terça-feira, 27 de outubro de 2015

AS BRUXAS







Justificar que a classe dominante da religião cristã composta de filósofos e doutores, por mais de quinhentos anos, mataram crianças e mulheres adultas para salvar-lhes a alma do suplício eterno, quando você mesmo, sem os conhecimentos doutrinários dos inquisidores, sabe perfeitamente que bruxas nunca existiram, cai por terra o argumento de que "aquele era o pensamento da época", mesmo por que a confissão sob tortura não goza da presunção de veracidade. Mesmo assim São Tomaz de Aquino proclamava que os heréticos deviam ser torturados (São Agostinho) ou mortos logo de uma vez.

Martinho Lutero e João Calvino defendiam o assassinato em massa de heréticos, apóstatas, judeus e feiticeiras.


Naturalmente você é livre para interpretar esta página negra do cristianismo - mas não é espantoso que você tenha conseguido discernir os verdadeiros ensinamentos do Cristianismo, enquanto os mais influentes pensadores na história da religião falharam nesse ponto?










Dor sem conselho, saco sem fundo, febre contínua que nunca termina, besta insaciável, folha levada pelo vento, bastão vazio, louca desvairada, mal sem nenhum bem, em casa um demônio, na cama uma vadia, na horta uma cabra, imagem do Diabo.

Em geral, falar de caça às bruxas significa voltar à época medieval. A perseguição em massa e os massacres, no entanto, continuaram muito depois desse período. As grandes ondas repressivas contra as bruxas e os hereges aconteceram, na verdade, de 1480 a 1520, período ao qual sucederam uma relativa pausa e uma nova onda de perseguições de 1580 a 1670.

Aquela que na Idade Média fora uma guerra aberta contra populações inteiras que haviam escolhido uma vida comunitária (como os cátaros e dulcinistas) se transformou em uma perseguição de estilo policial em larga escala destinada a extirpar a erva daninha da desobediência,

A legislação cristã logo passou a cuidar da bruxaria, associando-a ao paganismo e considerando-a uma forma de heresia. "A motivação era tipicamente teológica: quem usa as artes da magia rejeita o poder livre e libertador do Deus de Jesus, enquanto tenta estabelecer uma espécie de domínio sobre realidades terrenas [e] sobre a vida humana em si." (Benazzi, D'Amico, 1998, p. 258-9.)

Os primeiros mandantes do fenômeno eram muito céticos acerca da real existência dos poderes sobrenaturais das bruxas e magos. O Cânone Episcopal, um documento eclesiástico do século XIX, diz: "Não nos esqueçamos das mulheres desventuradas que se ofereceram a Satanás, sessões de encantamento e fantasmas de origem diabólica, afirmaram terem montado animais durante a noite junto à deusa paga Diana e fizeram isso com várias outras mulheres... Muitas se deixaram enganar por essas coisas e acham que tudo é verdade, afastando-se da verdadeira fé [...] Mas quem pode ser tão tolo a ponto de crer que tudo isso acontece [...] e corporalmente?"2

Enfim, quem praticava bruxaria cometia um pecado grave, mas as artes mágicas em si não representavam um perigo.

A partir do século XI e até a metade do XIII, a atenção da Igreja se concentrava mais nas heresias, como as dos cátaros e valdenses, e o mundo do ocultismo foi, em parte, ignorado.


Bruxaria e heresia

As coisas começaram a mudar depois do nascimento da Inquisição. O deslocamento da perspectiva entre as primeiras e brandas perseguições e as sucessivas, mais sistemáticas, é fundamental. Segundo essa nova visão, na verdade, o Demônio se torna um ser físico, que pode possuir e ter aliados na Terra, que tem um exército próprio e uma Igreja. A batalha entre o bem e o mal se concretiza transformando-se em uma guerra em sentido físico, além do metafísico.

Em 1258, Alexandre IV condenou as práticas mágicas. Em 1320, João XXII encarregou os inquisidores de Toulouse de intervir contra os bruxos. Em 1436, o juiz Claude Tholosan declarou que os magos e bruxas não tinham direito a indulgências da Igreja e considerou suspeitas até práticas populares aparentemente inócuas, como a colheita das plantas durante a festa de Santo Antônio. Em 1451, Nicolau V exortou os inquisidores a punir os adivinhos mesmo quando não houvesse uma condição evidente de heresia: a Inquisição podia, assim, atingir também a superstição popular.3 Por volta do final do século XV, o bispo de Paris determinou a excomunhão a qualquer um que lesse as mãos.

Durante todos os séculos XIV e XV, sucederam-se, com preocupante aumento, vários tratados sobre bruxaria e intervenções de juristas sobre o assunto. Será dito que, no instante em que aceitam ter relações com o Demônio, as bruxas se mancham com o crime de heresia. Ou melhor, elas chegam a constituir uma verdadeira seita que luta pela destruição da Igreja.

Aos hereges também são atribuídos malefícios e pactos diabólicos. Os Templários foram acusados de heresia, bruxaria e de adoração a um ídolo chamado Bafometo. Os valdenses de Arras, processados durante o século XV, confessaram, sob tortura, a filiação a uma seita de adoradores do diabo. Eles iam voando aos sabás, onde abjuravam a religião cristã e blasfemavam contra Deus, a Trindade e Nossa Senhora.4

Os cátaros foram acusados de ter o nome derivado de Cato, demônio que adoravam.

O objetivo de tais comparações é claro: se as bruxas eram por definição hereges, então hereges também eram os magos. Assim, bruxas e hereges constituíam um único grande inimigo comum do poder espiritual e do civil. Sem contar que o rótulo de "mago" contribuía para queimar a terra em volta dos pregadores heréticos e tornava mais fácil atiçar o ódio do povo contra eles.

A bula papal Summis desiderante affectibus, promulgada por Inocêncio VIII, em 5 de dezembro de 1484, marcou a data de início daquilo que se tornou um verdadeiro extermínio em massa de mulheres e homens acusados de bruxaria. Nesse documento, o papa, alarmado pelas notícias provenientes do norte da Alemanha, onde parecia que os cultos satânicos e a bruxaria tinham muitos adeptos, dava aos inquisidores plenos poderes para extirpar o fenômeno.5

Dois anos depois, foi o poder leigo que interveio. O imperador Maximiliano da Áustria emanou uma ordem na qual convidava todos os bons católicos a ajudar os inquisidores em sua obra.







No mesmo ano, saiu o Malleus Maleficarum (Martelo das feiticeiras), um verdadeiro tratado reproduzido através da nova técnica da prensa inventada por Gutenberg, que descrevia por completo o mundo das bruxas, seus malefícios, como reconhecê-las e como conduzir os interrogatórios. A tese do Malleus era que a bruxaria existia e que era uma forma de heresia, assim como negar sua existência era um comportamento herético. Seus autores, Krämer (vulgo Institoris) e Spengler, são dois teólogos dominicanos. Krämer, em especial, era um conhecido e incansável inquisidor internacional, famoso por perseguir os valdenses, hussitas e as bruxas. Sua conduta na Alemanha meridional atraiu para si o desprezo dos eclesiásticos locais e o ódio da população, que chegou a um passo da revolta. Ele atuou também na diocese de Bressanone, mas o bispo Georg Golser o afastou em razão de sua crueldade e arbitrariedade, que mais uma vez contribuíram para atrair a ira do povo. O Martelo das feiticeiras, que foi impresso até 1669, tornou-se um verdadeiro best-seller na época.

Muitos outros "caçadores de bruxas" escreveram dissertações sobre o assunto, dentre os quais Jean Bodin, obstinado inquisidor e perseguidor que, por sua vez, foi acusado de heresia, e Henry Boguet, inquisidor suíço que entrou para a história por pedir a condenação à morte de algumas crianças acusadas de bruxaria.6

As áreas mais atingidas pela caça às bruxas foram Artois, Flandres, Hinaut, Cambrésis, Brabante, Luxemburgo, Lorena, Renânia, as regiões do sul da Alemanha, a Borgonha, os Países Bascos e o Piemonte.7

De certo ponto de vista, a caça às bruxas tornou-se uma gigantesca guerra do poder masculino contra as mulheres e contra as últimas formas de matriarcado.

Por exemplo, foi tirado do gênero feminino o "poder" de curar os males e assistir no parto, entregando-os ao monopólio da casta masculina dos médicos. O Malleus Maleficarum afirma claramente que "ninguém prejudicou mais a Igreja do que as parteiras". Não é preciso se esforçar muito para encontrar na literatura, na teologia, mas também nos tratados de medicina da época, afirmações de forte desprezo, se não de ódio, às mulheres. Um exemplo de Laurent Joubert, médico do século XVI, afirma: "Por si mesmo indiferente é o sêmen... este muitas vezes degenera na fêmea por causa da frieza e da umidade... e pela abundante presença de sangue menstrual cru e indigesto."8 Por outro lado, Tommaso Campanella escreveu: "As mulherzinhas, que consomem um péssimo alimento, ou pelo sangue menstrual, ou pelos excrementos retidos no útero tomado de vapores da concepção, acabam perturbadas e realizando atos para receberem os demônios."9

Homens e personalidades de alta estirpe também foram condenados à fogueira, mas isso não impede que a grande maioria das vítimas fosse de mulheres pobres, muitas vezes à margem da sociedade. Às vezes, a figura da bruxa parteira/curandeira se confundia com a da prostituta. Então, reaparecia um personagem social de grande poder que ainda possuía a linfa das sacerdotisas dos cultos matriarcais. Não sabemos quanto disso era real e quanto era uma fantasia dos inquisidores. É verdade, no entanto, que, em algumas localidades (por exemplo, nos territórios eslavos), os cultos matriarcais que remontavam a quatro, cinco mil anos antes de Cristo sobreviveram por muito tempo, até depois do século XVII, às vezes camuflados de ritos cristãos, às vezes praticados pelo povo às escondidas — como aconteceu por muito tempo com os ritos matriarcais dos escravos negros nas Américas.


A louca engrenagem da Inquisição

No final do século XV, a Inquisição já era uma máquina bem lubrificada e rodada para eliminar os hereges. O sucesso e a carreira dos inquisidores dependiam do número de processos julgados e das condenações executadas. Também se acreditava que o povo devia se sentir constantemente ameaçado pela visão dos castigos exemplares, para não ousar sair do recinto da verdadeira fé. As fogueiras e as mortes em praça pública serviam de exemplo.

Por sorte, não faltaram pessoas que se opuseram ao clima da época, como o filósofo e matemático Nicolau de Cusa. Em 1457, ele julgou, na qualidade de bispo de Bressanone, o caso de duas mulheres que haviam confessado ter sido transportadas a um sabá por uma misteriosa mulher chamada Richella, após terem abandonado a fé cristã e terem visto homens devorando crianças não batizadas.

De Cusa encerrou o caso como se fosse um sonho e condenou as mulheres a uma simples penitência. A crença na bruxaria, de acordo com o raciocínio do bispo, alimentava nas pessoas o medo do diabo, a ponto de fazê-las acreditar que este fosse mais poderoso que o próprio Deus.10

Em 1489, Urlich Müller declarou que as bruxas não eram nada além de mulheres pobres dominadas por uma ilusão diabólica. No início do século XVI, o frei Samuel De Cassinis chegou a acusar os inquisidores de heresia, pois acreditavam nos sabás, e lutou para que os tribunais devolvessem aos parentes das bruxas executadas os bens que haviam confiscado. O humanista Andréa Alciato, em 1544, afirmou a inutilidade da perseguição às bruxas. Em 1553, o médico Johann Weyer afirmou que as bruxas eram apenas pobres mulheres vítimas de alucinações. Por causa dessa teoria, foi atacado violentamente pelos teólogos católicos e protestantes.11 Em 1594, Reginald Scot publicou um livro contra os excessos cometidos durante a caça às bruxas. As cópias do volume foram queimadas por ordem do rei da Escócia.

No início do século XVII, o renano Cornelius Loos tentou inutilmente mandar imprimir uma obra em que acabava com a fantasia dos sabás, das cavalgadas noturnas e das negociações som o demônio. Ele foi o primeiro a identificar nas bruxas uma cultura alternativa à dominante e muito arraigada entre os pobres. Por suas idéias, foi condenado à fogueira, mas morreu de peste na prisão antes da execução.

Em 1631, o jesuíta alemão Friedrich von Spee, em seu tratado Cautio Criminalis, seu de processibus contra sagas, afirmou: "Envergonho-me de confessar que, principalmente na Alemanha, entre católicos e o povo, estão presentes superstições inacreditáveis [...] que [...] recaem mais sobre as pobres mulheres. [...] Com a tortura, um inquisidor conseguiria fazer até o papa confessar-se bruxo."12 Todavia, até a metade do século XVII, esses tipos de manifestações eram sempre isolados.


O processo

O processo por bruxaria acontecia paralelamente ao de heresia e podia ser instruído com base em uma mera suspeita (ou simplesmente "aparecer no sonho" de outra pessoa). As delações anônimas também valiam. Nas igrejas, chegou a ser colocada uma urna para as denúncias, parecida com a das ofertas.

Assim que a audiência começava, a suposta bruxa era convidada a confessar e abjurar o demônio; se não o fizesse, era torturada. Entre as provas da possessão diabólica estava a presença de sinais específicos no corpo da bruxa. Podia ser uma mancha na pele, uma verruga, um calo ou qualquer "imperfeição". Aquela era a marca deixada pelo Diabo. Outro elemento de avaliação era o Ordálio. No caso de suspeita, ver a ré chorando ou lacrimejando já bastava para os juízes (acreditava-se que as bruxas não podiam chorar, mas que o Diabo podia simular as lágrimas). Nos casos mais graves, recorria-se à prova da água: a acusada (muitas vezes amarrada a uma grande pedra) era jogada na água. Se afundasse, era inocente. Se, ao contrário, boiasse, queria dizer que era culpada, sendo protegida por um sortilégio do demônio. Os interrogatórios eram realizados em meio a perguntas e armadilhas criadas especialmente para confundir o imputado. Por exemplo, diante da pergunta "Você acredita em bruxas?", responder "não" significava negar a própria existência do Diabo e, assim, assumir o crime de heresia. Responder "sim" ocasionava outras perguntas dos juízes, como: "Quantas bruxas você conhece?" e assim por diante.

As bruxas, por sua vez, espontaneamente ou sob tortura, muitas vezes acusavam outras pessoas que supostamente teriam participado com elas dos sabás e que acabaram processadas. Às vezes, as acusadas, por vingança, davam os nomes dos próprios acusadores, criando, assim, uma lúgubre reação em cadeia que podia durar anos e envolver centenas de pessoas.

Mas o processo por bruxaria tinha uma diferença muito importante em relação àquele por heresia. O herege que confessasse e abjurasse imediatamente diante dos juízes podia ser absolvido logo ou, no máximo, receber uma leve punição (constando dos autos que, se fosse novamente processado, a morte seria certa). A bruxa que confessasse "espontaneamente" seria absolvida da acusação de heresia, mas os juízes mandariam seu caso ao tribunal "leigo" para que sofresse os efeitos "civis" de suas ações.13

As penas por bruxaria variavam de castigos corporais e períodos de exílio a, nos casos mais graves, prisão perpétua ou a fogueira. Às vezes, como gesto de clemência, a bruxa era estrangulada antes de ser queimada. Às vezes, eram queimados junto com a bruxa os autos do processo, como ato de purificação. Por isso, também, não há como documentar o número exato de bruxas executadas, apenas aproximadamente.

As estimativas mais prudentes dão, para o período entre o final do século XIV e o final do século XVII, um balanço que oscila entre 70 e 320 mil vítimas. Mas há quem fale de milhões de mortos.14 A estes, acrescentem-se as pessoas mortas, talvez anos depois, em conseqüência das torturas sofridas; as mortas de fome por causa do exílio ou por terem sido isoladas da sociedade após serem "marcadas" como bruxas; e os familiares dos "hereges bruxos", condenados à miséria em conseqüência do confisco dos bens. E sabe-se lá em quantos povoados pequenos e isolados, após uma colheita ruim ou a morte de animais, os próprios habitantes processaram e mataram "com as próprias mãos" uma suposta bruxa, sem que tenhamos qualquer testemunho por escrito.


A tortura

A primeira tortura era psicológica: a suposta bruxa era levada à sala de interrogatório, onde eram expostos todos os instrumentos de suplício. Em seguida, era despida diante do magistrado, depilada e coberta com um lençol.

A tortura mais branda eram as chibatadas. Depois havia a "corda": os braços eram amarrados atrás por uma corda presa à polé; a vítima era içada, provocando o deslocamento do ombro. Ainda mais cruel que a polé era o cavalo de estiramento, um pedaço de madeira triangular com a ponta virada para cima: "O corpo da torturada era deitado e amarrado apertado à ponta, que lhe penetrava na carne, do pescoço aos glúteos. Então em suas mãos e pernas eram amarrados pesos cada vez mais pesados; ou cordas ligadas a uma roda que girava com a ajuda de uma manivela. Puxando as cordas, todo o corpo era esticado, e os membros, após algumas horas, soltavam-se do corpo."'5 Outra prática era a de acender uma fogueira sob os pés da vítima. E havia as tenazes, cujo uso deixamos a cargo da sua imaginação, e muitos outros instrumentos.

Teoricamente, a tortura deveria durar um tempo limitado, e um médico supervisionava as operações para garantir que o imputado não corresse risco de vida ou sofresse danos graves à saúde. Mas, na verdade, o suplício continuava ao sabor do inquisidor, e não eram raros os casos de mulheres mortas ou estropiadas de forma irreversível em razão das sevícias sofridas.


UMA BREVE LISTA

Fazemos aqui uma lista de alguns dos maiores processos por bruxaria que talvez possam dar uma idéia de como devia ser o dia-a-dia na época da caça às bruxas.

Como, 1416: ao longo do ano, trezentas bruxas foram queimadas na fogueira.

Sion, 1420: setecentos supostos adeptos de uma seita que adorava o diabo, em forma de urso ou bode, foram processados. Deles, cem confessaram sob tortura e foram queimados vivos.

Rouen, 1430: Joana d'Arc morre na fogueira por heresia e bruxaria. No seu caso, são evidentes as motivações políticas da sentença.

Como, 1484: sessenta bruxas são queimadas na fogueira.

Mirandola, 1522-1523: o processo "de Mirandola" atinge com firmeza centenas de cidadãos, a ponto de ser lembrado como o "pogrom de Mirandola". A violência com que os acusados foram tratados foi tal que fez os cidadãos que assistiam à execução exclamarem: "Não é justo que esses homens sejam mortos de maneira tão cruel."

Genebra, 1513: em três meses, quinhentas bruxas foram queimadas.

Como, 1514: trezentas bruxas foram justiçadas como "reincidentes ou impenitentes". Fontes da época falam de uma média de cem bruxas executadas por ano também nos anos sucessivos, a ponto de o inquisidor ser repreendido pelo excesso de zelo.

Noruega, 1544: na luterana Dinamarca, os católicos foram equiparados às bruxas. Só neste ano, 52 pessoas foram executadas.

Languedoc (França), 1557: o parlamento local mandou queimar quatrocentas pessoas.

Paris, 1565-1640:1.119 pessoas foram julgadas em 75 anos. Foram executadas cem sentenças de morte, quase sempre de pessoas abastadas.

Genf, 1571: 21 mulheres foram queimadas em maio.

Lorena, 1576-1606: o juiz Nicolas Remy se vangloriou de ter mandado à fogueira entre duas mil e três mil bruxas no período (uma média de cerca de duas por semana).

Bordeaux, 1577: quatrocentas bruxas são mandadas à morte pela corte soberana de Bordeaux.

Alemanha, 1560 (aproximadamente): os príncipes protestantes processaram, torturaram e condenaram à fogueira algumas centenas de bruxas.

Inglaterra, 1560-1600: sob o reinado de Elisabete I, 314 vítimas foram queimadas na fogueira, na maioria mulheres.

Treviri, 1587-1593: sob as ordens do arcebispo-eleitor Johann Von Schöneburg, ligado aos jesuítas, foram queimadas vivas 368 bruxas em 22 povoados. Em dois deles, apenas uma mulher foi deixada viva. Dentre as vítimas do arcebispo, havia também protestantes e judeus, além do ultracatólico reitor da universidade e magistrado Dietrich Flade. Este, acusado de ter sido clemente demais para com as bruxas, foi preso, torturado, estrangulado e queimado.

Nesses mesmos anos, a caça às bruxas provocaria a destruição de povoados inteiros na Suíça e a execução de 311 bruxas na região francesa do Vaud.

Triora (Ligúria), 1588: a responsabilidade de uma pesada escassez foi atribuída às bruxas. Na verdade, como se descobriria depois, não houve nenhuma escassez, os influentes locais é que se apoderaram do fruto das colheitas para vendê-los a preços altos. Enquanto isso, a intervenção da Inquisição mandou prender e torturar dezenas de mulheres e um suposto bruxo, todos acusados também de se relacionar com protestantes. Treze mulheres morreram torturadas, seis foram condenadas à morte e uma se suicidou na prisão para escapar das sevícias.

Val Mesolcina, 1593: o cardeal Carlos Borromeu (santificado em 1610) favorece a condenação de várias mulheres. Oito bruxas foram amarradas de cabeça para baixo e jogadas no alto na fogueira.

Ao longo de todo o século XVI, somam-se ao menos mil execuções na Dinamarca, quantidade análoga na Escócia, e quase duzentas fogueiras erguidas na Noruega.

Alemanha, 1600, (aproximadamente): o caçador de bruxas Balthasar Ross deu início a uma atividade própria. Ele chegava de surpresa nos povoados com um tribunal itinerante. As bruxas eram presas, processadas, torturadas com novos instrumentos inventados por ele, condenadas e queimadas. Em três anos de trabalho, ele conseguiria matar 250 mulheres e seria amplamente recompensado pelo príncipe e pelas autoridades locais.

Inglaterra, 1600 (aproximadamente): o arcebispo de Saint Andrew, acamado por uma grave doença, manda chamar a curandeira Alison Peirsoun. Esta o cura e ele, em compensação, manda que seja presa, torturada e, finalmente, condenada à morte.

Mântua, 1603: o duque de Mântua mandou afixar um decreto no qual previa uma recompensa de 50 escudos para quem denunciasse uma bruxa.

Zagarramurdi (Países Bascos), 1614: após um processo que durou quatro anos e um interrogatório de 300 testemunhas, foram condenadas 12 bruxas. Sete foram queimadas vivas, as outras cinco morreram durante o processo e foram queimadas "em efígie" (ou seja, um retrato seu foi jogado nas chamas).

Würtzburg, 1623-1631: o príncipe católico Filipe von Ehrenburg mandou novecentas pessoas à fogueira, dentre as quais o sobrinho, 19 cardeais católicos condenados por sodomia e algumas crianças de 5 a 7 anos acusadas de ter tido relações sexuais com o Demônio.

Oppenau, 1631-1632: um processo mandou à fogueira 8% da população.

Inglaterra, 1645-1647: o caçador de bruxas Matthew Hopkins viajava pelas cidades e povoados cobrando uma libra esterlina por cada bruxa que conseguisse fazer condenar. Só na província de Suffolk, ele conseguiu fazer enforcar 98 mulheres. O próprio Hopkins conduzia os interrogatórios e se voltava principalmente contra mulheres jovens, que torturava após violentar repetidas vezes.

Polônia, 650-1700 (aproximadamente): calcula-se que o número de vítimas da caça às bruxas seja em torno de dez mil pessoas.

Salem (Massachusetts), 1692: uma escrava negra confessou ter induzido as moças da cidade a participar de uma dança noturna com práticas de magia e dá o nome de alguns membros importantes do local. Tem início uma espécie de histeria coletiva que levaria à morte várias pessoas. Um total de 155 meninas, moças e jovens mulheres seriam processadas, e 20 delas acabariam na fogueira.

Suíça, 1782: a última bruxa é queimada na fogueira.

Polônia, 1793: a última bruxa é queimada na fogueira.


Ordálio

O termo "ordálio" deriva do anglo-saxão "ordeal", "juízo". Sua definição técnico-jurídica é: procedimento em que "forças sobrenaturais se manifestam dando seu próprio juízo sobre uma questão que provoca uma conseqüência jurídica."16

Alguns estudiosos afirmam que o "juízo de Deus" já era mencionado na Bíblia.17 Entretanto, até hoje, é difícil saber se a Igreja aprovava os ordálios, uma vez que o Quarto Concilio de Latrão (1215) os vetou explicitamente.

Na verdade, o "juízo de Deus" não foi vetado de fato. Por vezes, foi utilizado até por eremitas e monges na tentativa de tornar Deus testemunha de suas próprias razões, passando por cima das instituições eclesiásticas.

Nos primeiros séculos do cristianismo, muitos eremitas e missionários cristãos utilizaram de várias formas a prova do fogo para testemunhar a própria fé ou ser absolvidos de acusações infames.

O missionário Bonifácio, diante dos exércitos russo e alemão, submeteu-se à prova do fogo em nome de Deus. Conta-se que os espectadores, ao ver que seu corpo não queimava, converteram-se ao cristianismo.

A Igreja Católica do século XIII, já estatizada e hierarquizada, não podia permitir que houvesse outras fontes de legitimação espiritual e de santificação além das bulas provenientes da Santa Sé.18 Mas o instituto do ordálio sobreviveu de fato ainda por séculos e foi reintroduzido durante os processos por bruxaria.

O primeiro ordálio, surgido na Alemanha, foi a prova da fogueira, que consistia em fazer uma pessoa vestida com uma camisola coberta de cera passar por entre duas fileiras de galhos em chamas. Em 1098, um camponês da região da Provença, Pierre Barthélemy, submeteu-se espontaneamente à prova, conseguindo passar incólume através das duas fileiras de oliveiras em chamas colocadas a uma distância de pouco mais de um pé umas das outras.

Outro ordálio era a prova do ferro de marcar, que devia ser segurado na mão como se fosse um buquê de flores. O manuscrito Saxo Gramaticus fala de Poppus, que se submeteu à prova para demonstrar a verdade do cristianismo.

Ordálio semelhante é o da água fervente: a pessoa submetida à prova devia pegar um objeto dentro de um caldeirão cheio de água ou óleo fervente. Dizem que uma escrava teutoa acusou a ama de infidelidade, e ambas passaram pela prova.

A ama enfiou a mão e conseguiu pegar o objeto, enquanto a escrava se queimou e foi morta com um banho de água fervente.

Outro ordálio, ainda, era o da água fria (usada não por acaso contra as bruxas). O examinado era submerso em uma banheira de água fria com o polegar da mão e o indicador do pé amarrados. Se afundasse, era inocente; se boiasse (por ao menos cinco minutos) era culpado.

O último ordálio de que falaremos é a prova da Bíblia. O acusado subia sobre o prato de uma balança, enquanto do outro lado era colocada uma Bíblia. Se seu peso fosse inferior ao do livro, era condenado. As Bíblias da época pesavam cerca de 25kg.


Os bem-andantes, os bruxos "bons"

Por volta do final do século XVI, os inquisidores do Friuli viram-se diante de casos de bruxaria que não se encaixavam nos esquemas conhecidos.

Alguns camponeses eram conhecidos nas redondezas por sua capacidade de curar as pessoas atingidas por males. Um deles, como disse um pároco ao inquisidor da diocese de Aquiléia em 1575, declarara ser um "bem-andante" e se vangloriara de "vagar pela noite com bruxos e gnomos".19

O inquérito, de início, avançou lentamente (foi interrompido em 1575 e retomado apenas em 1580), mas no final chegou a confirmar a presença de um fenômeno muito difundido. Segundo a lenda, os "bem-andantes", homens e mulheres, durante o sono entravam em uma espécie de transe durante o qual a alma saía do corpo em forma de "fumaça", ratos ou outros pequenos animais. Como as bruxas, eles chegavam ao lugar de encontro (os campos do Vêneto ou do Friuli, mas também o vale bíblico de Josafá) voando, sozinhos ou cavalgando sobre pequenos animais, e, como as bruxas, reuniam-se com seus semelhantes para realizar feitos mágicos. Ao contrário das bruxas, no entanto, os bem-andantes não utilizavam ungüentos para voar, não participavam de orgias, não abjuravam a fé católica e não adoravam o diabo. Ao contrário, eles afirmavam que lutavam 'em nome da religião e de Cristo' contra as bruxas e magos maus, e para defender a colheita.

Ninguém se dizia bem-andante, mas nascia assim. Todas as crianças que viessem ao mundo de "camisa", ou seja, cobertas por uma película placentária, como se fosse uma roupa, eram potenciais bem-andantes, desde que guardassem a membrana e a levassem sempre consigo. Em geral, os futuros xamãs eram avisados do futuro que lhes esperava por suas mães ou por um bem-andante "ancião", que o visitava pessoalmente ou em sonho. Por volta dos 20 anos, nas noites de quinta-feira da quarta têmpora,20 eles eram chamados em sonho por um "capitão" ou anjo. Quando chamados, seu espírito abandonava o corpo e voava com o capitão. O destino era um campo onde lhe esperava uma luta contra bruxas e magos malvados. Os bruxos bons lutavam com ramos de funcho, os maus, com galhos de sorgo. Caso os primeiros vencessem, a colheita daquele ano seria boa; se fossem os segundos, o ano seria péssimo.

Os bem-andantes eram vinculados com o máximo segredo a suas ações e aos nomes de seus companheiros e dos bruxos adversários, sob pena de receberem pauladas "em sonho" durante a noite. Na verdade, muitas vezes falavam de suas atividades, por orgulho ingênuo ou para tirar alguma vantagem. A eles era atribuída a capacidade de curar pessoas atingidas por encantamentos e de reconhecer uma bruxa à primeira vista. As mulheres nascidas com a "camisa" podiam falar com os mortos. Todos esses eram dons que podiam trazer alguma vantagem econômica.21

Os inquisidores, durante os interrogatórios, tentavam insinuar habilmente a suspeita de que "o anjo" visto pelos bem-andantes era ninguém menos que o Demônio disfarçado e incluir nos relatos dos malfadados xamãs elementos típicos do "sabá" das feiticeiras, como a presença de "belas cadeiras", utilizadas pelo Diabo como trono, e de danças e "diversões".

Os camponeses continuaram repetindo que apenas as bruxas se entregavam a "diversões", enquanto eles se reuniam para promover o bem. Mas, no final, cederam à pressão psicológica e às armadilhas das perguntas capciosas e admitiram, ainda que renegando a própria fé, terem sido vítimas do Maligno.

Os autos dos processos contra os que nasceram com a "camisa" registraram uma evolução ao longo dos anos. O retrato do bem-andante se afastou cada vez mais daquele do "bruxo bom" para assumir o aspecto de bruxo malvado, apóstata da fé e adorador de Satanás. O que impressiona é o fato de muitos inquisidores investigarem cuidadosamente as pessoas que os bem-andantes afirmavam ter visto em sonho. De qualquer modo, nenhum foi condenado pelo simples "chamado em sonho".

As condenações da Inquisição contra os bem-andantes entre 1581 e 1705 foram, somando tudo, leves: muitos foram repreendidos ou tiveram de abjurar publicamente, alguns foram detidos por poucos meses ou banidos temporariamente. Apenas dois de 16 condenados foram exilados para sempre.22 O bem-andante Michele Soppe morreu na prisão antes da sentença, talvez pelas péssimas condições da detenção.23

Muitos processos foram interrompidos, muitos supostos bem-andantes considerados inencontráveis não foram procurados. É provável que a Inquisição estivesse mais preocupada com a infiltração das teses luteranas, cujos adeptos foram identificados e perseguidos com eficiência e rapidez.

Além disso, entre o final do século XVI e a metade do século XVII, o interesse dos inquisidores pelos sabás diminuiu, enquanto aumentou seu ceticismo. Mas ainda que não tenha sido uma tragédia material, o fim dos bem-andantes representou um crime cultural e significou a destruição da vida para muitos acusados, obrigados a viver à margem da sociedade.


Xamãs europeus

Os bem-andantes não eram os únicos "bruxos bons" presentes na Europa. Em 1692, na Letônia, Thiess, um homem de mais de 80 anos, declarou aos juízes que era um lobisomem e que três noites por ano (Santa Lúcia, Pentecostes e São João) os licantropos se transformavam em lobos e se dirigiam ao Inferno para pegar dos diabos e dos bruxos maus os grãos da colheita que estes haviam roubado. Os licantropos batiam nos bruxos com açoites de ferro, enquanto estes, por sua vez, os expulsavam com cabos de vassoura.24

Thiess, irritado com as perguntas dos inquisidores, repetiu várias vezes que os lobisomens eram "cães de Deus", que expulsavam o Diabo com todas as suas forças e que, sem eles, este roubaria todos os frutos da Terra. Os lobisomens russos e alemães faziam o mesmo. Thiess, que não voltava atrás de suas declarações, foi, por fim, condenado a dez chibatadas.

As semelhanças com os bem-andantes do Friuli são evidentes. Talvez os "nascidos com a camisa" e os licantropos letões representassem os últimos remanescentes de um culto xamanista pré-cristão antes difundido em várias áreas da Europa e que sobrevivera em algumas zonas marginais, como os campos do Friuli e o extremo norte. Até hoje, na Istria ou na Dalmácia, há terapeutas e "antibruxos" nascidos com a "camisa".25

No caso específico dos bem-andantes, talvez haja um elemento a mais de originalidade. Segundo dom Gilberto Pressacco (1945-1997), seus ritos reuniriam também elementos da tradição estática dos Terapeutas de Alexandria, veiculada no Friuli através dos sermões de Ermagora, discípulo de São Marcos (de origem alexandrina) e fundador da Igreja de Aquiléia.26 Assim como os lobisomens, originalmente bons, foram transformados pela tradição cristã em seres negativos, os bem-andantes acabaram sendo identificados com os próprios demônios que combatiam. 

PASMEM




FONTES PARA ESTUDO

1.  De um cântico medieval popular sobre a mulher, extraído de Vanna De Angelis, Le Streghe. Roghi, riti,
processi e posizioni. Casale Monferrato, Edizioni Piemme, 1999, p. 161. 2.. J.M. Sallmann, Le streghe: amanti di Satana. Paris, Universale Electa Gallimard, 1995.
3.   Benazzi, D'Amico. Il Libro Nero delllnquisizione. La ricostruzione dei grandi processi. Casale Monferrato, Edizioni Piemme, 1998, p. 263-5.
4.   Ibid.,p.261.
5.   ibid., p. 256-7.
6.   Ibid., p. 268.
7.   J.M. Sallmannm, op. cit, p. 81.
8.   Vanna De Angelis, op. cit, p. 269.
9.   Tommaso Campanella, Del senso delle cose e delia magia citado em Benazzi, D'Amico, op. cit, p. 268.
10. Benazzi, D'Amico, op. cit, p. 251-3.
11. Vanna De Angelis, op. cit, p. 382-3.
12. Citado em Benazzi, D'Amico, op. cit, p. 268.
13. A Igreja julgava se uma bruxa estava mais ou menos possuída pelo demônio, mas se sua bruxaria tivesse causado danos a propriedades ou pessoas, ela era julgada por um tribunal civil.
14. Benazzi, D'Amico, op. cit, p. 269.
15. Vanna De Angelis, op. cit, p. 28-29.
16. C. De Vesme, Ordalie, roghi e torture, Gênova, Fratelli Melita Editori, 1987.
17. Provérbios XVI, 33.
18.G.G. Merlo, Eretici ed eresie medievali, Bolonha, Il Mulino, 1998.
19. Cario Ginzburg, I benandanti: stregoneria e culti agrari tra Cinquecento e Seicento. Tunm, Einaudi, 1966, p.4.
20. Chamam-se têmporas os três dias de jejum prescritos pelo calendário eclesiástico na primeira semana da Quaresma (têmpora de primavera), na oitava de Pentecostes (têmpora de verão), na terceira semana de setembro (têmpora de outono) e na terceira semana do Advento (têmpora de inverno).
21. Para um maior aprofundamento sobre o fenômeno dos bem-andantes, reportamo-nos às seguintes obras: Cario Ginzburg, / benandanti: stregoneria e culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Einaudi, Turim, 1966. Franco Nardon, Benandanti e inquisitori nel Friuli dei Seicento, Edizioni Università di Trieste, Trieste,1999.
22. Franco Nardon, op. cit, p. 138.
23. Cario Grinzburg, op. cit, p. 181.
24. Ibid.,p. 47-51.
25. Franco Nardon, op. cit, p. 94.
26. Raffaella Paluzzano e Gilberto Pressacco, Viaggio nella notte delia Chiesa di Aquiléia, Udine, Gaspari Editore, 1998.





segunda-feira, 26 de outubro de 2015

BÍBLIA - PROIBIDA SUA LEITURA







Inacreditável, mas verdadeiro. Em alguns períodos, traduzir a Bíblia para uma língua compreensível pelo povo era um crime que podia custar a vida. Ter o Evangelho em casa era proibido a quem não fosse sacerdote.

Judeus, cristãos e muçulmanos são chamados também de "povos do Livro", pois baseiam a própria fé, os próprios preceitos e hábitos em textos ditados (ou inspirados) por Deus. De acordo com essas religiões, o fiel não só tem o direito, como o "dever" de ler, estudar e entender as Escrituras. Por exemplo, no mundo protestante, a leitura e o conhecimento da Bíblia representam uma tradição. Já no mundo católico, apenas há algumas décadas os altos escalões da Igreja levantaram a questão de uma "alfabetização bíblica" dos fiéis. Essas diferenças culturais têm causas históricas precisas.

O problema das religiões baseadas em uma revelação escrita é a língua. O que acontece quando uma crença desse tipo se difunde entre outros povos ou quando, no próprio local em que nasce, a evolução natural no decorrer dos séculos faz a linguagem mudar? Acontece, de forma banal, que a Revelação corre o risco de não mais ser compreendida pela maior parte dos crentes.


A Bíblia dos Setenta e a Vulgata

Antes mesmo do suposto nascimento de Jesus, os judeus, que tinham várias comunidades espalhadas por todo o oriente helênico, precisavam enfrentar esse exato problema. A Bíblia (biblia, que, em grego, significa "livros"), sendo na maior parte escrita em hebraico,1 não era de fácil compreensão para muitos judeus, principalmente os de segunda ou terceira geração, que não dominavam mais a língua de seus antepassados.

Além disso, havia muitos "gentios" (ou seja, "não-judeus") de língua grega que se aproximavam com curiosidade do culto judaico. Assim, no século III a.C, a comunidade judaica de Alexandria, no Egito, traduziu as Escrituras do hebraico para o grego, produzindo a versão conhecida como "Bíblia dos Setenta", pois setenta eruditos teriam trabalhado em sua tradução, pelo que diz a tradição.

Séculos depois, em Roma, quando o cristianismo já estava difundido no Ocidente e tinha se tornado religião de Estado, surgiu o mesmo problema. A Bíblia dos cristãos (ou pelo menos dos adeptos da Igreja "oficial") era composta pelo "Antigo Testamento" (ou seja, a velha Bíblia judaica, já traduzida para o grego) e o "Novo Testamento", uma coleção de vários textos (Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, Atos dos Apóstolos, Epístolas, Apocalipse de João) escritos em grego.

São Jerônimo (347-420) traduziu para o latim — a língua mais difundida nos territórios ocidentais do Império Romano — a Bíblia cristã. Ainda hoje, a versão por ele traduzida é conhecida com o nome de Vulgata (ou seja, "popular", "acessível", "divulgada").

São Jerônimo viu-se diante de questões complexas e perigosas de tipo filológico e teológico, como a adoção do cânone. De fato, os judeus completaram o cânone bíblico séculos após a tradução dos Setenta, excluindo vários livros já presentes na edição alexandrina (Tobias, Judite I e II, Macabeus, Baruc e Lamentações de Jeremias, Sabedoria, Eclesiástico, partes de Ester e de Daniel). No final, Jerônimo decidiu incluir em sua tradução os livros já presentes na tradução dos Setenta, embora não considerando todos eles canônicos.

A questão do cânone bíblico está em aberto até hoje. Os católicos (apenas do parecer contrário de Jerônimo) consideram sagrados todos os livros contidos na Vulgata. Os protestantes, por outro lado, consideram o Antigo Testamento como cânones bíblicos mais restritos, e, de acordo com as várias crenças, ou mantiveram livros não canônicos como "apócrifos" ou os arrancaram de suas Bíblias.

Mais ou menos nos mesmos anos, o bispo ariano Wulfila realizou um feito parecido, inventando um novo alfabeto para traduzir a Bíblia para o godo e torná-la, assim, acessível aos povos germânicos. Um século depois, São Patrício difundiu o Evangelho em língua celta, para cristianizar a Irlanda.2 Muito mais tarde, São Cirilo sistematizou o alfabeto glagolítico, antepassado do atual cirílico, para difundir sua fé entre os povos eslavos.

Com a queda do Império Romano do Ocidente, o latim foi caindo em desuso e, na Europa, nasceram as chamadas línguas "vulgares", das quais derivam nossas atuais línguas nacionais. No início do século XI, na Europa, o latim só era falado de fato por doutores e juristas, uma língua desconhecida pelas pessoas comuns.


Bíblia - heresia

Pareceria lógico, portanto, que a Igreja da época promovesse energicamente a tradução da Bíblia para as novas línguas nacionais, de modo que os fiéis pudessem, se não estudá-las (pouquíssimos sabiam ler e escrever), pelo menos ouvi-la em uma língua compreensível. Mas não. Pelo contrário, a partir do século XIII, todas as tentativas de tornar as Escrituras compreensíveis para o povo foram condenadas e seus artífices foram perseguidos. Por quê? Os hereges e aqueles que contestavam o poder da Igreja utilizavam as Sagradas Escrituras para demonstrar para o povo como a Igreja oficial havia se distanciado do mandamento evangélico originário de pobreza e humildade.

Em 1199, o papa Inocêncio III (o promotor da Cruzada contra os cátaros) lançou-se contra os leigos, homens e mulheres, que "em reuniões secretas chamaram para si o direito de expor os escritos e pregar uns aos outros".3 Em 1229, o Concilio de Toulouse, convocado no sul da França, onde haviam sido exterminadas dezenas de milhares de hereges, proibiu que os leigos possuíssem e lessem a Bíblia, especialmente aquela em língua vulgar, com exceção dos Salmos e dos passos contidos nos breviários autorizados.4

De fato, o estudo e a pregação da Bíblia eram atividades reservadas ao clero. Os que ousavam infringir o status quo corriam o risco de ser acusados de heresia e mandados para a fogueira. É possível até afirmar que, a partir dessa época, não houve mais processo contra hereges em que os réus não fossem acusados também de "tradução e leitura não autorizada dos Evangelhos".


A invenção da imprensa e as novas proibições

Em meados do século XV, Gutenberg inventou a prensa de tipos móveis, e a primeira obra a ser produzida com o novo sistema foi exatamente a Bíblia. "A invenção da prensa e o uso do papel contribuíram para aumentar a difusão dos livros, tornando a heresia mais difícil de ser controlada. De fato, enquanto queimar um manuscrito herético produzido através de um cansativo trabalho de cópia que durava semanas ou meses podia significar a anulação completa daquela expressão de pensamento heterodoxo específico — especialmente se, junto com o manuscrito, seu dono também acabava na fogueira —, destruir todas as cópias de uma edição feita na prensa parecia quase impossível."5

Em 1492, os bastante cristãos reis da Espanha proibiram a tradução da Bíblia em língua vulgar. No início do século XVI, uma tradução francesa do Novo Testamento fez tanto sucesso que alarmou a Faculdade de Teologia de Paris e levou o Parlamento, em 1526, a ordenar, por força de lei, a apreensão de todas as traduções bíblicas e a proibir que os tipógrafos as imprimissem no futuro.6

Quando Lutero começou a traduzir a Bíblia em alemão (e outros, animados com seu exemplo, fizeram o mesmo nas várias línguas nacionais), o alto clero católico o acusou de golpe. Eis o que escreveu uma comissão de prelados sobre o assunto, em um relatório enviado ao papa em 1553:




É preciso fazer todos os esforços possíveis para que a leitura do Evangelho ' seja permitida o mínimo possível... O pouco que se lê na missa já basta, que ler mais do que aquilo não seja permitido a quem quer que seja. Enquanto os homens se contentaram com aquele pouco, os interesses de Vossa Santidade prosperaram, mas quando se quis ler mais, começaram a ficar prejudicados.

Em suma, aquele livro [o Evangelho] foi o que, mais que qualquer outro, suscitou contra nós aqueles turbilhões e tempestades em que por pouco não nos perdemos inteiramente.

E se alguém o examinar inteira e cuidadosamente e depois comparar as instruções da Bíblia com o que se faz nas nossas igrejas, perceberá logo as divergências e verá que nossa doutrina muitas vezes é diferente e, mais ainda, contrária ao texto: o que quer que o povo entendesse, não pararia de reclamar de nós até que tudo fosse divulgado, e então nos tornaríamos objeto de desprezo e de ódio de todo o mundo.
Por isso, é preciso tirar a Bíblia da vista do povo, mas com grande cautela, para não dar ensejo a tumultos.7

Estranhamente, a Itália da época estava em condições melhores do que outros países europeus. Lá, no final do século XV, já haviam se difundido várias divulgações dos livros sagrados, antecipando-se às traduções em alemão e francês, e outras foram lançadas nas décadas seguintes, encontrando um notável sucesso de público.8

Depois da explosão do cisma luterano, as autoridades eclesiásticas adotaram um comportamento ambivalente sobre as traduções italianas das Escrituras. De um lado, toleravam-nas com reserva, tendo em vista a grande requisição dos fiéis (até os analfabetos podiam conhecer seu conteúdo, pedindo que alguém o lesse). Do outro, a posse e a leitura de uma Bíblia em língua vulgar podiam levantar suspeitas de heresia. Foi, por exemplo, o caso do pintor Riccardo Perucolo, condenado pela Inquisição, que confessara calmamente ao juiz que lia o Novo Testamento para entender melhor os sermões do padre.

As traduções do Antigo e do Novo Testamento fizeram tanto sucesso entre o povo e as mulheres de todas as condições sociais que alarmaram as autoridades eclesiásticas. "Qualquer um de nós quer as condições, seja fêmea ou macho, idiota (analfabeto) ou letrado, para entender as mui profundas questões da teologia e da escritura divina", escreveu, escandalizado, uma testemunha da época. E outro intelectual lamenta que "aos impuros, soldados, vendedores de ferro-velho, açougueiros, tintureiros, batedores de lã, pedreiros e ferradores [conferissem, junto com as mulheres, o direito de] expor a Escritura, falar de algo tão importante e ler para os prelados da Igreja" (Fragnito, 1997, p. 73).


A Bíblia na fogueira

Em 1558, o inquisidor de Veneza proibiu que os tipógrafos da cidade imprimissem traduções da Bíblia em língua vulgar.

O Índex (lista de livros que os católicos eram proibidos de ler ou possuir, salvo com permissão especial da autoridade eclesiástica), de 1559, vedava de forma peremptória que qualquer pessoa imprimisse, lesse ou possuísse uma Bíblia traduzida em qualquer língua vulgar, salvo se permitido pela Santa Inquisição de Roma. Edições posteriores do Índex revogaram pelo menos parte da proibição, que foi mantida, no entanto, por prelados mais zelosos.

Em 1571, o bispo de Cagli e Pergola proibiu que as clarissas do mosteiro de Monteluce lessem a Bíblia em italiano.

O novo Índex, de 1596, revalidou a proibição. "A Igreja tentava, com uma operação sem precedentes, suprimir qualquer traço residual do texto sagrado em italiano." (Fragnito, 1997, p. 197.) Nas décadas que se sucederam, centenas de Bíblias e Evangelhos proibidos foram recolhidos em igrejas, conventos e residências privadas, e queimados. Tratava-se não só de obras escritas por hereges e protestantes, mas também de traduções aprovadas e comentadas por eclesiásticos católicos.

Em 1605, o embaixador veneziano Francesco Contarini, defendendo a causa da Sereníssima, ameaçada por um interdito papal, afirmou que os teólogos venezianos não atacavam a Santa Sé em seus sermões, mas se limitavam a expor passagens das Escrituras. O papa Paulo V então rebateu: "Não sabeis (como) a leitura da Escritura estraga a religião católica?" (Fragnito, 1997, p. 130.)

Seria preciso esperar até 1758 para rever na Itália traduções das Sagradas Escrituras em língua vulgar.   




Padre Paulo Ricardo nos ensina que a interpretação da bíblia não é de caráter pessoal e que só a Igreja Católica tem condições de discernir a verdadeira palavra de Deus contida na bíblia através da sua hermenêutica.

Após tecer duras críticas sobre o calvinismo, denuncia a presença de padres hereges dentro da sua própria igreja.








 FONTE PARA ESTUDOS

1.   Com exceção do Livro da Sabedoria e do Livro dos Macabeus, que são em grego, mas são considerados apócrifos pelo povo judeu.

2.   Donini, Storia dei cristianesimo - dalle origine a Giustiniano, Milão, Teti editore, 1977, p. 322-3.

3.   Epístola Cum ex iniuncto, de 12 de julho de 1199.

4.   David Christie-Murray, I percorsi delle eresie, Milão, Rusconi, 1998, p. 156.

5.   Gigliola Fragnito, La Bibbia ai rogo: Ia censura ecciesiastica ei volgarizzamenti delia Scrittura (1471-1605), Il Mulino, Bolonha, 1997, p. 24.
6.   Ibid

7.   Avvisi riguardo aimezzipiü opportuni per sostenere Ia Chiesa romana, Bolonha, 20 de outubro de 1553. Biblioteca Nacional de Paris, folha B, n. 1088, vol. Il, p. 641/650.

8.   Gigliola Fragnito, op. cit, p. 25-74.