit é bem grandinho, mas algumas figuras se destacam. Há o pai dos deuses e dos homens, o idoso, bondoso e barbudo El; sua esposa, Asherah, deusa da vegetação e da fertilidade; a filha dos dois, Anat, feroz deusa do amor; e o filho adotivo do casal, Baal, deus da guerra e da tempestade que morre, ressuscita e derrota as divindades malignas Yamm (o Mar) e Mot (a Morte).

Muitos estudiosos especulam que as tribos israelitas originalmente tinham El como seu deus supremo. Afinal, o nome do povo bíblico também termina com o elemento -el. "Esse tipo de nome próprio, conhecido como teofórico (‘portador de um deus’, em grego), costuma dar pistas sobre o ente divino que o dono do nome venera", diz Airton José da Silva, professor de Antigo Testamento da Arquidiocese de Ribeirão Preto.

Mas os indícios a respeito de El vão além da nomenclatura. O deus cananeu também tem uma relação especial com os chefes de clãs, prometendo-lhes uma vasta descendência - exatamente o que Deus faria depois na Bíblia ao selar uma aliança com os ancestrais dos israelitas, Abraão, Isaac e Jacó. "El é o deus desses patriarcas", diz Christine Hayes, professora de estudos judaicos de Yale.


Deus do deserto
Javé pode ter sido uma divindade trazida do deserto por nômades que se embrenharam nas tribos is-raelitas, quando elas ainda estavam em formação na região de Canaã. Aí ele se junta aos deuses cananeus, como Baal e El, o altíssimo.


Adulto
"Israel é a minha herança", brada o impetuoso deus do deserto. Diante dele, a assembleia dos deuses de Canaã se sente cada vez mais intimidada. E, numa escalada de poder sem precedentes, o guerreiro chega a ser considerado idêntico ao próprio El como criador e governador do mundo. A própria esposa do antigo senhor dos deuses passa às mãos do novato.

Uma ameaça pairava sobre os deuses de Canaã. Era a ambição de Javé. O novo deus começou a buscar seu lugar entre as antigas divindades cananeias. E teve sucesso. Com sua personalidade forte, foi ganhando espaço dentro da mitologia israelita, tomando o terreno dos deuses criados pelos povos cananeus.

A maior prova disso está em outro texto poético dos mais antigos da Bíblia, o Salmo 82. Ele nos apresenta o chamado "conselho divino": uma espécie de Câmara dos Deputados dos deuses, na qual eles se reúnem para discutir assuntos importantes - um indício de que o Salmo foi escrito antes do próprio início da Bíblia, que já começa apresentando Javé como Deus único. A ideia, ali, é que El preside o conselho e seus filhos ou subordinados discursam. Lá, Javé aparentemente perde a paciência: "Deus se levanta no conselho divino,/em meio aos deuses ele julga:/"Até quando vocês julgarão injustamente,/sustentando a causa dos injustos? (...) "Eu declaro: embora vocês sejam deuses,/e todos filhos do Altíssimo,/morrerão como qualquer homem". Trocando em miúdos menos rebuscados: "Quem manda aqui sou eu".

É difícil dizer a que período da história israelita corresponde esse momento em que, na imaginação religiosa das pessoas, Javé começou a impor sua vontade perante os deuses cananeus. Talvez o fenômeno tenha a ver com a consolidação de Israel como povo distinto dos demais cananeus: a adoração a uma divindade unicamente israelita pode ter emergido como um elemento-chave nessa consciência "nacionalista" dos ancestrais dos judeus.

Para completar essa nova fase na vida do Senhor, que poderíamos chamar de começo da vida adulta, falta ainda um elemento crucial. Lembre-se do impetuoso deus guerreiro Baal. O que parece ocorrer, segundo Mark Smith e outros especialistas, é que Javé se "baaliza", virando uma mistura de El e Baal, com ligeira predominância do segundo.

As evidências: Javé e Baal estão associados a tempestades, vulcões, fogo e terremoto; ambos são guerreiros invencíveis que habitam o alto de montanhas (Baal vive no lendário monte Zafon, Javé, no Sinai). E a semelhança fica ainda mais detalhada.

Na tradição mitológica de Canaã, quem tinha triunfado contra Yamm, o deus caótico do mar, era Baal, mas os textos da Bíblia atribuem essa vitória - adivinhe só - a Javé. Mais sugestivo ainda: alguns Salmos parecem ter sido originalmente hinos a Baal que acabaram adaptados para o culto ao Senhor dos israelitas. Só que Javé vai muito além das intervenções típicas de Baal no mundo. Na mitologia israelita, sua grande vitória não é contra o mar, mas, sim, usando o mar como arma contra o faraó que tinha escravizado o povo hebreu no Egito. Escolhendo o profeta Moisés como seu emissário, conforme conta o livro bíblico do Êxodo, o novo deus guerreiro puniu os egípcios com uma sucessão de pragas e, como grand finale, destruiu "carros de guerra e cavaleiros" do faraó afundando-os no mar.

A diferença em relação a Baal é que o Senhor seria capaz de agir não só num passado mítico mas na própria história dos israelitas. Ele é literalmente "o Senhor dos Exércitos de Israel", aquele que promete a vitória em batalha em troca da fidelidade religiosa do povo. Daí em diante, Deus nunca deixa de ser, em grande medida, um guerreiro.

Além de herdar o trono de El na mitologia israelita, Javé também pode ter levado Asherah, a mulher do velho deus. Eis aí uma possibilidade para a qual a Bíblia não prepara seus leitores. Os profetas bíblicos vivem chiando contra o fato de que os israelitas estariam se "prostituindo" (metaforicamente, e talvez literalmente também, via orgias rituais) nos altares de Asherah. Mas inscrições achadas ao longo do século 20, como as de Kuntillet Ajrud, um pit stop de caravanas no deserto do Sinai, poderiam indicar que o deus e a deusa não eram inimigos, e sim um casal.

As inscrições, datadas em torno do ano 800 a.C., dizem coisas como "a bênção para ti por Javé de Teiman e sua Asherah". Seja como for, mesmo se o casamento ainda existisse, Javé logo optaria por um divórcio - daqueles litigiosos, barra-pesada, nos quais o pai joga os filhos contra a mãe.

Casal maior
Inscrições do do século 9 a.C. dão a entender que Javé tinha se casado com Asherah, a maior divindade feminina de Canaã. Era uma interpretação israelita da mitologia da região: o deus daquele povo tomava para si a esposa de El.


Homem feito
A última resistência da antiga assembleia divina parte de Baal. Sem pestanejar, Javé o elimina. Asherah tem o mesmo destino trágico. Daqui por diante ele estará sozinho nos céus. E alcança a serenidade. Hora de fazer as pazes com a humanidade. E um sacrifício.

Seu grande momento estava chegando. Era a hora da virada para Javé. Ele deixaria de ser mais um deus. E viraria o Único. No mundo real, esse momento teve data: foi a reforma religiosa introduzida por Josias (649 - 609 a.C.), rei de Judá. Antes, porém, um interlúdio político.

Àquela altura, a nação das tribos israelitas de Canaã tinha sido dividida em dois reinos. Um ao norte, o de Israel, e um ao sul, o de Judá. E o de cima havia sido derrotado e conquistado pelo Império Assírio.

Josias não queria o mesmo destino. E parte de seus esforços para fortalecer a unidade interna de Judá e resistir aos invasores foi uma maior centralização da vida religiosa do reino. Para isso, ele começou a transformar Javé no único deus adorado por seus súditos. Por decreto: destruindo altares a outras divindades, como El, Baal... E Asherah. Esse foi o divórcio.

Também é possível que date do reinado de Josias o ataque final dos fiéis de Javé ao culto a Baal, muito criticado pelos profetas dessa época. Para a maior parte dos israelitas, não era problema adorar a Javé e a Baal ao mesmo tempo. É que outra especialidade do antigo deus cananeu era a agricultura - ele mandava chuva para regar as colheitas. Até então, embora Javé tivesse tomado conta das funções guerreiras de Baal, nada indicava que ele também pudesse bancar o regador de plantas. Mas os profetas israelitas passam, então, a afirmar que o mandachuva era ele.

Essa expulsão definitiva de Baal do panteão explica o episódio do bezerro de ouro durante a passagem dos israelitas pelo deserto. Para quem não se lembra: o povo de Deus, cansado de esperar que Moisés volte do monte Sinai, constrói uma estátua de ouro de um bezerro (emblema de Baal). Tanto Moisés quanto Javé ficam enfurecidos, e milhares de israelitas morrem como punição pela infidelidade do povo.

As ideias de Josias marcariam para sempre a visão que temos de Deus. E mais ainda depois que esse rei acabou morto. Na geração dos filhos do monarca reformista, o reino de Judá seria riscado do mapa e Jerusalém, a capital, acabaria conquistada pela Babilônia. Mas a adversidade do povo teve o efeito oposto em sua fé. No mundo mitológico, Javé se fortalecia como nunca. Com a nação agora indefesa militarmente, era a hora de reafirmar que o deus da nação, ao menos, era todo-poderoso. Nisso os profetas israelistas diziam que só Javé tinha existência, vida e poder; os outros deuses eram meras imagens de pedra, metal ou madeira.

Era nada menos que a inauguração do monoteísmo: um momento tão importante na história da espiritualidade quanto a adoção do cristianismo como religião oficial do Império Romano seria bem mais tarde. E era esse Javé único que iria para a Bíblia. E se tornaria a imagem de Deus no mundo ocidental.

Um Deus, agora, não só dos israelitas. Mas da humanidade inteira. O Deus que criou o mundo, que fez o homem à sua imagem e semelhança. E que, de certa forma, era a imagem e semelhança do Javé pré-Bíblia: o Deus guerreiro, militar, que pune com rigidez os erros de seus adoradores. 

O Velho Testamento está recheado de castigos divinos: dos mais leves, como transformar o fiel Jó, um milionário, em um mendigo, como um teste para sua fé, até o dilúvio universal - praticamente um restart no mundo depois de ter concluído que a humanidade não tinha mais jeito. A justificativa para tal comportamento está na própria história de Israel. A ideia era acreditar que os maus bocados pelos quais a nação passou nas mãos de assírios e babilônios eram provações divinas, que, se o povo mantivesse sua fé, tudo acabaria bem.

Mas Deus surge na Bíblia como algo mais complexo que um mero feitor. Usando os paralelos deste texto, seria como se Ele tivesse amadurecido depois que Josias e os profetas o aclamam Deus único. Javé fica menos humano, menos falível. Passa a ser uma entidade transcendental de fato. Começa a afirmar aos seres humanos que "os meus caminhos não são os seus caminhos" - a ideia hoje familiar de que Deus escreve certo por linhas tortas.

Mas o caráter divino só se completaria mesmo no século 1. O primeiro século depois de seu filho, quando o Novo Testamento foi escrito. É a metamorfose mais radical do guerreiro Javé. Encarnado na figura de Jesus, Deus apresenta uma nova solução para a humanidade. Em vez de castigar ou destruir os homens mais uma vez, decide purgar os pecados dos mortais com outro sacrifício: o Dele próprio. Morre o corpo do Deus encarnado, não o espírito divino. Este, agora mais sereno, continuou zelando por nós. E assim será. Até o fim dos tempos. E acaba assim a nossa história, certo?


Claro que não. A saga de Javé é só um dos reflexos de uma epopeia maior: a da humanidade buscando um sentido para a existência. Nesse aspecto, continuamos tão perdidos quanto os antigos que não sabiam por que o trovão trovejava ou o que as estrelas faziam pregadas no céu. Ainda não sabemos por que estamos aqui. E a única certeza é que vamos continuar buscando respostas. Seja o que Deus quiser.

Único
Javé chega ao auge conhecendo cada detalhe do passado e do futuro. Sua figura lembra El. Mas agora Ele está só.



Para saber mais
The Early History of God
Mark Smith, Wm. B. Eerdmans Publishing.

Deus, uma Biografia
Jack Miles, Companhia das Letras.




sábado, 2 de março de 2013

PALESTRA PROFERIDA POR SAM HARRIS




Bem, é uma grande honra está aqui.

Parece que eu e meus colegas Christopher e Dan, estamos aqui para argumentar contra Deus, no estado que acabo de saber que é o mais religioso de seu país.

Estou encorajado pelo número de mãos levantadas.

Só quero garantir para os que estão aqui, que forem religiosos, que nossa intenção não é ofendê-los nesta manhã.

Contudo, vou pagar sua hospitalidade dizendo exatamente o que penso sobre religião.

Sou alguém que passou os últimos dois anos criticando a fé religiosa.

Eu me familiarizei bastante no modo como pessoas de fé defendem seus Deus.

Na verdade não existe muitas maneiras de se fazer isso. Parece haver somente três.

Ou você argumenta que uma religião específica é verdadeira, ou você argumenta que ela é útil, ou você ataca o ateísmo como intolerante, ou ainda que corrói valores humanos.

A única linha de argumento que a valida a esse debate ou na verdade qualquer debate, sobre a validação da religião, é o argumento que a religião é verdadeira, e não se uma religião específica é verdadeira, porque obviamente todas não podem ser verdadeiras.

Nosso oponente aqui representam duas fés diferentes e mutuamente incompatíveis.

Jesus foi o Messias?

O rabino Dinesh, provavelmente não vai concordar nesse ponto.

Como Bertrand Roussel apontou há mais de 100 anos, mesmo que soubéssemos que uma religião era verdadeira, perfeitamente verdadeira, pela multiplicidade dos fiés, dada a sua incompatibilidade mútua, todos os crentes, deveriam esperar a danação eterna, simplesmente como questão de probabilidade.

Antes que eu me aprofunde na questão de verdades religiosas, eu quero ilustrar quão confusa a pessoa deve ser para argumentar que é razoável acreditar em Deus, porque a religião é útil, ou porque dá sentido a vida, ou porque faz as pessoas moralmente mais corretas do que seriam sem ela, como o rabino sugeriu, ou porque fazem essas pessoas mais felizes, enfim qualquer benefício que você possa imaginar da religião.

Imagine que você está andando na rua e encontre um velho amigo.

Ele parece extremamente feliz e você perguntas quais as novidades. E ele lhe diz que tudo mudou na vida dele, no dia em que percebeu que estava destinado a casar com Angelina Jolie.

Pode ocorrer a você perguntar o porque ele acredita nisso. Afinal Angelina Julie é uma das mais famosas e bela mulher do planeta, não por acaso ela é casada com Brad Pitt, e eles tem algo em torno de 27 filhos a essa altura.

E se o seu amigo, sentindo seu ceticismo, dissesse “você não entende, essa crença da sentido a minha vida. Eu sei que meu propósito de vida é ser marido de Angelina Jolie”.

Se seu amigo dissesse “essa crença me faz uma pessoa melhor, eu sou agora incrivelmente gentil com crianças”, antecipando que terá que criar os filhos de Angelina quando Brad for embora.

E se seu amigo dissesse “você pode acreditar no que quiser, mas eu não quero viver em um universo em que eu não me case com Angelina Jolie”.

Deve ser muito claro a esse ponto, que seu amigo perdeu o juízo. Ele é provavelmente uma pessoa perigosa e esse é precisamente o tipo de conversa que passa por conhecimento em círculos religiosos e pode tentar passar por conhecimento aqui.

Certamente o argumento da moralidade é desse tipo.

Crenças não são como vestuário. Conforto, utilidade e beleza, não podem ser nossos critérios conscientes para adotá-la.

Para acreditar numa proposição, você tem que crer que há boas razões para acreditar. E o efeito que essa crença vai ter na sua vida não pode está entre essas razões.


E isso que é ter o julgamento turvado por um viés.

É por isso que temos expressões como “wyshfull thinking” e “self Deception”.

Acreditar que há um Deus e também acreditar que você tem tal relação com sua existência, que se ele não existisse você não acreditaria.

Como a suposta utilidade da religião se encaixaria nesse esquema?

Não se encaixa!



Reornemos à questão da verdade. É muito comum as pessoas dizerem que não há conflito entre religião e ciência, porque elas se relacionam com assuntos diferentes. E isso é uma mentira.

Religião e ciência ambas fazem afirmações sobre como o mundo é. E fazem afirmações incompatíveis sobre a realidade e elas fazem tais afirmações baseadas em padrões muito diferentes de evidências e maneira de argumentar.

Deveria se muito claro que há um conflito, um conflito perfeito entre exigir boas evidências para o que você acredita e estar satisfeito com uma evidência ruim, ou com nenhuma evidência.

Então religião e ciência conflitam porque não há como separar as verdades de ambas.

A afirmação de que Jesus nasceu de uma virgem, é a afirmação central do cristianismo, e também é uma afirmação sobre biologia. A afirmação de que ele ressuscitou dos mortos, é uma afirmação sobre história. E é uma afirmação sobre sobrevivência humana à morte. É aparentemente uma afirmação sobre o voou humano sem a ajuda da tecnologia.

Judeus, cristãos e muçulmanos, discordam de muitas coisas, mas todos concordam que no dia do juízo final, toda pessoa que já viveu vai ressuscitar fisicamente.


Quais leis da física isso violaria?

Nós sentimos tentados a dizer todas!

Se as afirmações básicas das religiões são verdadeiras, a ciência é tão cega para essa realidade oculta, e as leis da natureza não são suscetíveis a essas modificações sobrenaturais, que torna toda empreitada da ciência ridícula.

Se, por outro lado, as afirmações básicas das religiões são falsas, a maioria das pessoas desse planeta está profundamente confusa sobre a natureza da realidade. E envolvidos por medos e esperanças irracionais.

E muitas pessoas desperdiçam suas vidas e espalham essa ilusão, na maioria das vezes com resultados trágicos. Parece-me que nenhuma pessoa que pense pode ficar indiferente entre os dois lados dessa dicotomia.

Costuma se a imaginar que descrente como eu, deve está, em princípio, fechado a vida espiritual.

Isso não é verdade, você pode ter uma vida ética e espiritual profunda, sem mentir para si mesmo, ou a seus filhos, sobre a natureza da realidade.

Sem fingir saber coisa que você não sabe. Não há nada que impeça um descrente de experimentar o êxtase e o amor transcendente, arrebatamento e admiração.

Na verdade não há nada que impeça um descrente de ir a uma caverna e praticar meditação, por um ano como os místicos.

O que os descrentes não costumam fazer são afirmações injustificadas e injustificáveis, sobre a natureza do cosmo e sobre a origem divina de certos livros, na base dessas experiências.

Essa é uma diferença que faz notar.

Eu quero sugerir, que o quer que seja verdade sobre nossas circunstâncias em termo de ética e espiritualidade pode ser descoberto agora e pode ser ensinado numa linguagem compatível com nosso crescente entendimento científico do mundo e da mente humana.

Quaisquer descobertas que ainda estão para ser feitas para maximizar o bem-estar humano, podem ser discutidas em uma linguagem que não é completa afronta a tudo que aprendemos nos últimos 2000 anos.

E se filiar uma religião da Idade do Ferro, como cristianismo, judaísmo e islamismo, é fazer uma afirmação tácita de que isso é impossível, e que não há, de fato, uma maneira de entender nossas circunstâncias, usando as ferramentas do nosso entendimento moderno do mundo.

E que algumas medidas de superstição é necessária, alguma medida dessa mitologia, e que nós temos que mentir um pouco. A questão é que podemos depositar nossa confiança apenas num diálogo humano. E a questão é você quer depositar em um diálogo do século XXI, onde temos toda a literatura e ensinamentos do mundo disponíveis, ou você quer depositar num diálogo do século do século I ou século VII, como preservado em um dos nossos livros sagrados?



Muito obrigado.



Sam Harris