terça-feira, 8 de setembro de 2015

AS HERESIAS ANTIGAS

O que é uma heresia?

"Um cínico poderia definir a heresia como a opinião expressa por um grupo minoritário que uma maioria suficientemente poderosa para poder puni-lo considera inaceitável [...] Deus [...] está do lado da maioria: a ortodoxia, pode-se acrescentar, é aquilo que dizem Dele [de Deus]."1

O significado que hoje damos ao termo "heresia", ou seja, "opinião errada", é uma inovação tipicamente cristã. O primeiro a usá-lo com esta acepção foi o apóstolo Paulo, em Gaiatas, 5, 20.

O termo "heresia" deriva do grego hàiresis, "escolha",2 e designava aqueles que pertenciam a uma escola filosófica por escolha. Hereges eram, portanto, os estóicos, os céticos, os epicuristas, mas também, no mundo hebraico, os fariseus, os saduceus e os essênios.3

A Igreja, desde o início, prestava uma atenção doentia à terminologia religiosa. Muitos eram os que se sentiam os únicos depositários da verdade. E, assim, um termo que indicava a pluralidade das escolas de pensamento assumiu o significado negativo que conhecemos hoje.

Mas não é fácil manter uma verdade. Durante a história, houve contínuas revisões e correções. Uma afirmação declarada herética por um concilio era derrubada por outro e vice-versa. O exemplo mais conhecido talvez seja o de Joana d'Arc, queimada na fogueira em 1431 e santificada em 1920. O bispo Teodoro de Mopsuéstia, que morreu em 428 em paz com a Igreja, foi declarado herege e condenado 125 anos depois de sua morte. Os bispos Estêvão, de Roma (254-257), e Cipriano, de Cartago (248-258), ferrenhos adversários sobre questões doutrinárias quando em vida, são ambos venerados como santos.


Argumentos religiosos que custaram milhares de mortos    

Os primeiros séculos do cristianismo registram disputas intermináveis para estabelecer se Cristo era "da mesma substância do Pai" ou apenas "muito parecido", ou quantas naturezas coexistiam em Jesus Cristo. Disputas essa nas quais as opiniões consideradas equivocadas não eram apenas um erro, mas um pecado. Quem se obstinava em defender as próprias opiniões cometia um crime atroz, digno de uma pena severa.

Sobretudo quando o cristianismo se tornou religião de Estado, os "perdedores" nas disputas teológicas podiam ser punidos com o exílio, a tortura e a morte, a menos que se transformassem em perseguidores, quando o vento soprava a seu favor.

As tentativas de impor à força a "doutrina verdadeira" a populações inteiras podiam ensejar rebeliões, vinganças, massacres e guerras.

Mas divergências teológicas acerca da Trindade justificam conflitos que duraram séculos e fizeram milhares de mortos? Quantos dos participantes do Concilio de Nicéia, por exemplo, tinham real capacidade de compreender todas as nuances filosóficas do embate entre arianos e trinitários? Com certeza, os primeiros pensadores cristãos se encontravam diante de problemas teóricos nada pequenos: precisavam conciliar o rígido monoteísmo herdado dos judeus com sua fé em Deus feito homem, sem se confundir nem com as tradicionais mitologias pagãs (lembremos das transformações de Júpiter), nem com os cultos místicos concorrentes e as doutrinas agnósticas, segundo as quais cada homem que ultrapasse um determinado percurso iniciático pode se tornar deus.

Os bispos não pagam impostos

Mas havia questões doutrinárias que diziam respeito a elementos de importância concreta para a vida quotidiana das primeiras comunidades cristãs: por exemplo, era preciso definir se os fiéis que haviam renunciado à fé nas perseguições deveriam ser readmitidos ou se os sacramentos celebrados por sacerdotes indignos deveriam ser validados.

E, naturalmente, havia também os bastante concretos interesses materiais das nascentes elites cristãs.

Pouco mais de cem anos após a suposta morte de Jesus, já existiam movimentos que lamentavam a corrupção e a decadência da Igreja, como os montanistas. Estes pertenciam a um movimento que nascera na Frígia no século II. Eles se consideravam puros, privilegiavam a relação direta com o Espírito, e as mulheres figuravam em primeiro plano. O próprio Montano, em sua missão, era ladeado por duas mulheres: Priscila e Maximília. 

Os montanistas foram perseguidos por séculos.4

Constantino, que transformou os bispos em funcionários do Império e lhes isentou do pagamento de impostos, apenas acelerou uma tendência já em curso no próprio corpo de Igreja. Os bispos há muito tinham deixado de ser simples porta-vozes das comunidades cristãs eleitos pelas Igrejas, ou seja, pelas assembleias de fiéis, tornando-se verdadeiros senhores que administravam a seu bel-prazer os bens da Igreja, ordenavam o clero menor de acordo com as próprias conveniências e, muitas vezes, "transmitiam" seu título aos filhos e irmãos. O cargo de bispo acabou se tornando muito desejado por membros das famílias abastadas.5

Apesar das disposições contrárias do Concilio de Nicéia, alguns homens foram nomeados bispos antes mesmo de serem batizados, como o filósofo neoplatônico (adepto de uma corrente de pensamento incompatível com o cristianismo) Sinésio de Cirene. O próprio Santo Ambrósio, já funcionário imperial, foi nomeado bispo poucos dias depois de ser batizado.6

Quando o cristianismo se tornou religião de Estado, as acusações de heresia e as disputas teológicas se tornaram pretextos para jogos de poder nos quais a aposta era muito terrena: o controle de dioceses "ricas", o monopólio de recursos e matérias-primas importantes, a eliminação de rivais e adversários, e a divisão dos postos nas cortes imperiais.

Por vezes, de maneira ainda mais perversa, quem acreditava de maneira fanática na própria verdade podia usar o poder e a influência de que dispunha para impô-la aos outros. Alexandre, bispo de Alexandria, por exemplo, foi acusado de sabotar as provisões de trigo em Constantinopla para levar o imperador a assumir uma posição decisiva contra o arianismo.7

No espaço e no tempo, a mesma doutrina daria cobertura a projetos políticos bem diferentes entre si. Dentre os seguidores de Ário, estavam imperadores romanos que perseguiam os rebeldes e o rei godo Totila, libertador dos escravos.

Vários imperadores bizantinos aderiram à doutrina monofisista, mas muitos outros incentivaram rebeliões populares contra a autoridade de Constantinopla. E as aparentes contradições poderiam continuar.
                         
Naturalmente, a muito complexa aventura do cristianismo não se explica apenas com fatores políticos, sociais e econômicos; há também elementos imponderáveis do ponto de vista racional.

Em épocas de grande taxa de analfabetismo, quando não existiam telecomunicações e as pessoas se locomoviam no lombo de um burro por estradas mal conservadas, um único pregador dotado de coragem e energia podia conseguir, com seu carisma e eloqüência, a conversão de populações inteiras.

Quando as teses de Lutero se difundiram no norte da Europa, muitos países as acolheram, conservando, no entanto, costumes católicos, como a confissão, que eram totalmente estranhos à doutrina luterana.

É provável que os bravos cristãos suecos e islandeses não se importassem com as divergências teóricas, que só quisessem ter ao seu lado padres que falassem sua língua, que fossem capazes de lhes explicar as Escrituras, que pregassem a moralidade sendo os primeiros a dar bom exemplo e não os dessangrassem com dízimos.


Começa a caça aos hereges

Talvez o primeiro caso de controvérsia religiosa dirimida por intermédio da lei tenha sido o de Paulo de Samósata, bispo de Antioquia (260-272). Ele era um monarquianista, ou seja, seguidor das doutrinas que não reconheciam a trindade de Deus.

Um sínodo de bispos convocado em 268 condenou suas doutrinas e o depôs. Em seguida, os bispos pediram ao imperador  Aureliano que executasse suas decisões, estabelecendo, assim, o perigoso precedente da intervenção do poder temporal nas questões eclesiásticas. Tudo isso acontecia em uma época em que os cristãos ainda eram periodicamente perseguidos.

O imperador decretou a deposição de Paulo, que continuou em seu posto graças aos favores de Zenóbia, rainha de Palmira, sob cuja influência se encontrava a diocese de Antioquia, que impusera uma política anti-romana.   '

Só em 272, quando o exército de Zenóbia foi derrotado pelo do imperador Aureliano, Paulo precisou abandonar sua cadeira.8


O arianismo depois de Constantino

O Concilio de Sárdica (Sofia), em 343, que se encerrou com a reiteração do que foi deliberado em Nicéia, foi abandonado pelos bispos orientais, que organizaram um contraconcílio em Filipópolis.

Em Constantinopla, durante o episcopado de João Crisóstomo (345-407), irromperam-se violentos conflitos entre arianos e niceianos 9  que deixaram um saldo de vários mortos.

Em 353, Constâncio II, único imperador, impôs as doutrinas filo-arianas em todo o território do Império. Os arianos, então, passaram a defender a tese de que a Igreja deveria se submeter ao Estado, enquanto os niceianos lutavam por autonomia.

Em 357, o bispo ortodoxo Ósio, já centenário, foi obrigado, por meio de tortura, a subscrever as teses arianas do Concilio de Sírmio.

Em 361, com a ascensão ao trono de Juliano, o Apóstata, que tentou restaurar o paganismo, foi dada anistia geral a todos os cristãos perseguidos acusados de heresia, provavelmente emitida com o objetivo de enfraquecer o cristianismo.

O imperador Teodósio I, que subiu ao trono em 378, logo condenou as doutrinas arianas nos territórios do Oriente. No Ocidente, entretanto, onde de fato reinava a ariana Justina, a tolerância foi garantida.

Em 386, o bispo de Milão, Ambrósio, após negar a Justina a cessão de uma igreja para realizar o culto ariano, organizou uma vigília em sua própria basílica para defendê-la dos ataques dos emissários imperiais.

Os próprios arianos, por sua vez, estavam divididos em várias correntes. Em 362, em Antioquia, havia cinco comunidades cristãs separadas, cada qual com seu próprio bispo e hostil às demais. Quando Teodósio ampliou seus domínios aos territórios ocidentais, o arianismo foi banido por completo do território do Império, e o cristianismo niceiano se tornou a religião oficial do mundo romano.

Naturalmente, o decreto não significou a extinção automática da heresia ariana, que sofreria, mais de um século depois, perseguições por parte de Justino e, depois, de Justiniano.10

O cristianismo, em sua versão ariana, foi difundido entre os povos "bárbaros" do norte graças às preleções de Áudio, bispo de vida exemplar, e, sobretudo, de Wulfila (345-407), o bispo que, por volta de 375, traduziu para o godo o Antigo e o Novo Testamentos.

Foi graças a essa tradução que a crença ariana conseguiu se difundir entre os visigodos, os ostrogodos, os suevos, os vândalos, os burgúndios e os lombardos.

"Ao contrário dos povos que viviam na Itália e que praticamente não se expressavam em latim, os bárbaros tinham a grande vantagem de aprender o Evangelho em sua língua falada. Os godos, assim, estavam mil anos à frentede Martinho Lutero."11

Em 525, o rei ostrogodo Teodorico interveio em defesa dos arianos de Constantinopla, oprimidos pelo imperador Justino. Para tanto, enviou à cidade um embaixador extraordinário, o papa João I, obrigado a apresentar ao imperador suas solicitações. Como o papa voltou a Roma no ano seguinte sem nada ter conseguido, Teodorico mandou prendê-lo, e João I morreu poucos dias depois.12

É óbvio que muitas vezes os soberanos arianos perseguiam os niceianos. Por exemplo, durante a dominação dos vândalos na África, estes sofreram vários tormentos. O auge foi no período entre 483 e 484, quando uma lei obrigou todos os católicos do reino vandálico a se converterem ao arianismo. Milhares de clérigos foram exilados no deserto junto com seus bispos. Muitos católicosforam condenados a torturas ou à pena de morte.'3

No entanto, até as populações bárbaras acabaram se convertendo ao catolicismo. No final do século VIII, o arianismo já havia desaparecido, e a crença niceiana triunfou como única Igreja verdadeira.     

                               
Os bispos pedem a cabeça dos hereges

É notório que os imperadores não eram muito sutis quando se tratava da eliminação dos dissidentes, mas, em determinado momento da história cristã, foram os próprios bispos que solicitaram a condenação à morte dos hereges.
O primeiro a sofrer as conseqüências do novo costume foi o bispo espanhol Prisciliano, em 385. Condenado e banido por dois concílios regionais, Prisciliano, que tinha um grande séquito popular, foi torturado e condenado pelo imperador Máximo, a pedido dos próprios bispos. Junto com ele, morreram seis de seus discípulos, dentre os quais uma mulher.

Na realidade, as acusações infundadas de heresia e a condenação à morte pareciam servir a propósitos essencialmente políticos.14 O episódio causou horror em vários prelados católicos que não concordavam com as heresias doutrinárias. O papa Sirício condenou as mortes.

O bispo Martino de Tours (321-401) excomungou todos os bispos que sujaram as mãos com aquele sangue. Só mais tarde aceitou se reconciliar com eles, a pedido do imperador, e apenas para salvar a vida de outros "priscilianistas" condenados à morte. Até mesmo o bispo Ambrósio, de Milão, recusou-se a ter contato com os bispos envolvidos na morte de Prisciliano.

Naquela época, "a consciência da Igreja ainda não estava acostumada a considerar o derramamento de sangue uma expressão do amor pregado por Jesus Cristo".15

O assassinato de Prisciliano não pôs fim ao movimento, pelo contrário. Seus seguidores passaram a venerá-lo como mártir, dando vida a um movimento "priscilianista" que duraria mais de um século.16


A heresia nestoriana e o concilio que terminou em rixa

O nestorianismo deve seu nome a Nestório, bispo de Constantinopla que, por volta de 428, contestou a qualidade de "Mãe de Deus" atribuída a Maria.17 Na época, o culto mariano já era muito difundido, e as teses de Nestório deram vida a verdadeiros tumultos. Contra ele se opôs com violência até mesmo Cirilo, bispo de Alexandria (diocese que lutava contra a de Constantinopla pelo controle do Oriente).

Em 431, o imperador Teodósio II convocou um concilio ecumênico em Éfeso para dirimir a questão.

Naquela época, viajar era muito difícil, e, por essa razão, os bispos chegaram em momentos diferentes. Primeiro, foram os adversários de Nestório, aproximadamente duzentos bispos liderados pelo de Alexandria, Cirilo. Decidiram dar logo início ao concilio, sem esperar os que apoiavam a parte contrária ou os enviados do papa. Nestório foi obrigado a se apresentar e, como se recusou a entrar antes que seus seguidores chegassem, teve de depor "in contumacia". O bispo de Éfeso, Mêmnon, chegou a incitar a multidão contra Nestório. Poucos dias depois, chegaram cerca de quarenta bispos nestorianos, guiados por João de Antioquia, que formaram um contraconcílio no qual declararam hereges e excomungaram Cirilo e Mêmnon.

Chegaram, então, os enviados do papa, que reabriram o concilio "oficial" e excomungaram João de Antioquia.

Os trabalhos do concilio se complicaram ainda mais com a intervenção de alguns funcionários imperiais, as tentativas de corrupção e os embates populares entre partidários das duas facções. No final, o imperador Teodósio II encerrou a assembléia criticando duramente os participantes e exilou tanto Nestório quanto Cirilo.18

Derrotado no território imperial, o cristianismo nestoriano difundiu-se na Ásia, chegando à China, à índia e à Mongólia. Em 486, os cristãos da Pérsia adotaram as teses nestorianas e empreenderam uma feroz perseguição contra os católicos. Para o rei da Pérsia, era muito cômodo apoiar uma "Igreja nacional" que não dependesse de autoridades religiosas de um país adversário, como o bispo de Constantinopla.19


A heresia monofisista e o "latrocínio de Éfeso"

A doutrina monofisista deve seu nome ao grego monos, único, ephisis, natureza, e nasce como uma reação ao nestorianismo. Os monofisistas afirmavam que Jesus Cristo possuía uma única natureza divina e nenhuma natureza humana.

O líder da doutrina foi Eutiques, monge de Constantinopla que, por suas idéias, sofreu violentos ataques, sendo proibido de realizar os ritos sacerdotais. Graças a seus conhecimentos na corte imperial do Oriente, no entanto, suas doutrinas  ganharam o apoio do imperador Teodósio II, que, em 449, convocou um concilio ecumênico em Éfeso para discutir a questão.

A assembléia foi fortemente direcionada de modo a dar ganho de causa às teses mononsistas. As tropas imperiais se lançaram com força contra os adversários de Eutiques, que não tiveram permissão nem para tomar a palavra. Um documento enviado pelo papa nem foi lido, e até mesmo o remetente foi excomungado. O bispo de Alexandria, Flaviano, levou uma surra tão grande que morreu pouco tempo depois.

O papa Leão Magno deu ao evento o nome de "latrocínio de Éfeso".20

Naturalmente, foi apenas o início de uma longa história. Por várias vezes, em uma intrincada trama de complôs, homicídios, alianças entre facções, ascensões ao trono de imperadores anti ou pró-eutiquianos, os católicos e os monofisistas se revezaram nos papéis de perseguidores e perseguidos, de vítimas e carrascos.21

As perseguições não deteriam a propagação do monofisismo. Ao contrário, graças às preleções de Tiago ou Jacó Baradai, bispo de Edessa, em 542, e fundador da Igreja Jacobita, países como Egito e Síria deram vida a Igrejas nacionais próprias, em contraposição à autoridade imperial. Mas nem Tiago conseguiu impedir a cisão de sua própria Igreja. Por exemplo, em 556, a sede episcopal de Alexandria tinha cinco pretendentes: quatro monofisistas de diversas correntes e um católico.

A Igreja etíope é até hoje monofisista. No século XVI, a Igreja romana contou com os portugueses para levar a ortodoxia à Etiópia, mas a operação falhou em razão de uma forte reação nacionalista que causou a expulsão de todos os missionários e a ruptura das relações com Roma. Mais recentemente, a Itália fascista tentou impor o catolicismo às suas colônias, mas a Igreja etíope resistiu. Ainda hoje, no Egito, existem duas Igrejas monofisistas: a copta e a melquita. Na Síria e na Mesopotâmia, ainda existem jacobitas, e na Armênia se professa uma confissão monofisista.

Os paulicianos                                                  

Seita de provável origem maniqueísta ou agnóstica,22 que surgiu na Ásia Menor por volta do século VII Tinha essa designação por causa da peculiar veneração aos escritos de São Paulo.2'

Sua doutrina diferenciava claramente um Deus criador do espírito e um Deus senhor e criador da matéria. Os paulicianos negavam a Encarnação e consideravam Cristo um anjo de Deus. Aceitavam como textos sagrados apenas os Evangelhos e as Cartas de Paulo e recusavam os sacramentos, as imagens sagradas, a hierarquia eclesiástica e a vida monástica. Em vez da missa, celebravam o ágape (festa do amor).24

Os paulicianos também formavam um movimento de protesto político, social e de revolta contra o despotismo bizantino e búlgaro.


Sofreram várias perseguições por parte do Império Bizantino, que os condenou oficialmente em 687. Eles, então, se organizaram como Estado independente e empunharam armas em sua defesa, até a derrota militar definitiva, em 752. Mas a derrocada não significou o fim do movimento. Há provas de que foram perseguidos pelo Império de Constantinopla ainda em 840. Alguns deles acabaram se mudando para as terras do emir de Melitene e lutando entre os árabes.

Outro ramo do movimento, sediado na Trácia, teria sobrevivido até o século XIII e inspirado o movimento herético búlgaro dos bogomilos.


Os bogomilos

Movimento dualístico que surgiu nas primeiras décadas do século X e que ganhou este nome graças às profecias do padre búlgaro Bogomil.

Para os bogomilos, havia uma clara antítese entre Deus, criador do espírito, e o demônio, criador da matéria. Eles acreditavam nas mesmas teorias que os paulicianos e pregavam a igualdade social e o afastamento dos pobres do domínio do clero e da nobreza. O bogomilismo se difundiu nos séculos seguintes nos Bálcãs e até as fronteiras de Bizâncio. Fortemente perseguidos pelos soberanos búlgaros e pelos imperadores bizantinos, os bogomilos se espalharam por toda a Europa Central e Ocidental, onde foram alvo de repressão das autoridades católicas.25

Em 1203, o rei da França, Roberto, o Pio, a pedido da Igreja, mandou queimar na fogueira, em Orleans, uma dezena de hereges "maniqueístas", provavelmente bogomilos mais avançados ou, talvez, os primeiros cátaros.26 Um episódio análogo ocorreu em Milão por volta de 1208.27

Na Bósnia, o bogomilismo chegou a se tornar religião de Estado. Em 1203, no entanto, o soberano Kulin só conseguiu se manter no poder ao concordar em trocar a doutrina bogomilista pela católica romana e acatar a tutela húngara.28




Fontes

1.   David Christie-Murray, I percorsi delle heresie, Rusconi, Milão, 1998, p. 21.
2.   Até nos Atos dos Apóstolos 5,17 e 26,5, tais termos conservam seu significado original.
3.   É preciso lembrar, a esse respeito, que, no mundo judaico, era admitida uma divergência de opinião impensável nas futuras sociedades cristãs. Por exemplo, fariseus e saduceus discutiam de forma inflamada sobre uma questão importantíssima: se existia ou não ressurreição depois da morte. Mas nenhuma das duas facções se sentia no direito de excomungar a outra.
4.   Vide Apêndice.
5.   Ambrogio Donini, Storia del cristianesimo - dalle orígini a Giustiniano, Teti editore, Milão, p. 261.
6.   Ibid, p. 261.
7.   Ibid.
8.   David Christie-Murray, op. cit, p. 75.
9.   Com este termo, são designados os defensores das decisões do Primeiro Concilio de Nicéia.
10. Para uma história completa do arianismo, cf. David Christie-Murray, op. cit, p. 77-91; Ambrogio Donini, op. cit, p. 258-275.
11. Dario Fo, La vera storia di Ravenna, Franco Cosimo Panini Editore, Modena, p. 78.
12. Cronologia universal, UTET, Turim, 1979. Cf. também Ambrogio Donini, op. cit, p. 324.
13. AAW, Storia dei cristianesimo, vol. 3, Borla/Città Nuova, Roma, 2002, p. 256-257.
14. David Christie-Murray, op. cit, p. 128.
15. Ambrogio Donini, op. cit, p. 251.
16. Ibid, p. 251-252.
17. Vide Apêndice.
18. David Christie-Murray, op. cit, p. 102-103; Ambrogio Donini, op. cit, p. 318.
19. Ibid, p. 104-106. Para um aprofundamento sobre o nestorianismo, vide Apêndice.
20. David Christie-Murray, op. cit, p. 108-109.
21. Vide Apêndice.
22. Vide Apêndice.
23. Segundo outras fontes, porque se remetiam aos ensinamentos dos escritos de Paulo de Samosata.
24. David Christie-Murray, op. cit, p. 121.
25. Ambrogio Donini, op. cit
26. Vide Capítulo 7.
27. Vide parágrafo sobre os hereges de Monforte, no Capítulo 7, sobre as heresias medievais.
28. David Christie-Murray, op. cit, p. 121.

Saber Mais
O Que é Heresia




quarta-feira, 26 de agosto de 2015

CONSTANTINO E A IGREJA IMPERIAL





Discurso de Eusébio, um dos  300 bispos restantes dos 2.048  que foram expulsos do Concílio de Nicéia por não concordarem com a imposição do Imperador  por ocasião dos festejos de aniversário de Constantino, decidiu-se a apresentar na cerimônia uma teologia política para fixar qual era o papel do Imperador Constantino no universo do Cristianismo oficializado.

“É um novo Moisés!”, assegurou Eusébio à corte presente. Constantino, tal o patriarca judeu, salvara o monoteísmo das injurias do politeísmo. Assim, se o Reino do Céus é governado por um só Pai, o mundo terreno o é por César. Ele é o lugar-tenente de Deus de quem recebeu, pela intermediação de Cristo, a função de assegurar na terra “o plano de Deus para os homens”.

Designando-o como “pastor, pacificador, mestre, médico das almas e pai”, Eusébio, em êxtase, chamou-o de “amigo e predileto de Deus”(Laud. Constant., 5; 7,12).



Vejamos pois quem era o Imperador Romano Constantino.


Constantino nasce em Mesia (a atual Sérvia), por volta de 274. Seu pai, Constâncio Cloro, era um oficial de carreira; sua mãe, Flávia Helena, concubina de Constâncio, era uma albergueira, ou seja, uma subserviente funcionária da estalagem da estação postal.

Constâncio Cloro depois repudiou Helena para se casar com Teodora, filha do imperador Maximiliano, e, no ano de 293, entrou na tetrarquia (governo de quatro) criada por Diocleciano, primeiro com o título de "césar" (vice-imperador), e, em seguida, em 305, com o de "augusto" (imperador pleno).1

Constantino participou de várias campanhas militares durante os anos de juventude, primeiro a serviço de Diocleciano, depois de Galério e, finalmente, de seu pai.

Quando Constâncio morreu, em 306, os soldados aclamaram Constantino "augusto", desobedecendo as disposições emanadas de Diocleciano,2 dando um verdadeiro golpe de Estado. Seguiram-se seis anos de guerra civil entre os vários pretendentes ao título de imperador, entremeada por lutas travadas para levar os bárbaros até as fronteiras.

Para consolidar seu poder, Constantino desposou Fausta, filha de Maximiliano, estabelecendo com ele uma aliança para reinarem juntos no Ocidente. Mas o casamento e o pacto não o impediram de atacar e matar Maximiliano em 310.

No mesmo ano, de acordo com um escrito comemorativo da época, Constantino visitou um templo de Apolo, na Gália, onde o próprio deus apareceu e colocou nele uma coroa de louros.3 O mesmo escrito cria uma genealogia que estabelecia que Constâncio, pai de Constantino, não era homem de origem humilde, mas filho do imperador Cláudio II.

Em 311, os pretendentes ao título de "augusto" eram quatro: Constantino e Magêncio, filho de Maximiliano, no Ocidente, e Valério Licínio e Maximino Daia no Oriente. Constantino se aliou a Licínio, concedendo-lhe a mão de sua irmã, Constância, e marchou rumo à Itália contra Magêncio. Em 312, naquela que é lembrada como a Batalha da Ponte Mílvio, mas que na verdade se iniciou em Saxa Rubia, Constantino derrotou Magêncio, que morreu durante a retirada, tornando-se, assim, único senhor do Ocidente. Em 313, ele e Licínio promulgaram o Edito de Milão, que assegurava liberdade de culto aos cristãos e transformava o cristianismo em uma das religiões oficiais do Império Romano. Iniciava-se o processo de integração dos cristãos à sociedade romana e à organização do Estado.

A liberdade de culto dada aos cristãos seria o pretexto para a luta pelo controle do Oriente entre Maximino (perseguidor dos cristãos) e Licínio (que, mesmo não sendo batizado, agia como defensor dos cristãos). A guerra no Oriente se encerra com a vitória definitiva de Licínio e o suicídio de Maximino.

Em 314, Constantino convocou o Concilio de Aries, que condenou definitivamente a heresia donatista (um movimento cristão de rigor excessivo que, em 311, em Cartago, elegeu um bispo alternativo àquele oficial e apoiado por Constantino) e permitiu que os cristãos ocupassem cargos públicos, o que até então era considerado pecado.4

Em seguida, abafou violentamente o protesto dos agonistas, ou circunceliões, que, por trás de motivações religiosas, escondia uma verdadeira guerra de classes.

No mesmo ano, Licínio se revoltou contra Constantino. Surgiu, assim, uma guerra que teve Constantino como vencedor. Compelido à rendição, Licínio foi obrigado a lhe ceder quase todas as províncias orientais, mantendo apenas a Trácia.

Em 323-324, Licínio se rebelou novamente e de novo foi derrotado. Dessa vez, foi preso e morto, apesar das súplicas feitas por Constância ao irmão Constantino. A partir de então, desaparece qualquer resíduo da tetrarquia criada por Diocleciano, e Constantino domina como um monarca todo o Império Romano.

Em 325, acontece o famoso Concilio de Nicéia, o primeiro concilio ecumênico da Igreja Católica. Dele participaram cerca de trezentos bispos e prelados, na maioria orientais, sendo presidido por Osio, um homem de confiança do imperador. As principais questões abordadas foram o dogma da Trindade, a reafirmação da origem divina de Cristo e a condenação à heresia ariana.

Em 326, Constantino manda matar seu filho preferido, o primogênito Crispo (concebido com uma concubina), e, em seguida, a mulher Fausta. Segundo diz a lenda, Fausta teria acusado falsamente o enteado de assediá-la, e Constantino só teria descoberto a verdade depois.

No mesmo ano, condenou à morte também Liciniano, filho de sua irmã Constância e de Licínio.

Em 330, Constantino transferiu a capital para a cidade grega de Bizâncio, rebatizada de Constantinopla, após ser ampliada e reconstruída. Décadas antes, os imperadores romanos já tinham transferido o centro de comando para fora de Roma, por motivos logísticos e militares. Constantino fez algo a mais: criou uma segunda Roma, com o mesmo número de palácios, um Senado e benefícios iguais aos dos cidadãos romanos para seus habitantes (como a distribuição gratuita de trigo). Talvez Constantino se sentisse mais seguro e protegido no Oriente, prevalentemente cristão, do que em Roma, onde o grupo de senadores hostis a ele ainda tinha muito poder e influência, e quisesse que seus sucessores governassem o Império a partir de uma nova capital, "livre" dos antigos ranços.

Constantino morreu em 337. Só foi batizado à beira da morte, por um bispo ariano.

A Igreja Ortodoxa Grega até hoje o venera como santo.

Pouco depois de sua morte, foram eliminados seus meios-irmãos Dalmácio e Anibaliano, e o Império foi dividido entre seus três filhos legítimos: Constantino II, Constâncio II e Constante.

Constantino II foi assassinado em 340, em uma emboscada, pouco depois de tentar usurpar os domínios do irmão Constante, que, por sua vez, foi morto alguns anos depois, por um matador do usurpador Magêncio.

Constâncio II morre de febre em 346, na véspera de um combate contra o sobrinho e rival Juliano.


O cristianismo de Constantino.

Segundo a tradição, na véspera da Batalha de Ponte Mílvio, Constantino teve uma visão (ou talvez um sonho profético), durante a qual recebeu um brasão milagroso e a ordem celeste de reproduzi-lo nos escudos, para obter a vitória. Esse brasão, dependendo da fonte, poderia ser um "X ao contrário, com as pontas dobradas" ou as iniciais gregas do nome de Cristo, x (chi) e p (ro), entrecruzadas.

Muitos historiadores colocaram em dúvida ou redimensionaram a veracidade do episódio. Talvez os soldados de Constantino, provenientes da Gália, usassem um símbolo solar no escudo, que poderia ser confundido com a cruz cristã;5 ou Constantino pode ter mandado gravar o monograma apenas para distinguir suas tropas das de Magêncio.6

Com certeza, Constantino, na época, já travara contato com ambientes cristãos. Por exemplo, o bispo Osio, de Córdoba, já fazia parte de seu séquito.

É possível imaginar que Constantino tenha aproveitado a ocasião para testar a eficácia da nova religião e, tendo visto que funcionava,, decidido adotá-la, transformando o Deus dos cristãos em seu protetor pessoal.

Em seguida, Constantino concedeu crescentes favores, financiamentos e reconhecimentos ao culto cristão. Os bispos, por exemplo, foram isentos do pagamento dos impostos, tornaram-se funcionários imperiais e até juízes de apelação.7 Em troca, obteve uma ingerência cada vez maior nos assuntos internos da Igreja, da qual se considerava "bispo externo".

Ao mesmo tempo, ele assegurou por muitos anos, pelo menos aparentemente, a prática dos tradicionais cultos romanos: assumiu o encargo de "Pontífice Máximo", ou seja, grande sacerdote do culto politeísta romano; aceitou a realização de jogos e sacrifícios aos deuses em sua homenagem; mandou cunhar moedas com a imagem do Sol Invictus, o Sol Invicto; e tornou feriado o Dies Solis, o Dia do Sol, nosso "domingo". O Sol Invicto era uma divindade adorada por muitos povos do Império e pelo próprio Constantino, antes da conversão.8 Ao mesmo tempo, entretanto, a esfera solar podia ser considerada um símbolo do Deus dos cristãos e de outras religiões monoteístas do Império.

Outro sinal do empenho de Constantino foi a promulgação de leis morais muito rígidas. Um exemplo é a seguinte, emanada em 320.

O homem que tomar uma moça, com ou sem seu consentimento, sem antes ter estabelecido um acordo com seus progenitores [...] não terá na resposta da moça nenhuma vantagem dada pelo direito antigo, e a própria moça será considerada culpada de cumplicidade no delito. E como muitas vezes a vigilância dos pais é burlada pelos discursos e comportamentos cativantes das nutrizes, que sobre elas [...] recaia a ameaça do seguinte castigo: a abertura de sua boca e de sua garganta, que emitiram sugestões arrasadoras, será fechada com a ingestão de chumbo derretido. Se for verificado o consentimento voluntário da virgem, que esta seja punida com a mesma rigidez que seu raptor, e não será concedida imunidade nem às moças que forem raptadas contra sua vontade, pois poderiam ter permanecido em casa até o dia do casamento, e se a porta houver sido arrombada pela audácia do raptor, estas poderiam ter pedido ajuda aos vizinhos com seus gritos e se defendido a todo custo. Mas, para estas moças, cominamos uma pena mais leve e ordenamos que sejam deserdadas por seus progenitores [...] Se os progenitores, para quem a vingança pelo crime deveria ser uma preocupação particular, mostrarem tolerância e reprimirem sua dor, serão castigados com a deportação.9

Os historiadores contemporâneos garantem que a adesão ao cristianismo de Constantino foi convicta e sincera, e é provável que seja verdade, se levarmos em consideração que as concessões religiosas de um oficial romano da época eram bem diferentes das nossas: "...a função do imperador é a de se colocar como sujeito coletivo que represente toda a cidade e todo o mundo (orbis), na qualidade de Imperator orbis. De fato, o primeiro encargo que Augusto reserva a si mesmo é o de Pontifex Maximus, representante junto à divindade que constitui o pacto da aliança [...] E isso continua em vigor até Constantino. Roma, portanto, através de seus sacerdotes, de seus institutos, de seus colégios coletivamente representados pelo imperador, pede à divindade três coisas:

1. a fertilidade das mulheres (tanto mães quanto Mulheres, pois, para os romanos, havia pouca distinção);
2. a vitória dos exércitos;
3. a paz social.

Em troca, ofereciam o culto às divindades.

O direito penal romano tem penas atrozes para os transgressores do culto, pois desrespeitar o culto significava desrespeitar o pacto [...] e a conseqüência da chama apagada pela não-observância de uma vestal era a infertilidade das mulheres, a derrota do exército e a desordem social. Esse é o esquema com base em que Roma age da República até Constantino. Constantino, quando proclama o Edito de Milão, realiza uma operação muito simples: como os velhos deuses não funcionavam mais, pensa em substituir o velho Panteão pelo deus dos cristãos, e, ao perceber que o motor volta a funcionar a pleno vapor e se converte [...] Constantino continua pagão, ou seja, ligado à mentalidade religiosa clássica, até sua morte."10


O primeiro Concílio de Nicéia e as heresias

Por volta de 314, ao menos dois grandes movimentos heréticos surgidos no norte da África, onde se encontravam as comunidades cristãs mais numerosas e ricas do Império, preocupavam Constantino.

O primeiro foi o cisma dos donatistas, um movimento rigorista, contrário aos compromissos com o poder imperial, que contava com muitos prosélitos e que, em 311, chegou a eleger em Cartago um antibispo, em contraposição ao legítimo.

Constantino, após tentar uma mediação, acabou apoiando o bispo legítimo Ceciliano, subvencionando a Igreja "oficial", proibindo que os donatistas usassem os locais de culto e negando o asilo para alguns de seus líderes. Em seguida, seu filho Constante promoveu uma perseguição ainda mais cruel e sanguinária contra eles.11

O outro movimento era muito mais perigoso: tratava-se dos agostinianos, um verdadeiro exército de guerreiros em nome de Cristo.

Os agostinianos eram expoentes de classes populares com reivindicações políticas e sociais, como a libertação dos escravos, o perdão das dívidas e o fim dos usurários.

Eles se organizavam em batalhões armados que realizavam incursões avassaladoras nas grandes propriedades, incendiando casas e matando as famílias dos latifundiários mais odiados.

Foram massacrados pelas tropas imperiais.

Na época de Constantino, outra grande disputa dividia o cristianismo. Principalmente no Oriente, os cristãos haviam se dividido entre partidários e adversários de Ário, um presbítero da diocese de Alexandria.

Ário e seus seguidores afirmavam que o Filho de Deus, ao contrário do Pai e tendo sido por Ele criado, teve um início; portanto, Cristo representava uma divindade de segundo plano. Foi para resolver essa questão que Constantino convocou, em 325, em Nicéia (na antiga Turquia), aquele que ficou na história como o primeiro concilio geral da Igreja Católica. Dele participaram mais de 300 bispos e prelados, com exceção do bispo de Roma, que mandou dois representantes.

As conclusões desse primeiro concilio foram muito importantes para a história da Igreja. A grande maioria dos padres aprovou um Credo, no qual se afirmava que o Filho fora gerado, e não criado, com a mesma substância do Pai (em grego, homooüsion, quando, para os arianos, era apenas homoioúsion, ou seja, "de substância similar"). Pela primeira vez, foi proclamado dogma, ou seja, verdade revelada, um termo que não estava contido nas Escrituras (em nenhuma passagem, o Novo ou o Antigo Testamento afirmam que o Filho é consubstancial ao Pai).

Além disso, os Padres Conciliares declararam sua crença no Espírito Santo, tradução do hebraico ruah, que era, no entanto, de gênero feminino.12 A Trindade proclamada pelo Concilio era constrangedoramente similar à tríade das religiões politeístas. E, para surpresa, até os bispos arianos aprovaram o novo Credo, salvo por dois deles, que logo foram exilados.

No Concilio de Nicéia, foram tomadas outras decisões muito importantes para a vida da Igreja: por exemplo, ficou estabelecido que apenas outros bispos, e não mais as comunidades que reuniam todos os fiéis, poderiam consagrar um novo bispo. O território da cristandade também foi dividido em zonas de influência, sujeitas ao poder, respectivamente, dos bispos de Roma, Antioquia e Alexandria, que passaram a se chamar metropolitas. A legitimação da autoridade na Igreja não vinha mais de baixo para cima, mas de cima para baixo.

O Concilio não marcou o fim do arianismo. Entre 327 e 328, Constantino reabilitou Ário e alguns de seus seguidores, e nomeou como conselheiro o bispo ariano Eusébio de Nicomédia, que o batizaria em seu leito de morte. Pelo contrário, a partir de 326 foram exiladas dezenas de bispos antiarianos.13

Sucederam-se vários combates entre facções, com muitos mortos e feridos; concílios e contraconcílios, que condenavam ora uma tese, ora outra; de exílios e de retornos; de perseguições por parte de imperadores "arianos" e "niceianos".

Todos os historiadores concordam que Constantino não entendia nada de questões doutrinárias. A única coisa que lhe interessava era tornar o cristianismo uma crença homogênea, sem nuances, sem ambigüidade, livre de conflitos internos perigosos.

Tirando isso, a unidade era uma obsessão sua: unidade do poder político em torno de sua pessoa e dinastia; unidade das populações sujeitas a Roma, amalgamadas por uma religião única, na qual confluíam elementos culturais de origens diferentes; e unidade da Igreja, obtida impondo-se a todos os crentes a opinião da maioria, ou pelo menos da maioria dos amigos do imperador, e se estes mudavam, mudava também a política religiosa do imperador.

As motivações de ordem política e social eram evidentes na repressão aos donatistas e aos agostinianos.

A história da heresia ariana, no entanto, foi mais complicada. Nem as teses trinitárias nem as arianas colocavam em risco o projeto imperial de hegemonia, mas a controvérsia em si representava um perigo.

Não se podem obter estabilidade e paz social com uma religião partida em facções que se condenam e renegam reciprocamente a autoridade e legitimidade da outra. Escolher significava, contudo, um "mal menor". Provavelmente, o que fez a balança pender primeiro para uma posição, depois para outra, foram considerações muito pragmáticas: a cada vez, a efetiva força de uma ou outra corrente ou a utilidade de seus defensores.


A militarização do cristianismo

Jesus ensinava pela boca dos outros a "dar a outra face", a "amar os próprios inimigos", mandou Pedro devolver a espada à bainha e o reprovou: "Quem com a espada fere com a espada perece" (Mateus, 26, 52).

Talvez nem todos os primeiros cristãos estivessem dispostos a "dar a outra face" e a sacrificar a vida, mas, com certeza, entre eles era muito difundido um sentimento de repúdio às armas.14 Teólogos e bispos, venerados ainda hoje como santos, escreveram páginas inequívocas sobre o assunto.

Nós, cristãos, não erguemos mais a espada contra uma nação, não aprendemos mais a arte militar.

O fato é que nos tornamos filhos da paz, graças a Jesus Cristo, que é nosso Senhor, e desertamos de chefes a quem serviram nossos antepassados: se aceitássemos suas ordens, nós nos tornaríamos estranhos à promessa divina.15 Que se diga ao soldado para não matar. Se receber ordem para matar, que se recuse. Do contrário, que seja afastado [da Igreja]. Se um catecúmeno ou fiel quiser servir como soldado, que seja afastado, pois despreza Deus. O cristão não pode se tornar soldado voluntariamente. Quem carrega uma espada deve prestar atenção para que não faça escorrer sangue. Se o fizer, não poderá participar dos mistérios."

Quando alguém comete homicídio, fala-se de crime; mas quando é o Estado que o encomenda, chama-se "ato de coragem". Aos cristãos não é permitido matar outrem; ao contrário, que deixem que assassinem a ele.17

Alguns cristãos chegaram a enfrentar o martírio por se recusarem ao serviço militar, como o jovem Maximiliano.  "Não me é lícito prestar serviço militar, pois sou cristão", e foi decapitado.


As coisas mudaram com a chegada de Constantino.

O Concilio de Áries, de 314, excomungou os cristãos que desertaram em tempos de paz.18

O Concilio de Nicéia pareceu retomar os velhos costumes, tanto que o cânone 12, nele aprovado, dispõe: "Aqueles que, sentindo-se chamados pela graça, e por zelo a abandonaram a divisa, mas logo depois, como cães, voltaram atrás, chegando a oferecer dinheiro e presentes para serem aceitos novamente ao exército, devem permanecer entre os penitentes por treze anos..." Durante o reinado de Teodósio I, ao contrário, foram excomungados os relutantes e os desertores.


Os perseguidos se tornam perseguidores: a repressão ao paganismo

Os cristãos, que ainda exibiam na carne os sinais das perseguições," tornaram -se perseguidores.

Durante os últimos anos de vida de Constantino, vários templos pagãos foram demolidos, sobretudo no Oriente. Outros templos continuaram em atividade, mas foram despojados de tudo que tinham de precioso: estátuas, objetos preciosos, revestimentos de ouro e prata, portas de bronze. Muitas obras de arte foram levadas para embelezar a nova capital: Constantinopla.20

As festas tradicionais pagãs, com seus jogos circenses e as lutas entre gladiadores, eram cada vez menos toleradas, com exceção daquelas em homenagem ao imperador e à sua família.

Só em Roma os templos e antigos cultos continuaram íntegros.

Em 341, Constante tentou proibir os sacrifícios com um edito.21 Mas a política antipagã dos sucessores de Constantino bateu de frente com um grande descontentamento por parte do povo.22

Em 361, subiu ao poder o imperador Juliano, apelidado de "apóstata" pelos historiadores. Ele tentou reorganizar a antiga religião politeísta e criou estruturas de assistência aos pobres, que concorriam com aquelas cristãs. Ao mesmo tempo, assegurou a liberdade de culto a todas as religiões do Império, inclusive ao judaísmo e às comunidades cristãs hereges.

Juliano morreu após apenas dois anos de reinado, e seus sucessores retomaram a política antipagã.

Em 392, o imperador romano Teodósio I proibiu mais uma vez todos os sacrifícios e cultos pagãos, fossem públicos ou privados, sob pena de confiscar os locais ou terrenos em que eram realizados. Os templos foram abandonados. Muitos foram demolidos, outros foram transformados em igrejas cristãs.

Os pagãos desfilavam em verdadeiros cortejos de protestos, exibindo suas imagens sagradas. Essas manifestações, por sua vez, desencadearam a reação dos cristãos e provocaram sangrentos tumultos.23

O imperador Teodósio II (408-450) mandou punir algumas crianças, culpadas de brincar com restos de estátuas pagas. E, de acordo com os elogios dos cristãos, Teodósio "seguia conscienciosamente cada ensinamento cristão".24

Em 415, em Alexandria, uma turba de fanáticos cristãos linchou a matemática, astrônoma e filósofa neoplatônica Hipácia, importante expoente da cultura pagã.25

Nos séculos que se seguiram, as antigas religiões pré-cristãs se tornaram cultos cada vez mais diminutos, ainda praticados em algum vilarejo camponês perdido (a palavra "paganismo" deriva, na verdade, do latim pagus, "vilarejo") ou em grande segredo por alguns intelectuais neoplatônicos.

Mas o paganismo não morreria completamente. Ele "...revive nas manifestações litúrgicas ligadas à vida do dia-a-dia, nas libações sagradas e no uso cada vez mais difundido do incenso, no culto aos santos e às relíquias, que tomam o lugar dos ídolos, na veneração a algumas árvores, animais, fontes e fenômenos naturais, que vive ainda nos dias de hoje".26

FONTES

1.   Diocleciano, imperador de 284 a 305, criou uma tetrarquia composta por dois "augustos" (ele e Maximiano) e dois "césares" (Constâncio e Galério). Assim, os imensos territórios do Império Romano estavam divididos em quatro áreas, cada uma com um comandante-em-chefe que podia reprimir tempestivamente rebeliões e invasões.
2.   Por direito, a sucessão caberia a Flávio Severo.
3.   Arnaldo Marcone, Costantino, il Grande, Laterza, Roma-Bari, 2000, p. 22-24.
4.   Remo Cacitti, Tolleranza, intolleranza, obiezione di coscienza nel cristianesimo dei primi secoli. In: CIDI Carnia-Gemonese (organizado por), Conoscere Ia storia per insegnare Ia pace - Da Omero al Ruanda, Edizioni Petra, Udine, 1996, p. 49.
5.   Ambrogio Donini, Storia del cristianesimo - dalle orígini a Giustiniano, Teti editore, Milão, p. 235.
6.   Arnaldo Marcone, op. cit, p. 40-1.
7.   Ibid, p. 61.
8.   Ambrogio Donini, op. cit, p. 232.
9.   Código Teodosiano, IX 24,1.
10. R. Cacitti, op. cit, p. 88-89.
11. Vide aprofundamento no Apêndice.
12. R, Cacitti, op. cit, p. 128.
13. David Christie-Murray, I percorsi delle eresie, Rusconi, Milão, 1998, p. 82.
14. Provavelmente, nem Jesus nem os primeiros cristãos eram pacifistas "sem mais nem menos"; eles simplesmente esperavam que Deus fizesse justiça por eles, de maneira também muito cruel, e consideravam um sacrilégio realizar ações que cabiam a Ele.
15.0rigene, Contro Celso, 5, 33. Origene (185-253, aproximadamente) foi talvez o maior estudioso da antigüidade cristã e até hoje é considerado um dos Pais da Igreja, ainda que muitas de suas proposições, depois, tenham sido consideradas heréticas.
16. Hipólito de Roma, La tradizione apostólica, Roma, Edizioni Paoline, 1979. Hipólito (235-6 aproximadamente) foi um teólogo e escritor de origem grega. Grande adversário de muitas doutrinas consideradas heréticas, ainda é venerado como santo pela Igreja Católica, ainda que tenha sido o primeiro antipapa.
17. Ciprião de Cartago, reitor e bispo de Cartago, mártir e santo. A citação foi extraída da Lettera l,6.
18. Remo Cacitti, op. cit, p. 49.
19. 0 bispo Pafnuzio, por exemplo, um dos participantes do Concilio de Nicéia, foi cegado de um olho
e perdeu um pé durante a perseguição de Diocleciano, cf. R. Cacitti, op. cit, p. 104. 20. Andreas Alfoldi, Costantino tra paganesimo e cristianesimo. Laterza, Roma-Bari, 1976, p. 91-94. 21.b/d, p. 91-94.
22. Ambrogio Donini, op. cit, p. 277.
23. Ibid, p. 287.
24. K. Deschner, Abermals kràhte der Hahn, Stuttgart, 1962, p. 469.
25. Ambrogio Donini, op. cit, p. 287.

26. Ibid, p. 287.



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