O que é uma heresia?
"Um cínico poderia definir a heresia como a opinião expressa por
um grupo minoritário que uma maioria suficientemente poderosa para poder
puni-lo considera inaceitável [...] Deus [...] está do lado da maioria: a
ortodoxia, pode-se acrescentar, é aquilo que dizem Dele [de Deus]."1
O significado que hoje damos ao termo "heresia", ou seja,
"opinião errada", é uma inovação tipicamente cristã. O primeiro a
usá-lo com esta acepção foi o apóstolo Paulo, em Gaiatas, 5, 20.
O termo "heresia" deriva do grego hàiresis, "escolha",2
e designava aqueles que pertenciam a uma escola filosófica por escolha. Hereges
eram, portanto, os estóicos, os céticos, os epicuristas, mas também, no mundo
hebraico, os fariseus, os saduceus e os essênios.3
A Igreja, desde o início, prestava uma atenção doentia à terminologia
religiosa. Muitos eram os que se sentiam os únicos depositários da verdade. E,
assim, um termo que indicava a pluralidade das escolas de pensamento assumiu o
significado negativo que conhecemos hoje.
Mas não é fácil manter uma verdade. Durante a história, houve
contínuas revisões e correções. Uma afirmação declarada herética por um
concilio era derrubada por outro e vice-versa. O exemplo mais conhecido talvez
seja o de Joana d'Arc, queimada na fogueira em 1431 e santificada em 1920. O
bispo Teodoro de Mopsuéstia, que morreu em 428 em paz com a Igreja, foi
declarado herege e condenado 125 anos depois de sua morte. Os bispos Estêvão,
de Roma (254-257), e Cipriano, de Cartago (248-258), ferrenhos adversários
sobre questões doutrinárias quando em vida, são ambos venerados como santos.
Argumentos religiosos que custaram milhares
de mortos
Os primeiros séculos do cristianismo registram disputas intermináveis
para estabelecer se Cristo era "da mesma substância do Pai" ou apenas
"muito parecido", ou quantas naturezas coexistiam em Jesus Cristo.
Disputas essa nas quais as opiniões consideradas equivocadas não eram apenas um
erro, mas um pecado. Quem se obstinava em defender as próprias opiniões cometia
um crime atroz, digno de uma pena severa.
Sobretudo quando o cristianismo se tornou religião de Estado, os
"perdedores" nas disputas teológicas podiam ser punidos com o exílio,
a tortura e a morte, a menos que se transformassem em perseguidores, quando o
vento soprava a seu favor.
As tentativas de impor à força a "doutrina verdadeira" a
populações inteiras podiam ensejar rebeliões, vinganças, massacres e guerras.
Mas divergências teológicas acerca da Trindade justificam conflitos
que duraram séculos e fizeram milhares de mortos? Quantos dos participantes do
Concilio de Nicéia, por exemplo, tinham real capacidade de compreender todas as
nuances filosóficas do embate entre arianos e trinitários? Com certeza, os
primeiros pensadores cristãos se encontravam diante de problemas teóricos nada
pequenos: precisavam conciliar o rígido monoteísmo herdado dos judeus com sua
fé em Deus feito homem, sem se confundir nem com as tradicionais mitologias
pagãs (lembremos das transformações de Júpiter), nem com os cultos místicos
concorrentes e as doutrinas agnósticas, segundo as quais cada homem que
ultrapasse um determinado percurso iniciático pode se tornar deus.
Os bispos não pagam impostos
Mas havia questões doutrinárias que diziam respeito a elementos de
importância concreta para a vida quotidiana das primeiras comunidades cristãs:
por exemplo, era preciso definir se os fiéis que haviam renunciado à fé nas
perseguições deveriam ser readmitidos ou se os sacramentos celebrados por
sacerdotes indignos deveriam ser validados.
E, naturalmente, havia também os bastante concretos interesses
materiais das nascentes elites cristãs.
Pouco mais de cem anos após a suposta morte de Jesus, já existiam
movimentos que lamentavam a corrupção e a decadência da Igreja, como os
montanistas. Estes pertenciam a um movimento que nascera na Frígia no século
II. Eles se consideravam puros, privilegiavam a relação direta com o Espírito,
e as mulheres figuravam em primeiro plano. O próprio Montano, em sua missão,
era ladeado por duas mulheres: Priscila e Maximília.
Os montanistas foram
perseguidos por séculos.4
Constantino, que transformou os bispos em funcionários do Império e
lhes isentou do pagamento de impostos, apenas acelerou uma tendência já em
curso no próprio corpo de Igreja. Os bispos há muito tinham deixado de ser
simples porta-vozes das comunidades cristãs eleitos pelas Igrejas, ou seja,
pelas assembleias de fiéis, tornando-se verdadeiros senhores que administravam
a seu bel-prazer os bens da Igreja, ordenavam o clero menor de acordo com as
próprias conveniências e, muitas vezes, "transmitiam" seu título aos
filhos e irmãos. O cargo de bispo acabou se tornando muito desejado por membros
das famílias abastadas.5
Apesar das disposições contrárias do Concilio de Nicéia, alguns homens
foram nomeados bispos antes mesmo de serem batizados, como o filósofo
neoplatônico (adepto de uma corrente de pensamento incompatível com o
cristianismo) Sinésio de Cirene. O próprio Santo Ambrósio, já funcionário imperial, foi nomeado bispo poucos dias depois de ser batizado.6
Quando o cristianismo se tornou religião de Estado, as acusações de
heresia e as disputas teológicas se tornaram pretextos para jogos de poder nos
quais a aposta era muito terrena: o controle de dioceses "ricas", o
monopólio de recursos e matérias-primas importantes, a eliminação de rivais e
adversários, e a divisão dos postos nas cortes imperiais.
Por vezes, de maneira ainda mais perversa, quem acreditava de maneira
fanática na própria verdade podia usar o poder e a influência de que dispunha
para impô-la aos outros. Alexandre, bispo de Alexandria, por exemplo, foi
acusado de sabotar as provisões de trigo em Constantinopla para levar o imperador a assumir uma posição decisiva contra o arianismo.7
No espaço e no tempo, a mesma doutrina daria cobertura a projetos
políticos bem diferentes entre si. Dentre os seguidores de Ário, estavam
imperadores romanos que perseguiam os rebeldes e o rei godo Totila, libertador
dos escravos.
Vários imperadores bizantinos aderiram à doutrina monofisista, mas
muitos outros incentivaram rebeliões populares contra a autoridade de
Constantinopla. E as aparentes contradições poderiam continuar.
Naturalmente, a muito complexa aventura do cristianismo não se explica
apenas com fatores políticos, sociais e econômicos; há também elementos
imponderáveis do ponto de vista racional.
Em épocas de grande taxa de analfabetismo, quando não existiam
telecomunicações e as pessoas se locomoviam no lombo de um burro por estradas mal
conservadas, um único pregador dotado de coragem e energia podia conseguir, com
seu carisma e eloqüência, a conversão de populações inteiras.
Quando as teses de Lutero se difundiram no norte da Europa, muitos
países as acolheram, conservando, no entanto, costumes católicos, como a
confissão, que eram totalmente estranhos à doutrina luterana.
É provável que os bravos cristãos suecos e islandeses não se
importassem com as divergências teóricas, que só quisessem ter ao seu lado
padres que falassem sua língua, que fossem capazes de lhes explicar as
Escrituras, que pregassem a moralidade sendo os primeiros a dar bom exemplo e
não os dessangrassem com dízimos.
Começa a caça aos hereges
Talvez o primeiro caso de controvérsia religiosa dirimida por
intermédio da lei tenha sido o de Paulo de Samósata, bispo de Antioquia
(260-272). Ele era um monarquianista, ou seja, seguidor das doutrinas que não
reconheciam a trindade de Deus.
Um sínodo de bispos convocado em 268 condenou suas doutrinas e o
depôs. Em seguida, os bispos pediram ao imperador Aureliano que executasse suas decisões,
estabelecendo, assim, o perigoso precedente da intervenção do poder temporal
nas questões eclesiásticas. Tudo isso acontecia em uma época em que os cristãos
ainda eram periodicamente perseguidos.
O imperador decretou a deposição de Paulo, que continuou em seu posto
graças aos favores de Zenóbia, rainha de Palmira, sob cuja influência se
encontrava a diocese de Antioquia, que impusera uma política anti-romana. '
Só em 272, quando o exército de Zenóbia foi derrotado pelo do
imperador Aureliano, Paulo precisou abandonar sua cadeira.8
O arianismo depois de Constantino
O Concilio de Sárdica (Sofia), em 343, que se encerrou com a
reiteração do que foi deliberado em Nicéia, foi abandonado pelos bispos orientais,
que organizaram um contraconcílio em Filipópolis.
Em Constantinopla, durante o episcopado de João Crisóstomo (345-407), irromperam-se violentos conflitos entre arianos e niceianos 9 que deixaram um saldo de vários mortos.
Em 353, Constâncio II, único imperador, impôs as doutrinas
filo-arianas em todo o território do Império. Os arianos, então, passaram a
defender a tese de que a Igreja deveria se submeter ao Estado, enquanto os
niceianos lutavam por autonomia.
Em 357, o bispo ortodoxo Ósio, já centenário, foi obrigado, por meio
de tortura, a subscrever as teses arianas do Concilio de Sírmio.
Em 361, com a ascensão ao trono de Juliano, o Apóstata, que tentou
restaurar o paganismo, foi dada anistia geral a todos os cristãos perseguidos
acusados de heresia, provavelmente emitida com o objetivo de enfraquecer o
cristianismo.
O imperador Teodósio I, que subiu ao trono em 378, logo condenou as
doutrinas arianas nos territórios do Oriente. No Ocidente, entretanto, onde de
fato reinava a ariana Justina, a tolerância foi garantida.
Em 386, o bispo de Milão, Ambrósio, após negar a Justina a cessão de
uma igreja para realizar o culto ariano, organizou uma vigília em sua própria
basílica para defendê-la dos ataques dos emissários imperiais.
Os próprios arianos, por sua vez, estavam divididos em várias
correntes. Em 362, em Antioquia, havia cinco comunidades cristãs separadas,
cada qual com seu próprio bispo e hostil às demais. Quando Teodósio ampliou
seus domínios aos territórios ocidentais, o arianismo foi banido por completo
do território do Império, e o cristianismo niceiano se tornou a religião
oficial do mundo romano.
Naturalmente, o decreto não significou a extinção automática da
heresia ariana, que sofreria, mais de um século depois, perseguições por parte
de Justino e, depois, de Justiniano.10
O cristianismo, em sua versão ariana, foi difundido entre os povos
"bárbaros" do norte graças às preleções de Áudio, bispo de vida
exemplar, e, sobretudo, de Wulfila (345-407), o bispo que, por volta de 375,
traduziu para o godo o Antigo e o Novo Testamentos.
Foi graças a essa tradução que a crença ariana conseguiu se difundir
entre os visigodos, os ostrogodos, os suevos, os vândalos, os burgúndios e os
lombardos.
"Ao contrário dos povos que viviam na Itália e que praticamente
não se expressavam em latim, os bárbaros tinham a grande vantagem de aprender o
Evangelho em sua língua falada. Os godos, assim, estavam mil anos à frentede
Martinho Lutero."11
Em 525, o rei ostrogodo Teodorico interveio em defesa dos arianos de Constantinopla,
oprimidos pelo imperador Justino. Para tanto, enviou à cidade um embaixador
extraordinário, o papa João I, obrigado a apresentar ao imperador suas
solicitações. Como o papa voltou a Roma no ano seguinte sem nada ter
conseguido, Teodorico mandou prendê-lo, e João I morreu poucos dias depois.12
É óbvio que muitas vezes os soberanos arianos perseguiam os niceianos.
Por exemplo, durante a dominação dos vândalos na África, estes sofreram vários
tormentos. O auge foi no período entre 483 e 484, quando uma lei obrigou todos
os católicos do reino vandálico a se converterem ao arianismo. Milhares de
clérigos foram exilados no deserto junto com seus bispos. Muitos católicosforam condenados a torturas ou à pena de morte.'3
No entanto, até as populações bárbaras acabaram se convertendo ao
catolicismo. No final do século VIII, o arianismo já havia desaparecido, e a
crença niceiana triunfou como única Igreja verdadeira.
Os bispos pedem a cabeça dos hereges
É notório que os imperadores não eram muito sutis quando se tratava da
eliminação dos dissidentes, mas, em determinado momento da história cristã,
foram os próprios bispos que solicitaram a condenação à morte dos hereges.
O primeiro a sofrer as conseqüências do novo costume foi o bispo
espanhol Prisciliano, em 385. Condenado e banido por dois concílios regionais,
Prisciliano, que tinha um grande séquito popular, foi torturado e condenado
pelo imperador Máximo, a pedido dos próprios bispos. Junto com ele, morreram
seis de seus discípulos, dentre os quais uma mulher.
Na realidade, as acusações infundadas de heresia e a condenação à
morte pareciam servir a propósitos essencialmente políticos.14 O
episódio causou horror em vários prelados católicos que não concordavam com as
heresias doutrinárias. O papa Sirício condenou as mortes.
O bispo Martino de Tours (321-401) excomungou todos os bispos que
sujaram as mãos com aquele sangue. Só mais tarde aceitou se reconciliar com
eles, a pedido do imperador, e apenas para salvar a vida de outros
"priscilianistas" condenados à morte. Até mesmo o bispo Ambrósio, de
Milão, recusou-se a ter contato com os bispos envolvidos na morte de
Prisciliano.
Naquela época, "a consciência da Igreja ainda não estava
acostumada a considerar o derramamento de sangue uma expressão do amor pregado
por Jesus Cristo".15
O assassinato de Prisciliano não pôs fim ao movimento, pelo contrário.
Seus seguidores passaram a venerá-lo como mártir, dando vida a um movimento "priscilianista" que duraria mais de um século.16
A heresia nestoriana e o concilio que terminou em rixa
O nestorianismo deve seu nome a Nestório, bispo de Constantinopla que,
por volta de 428, contestou a qualidade de "Mãe de Deus" atribuída a
Maria.17 Na época, o culto mariano já era muito difundido, e as
teses de Nestório deram vida a verdadeiros tumultos. Contra ele se opôs com
violência até mesmo Cirilo, bispo de Alexandria (diocese que lutava contra a de
Constantinopla pelo controle do Oriente).
Em 431, o imperador Teodósio II convocou um concilio ecumênico em
Éfeso para dirimir a questão.
Naquela época, viajar era muito difícil, e, por essa razão, os bispos
chegaram em momentos diferentes. Primeiro, foram os adversários de Nestório,
aproximadamente duzentos bispos liderados pelo de Alexandria, Cirilo. Decidiram
dar logo início ao concilio, sem esperar os que apoiavam a parte contrária ou
os enviados do papa. Nestório foi obrigado a se apresentar e, como se recusou a
entrar antes que seus seguidores chegassem, teve de depor "in
contumacia". O bispo de Éfeso, Mêmnon, chegou a incitar a multidão
contra Nestório. Poucos dias depois, chegaram cerca de quarenta bispos nestorianos,
guiados por João de Antioquia, que formaram um contraconcílio no qual
declararam hereges e excomungaram Cirilo e Mêmnon.
Chegaram, então, os enviados do papa, que reabriram o concilio
"oficial" e excomungaram João de Antioquia.
Os trabalhos do concilio se complicaram ainda mais com a intervenção
de alguns funcionários imperiais, as tentativas de corrupção e os embates
populares entre partidários das duas facções. No final, o imperador Teodósio II
encerrou a assembléia criticando duramente os participantes e exilou tanto Nestório quanto Cirilo.18
Derrotado no território imperial, o cristianismo nestoriano
difundiu-se na Ásia, chegando à China, à índia e à Mongólia. Em 486, os
cristãos da Pérsia adotaram as teses nestorianas e empreenderam uma feroz
perseguição contra os católicos. Para o rei da Pérsia, era muito cômodo apoiar
uma "Igreja nacional" que não dependesse de autoridades religiosas de
um país adversário, como o bispo de Constantinopla.19
A heresia monofisista e o "latrocínio de
Éfeso"
A doutrina monofisista deve seu nome ao grego monos, único, ephisis,
natureza, e nasce como uma reação ao nestorianismo. Os monofisistas afirmavam
que Jesus Cristo possuía uma única natureza divina e nenhuma natureza humana.
O líder da doutrina foi Eutiques, monge de Constantinopla que, por
suas idéias, sofreu violentos ataques, sendo proibido de realizar os ritos
sacerdotais. Graças a seus conhecimentos na corte imperial do Oriente, no
entanto, suas doutrinas ganharam o apoio
do imperador Teodósio II, que, em 449, convocou um concilio ecumênico em Éfeso
para discutir a questão.
A assembléia foi fortemente direcionada de modo a dar ganho de causa
às teses mononsistas. As tropas imperiais se lançaram com força contra os
adversários de Eutiques, que não tiveram permissão nem para tomar a palavra. Um
documento enviado pelo papa nem foi lido, e até mesmo o remetente foi
excomungado. O bispo de Alexandria, Flaviano, levou uma surra tão grande que
morreu pouco tempo depois.
O papa Leão Magno deu ao evento o nome de "latrocínio de
Éfeso".20
Naturalmente, foi apenas o início de uma longa história. Por várias
vezes, em uma intrincada trama de complôs, homicídios, alianças entre facções,
ascensões ao trono de imperadores anti ou pró-eutiquianos, os católicos e os
monofisistas se revezaram nos papéis de perseguidores e perseguidos, de vítimas
e carrascos.21
As perseguições não deteriam a propagação do monofisismo. Ao
contrário, graças às preleções de Tiago ou Jacó Baradai, bispo de Edessa, em
542, e fundador da Igreja Jacobita, países como Egito e Síria deram vida a
Igrejas nacionais próprias, em contraposição à autoridade imperial. Mas nem
Tiago conseguiu impedir a cisão de sua própria Igreja. Por exemplo, em 556, a
sede episcopal de Alexandria tinha cinco pretendentes: quatro monofisistas de
diversas correntes e um católico.
A Igreja etíope é até hoje monofisista. No século XVI, a Igreja romana
contou com os portugueses para levar a ortodoxia à Etiópia, mas a operação
falhou em razão de uma forte reação nacionalista que causou a expulsão de todos
os missionários e a ruptura das relações com Roma. Mais recentemente, a Itália
fascista tentou impor o catolicismo às suas colônias, mas a Igreja etíope
resistiu. Ainda hoje, no Egito, existem duas Igrejas monofisistas: a copta e a
melquita. Na Síria e na Mesopotâmia, ainda existem jacobitas, e na Armênia se
professa uma confissão monofisista.
Os paulicianos
Seita de provável origem maniqueísta ou agnóstica,22 que
surgiu na Ásia Menor por volta do século VII Tinha essa designação por causa da
peculiar veneração aos escritos de São Paulo.2'
Sua doutrina diferenciava claramente um Deus criador do espírito e um
Deus senhor e criador da matéria. Os paulicianos negavam a Encarnação e
consideravam Cristo um anjo de Deus. Aceitavam como textos sagrados apenas os
Evangelhos e as Cartas de Paulo e recusavam os sacramentos, as imagens
sagradas, a hierarquia eclesiástica e a vida monástica. Em vez da missa,
celebravam o ágape (festa do amor).24
Os paulicianos também formavam um movimento de protesto político,
social e de revolta contra o despotismo bizantino e búlgaro.
Sofreram várias perseguições por parte do Império Bizantino, que os
condenou oficialmente em 687. Eles, então, se organizaram como Estado
independente e empunharam armas em sua defesa, até a derrota militar
definitiva, em 752. Mas a derrocada não significou o fim do movimento. Há
provas de que foram perseguidos pelo Império de Constantinopla ainda em 840.
Alguns deles acabaram se mudando para as terras do emir de Melitene e lutando
entre os árabes.
Outro ramo do movimento, sediado na Trácia, teria sobrevivido até o
século XIII e inspirado o movimento herético búlgaro dos bogomilos.
Os bogomilos
Movimento dualístico que surgiu nas primeiras décadas do século X e
que ganhou este nome graças às profecias do padre búlgaro Bogomil.
Para os bogomilos, havia uma clara antítese entre Deus, criador do
espírito, e o demônio, criador da matéria. Eles acreditavam nas mesmas teorias
que os paulicianos e pregavam a igualdade social e o afastamento dos pobres do
domínio do clero e da nobreza. O bogomilismo se difundiu nos séculos seguintes
nos Bálcãs e até as fronteiras de Bizâncio. Fortemente perseguidos pelos
soberanos búlgaros e pelos imperadores bizantinos, os bogomilos se espalharam
por toda a Europa Central e Ocidental, onde foram alvo de repressão das
autoridades católicas.25
Em 1203, o rei da França, Roberto, o Pio, a pedido da Igreja, mandou
queimar na fogueira, em Orleans, uma dezena de hereges
"maniqueístas", provavelmente bogomilos mais avançados ou, talvez, os
primeiros cátaros.26 Um episódio análogo ocorreu em Milão por volta
de 1208.27
Na Bósnia, o bogomilismo chegou a se tornar religião de Estado. Em
1203, no entanto, o soberano Kulin só conseguiu se manter no poder ao concordar
em trocar a doutrina bogomilista pela católica romana e acatar a tutela
húngara.28
Fontes
1. David Christie-Murray, I
percorsi delle heresie, Rusconi, Milão, 1998, p. 21.
2. Até nos Atos dos Apóstolos
5,17 e 26,5, tais termos conservam seu significado original.
3. É preciso lembrar, a esse
respeito, que, no mundo judaico, era admitida uma divergência de opinião impensável
nas futuras sociedades cristãs. Por exemplo, fariseus e saduceus discutiam de
forma inflamada sobre uma questão importantíssima: se existia ou não ressurreição
depois da morte. Mas nenhuma das duas facções se sentia no direito de
excomungar a outra.
4. Vide Apêndice.
5. Ambrogio Donini, Storia
del cristianesimo - dalle orígini a Giustiniano, Teti editore, Milão, p.
261.
6. Ibid, p. 261.
7. Ibid.
8. David Christie-Murray, op. cit, p.
75.
9. Com este termo, são
designados os defensores das decisões do Primeiro Concilio de Nicéia.
10. Para uma história completa do arianismo, cf. David
Christie-Murray, op. cit, p. 77-91; Ambrogio Donini, op. cit, p.
258-275.
11. Dario Fo, La vera storia di Ravenna, Franco Cosimo Panini
Editore, Modena, p. 78.
12. Cronologia universal, UTET, Turim, 1979. Cf. também Ambrogio Donini,
op. cit, p. 324.
13. AAW, Storia dei cristianesimo, vol. 3, Borla/Città Nuova,
Roma, 2002, p. 256-257.
14. David
Christie-Murray, op. cit, p. 128.
15. Ambrogio Donini, op. cit, p. 251.
16. Ibid, p.
251-252.
17. Vide Apêndice.
18. David
Christie-Murray, op. cit, p. 102-103; Ambrogio Donini, op. cit, p.
318.
19. Ibid, p. 104-106. Para um aprofundamento sobre o
nestorianismo, vide Apêndice.
20. David
Christie-Murray, op. cit, p. 108-109.
21. Vide Apêndice.
22. Vide Apêndice.
23. Segundo outras fontes, porque se remetiam aos ensinamentos dos
escritos de Paulo de Samosata.
24. David
Christie-Murray, op. cit, p. 121.
25. Ambrogio Donini, op. cit
26. Vide Capítulo 7.
27. Vide parágrafo sobre os hereges de Monforte, no Capítulo 7, sobre
as heresias medievais.
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