Inacreditável, mas verdadeiro. Em alguns períodos, traduzir a Bíblia para uma língua compreensível pelo povo era um crime que podia custar a vida. Ter o Evangelho em casa era proibido a quem não fosse sacerdote.
Judeus, cristãos e muçulmanos são chamados também de "povos do
Livro", pois baseiam a própria fé, os próprios preceitos e hábitos em
textos ditados (ou inspirados) por Deus. De acordo com essas religiões, o fiel
não só tem o direito, como o "dever" de ler, estudar e entender as
Escrituras. Por exemplo, no mundo protestante, a leitura e o conhecimento da
Bíblia representam uma tradição. Já no mundo católico, apenas há algumas décadas
os altos escalões da Igreja levantaram a questão de uma "alfabetização
bíblica" dos fiéis. Essas diferenças culturais têm causas históricas
precisas.
O problema das religiões baseadas em uma revelação escrita é a língua.
O que acontece quando uma crença desse tipo se difunde entre outros povos ou
quando, no próprio local em que nasce, a evolução natural no decorrer dos
séculos faz a linguagem mudar? Acontece, de forma banal, que a Revelação corre
o risco de não mais ser compreendida pela maior parte dos crentes.
A Bíblia dos Setenta e a Vulgata
Antes mesmo do suposto nascimento de Jesus, os judeus, que tinham
várias comunidades espalhadas por todo o oriente helênico, precisavam enfrentar
esse exato problema. A Bíblia (biblia, que, em grego, significa
"livros"), sendo na maior parte escrita em hebraico,1 não
era de fácil compreensão para muitos judeus, principalmente os de segunda ou
terceira geração, que não dominavam mais a língua de seus antepassados.
Além disso, havia muitos "gentios" (ou seja, "não-judeus")
de língua grega que se aproximavam com curiosidade do culto judaico. Assim, no
século III a.C, a comunidade judaica de Alexandria, no Egito, traduziu as
Escrituras do hebraico para o grego, produzindo a versão conhecida como
"Bíblia dos Setenta", pois setenta eruditos teriam trabalhado em sua
tradução, pelo que diz a tradição.
Séculos depois, em Roma, quando o cristianismo já estava difundido no
Ocidente e tinha se tornado religião de Estado, surgiu o mesmo problema. A
Bíblia dos cristãos (ou pelo menos dos adeptos da Igreja "oficial")
era composta pelo "Antigo Testamento" (ou seja, a velha Bíblia
judaica, já traduzida para o grego) e o "Novo Testamento", uma
coleção de vários textos (Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, Atos dos
Apóstolos, Epístolas, Apocalipse de João) escritos em grego.
São Jerônimo (347-420) traduziu para o latim — a língua mais difundida
nos territórios ocidentais do Império Romano — a Bíblia cristã. Ainda hoje, a
versão por ele traduzida é conhecida com o nome de Vulgata (ou seja,
"popular", "acessível", "divulgada").
São Jerônimo viu-se diante de questões complexas e perigosas de tipo
filológico e teológico, como a adoção do cânone. De fato, os judeus completaram
o cânone bíblico séculos após a tradução dos Setenta, excluindo vários livros
já presentes na edição alexandrina (Tobias, Judite I e II, Macabeus, Baruc e
Lamentações de Jeremias, Sabedoria, Eclesiástico, partes de Ester e de Daniel).
No final, Jerônimo decidiu incluir em sua tradução os livros já presentes na
tradução dos Setenta, embora não considerando todos eles canônicos.
A questão do cânone bíblico está em aberto até hoje. Os católicos
(apenas do parecer contrário de Jerônimo) consideram sagrados todos os livros
contidos na Vulgata. Os protestantes, por outro lado, consideram o
Antigo Testamento como cânones bíblicos mais restritos, e, de acordo com as
várias crenças, ou mantiveram livros não canônicos como "apócrifos"
ou os arrancaram de suas Bíblias.
Mais ou menos nos mesmos anos, o bispo ariano Wulfila realizou um
feito parecido, inventando um novo alfabeto para traduzir a Bíblia para o godo
e torná-la, assim, acessível aos povos germânicos. Um século depois, São
Patrício difundiu o Evangelho em língua celta, para cristianizar a Irlanda.2
Muito mais tarde, São Cirilo sistematizou o alfabeto glagolítico, antepassado
do atual cirílico, para difundir sua fé entre os povos eslavos.
Com a queda do Império Romano do Ocidente, o latim foi caindo em
desuso e, na Europa, nasceram as chamadas línguas "vulgares", das
quais derivam nossas atuais línguas nacionais. No início do século XI, na
Europa, o latim só era falado de fato por doutores e juristas, uma língua
desconhecida pelas pessoas comuns.
Bíblia - heresia
Pareceria lógico, portanto, que a Igreja da época promovesse energicamente
a tradução da Bíblia para as novas línguas nacionais, de modo que os fiéis
pudessem, se não estudá-las (pouquíssimos sabiam ler e escrever), pelo menos
ouvi-la em uma língua compreensível. Mas não. Pelo contrário, a partir do
século XIII, todas as tentativas de tornar as Escrituras compreensíveis para o
povo foram condenadas e seus artífices foram perseguidos. Por quê? Os hereges e
aqueles que contestavam o poder da Igreja utilizavam as Sagradas Escrituras
para demonstrar para o povo como a Igreja oficial havia se distanciado do
mandamento evangélico originário de pobreza e humildade.
Em 1199, o papa Inocêncio III (o promotor da Cruzada contra os
cátaros) lançou-se contra os leigos, homens e mulheres, que "em reuniões
secretas chamaram para si o direito de expor os escritos e pregar uns aos
outros".3 Em 1229, o Concilio de Toulouse, convocado no sul da
França, onde haviam sido exterminadas dezenas de milhares de hereges, proibiu
que os leigos possuíssem e lessem a Bíblia, especialmente aquela em língua
vulgar, com exceção dos Salmos e dos passos contidos nos breviários
autorizados.4
De fato, o estudo e a pregação da Bíblia eram atividades reservadas ao
clero. Os que ousavam infringir o status quo corriam o risco de ser
acusados de heresia e mandados para a fogueira. É possível até afirmar que, a
partir dessa época, não houve mais processo contra hereges em que os réus não
fossem acusados também de "tradução e leitura não autorizada dos
Evangelhos".
A invenção da imprensa e
as novas proibições
Em meados do século XV, Gutenberg inventou a prensa de tipos móveis, e
a primeira obra a ser produzida com o novo sistema foi exatamente a Bíblia.
"A invenção da prensa e o uso do papel contribuíram para aumentar a
difusão dos livros, tornando a heresia mais difícil de ser controlada. De fato,
enquanto queimar um manuscrito herético produzido através de um cansativo
trabalho de cópia que durava semanas ou meses podia significar a anulação
completa daquela expressão de pensamento heterodoxo específico — especialmente
se, junto com o manuscrito, seu dono também acabava na fogueira —, destruir
todas as cópias de uma edição feita na prensa parecia quase impossível."5
Em 1492, os bastante cristãos reis da Espanha proibiram a tradução da
Bíblia em língua vulgar. No início do século XVI, uma tradução francesa do Novo
Testamento fez tanto sucesso que alarmou a Faculdade de Teologia de Paris e
levou o Parlamento, em 1526, a ordenar, por força de lei, a apreensão de todas
as traduções bíblicas e a proibir que os tipógrafos as imprimissem no futuro.6
Quando Lutero começou a traduzir a Bíblia em alemão (e outros,
animados com seu exemplo, fizeram o mesmo nas várias línguas nacionais), o alto
clero católico o acusou de golpe. Eis o que escreveu uma comissão de prelados
sobre o assunto, em um relatório enviado ao papa em 1553:
É preciso fazer todos os esforços possíveis para que a
leitura do Evangelho ' seja permitida o mínimo possível... O pouco que se lê na
missa já basta, que ler mais do que aquilo não seja permitido a quem quer que
seja. Enquanto os homens se contentaram com aquele pouco, os interesses de
Vossa Santidade prosperaram, mas quando se quis ler mais, começaram a ficar
prejudicados.
Em suma, aquele livro [o Evangelho] foi o que, mais que
qualquer outro, suscitou contra nós aqueles turbilhões e tempestades em que por
pouco não nos perdemos inteiramente.
E se alguém o examinar inteira e cuidadosamente e depois
comparar as instruções da Bíblia com o que se faz nas nossas igrejas, perceberá
logo as divergências e verá que nossa doutrina muitas vezes é diferente e, mais
ainda, contrária ao texto: o que quer que o povo entendesse, não pararia de
reclamar de nós até que tudo fosse divulgado, e então nos tornaríamos objeto de
desprezo e de ódio de todo o mundo.
Por isso, é preciso tirar a Bíblia da vista do povo, mas
com grande cautela, para não dar ensejo a tumultos.7
Estranhamente, a Itália da época estava em condições melhores do que
outros países europeus. Lá, no final do século XV, já haviam se difundido
várias divulgações dos livros sagrados, antecipando-se às traduções em alemão e
francês, e outras foram lançadas nas décadas seguintes, encontrando um notável
sucesso de público.8
Depois da explosão do cisma luterano, as autoridades eclesiásticas
adotaram um comportamento ambivalente sobre as traduções italianas das
Escrituras. De um lado, toleravam-nas com reserva, tendo em vista a grande
requisição dos fiéis (até os analfabetos podiam conhecer seu conteúdo, pedindo
que alguém o lesse). Do outro, a posse e a leitura de uma Bíblia em língua
vulgar podiam levantar suspeitas de heresia. Foi, por exemplo, o caso do pintor
Riccardo Perucolo, condenado pela Inquisição, que confessara calmamente ao juiz
que lia o Novo Testamento para entender melhor os sermões do padre.
As traduções do Antigo e do Novo Testamento fizeram tanto sucesso
entre o povo e as mulheres de todas as condições sociais que alarmaram as
autoridades eclesiásticas. "Qualquer um de nós quer as condições, seja
fêmea ou macho, idiota (analfabeto) ou letrado, para entender as mui profundas
questões da teologia e da escritura divina", escreveu, escandalizado, uma
testemunha da época. E outro intelectual lamenta que "aos impuros,
soldados, vendedores de ferro-velho, açougueiros, tintureiros, batedores de lã,
pedreiros e ferradores [conferissem, junto com as mulheres, o direito de] expor
a Escritura, falar de algo tão importante e ler para os prelados da
Igreja" (Fragnito, 1997, p. 73).
A Bíblia na fogueira
Em 1558, o inquisidor de Veneza proibiu que os tipógrafos da cidade
imprimissem traduções da Bíblia em língua vulgar.
O Índex (lista de livros que os católicos eram proibidos de ler ou
possuir, salvo com permissão especial da autoridade eclesiástica), de 1559,
vedava de forma peremptória que qualquer pessoa imprimisse, lesse ou possuísse
uma Bíblia traduzida em qualquer língua vulgar, salvo se permitido pela Santa
Inquisição de Roma. Edições posteriores do Índex revogaram pelo menos parte da
proibição, que foi mantida, no entanto, por prelados mais zelosos.
Em 1571, o bispo de Cagli e Pergola proibiu que as clarissas do
mosteiro de Monteluce lessem a Bíblia em italiano.
O novo Índex, de 1596, revalidou a proibição. "A Igreja tentava,
com uma operação sem precedentes, suprimir qualquer traço residual do texto
sagrado em italiano." (Fragnito, 1997, p. 197.) Nas décadas que se
sucederam, centenas de Bíblias e Evangelhos proibidos foram recolhidos em
igrejas, conventos e residências privadas, e queimados. Tratava-se não só de
obras escritas por hereges e protestantes, mas também de traduções aprovadas e
comentadas por eclesiásticos católicos.
Em 1605, o embaixador veneziano Francesco Contarini, defendendo a
causa da Sereníssima, ameaçada por um interdito papal, afirmou que os teólogos
venezianos não atacavam a Santa Sé em seus sermões, mas se limitavam a expor
passagens das Escrituras. O papa Paulo V então rebateu: "Não sabeis (como)
a leitura da Escritura estraga a religião católica?" (Fragnito, 1997, p.
130.)
Seria preciso esperar até 1758 para rever na Itália traduções das Sagradas
Escrituras em língua vulgar.
Padre Paulo Ricardo nos ensina que a interpretação da bíblia não é de caráter pessoal e que só a Igreja Católica tem condições de discernir a verdadeira palavra de Deus contida na bíblia através da sua hermenêutica.
Após tecer duras críticas sobre o calvinismo, denuncia a presença de padres hereges dentro da sua própria igreja.
Padre Paulo Ricardo nos ensina que a interpretação da bíblia não é de caráter pessoal e que só a Igreja Católica tem condições de discernir a verdadeira palavra de Deus contida na bíblia através da sua hermenêutica.
Após tecer duras críticas sobre o calvinismo, denuncia a presença de padres hereges dentro da sua própria igreja.
1. Com exceção do Livro da Sabedoria e do Livro
dos Macabeus, que são em grego, mas são considerados apócrifos pelo povo judeu.
2. Donini, Storia dei cristianesimo - dalle
origine a Giustiniano, Milão, Teti editore, 1977, p. 322-3.
3. Epístola Cum ex iniuncto, de 12 de
julho de 1199.
4. David Christie-Murray, I percorsi delle
eresie, Milão, Rusconi, 1998, p. 156.
5. Gigliola Fragnito, La Bibbia ai rogo: Ia
censura ecciesiastica ei volgarizzamenti delia Scrittura (1471-1605), Il Mulino,
Bolonha, 1997, p. 24.
6. Ibid
7. Avvisi riguardo aimezzipiü opportuni per
sostenere Ia Chiesa romana, Bolonha, 20 de outubro de 1553. Biblioteca
Nacional de Paris, folha B, n. 1088, vol. Il, p. 641/650.
8. Gigliola Fragnito, op. cit, p. 25-74.
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