No que consistia a
doutrina das indulgências? "Acreditava-se que Jesus em pessoa, a Virgem
Maria e muitos santos tivessem ganhado, durante sua vida, um surplus de mérito
que poderia ser distribuído entre os cristãos menos praticantes da fé e que
haviam, ao contrário deles, acumulado um déficit em razão dos pecados
cometidos, e, para expiá-los, deveriam passar um longo período de tempo no
Purgatório.
Os papas,
depositários, através de Pedro, das chaves da Igreja, tinham acesso a esse
tesouro e podiam estendê-lo aos pecadores que precisassem de uma diminuição na
pena. Estes podiam, assim, privar-se de parte das riquezas acumuladas durante a
vida terrena e receber em troca a riqueza espiritual dos santos. Mesmo não
sendo possível comprar a salvação, podia-se, no entanto, pagar pela remissão
(mesmo total) da pena." (David Christie-Murray, 1998, p. 169.)
O auge dessa
prática se deu durante o pontificado de João de Mediei, o Leão X (1513-1521),
que lançou uma aberta política de venda de indulgências. Verdadeiros mascates
percorreram a Europa vendendo "cartas de indulgência", quase
bônus-Paraíso, que podiam ser comprados sem maiores formalidades, mas
desconcertando muitos crentes genuínos.
Em 1517, foi
divulgada a Taxa Camarae, uma lista das indulgências previstas para os vários
pecados, com um tarifário a elas referentes, reportado a seguir:
1. O eclesiástico
que incorrer em pecado carnal, seja com freiras, primas, sobrinhas, afilhadas
ou, enfim, com outra mulher qualquer, será absolvido mediante o pagamento de 67
libras e 12 soldos.
2. Se o eclesiástico, além do pecado de
fornicação, pedir para ser absolvido do pecado contra a natureza ou de
bestialidade, deverá pagar 219 libras e 15 soldos. Mas se tiver cometido pecado
contra a natureza com crianças ou animais, e não com uma mulher, pagará apenas
131 libras e 15 soldos.
3. O sacerdote que deflorar uma virgem pagará 2
libras e 8 soldos.
4. A religiosa que quiser ser abadessa após ter
se entregado a um ou mais homens simultânea ou sucessivamente, dentro ou fora
do convento, pagará 131 libras e 15 soldos.
5. Os sacerdotes que quiserem viver em
concubinato com seus parentes pagarão 76 libras e 1 soldo.
6. Para cada pecado de luxúria cometido por um
leigo, a absolvição custará 27 libras e 1 soldo.
7. A mulher adúltera que pedir a absolvição
para se ver livre de qualquer processo e ser dispensada para continuar com a
relação ilícita pagará ao papa 87 libras e 3 soldos. Em um caso análogo, o
marido pagará o mesmo montante; se tiverem cometido incesto com o próprio
filho, acrescentar-se-ão 6 libras pela consciência.
8. A absolvição e a certeza de não ser
perseguido por crime de roubo, furto ou incêndio custarão ao culpado 131 libras
e 7 soldos.
9. A absolvição de homicídio simples cometido
contra a pessoa de um leigo custará 15 libras, 4 soldos e 3 denários.
10. Se o assassino
tiver matado dois ou mais homens em um único dia, pagará como se tivesse
assassinado um só.
11. O marido que
infligir maus-tratos à mulher pagará às caixas da chancelaria 3 libras e 4
soldos; se a mulher for morta, pagará 17 libras e 15 soldos; e se a tiver
matado para se casar com outra, pagará mais 32 libras e 9 soldos. Quem tiver
ajudado o marido a perpetrar o crime será absolvido mediante o pagamento de 2
libras por cabeça.
12. Quem afogar o
próprio filho pagará 17 libras e 15 soldos (ou seja, 2 libras a mais que aquele
que matar um desconhecido), e se pai e mãe o tiverem matado de comum acordo,
pagarão 27 libras e 1 soldo pela absolvição.
13. A mulher que
destruir o filho que carrega no ventre e o pai que contribuir para a realização
do crime pagarão 17 libras e 15 soldos cada. Aquele que facilitar o aborto de
uma criatura que não for seu filho pagará 1 libra a menos.
14. Pelo
assassinato de um irmão, uma irmã, mãe ou pai, pagar-se-ão 17 libras e 5
soldos.
15. Aquele que
matar um bispo ou prelado de hierarquia superior pagará 131 libras, 14 soldos e
6 denários.
16. Se o assassino
tiver matado mais sacerdotes em várias ocasiões pagará 137 libras e 6 soldos
pelo primeiro homicídio e a metade pelos seguintes.
17. O bispo ou
abade que cometer homicídio por emboscada, acidente ou estado de necessidade
pagará, para conseguir a absolvição, 179 libras e 14 soldos.
18. Aquele que
quiser comprar antecipadamente a absolvição por qualquer homicídio acidental
que possa vir a cometer no futuro pagará 168 libras e 15 soldos.
19. O herege que se converter pagará, pela
absolvição, 269 libras. O filho do herege que tiver sido queimado, enforcado ou
executado de qualquer outra forma poderá ser readmitido apenas mediante o
pagamento de 218 libras, 16 soldos e 9 denários.
20. O eclesiástico
que, não podendo pagar os próprios débitos, quiser se livrar de ser processado
pelos credores entregará ao pontífice 17 libras, 8 soldos e 6 denários, e a
dívida lhe será perdoada.
21. Será concedida a
licença para a instalação de postos de venda de vários gêneros sob os pórticos
das igrejas mediante o pagamento de 45 libras, 19 soldos e 3 denários.
22. O delito de
contrabando e fraude aos direitos do príncipe custará 87 libras e 3 denários.
23. A cidade que
quiser que seus habitantes ou sacerdotes, freis ou monjas obtenham licença para
comer carne e laticínio em épocas em que é proibido pagará 781 libras e 10
soldos.
24. O mosteiro que
quiser variar a regra e viver com menos abstinência do que a prescrita pagará
146 libras e 5 soldos.
25. O frade que,
por conveniência própria ou gosto, quiser passar a vida em um ermitério com uma
mulher dará ao tesouro pontifício 45 libras e 19 soldos.
26. O apóstata
vagabundo que quiser viver sem obstáculos pagará igual quantia pela absolvição.
27. Igual montante
pagarão os religiosos, sejam eles seculares ou regulares, que queiram viajar em
trajes de leigo.
28. O filho
bastardo de um sacerdote que queira preferência para suceder o pai na cúria
pagará 27 libras e 1 soldo.
29. O bastardo que
queira receber ordens sagradas e gozar de seus benefícios pagará 15 libras, 18
soldos e 6 denários.
30. O filho de pais
desconhecidos que queira entrar para as ordens pagará ao tesouro pontifício 27
libras e 1 soldo.
31. Os leigos feios
ou deformados que queiram receber ordenamentos sagrados e ter benefícios
pagarão à chancelaria apostólica 58 libras e 2 soldos.
32. Igual quantia
pagará o vesgo do olho direito, enquanto o vesgo do olho esquerdo pagará ao
papa 10 libras e 7 soldos. Os estrábicos bilaterais pagarão 45 libras e 3
soldos.
33. Os eunucos que
queiram entrar para as ordens pagarão a quantia de 310 libras e 15 soldos.
34. Aquele que, por
simonia, queira comprar um ou muitos benefícios se dirigirá aos tesoureiros do
papa, que lhe venderão os direitos a preços módicos.
35. Aquele que,
tendo descumprido um juramento, queira evitar qualquer perseguição e se livrar
de qualquer tipo de infâmia pagará ao papa 131 libras e 15 soldos. Além disso,
dará 3 libras para cada um que ouviu o juramento.1
TARIFA
DA CHANCELARIA E PENITENCIÁRIA DE JOÃO XXII.
1 - Pela absolvição do
que tiver violado uma mulher numa igreja, ou cometido outros que tais
sacrilégios, 6 gros.
2 - Pela absolvição
dum clérigo que mantiver concubinagem, com dispensa de irregularidade, e apesar
das proibições provinciais, e sinodais, 7 gros.
3 - Pela absolvição do
que tiver cometido incesto com sua mãe, sua irmã, ou qualquer outra mulher que
seja sua parente, por sangue ou aliança, ou com a sua madrinha, 6 gros.
4 - Pela absolvição do
que tiver desflorado uma virgem, 6 gros.
5 - Pela absolvição de
um perjúrio, 6 gros.
6 - Pela absolvição do
que tiver morto seu pai, sua mãe seu irmão, sua irmã, ou algum parente secular,
5 a 7 gros. pelo morto. (Se o assassínio for um parente, pertencente à Igreja,
deverá o matador visitar a Santa Sé.)
7 - Pela absolvição de
um marido que tiver espancado sua mulher, e desse espancamento lhe haja
resultado aborto, 6 gros.
8 - Pela absolvição
duma mulher, que servindo-se de uma beberagem, ou de outra qualquer trama,
promover um aborto, 6 gros.
Nota. - No caso de
que seja clérigo o homem que tiver administrado a beberagem, ou promovido o
aborto, este crime será considerado como o de morte de secular, e a pena será a
mesma.
9 - Pela absolvição de
pilhagens, incêndio, roubo e assassinatos de seculares com dispensa, 8
gros.
Não havia crime,
nem o mais cruel, que não pudesse ser perdoado mediante pagamento.
Naqueles anos, o
dominicano Tetzel percorreu a Alemanha vendendo cartas de indulgência. Mais
tarde, Lutero descreveria sua obra da seguinte forma:
"Seus poderes e
graça foram ampliados de tal forma pelo papa que, se alguém violasse ou
engravidasse a Virgem Maria, ele teria perdoado aquele pecado assim que uma
quantia de dinheiro suficiente fosse colocada em sua bolsa... Ele redimiu mais
almas com as indulgências do que São Pedro com seus sermões; quando era
colocado em sua bolsa um dinheiro pelo Purgatório... a alma se elevava
imediatamente para o Paraíso; não havia necessidade de comprovar dor ou
arrependimento por um pecado se era possível comprar indulgências ou cartas de
indulgência. Tetzel vendia até o direito de poder pecar no futuro... qualquer
coisa era garantida em troca de dinheiro."2
A venda de
indulgências era apenas a ponta do iceberg de um fenômeno geral de corrupção na
Igreja da época. Os altos prelados acumulavam mais encargos e as relativas
prebendas. Os bispos não residiam nas sedes a eles designadas: por exemplo, um
nobre de Ferrara podia ser nomeado arcebispo na Hungria e nunca sair de sua
casa, limitando-se a receber o dízimo dos fiéis de cujas almas devia cuidar.
O título de cardeal
(que era o "príncipe", também em sentido terreno) muitas vezes não
era resultado de um longo percurso espiritual, mas da venda ou concessão do
papa a parentes e amigos. Quem podia se permitir o comprava para o filho caçula
ou ilegítimo, por vezes adolescente, como uma renda vitalícia. O próprio Leão X
(1513-1521) se tornara cardeal aos 13 anos.
Os pontífices eram,
em todos os aspectos, soberanos renascentistas. Como os reis, eliminavam os
adversários e se cercavam de homens de confiança. Como os reis, usavam a
intriga e o homicídio político, como o papa Alexandre VI Bórgia (1492-1503),
por exemplo, e seu filho César. Como os reis, declaravam guerra contra seus
inimigos e conduziam as tropas na batalha; o papa Júlio II (1503-1513) foi
retratado em armadura.3 Como os reis, tinham concubinas e filhos
bastardos. E, como os reis, amavam as artes e protegiam os artistas. Mas os
cuidados com as almas nada tinham a ver com tudo isso.
Lutero (1483-1546)
foi ordenado sacerdote em 1507, após ter concluído brilhantes estudos
universitários. Atormentado com o sentido do pecado, sua ânsia o levou a
elaborar uma nova doutrina da Salvação, em contraposição à católica. Para
Lutero, a absolvição do pecado derivava de uma relação direta entre Deus e o
fiel, que poderia ser obtida apenas através da própria fé, não por meio de
obras e, muito menos, com a compra de indulgências ou a intervenção de um
confessor.4
Lutero defendeu o
direito que cada fiel tem de ler e interpretar as Escrituras, negou a
autoridade jurisdicional do papa, dando início a uma vigorosa polêmica contra a
corrupção da Igreja de Roma, e contestou o poder temporal do clero. Negou
também a validade de alguns sacramentos e o valor do celibato eclesiástico.
Em 31 de outubro de
1517, afixou na porta de uma igreja as "95 teses para esclarecer a
eficácia das indulgências", que suscitaram grandes polêmicas e tiveram
ampla difusão em toda a Alemanha.
Em 15 de junho de
1520, uma bula papal condenou algumas proposições luteranas, ordenando que
fossem queimadas. Lutero, em compensação, queimou, diante de uma multidão que o
aplaudia, o que ele mesmo chamava de "execrável bula anticristo".
Em 1521,
apresentou-se à Dieta de Worms com o salvo-conduto do imperador Carlos V. Ao final
de uma acirrada discussão teológica, Lutero declarou que não podia se remeter à
autoridade do papa e dos concílios, até porque estes muitas vezes se
contradiziam, mas apenas à das Sagradas Escrituras.
Excomungado pela
Igreja e banido pelo imperador, continuou suas atividades ou, ao menos, deu
início a um projeto ambicioso: a tradução das Escrituras para o alemão. Lutero,
com grande probabilidade, salvou-se da fogueira por um conjunto de fatores
deliciosamente políticos: o favor de alguns príncipes alemães, dentre os quais
estava o eleitor da Saxônia, que o escondeu no castelo de Wartburg encenando um
falso rompimento; a desconfiança do papa com relação a Carlos V, cuja
influência se tornara preponderante na Itália; o fato de que o próprio Carlos
V, nos anos seguintes, estivesse ocupado demais com guerras contra turcos,
franceses, venezianos e o próprio Estado Pontifício.
As teses luteranas
eram populares entre os príncipes alemães, que desejavam se apoderar dos bens
dos grandes eclesiásticos: latifúndios enormes com vários servos da gleba e que
gozavam de amplos privilégios fiscais, quase Estados dentro dos Estados.
Lutero também
gozava de grande admiração entre o povo, que reconhecia em algumas de suas
declarações as próprias aspirações de justiça social. Mas as expectativas de
muitos, sob esse ponto de vista, não foram atingidas.
Em 1524, eclodiu
nos territórios do Império uma gigantesca rebelião camponesa. Bandos armados
compostos de cerca de trezentos mil camponeses saquearam igrejas, castelos e
cidades. Lutero, depois de tentar inutilmente uma mediação, escreveu o tratado Contra
os bandos arruaceiros e assassinos dos camponeses, uma espécie de carta aberta
aos príncipes alemães pedindo para conter os rebeldes. "Esta é a época da
ira e da espada, não a da graça [...] Por isso, caros senhores [...] matem,
esganem, estrangulem quem puderem [...] e se alguém julgar tudo isso duro
demais, pense que a sedição é insuportável e que a cada momento é preciso
esperar a catástrofe do mundo."5
Os príncipes
católicos e protestantes acolheram o convite e massacraram os rebeldes. Uma das
características da Igreja Luterana foi o direito de envolvimento dos príncipes
na gestão eclesiástica. O soberano de um Estado se tornava o chefe da Igreja
nacional.
Os escritos de Lutero
tiveram ampla difusão na Europa, com exceção, talvez, apenas da Itália, onde
desencadearam uma severa repressão. Os sermões luteranos se difundiram em
muitos países europeus, em alguns casos fornecendo combustível para as
fogueiras, em outros, com sucesso, transformando a Reforma em religião de
Estado (que perseguiu, por sua vez, os católicos).
A Dinamarca se
tornou protestante com o reinado de Cristiano III (1534-1559). Os bispos
católicos foram presos e substituídos pelos luteranos, as propriedades eclesiásticas
foram confiscadas e utilizadas para manter o Estado e financiar a cultura. O
rei era o chefe da Igreja. A Bíblia foi traduzida para o dinamarquês.
Posteriormente,
Cristiano III estendeu a própria soberania também sobre a Noruega e a Suécia.
Na Noruega, os soldados luteranos demoliram algumas igrejas católicas, e todos
os bispos foram expulsos, com exceção de dois que se converteram ao
luteranismo. Na Suécia, as doutrinas reformadas penetraram de maneira mais
suave e "em diálogo" com Roma. A ruptura só aconteceu em 1523, quando
o papa se recusou a ratificar a nomeação de quatro bispos suecos enquanto não
se pagassem as anonas (um dos tantos tributos que os reinos cristãos deviam à
Santa Sé). O rei da Suécia respondeu que o país era pobre demais para pagar e
nomeou ele próprio os bispos.
Dos países
escandinavos, o luteranismo se propagou pelas regiões bálticas. Na Finlândia,
tornou-se religião de Estado. A Islândia, no século XVI, estava subordinada à
Dinamarca, e o luteranismo chegou com os mercadores e doutos que tinham
estudado no continente (a Universidade de Wittemberg tornara-se um importante
centro de difusão cultural), mas sobretudo pela influência de Cristiano III,
contestada em vão por um bispo local e seus dois filhos. Os prelados católicos
foram depostos, e seus bens, confiscados. Contudo, a Igreja Reformada manteve
várias práticas católicas, como a da confissão e a adoração a alguns santos
locais.
Na Boêmia, a
Reforma se difundiu graças aos estudantes hussitas formados em Wittemberg. Os
alemães da Boêmia se tornaram luteranos; os eslavos, calvinistas, mas depois as
duas correntes elaboraram uma confissão de fé unitária para enfrentar melhor os
soberanos católicos, o que deu ensejo a uma violenta reação dos católicos em
geral e dos jesuítas em particular. Até o final do século XVI, calcula-se que
90% dos boêmios fossem protestantes.
Na Hungria, a
Reforma também se difundiu através de diretrizes "étnicas": alemães e
eslavos se voltavam preferivelmente ao luteranismo; os magiares, com algumas exceções,
ao calvinismo. Vários fatores ajudaram a obra dos reformadores.
Em primeiro lugar,
a corrupção que se espalhou entre o clero e os leigos católicos. Os hussitas e
(provavelmente) os valdenses abriram o caminho.
A invasão turca à
Hungria, em 1541, auxiliou na instituição da Reforma tanto indireta (muitos
líderes católicos foram mortos em combate contra os turcos) quando diretamente:
as forças de ocupação turcas favoreceram os protestantes em detrimento dos
católicos, mais temidos por sua propensão às Cruzadas e sua ligação com o
imperador.6
Na Transilvânia,
alguns decretos de 1568 e 1571 garantiram direitos iguais a católicos,
calvinistas, luteranos e unitaristas.
Calvino
(1509-1564), francês, foi o fundador da Igreja Calvinista, outro grande culto
reformado que se espalhou pela Europa talvez com um sucesso ainda maior que o
luterano. Para Calvino, o pecado original transmitido por Adão a toda a
humanidade tornou os homens incapazes de redenção. Apenas os eleitos, que
haviam recebido uma graça especial de Deus, poderiam se salvar; todos os outros
estavam predestinados à danação.7
Com base nessa
afirmação, ninguém além de Deus podia saber com certeza quem eram os eleitos,
embora a profissão de fé, uma vida correta e a observância dos sacramentos
fossem provas evidentes do favor divino. Existem, assim, duas Igrejas: uma
invisível, formada pelos eleitos vivos e mortos e conhecida apenas por Deus; e
uma visível, composta também de homens indignos, imperfeita, mas passível de
melhoras, e os cristãos deveriam respeitar sua autoridade.8
Obviamente, quando falava de "Igreja visível", Calvino se referia
àquela fundada por ele próprio. A Igreja e o Estado eram partes integrantes da
mesma comunidade sagrada. Entre os deveres do Estado, havia o de defender a
religião e evitar as ofensas contra ela. A pena capital e, dadas as condições,
a guerra eram consideradas práticas legítimas e admissíveis para um cristão.
Graças à sua
influência, a República de Genebra se transformou em um regime teocrático, o
que lhe conferiu um incrível impulso para o comércio, os investimentos e a
educação. Um conselho eclesiástico cuidava da moralidade dos cidadãos,
cominando penas severas até mesmo para pequenas infrações, e se ocupava dos
crimes de heresia.9
Considerado herege e
banido da Igreja de Roma, Calvino, por sua vez, teve um comportamento muito
duro com os dissidentes de sua doutrina.10
O calvinismo se
difundiu em vários países, às vezes em detrimento do luteranismo, como em
Estrasburgo, onde muitos reformados aderiram à nova crença, incentivados pela
intransigência dos luteranos mais radicais. No Palatinado, tornou-se religião
de Estado, e o governo perseguiu católicos e luteranos.11
Os huguenotes
|
Catarina de Médici examina os corpos dos protestantes mortos na Noite de São Bartolomeu |
Na França, a
Reforma se difundiu sobretudo no sul do país, onde três séculos antes pregavam
os cátaros e os valdenses. Os calvinistas franceses eram apelidados de
"huguenotes". A disciplina e a moral rígida que os caracterizavam
lhes permitiram exercer grande influência na vida pública francesa, embora
representassem uma pequena minoria dentro de um país quase totalmente católico.
As autoridades
francesas adotaram uma política que se alternava entre tolerância e repressão
aos calvinistas e outras minorias religiosas. A repressão não poupou nem os
seguidores do bispo católico reformista de Meaux, Guillaume Briçonnet
(1492-1549), confessor de Margarida, irmã do rei, que foram lançados à
fogueira. A Sorbonne proibiu livros de reformistas, o Parlamento os baniu e
decretou a destruição de muitas cidades habitadas por comunidades hereges.
Em 1535, para
vingar uma suposta profanação da hóstia sagrada, foram queimados seis hereges,
um por cada uma das estações que compunham a solene procissão do Corpus Domini.12
O ano de 1572
pareceu presenciar um período de paz na luta entre católicos e huguenotes. As
núpcias entre a católica Margarida, irmã do rei da França, e o protestante
Henrique, rei de Navarra, estavam previstas para o dia 28 de agosto. Mas na
noite de São Bartolomeu (24 de agosto), em Paris, os soldados do rei da França
entraram nas casas dos huguenotes e os mataram em emboscadas. Poucos
encontraram abrigo, todas as ruas haviam sido bloqueadas. Nos dias que se
seguiram, o massacre se estendeu também a outras cidades francesas e aos
campos. Calcula-se que, em Paris e arredores, foram mortos entre 25 mil e 35
mil huguenotes.
O papa Gregório
XIII (1572-1585), assim que foi informado do massacre, ordenou que o
acontecimento fosse comemorado com festas solenes e celebrou um jubileu
"no qual os fiéis deveriam agradecer a Deus pela destruição dos huguenotes
e pedir que absolvesse, por completo a França católica".13
Finalmente, encarregou Vasari de imortalizar o feito em um afresco na Sala
Regia do Vaticano.
As contendas
religiosas, que se misturaram às dinásticas pelo trono da França, só tiveram
fim em 1594, quando Henrique IV se tornou rei dos franceses, um protestante
convertido ao catolicismo. "Paris vale uma missa", frase que lhe foi
atribuída, diz tudo sobre as relações entre política e religião.
Em 1598, foi
promulgado o Edito de Nantes, que garantia aos huguenotes a liberdade de culto
e o controle, a título de garantia, de algumas cidades fortificadas. Apesar
disso, as perseguições não cessaram.
Em 1621, os
huguenotes assinaram, na cidade fortificada de La Rochelle, uma verdadeira
declaração de independência. A cidade foi tomada em 1628, após um longo sítio.
Os reformistas perderam, assim, sua cidade e foram obrigados a pagar pesadas
taxas, sendo excluídos por lei do exercício de algumas profissões.
Em 1680, novas
perseguições se iniciaram (Luís XIV, o Rei Sol, não tolerava nenhuma forma de
autonomia no próprio reino). Alguns protestantes emigraram, outros se
converteram à força, por meio de missionários escoltados por bandeiras de
dragões (as forças francesas mais ferozes). Dizem que, em três dias do ano de
1684, foram convertidos sessenta mil huguenotes.
Em 1685, o Edito de
Nantes foi ab-rogado, provocando um novo êxodo de protestantes. Nas montanhas
de Cevennes, um grupo de três mil reformistas guiados, ao que parece, por
alguns "profetas-meninos", desafiou um contingente de seis mil
soldados do exército francês.
Henrique VIII e a Reforma inglesa
A Igreja Anglicana
nasce graças a Henrique VIII"(1509-1547), conhecido por ter tido seis
mulheres (duas repudiadas, duas decapitadas e uma morta no parto). Henrique
iniciara seu reinado com o marco da ortodoxia católica: seguidores das teses
luteranas, como o estudioso Thomas Bilney e o sacerdote William Tyndale, que
traduziu para o inglês o Novo e grande parte do Antigo Testamento, acabaram na
fogueira. Ele próprio escreveu (ou mandou escrever) um libelo antiprotestante e
foi nomeado Defensor Fidei (defensor da fé) pelo papa. Em 1509, casou-se com
Catarina de Aragão, viúva de seu irmão mais velho, Artur, após ter obtido uma
dispensa especial do papa (as leis da época proibiam casamento entre cunhados).
Por volta de 1527,
não havendo tido nenhum filho homem de sua união e desejoso de um herdeiro para
sua dinastia, Henrique tentou obter do papa a anulação do casamento, para poder
se casar com Ana Bolena. O papa indeferiu o pedido, provavelmente porque temia
ofender o imperador Carlos V, sobrinho de Catarina, que já havia saqueado Roma
com suas tropas.
Henrique entrou em
controvérsia com a Igreja Católica. Em 1531, a assembléia geral do clero o
nomeou "chefe supremo da Igreja na Inglaterra" e doou uma notável
quantia em dinheiro à Coroa. Em seguida, o Parlamento decretou que os impostos
religiosos não fossem mais pagos ao papa, mas ao rei, e que a Igreja Anglicana
podia deliberar sobre as próprias questões internas, sem recorrer a Roma.
Quando o papa
excomungou Henrique, o parlamento inglês ab-rogou o chamado "Óbolo de
Pedro", uma taxa papal imposta a todas as famílias pela Igreja de São
Pedro, e proclamou o rei o "único chefe supremo em Terra da Igreja na
Inglaterra". Qualquer referência ao papa foi tirada das missas.
Forest, um frei
praticante, defensor da autoridade absoluta do papa nas questões de fé, foi
acusado de heresia e queimado na fogueira junto com um ídolo de madeira
venerado em Gales. Thomas Moore e o bispo Fisher também foram decapitados por
sua fidelidade a Roma.
Em todas as
igrejas, apareceram uma Bíblia em latim e uma em inglês, para que os leigos
lessem diretamente as Escrituras e verificassem como muitas doutrinas e
costumes católicos não correspondiam aos textos sagrados. Os mosteiros foram
saqueados e destruídos, e seus bens foram confiscados e vendidos.
A ruptura com Roma
não significou a automática adesão às doutrinas luteranas, muito pelo
contrário. Henrique VIII em pessoa, junto com seus bispos, julgou o caso do
luterano John Nicholson, que foi condenado e mandado à fogueira apesar de seu
pedido de perdão.
Sob o reinado de
Henrique e o breve governo de Eduardo VI, os artigos da fé da Igreja Anglicana
foram reescritos várias vezes, alternando posições reformistas e
"católicas", às vezes com resultados tragicômicos. Em 1539, foram
promulgados os Seis Artigos, que reformulavam vários aspectos da doutrina
católica, como o celibato eclesiástico. As infrações seriam punidas com a
fogueira ou com o enforcamento. O arcebispo Cranmer, que se casara, teve de
esconder a mulher. Em 1543, seis pessoas foram executadas num único dia: três
queimadas por heresia e três enforcadas por negarem a supremacia religiosa do
rei.
Maria, a Sanguinária, e Elisabete I
|
Maria, a Sanguinária |
Em 1553, a reação
católica levou ao poder Maria I (chamada também de Maria, a Católica; ou Maria,
a Sanguinária), filha de Henrique VIII e de Catarina de Aragão.
Durante seu breve
reinado, ela ab-rogou todos os provimentos de Henrique VIII e Eduardo e retomou
as leis contra os hereges. Muitos protestantes fugiram do país e os bispos
católicos retomaram a posse de suas sedes. Foram instituídas comissões
especiais com a tarefa de encontrar e processar os hereges em todo o território
do reino. Em cinco anos, 282 pessoas foram mortas por heresia.
|
Elizabeth I |
Elisabete I
(1558-1603) escolheu o meio-termo, criando uma igreja autônoma cujos artigos de
fé representavam um compromisso entre instâncias católicas, luteranas e
calvinistas e contentaram grande parte dos cristãos da Inglaterra. Ela
conservou a oposição ao extremismo: de um lado, aos jesuítas, que ordenaram
vários complôs contra a rainha; de outro, aos puritanos.
Em 1570, Elisabete
foi oficialmente excomungada por Roma (lembremos que esse ato, que excluía os
súditos da obrigação de fidelidade, representava um grave perigo para a
autoridade e a própria vida do monarca), ao que respondeu perseguindo, sem
hesitar, os católicos. Das 187 pessoas mortas durante seu reinado, 123 eram
sacerdotes católicos ou jesuítas.
Puritanos e anglicanos
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Puritanos |
A Igreja da
Inglaterra fora dividida em duas: de um lado, os puritanos, integralistas da
religião, que rejeitavam liturgias e hierarquias eclesiásticas, mas eram
impiedosos com os "pecadores"; de outro, os anglicanos, partidários
do poder, mais tolerantes com o pecado, mas impiedosos com os puritanos.
Os puritanos
(rótulo que na verdade englobava uma constelação de movimentos muito diferentes
entre si) professavam o sacerdócio universal, defendiam a igualdade de todos os
ministros do culto contra a hierarquia dos bispos e condenavam como
"idolatras" a missa e outros rituais anglicanos adaptados dos
católicos. Seu programa "político-social" previa punições severas
contra blasfemos, caluniadores, perjuros, fornicadores e alcoólatras, além da
pena de morte "sem salvação" para os adúlteros. O Parlamento inglês
apoiou seus pedidos. Seus adversários eram a monarquia e o clero institucional.
A luta entre uma Igreja Alta, aliada ao poder real, e uma Igreja Baixa, muito
influente no Parlamento, duraria quase um século, intercalando-se com os vários
fatos históricos da época.14
Os anglicanos
emanaram leis muito severas contra os puritanos: quem não participasse da missa
seria punido com o exílio. Quem fazia "reuniões religiosas particulares"
era condenado a penas graves (o pregador John Bunyan foi preso por 12 anos). Os
escritores e pregadores puritanos corriam o risco de ser colocados na berlinda,
açoitados, marcados com fogo ou ter o nariz e as orelhas arrancados.
A guerra civil e o
período do Commonwealth (1649-1659) marcaram um breve triunfo dos puritanos,
que conseguiram abolir a instituição dos bispos. Mas a sucessiva restauração
voltou a fazer a balança pender para o lado dos anglicanos, que reinstauraram à
força a hierarquia eclesiástica. Só os católicos nunca tiveram seu instante de
triunfo e foram cuidadosamente perseguidos durante todo o século XVII, acusados
de conjuras verdadeiras (como a dos pós) ou inventadas, e excluídos dos cargos
públicos. Em 1689, um Ato de Tolerância garantiu liberdade de culto a batistas,
presbiterianos, congregacionalistas e quacres, mas não aos católicos e
unitaristas.
Na Irlanda, os católicos se rebelam
Apesar do cisma de
Henrique VIII, os irlandeses continuaram tenazmente ancorados pela Igreja
Católica. O arcebispo de Amagh declarou que "esta ilha não pertence a
ninguém além do bispo de Roma, que a entregou aos antepassados do
soberano". Em todas as dioceses, enfrentaram-se dois bispos rivais,
nomeados respectivamente pelo papa e pelo rei.
A destruição dos
mosteiros revelou-se uma verdadeira catástrofe para o povo irlandês, já que
eram os únicos centros de difusão da cultura e da assistência. A destruição das
imagens sagradas gerou o horror dos fiéis. Bispos e eclesiásticos anglicanos
comportaram-se com grande arrogância em relação aos irlandeses, não se
preocupando nem em convertê-los. Os habitantes da ilha, apoiados pelos jesuítas
a partir de 1542, reagiram criando a Liga Católica, para se defender da
obrigação de freqüentar as igrejas protestantes e para difundir a instrução. A
existência de uma oposição católica organizada representaria um obstáculo
durante todo o reinado da rainha Elisabete.
FONTE DE ESTUDOS
1. Pepe Rodriguez, Verità e menzogne delia
Chiesa Cattolica, Roma, Editori Riuniti, 1998, p. 263-266.
2. David Christie-Murray, I percorsi delle
eresie, Milão, Rusconi, 1998, p. 180.
3. Uma sátira de Erasmo de Rotterdam imaginava
que o defunto Júlio II, subindo aos céus, foi deixado do lado de fora do Paraíso.
Ele, então, tentou tomar militarmente o Reino dos Céus.
4. Para um aprofundamento sobre a doutrina de
Lutero e sobre a Reforma, cf. Luise Schorn-Schütte, La Riforma protestante. Bolonha,
Il Mulino, 1998.
5. David Christie-Murray, op. cit, p. 202.
6. Ibid., p. 203.
7. Ibid., p.205.
8. ítalo Mereu, Storia dell'lntoleranza in
Europa, Milão, Bompiani, 2000, p. 89.
9. David Christie-Murray, op.
cit, p. 247.
10. Ibid., p. 247-8. 11.Ibid.,p.212.
12. Ibid., p. 212.
13. Ibid., p. 213.
14.0 rei Jaime da
Inglaterra adotou uma política religiosa"centrista": discriminou
tanto católicos quanto extremistas puritanos, atraindo para si o ódio de ambas
as facções. Em 1605, alguns notáveis católicos organizaram uma conspiração para
matar o rei: uma câmara subterrânea localizada embaixo da Câmara dos Lordes foi
cheia de barris de pólvora e barras de ferro. A idéia era explodir o palácio
quando o rei Jaime lá entrasse, junto com seus herdeiros. No último momento,
uma denúncia anônima mandou o plano pelos ares. Guy Fawkes, que deveria ter
sido o executor material do crime, não foi avisado por seus cúmplices e, assim,
em 15 de novembro, dirigiu-se à cela subterrânea com uma tocha e foi preso
pelos agentes reais que lá estavam. Fawkes foi enforcado em 1606, junto com três
supostos cúmplices. O 5 de novembro é celebrado até hoje pelos católicos
irlandeses, e Fawkes é lembrado corno uma espécie de mártir.
Saber Mais:
Martinho Lutero