segunda-feira, 26 de outubro de 2015

BÍBLIA - PROIBIDA SUA LEITURA







Inacreditável, mas verdadeiro. Em alguns períodos, traduzir a Bíblia para uma língua compreensível pelo povo era um crime que podia custar a vida. Ter o Evangelho em casa era proibido a quem não fosse sacerdote.

Judeus, cristãos e muçulmanos são chamados também de "povos do Livro", pois baseiam a própria fé, os próprios preceitos e hábitos em textos ditados (ou inspirados) por Deus. De acordo com essas religiões, o fiel não só tem o direito, como o "dever" de ler, estudar e entender as Escrituras. Por exemplo, no mundo protestante, a leitura e o conhecimento da Bíblia representam uma tradição. Já no mundo católico, apenas há algumas décadas os altos escalões da Igreja levantaram a questão de uma "alfabetização bíblica" dos fiéis. Essas diferenças culturais têm causas históricas precisas.

O problema das religiões baseadas em uma revelação escrita é a língua. O que acontece quando uma crença desse tipo se difunde entre outros povos ou quando, no próprio local em que nasce, a evolução natural no decorrer dos séculos faz a linguagem mudar? Acontece, de forma banal, que a Revelação corre o risco de não mais ser compreendida pela maior parte dos crentes.


A Bíblia dos Setenta e a Vulgata

Antes mesmo do suposto nascimento de Jesus, os judeus, que tinham várias comunidades espalhadas por todo o oriente helênico, precisavam enfrentar esse exato problema. A Bíblia (biblia, que, em grego, significa "livros"), sendo na maior parte escrita em hebraico,1 não era de fácil compreensão para muitos judeus, principalmente os de segunda ou terceira geração, que não dominavam mais a língua de seus antepassados.

Além disso, havia muitos "gentios" (ou seja, "não-judeus") de língua grega que se aproximavam com curiosidade do culto judaico. Assim, no século III a.C, a comunidade judaica de Alexandria, no Egito, traduziu as Escrituras do hebraico para o grego, produzindo a versão conhecida como "Bíblia dos Setenta", pois setenta eruditos teriam trabalhado em sua tradução, pelo que diz a tradição.

Séculos depois, em Roma, quando o cristianismo já estava difundido no Ocidente e tinha se tornado religião de Estado, surgiu o mesmo problema. A Bíblia dos cristãos (ou pelo menos dos adeptos da Igreja "oficial") era composta pelo "Antigo Testamento" (ou seja, a velha Bíblia judaica, já traduzida para o grego) e o "Novo Testamento", uma coleção de vários textos (Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, Atos dos Apóstolos, Epístolas, Apocalipse de João) escritos em grego.

São Jerônimo (347-420) traduziu para o latim — a língua mais difundida nos territórios ocidentais do Império Romano — a Bíblia cristã. Ainda hoje, a versão por ele traduzida é conhecida com o nome de Vulgata (ou seja, "popular", "acessível", "divulgada").

São Jerônimo viu-se diante de questões complexas e perigosas de tipo filológico e teológico, como a adoção do cânone. De fato, os judeus completaram o cânone bíblico séculos após a tradução dos Setenta, excluindo vários livros já presentes na edição alexandrina (Tobias, Judite I e II, Macabeus, Baruc e Lamentações de Jeremias, Sabedoria, Eclesiástico, partes de Ester e de Daniel). No final, Jerônimo decidiu incluir em sua tradução os livros já presentes na tradução dos Setenta, embora não considerando todos eles canônicos.

A questão do cânone bíblico está em aberto até hoje. Os católicos (apenas do parecer contrário de Jerônimo) consideram sagrados todos os livros contidos na Vulgata. Os protestantes, por outro lado, consideram o Antigo Testamento como cânones bíblicos mais restritos, e, de acordo com as várias crenças, ou mantiveram livros não canônicos como "apócrifos" ou os arrancaram de suas Bíblias.

Mais ou menos nos mesmos anos, o bispo ariano Wulfila realizou um feito parecido, inventando um novo alfabeto para traduzir a Bíblia para o godo e torná-la, assim, acessível aos povos germânicos. Um século depois, São Patrício difundiu o Evangelho em língua celta, para cristianizar a Irlanda.2 Muito mais tarde, São Cirilo sistematizou o alfabeto glagolítico, antepassado do atual cirílico, para difundir sua fé entre os povos eslavos.

Com a queda do Império Romano do Ocidente, o latim foi caindo em desuso e, na Europa, nasceram as chamadas línguas "vulgares", das quais derivam nossas atuais línguas nacionais. No início do século XI, na Europa, o latim só era falado de fato por doutores e juristas, uma língua desconhecida pelas pessoas comuns.


Bíblia - heresia

Pareceria lógico, portanto, que a Igreja da época promovesse energicamente a tradução da Bíblia para as novas línguas nacionais, de modo que os fiéis pudessem, se não estudá-las (pouquíssimos sabiam ler e escrever), pelo menos ouvi-la em uma língua compreensível. Mas não. Pelo contrário, a partir do século XIII, todas as tentativas de tornar as Escrituras compreensíveis para o povo foram condenadas e seus artífices foram perseguidos. Por quê? Os hereges e aqueles que contestavam o poder da Igreja utilizavam as Sagradas Escrituras para demonstrar para o povo como a Igreja oficial havia se distanciado do mandamento evangélico originário de pobreza e humildade.

Em 1199, o papa Inocêncio III (o promotor da Cruzada contra os cátaros) lançou-se contra os leigos, homens e mulheres, que "em reuniões secretas chamaram para si o direito de expor os escritos e pregar uns aos outros".3 Em 1229, o Concilio de Toulouse, convocado no sul da França, onde haviam sido exterminadas dezenas de milhares de hereges, proibiu que os leigos possuíssem e lessem a Bíblia, especialmente aquela em língua vulgar, com exceção dos Salmos e dos passos contidos nos breviários autorizados.4

De fato, o estudo e a pregação da Bíblia eram atividades reservadas ao clero. Os que ousavam infringir o status quo corriam o risco de ser acusados de heresia e mandados para a fogueira. É possível até afirmar que, a partir dessa época, não houve mais processo contra hereges em que os réus não fossem acusados também de "tradução e leitura não autorizada dos Evangelhos".


A invenção da imprensa e as novas proibições

Em meados do século XV, Gutenberg inventou a prensa de tipos móveis, e a primeira obra a ser produzida com o novo sistema foi exatamente a Bíblia. "A invenção da prensa e o uso do papel contribuíram para aumentar a difusão dos livros, tornando a heresia mais difícil de ser controlada. De fato, enquanto queimar um manuscrito herético produzido através de um cansativo trabalho de cópia que durava semanas ou meses podia significar a anulação completa daquela expressão de pensamento heterodoxo específico — especialmente se, junto com o manuscrito, seu dono também acabava na fogueira —, destruir todas as cópias de uma edição feita na prensa parecia quase impossível."5

Em 1492, os bastante cristãos reis da Espanha proibiram a tradução da Bíblia em língua vulgar. No início do século XVI, uma tradução francesa do Novo Testamento fez tanto sucesso que alarmou a Faculdade de Teologia de Paris e levou o Parlamento, em 1526, a ordenar, por força de lei, a apreensão de todas as traduções bíblicas e a proibir que os tipógrafos as imprimissem no futuro.6

Quando Lutero começou a traduzir a Bíblia em alemão (e outros, animados com seu exemplo, fizeram o mesmo nas várias línguas nacionais), o alto clero católico o acusou de golpe. Eis o que escreveu uma comissão de prelados sobre o assunto, em um relatório enviado ao papa em 1553:




É preciso fazer todos os esforços possíveis para que a leitura do Evangelho ' seja permitida o mínimo possível... O pouco que se lê na missa já basta, que ler mais do que aquilo não seja permitido a quem quer que seja. Enquanto os homens se contentaram com aquele pouco, os interesses de Vossa Santidade prosperaram, mas quando se quis ler mais, começaram a ficar prejudicados.

Em suma, aquele livro [o Evangelho] foi o que, mais que qualquer outro, suscitou contra nós aqueles turbilhões e tempestades em que por pouco não nos perdemos inteiramente.

E se alguém o examinar inteira e cuidadosamente e depois comparar as instruções da Bíblia com o que se faz nas nossas igrejas, perceberá logo as divergências e verá que nossa doutrina muitas vezes é diferente e, mais ainda, contrária ao texto: o que quer que o povo entendesse, não pararia de reclamar de nós até que tudo fosse divulgado, e então nos tornaríamos objeto de desprezo e de ódio de todo o mundo.
Por isso, é preciso tirar a Bíblia da vista do povo, mas com grande cautela, para não dar ensejo a tumultos.7

Estranhamente, a Itália da época estava em condições melhores do que outros países europeus. Lá, no final do século XV, já haviam se difundido várias divulgações dos livros sagrados, antecipando-se às traduções em alemão e francês, e outras foram lançadas nas décadas seguintes, encontrando um notável sucesso de público.8

Depois da explosão do cisma luterano, as autoridades eclesiásticas adotaram um comportamento ambivalente sobre as traduções italianas das Escrituras. De um lado, toleravam-nas com reserva, tendo em vista a grande requisição dos fiéis (até os analfabetos podiam conhecer seu conteúdo, pedindo que alguém o lesse). Do outro, a posse e a leitura de uma Bíblia em língua vulgar podiam levantar suspeitas de heresia. Foi, por exemplo, o caso do pintor Riccardo Perucolo, condenado pela Inquisição, que confessara calmamente ao juiz que lia o Novo Testamento para entender melhor os sermões do padre.

As traduções do Antigo e do Novo Testamento fizeram tanto sucesso entre o povo e as mulheres de todas as condições sociais que alarmaram as autoridades eclesiásticas. "Qualquer um de nós quer as condições, seja fêmea ou macho, idiota (analfabeto) ou letrado, para entender as mui profundas questões da teologia e da escritura divina", escreveu, escandalizado, uma testemunha da época. E outro intelectual lamenta que "aos impuros, soldados, vendedores de ferro-velho, açougueiros, tintureiros, batedores de lã, pedreiros e ferradores [conferissem, junto com as mulheres, o direito de] expor a Escritura, falar de algo tão importante e ler para os prelados da Igreja" (Fragnito, 1997, p. 73).


A Bíblia na fogueira

Em 1558, o inquisidor de Veneza proibiu que os tipógrafos da cidade imprimissem traduções da Bíblia em língua vulgar.

O Índex (lista de livros que os católicos eram proibidos de ler ou possuir, salvo com permissão especial da autoridade eclesiástica), de 1559, vedava de forma peremptória que qualquer pessoa imprimisse, lesse ou possuísse uma Bíblia traduzida em qualquer língua vulgar, salvo se permitido pela Santa Inquisição de Roma. Edições posteriores do Índex revogaram pelo menos parte da proibição, que foi mantida, no entanto, por prelados mais zelosos.

Em 1571, o bispo de Cagli e Pergola proibiu que as clarissas do mosteiro de Monteluce lessem a Bíblia em italiano.

O novo Índex, de 1596, revalidou a proibição. "A Igreja tentava, com uma operação sem precedentes, suprimir qualquer traço residual do texto sagrado em italiano." (Fragnito, 1997, p. 197.) Nas décadas que se sucederam, centenas de Bíblias e Evangelhos proibidos foram recolhidos em igrejas, conventos e residências privadas, e queimados. Tratava-se não só de obras escritas por hereges e protestantes, mas também de traduções aprovadas e comentadas por eclesiásticos católicos.

Em 1605, o embaixador veneziano Francesco Contarini, defendendo a causa da Sereníssima, ameaçada por um interdito papal, afirmou que os teólogos venezianos não atacavam a Santa Sé em seus sermões, mas se limitavam a expor passagens das Escrituras. O papa Paulo V então rebateu: "Não sabeis (como) a leitura da Escritura estraga a religião católica?" (Fragnito, 1997, p. 130.)

Seria preciso esperar até 1758 para rever na Itália traduções das Sagradas Escrituras em língua vulgar.   




Padre Paulo Ricardo nos ensina que a interpretação da bíblia não é de caráter pessoal e que só a Igreja Católica tem condições de discernir a verdadeira palavra de Deus contida na bíblia através da sua hermenêutica.

Após tecer duras críticas sobre o calvinismo, denuncia a presença de padres hereges dentro da sua própria igreja.








 FONTE PARA ESTUDOS

1.   Com exceção do Livro da Sabedoria e do Livro dos Macabeus, que são em grego, mas são considerados apócrifos pelo povo judeu.

2.   Donini, Storia dei cristianesimo - dalle origine a Giustiniano, Milão, Teti editore, 1977, p. 322-3.

3.   Epístola Cum ex iniuncto, de 12 de julho de 1199.

4.   David Christie-Murray, I percorsi delle eresie, Milão, Rusconi, 1998, p. 156.

5.   Gigliola Fragnito, La Bibbia ai rogo: Ia censura ecciesiastica ei volgarizzamenti delia Scrittura (1471-1605), Il Mulino, Bolonha, 1997, p. 24.
6.   Ibid

7.   Avvisi riguardo aimezzipiü opportuni per sostenere Ia Chiesa romana, Bolonha, 20 de outubro de 1553. Biblioteca Nacional de Paris, folha B, n. 1088, vol. Il, p. 641/650.

8.   Gigliola Fragnito, op. cit, p. 25-74.





domingo, 25 de outubro de 2015

A INQUISIÇÃO

O sexo era pecado, mesmo no seio do matrimônio, mas o cristão casado que fizesse voto de castidade poderia ser suspeito de heresia.



Entre os séculos XI e XII, as penas de morte para os hereges não eram mais um fato inédito, mas a maioria do corpo eclesiástico ainda relutava em aceitar a situação. Pier Damiani (1007-1072) afirmou orgulhosamente que os santos estão dispostos a sacrificar a própria vida pela fé, mas não matam hereges.

Em 1144, Wazo, bispo de Liège, salvou a vida de alguns cátaros que a multidão queria jogar na fogueira.1 O arcebispo de Milão também protestou contra a multidão que havia linchado alguns hereges. Bernardo de Chiaravalle, que contribuiu para prender vários hereges, declarou, no entanto, que estes deveriam ser conquistados com a razão, e não com a força. Em 1162, o papa Alexandre III (1159-1181), julgando o caso de alguns cátaros, declarou que "era melhor perdoar o culpado do que tirar a vida de um inocente". Em 1165, em Narbonne, um debate público pacífico explicou a diferença entre católicos e cátaros.2 Em suma, na Igreja, observavam-se várias tendências sobre como lidar com os hereges.

Na verdade, foi o próprio "clemente" Alexandre III que deu um passo muito importante para o nascimento da futura Inquisição. Usando as deliberações do Terceiro Concilio de Latrão, ele daria aos bispos ordens expressas para investigar sobre os hereges, mesmo com base em meras suspeitas. Ao poder leigo foi reservado o papel de subordinado do braço executivo da instituição eclesiástica.3 Inocêncio III (1198-1216), com os decretos Licetheli, de 1199, e Qualiter et quando, de 1206, estabeleceu que a acusação de heresia podia ser formalizada mesmo com base em "fama pública", ou seja, nos boatos que corriam sobre dada pessoa.4

Em 1229, um concilio reunido em Toulouse, em uma região que retomara a "verdadeira fé" com as armas e o extermínio, criou oficialmente o Tribunal da Santa Inquisição. Mais tarde, o papa Gregório IX (1227-1241) tirou dos bispos o controle dos processos contra os hereges e os confiou a comissários especiais escolhidos entre dominicanos e franciscanos.5 Justamente os membros das ordens mendicantes, que haviam sido acusadas de heresia, tornaram-se os mais ferrenhos perseguidores de quem professava ideias não ortodoxas. Muitos conventos franciscanos foram dotados de prisões para os hereges, mas também para os frades culpados de rebeliões.

A partir desse movimento, a Inquisição adquiriu uma estrutura autônoma, tornando-se uma verdadeira polícia da Igreja, com tarefas de investigação e repressão. Os inquisidores tinham plenos poderes, inclusive o de depor e mandar prender eclesiásticos que defendessem hereges.

O quadro foi completado por Inocêncio IV (1243-1254), que deliberou o recurso à tortura para "promover a obra de fé de maneira mais verdadeira".6 Esta deveria ser realizada por autoridade secular, mas depois, por questões práticas, os inquisidores e seus assistentes também receberam permissão para "sujar as mãos", com a possibilidade de darem a absolvição uns aos outros.7

Além da política de repressão, a Inquisição usou também a de "colaboração". Ainda Inocêncio IV, em 1426, autorizou que fosse reduzido o período de noviciado para os cátaros convertidos que quisessem entrar para a ordem dos dominicanos e se tornar inquisidores. Bonifácio VIII (1294-1303) permitiu "que no processo inquisitório contra a maldade herética se agisse de maneira simples e extrajudicial, longe da confusão dos advogados e do procedimento judiciário".8

Os territórios da cristandade foram divididos em distritos, correspondentes às Províncias das Ordens Mendicantes. Para cada distrito, era designado um inquisidor junto com um séquito de policiais, espiões e torturadores. Os tribunais da Inquisição eram itinerantes. O terreno era preparado por um pregador, que percorria as várias cidades e povoados alguns dias antes do inquisidor e concedia indulgências a todos que abjurassem a eventuais convicções heréticas e dessem o nome de outros pecadores.9 Contemporaneamente, o poder temporal também contribuiu para a luta contra as heresias. Além disso, um Estado cristão que tolerasse a heresia poderia receber excomunhão, interditos, além de correr o risco de ser alvo de uma Cruzada. Frederico Barba-Ruiva, em 1184, declarou os hereges ilegais. Em 1197, Pedro de Aragão os condenou à fogueira.

Como já lembramos, o Tratado de Meaux, de 1229, que sucedeu a Cruzada anticátaros, equiparava o crime de heresia ao de lesa-majestade, delito punível com a pena de morte. O imperador Frederico II emanou, entre 1220 e 1239, uma série de editos cada vez mais cruéis, com os quais condenou os hereges ao confisco dos bens, ao exílio, à prisão perpétua e, finalmente, à fogueira.10

Na França, a condenação à fogueira, já aplicada de fato, tornou-se lei para todos os efeitos em 1270. Na Inglaterra, só foi aprovada em 1401, com o estatuto que tinha o estranho nome de Da haeretico comburendo.11

A aliança entre trono e altar para frear um fenômeno que ameaçava tanto a autoridade civil quanto a religiosa se tornou um dos traços constitutivos da Inquisição também nos anos seguintes à sua criação. Os tribunais da Inquisição emitiam suas condenações, mas era o "braço secular" que as executava.

Portanto, uma denúncia anônima ou a suspeita de heresia já eram suficientes para ser investigado; suspeita essa que podia ser "leve", "veemente" ou "violenta", de acordo com o juiz.12 Até mesmo a prática assídua demais da oração e do jejum podia levantar suspeitas.

Diante dos tribunais da Inquisição, um suspeito era considerado culpado, a menos que conseguisse provar a própria inocência. "Para a Igreja, ser investigado equivale a ser legitimamente suspeito. O inquisidor poderá (ou melhor, deverá) investigar e julgar, partindo sempre da presunção de que o imputado — ou seja, o réu — [...] é culpado, e, consequentemente, deve confessar a própria culpa, o que significa que o inquisidor não deverá julgar com base no fato ou fatos provados, mas na suspeita; não no que retém dos atos, mas no que suspeita ser." (Mereu, 1200, p. 187.) Esse procedimento se contrastava bastante com o direito romano e com o germânico, de origem bárbara, ambos de tipo acusatório (ou seja, o acusador deve fornecer as provas do que afirma, e não o contrário) e baseados na presunção de inocência.

As provas e os depoimentos eram colhidos secretamente, sem o conhecimento do imputado. A construção da acusação não era nada sutil: podiam ser colhidos depoimentos de mulheres, crianças, hereges, excomungados, "arrependidos", inimigos pessoais, mentirosos declarados e criminosos. Os patrões podiam testemunhar contra os empregados, e os empregados contra os patrões. Naturalmente, também eram válidas as declarações conseguidas por meio de tortura.

O suspeito de heresia era convocado pelos inquisidores sem saber as motivações, e quando se apresentava, antes de tudo, era-lhe perguntado se tinha ideia da razão por que fora chamado. Então, as acusações eram lidas de forma sumária. O réu não tinha direito de saber quem o acusava nem de confrontar os acusadores ou ler todos os atos que lhe diziam respeito. Eventuais testemunhas de defesa corriam o risco de, por sua vez, serem acusadas de cumplicidade. Aqueles que colaboravam com os inquisidores, ajudando-os a pegar um suspeito, por exemplo, obtinham, em compensação, as mesmas indulgências que os peregrinos que iam à Terra Santa.

Os processos da Inquisição não acabavam nunca com a total absolvição. Mesmo quando não era condenado, o imputado devia abjurar a heresia da qual era acusado. Em todos os casos, a instrução contra ele podia ser aberta a qualquer momento. O mero fato de ser suspeito de heresia o transformava automaticamente em reincidente em caso de novo processo.

O Manual do inquisidor, de Eymerich, descreve uma série de "malícias" dos acusados nos processos: dar respostas elusivas, dizer que não sabe ou fingir-se de louco. Como diferenciar alguém verdadeiramente louco de quem finge sê-lo? Eymerich não tem dúvidas: "Para ter certeza, será preciso torturar o louco, seja ele falso ou real. Se não for louco, dificilmente continuará sua farsa se tomado de dor."13 Por lei, a tortura só podia ser infligida uma vez, mas na verdade era repetida enquanto o inquisidor achasse necessário, com a desculpa de se tratar de uma única sessão com vários "intervalos".

Se a instrução, a tortura e os debates aconteciam em segredo, a sentença e a subsequente execução mereciam o máximo de publicidade. Como explica um eclesiástico do século XVI: "É preciso lembrar que o principal escopo do processo e da condenação à morte não é salvar a alma do réu, mas buscar o bem público e aterrorizar o povo... Não resta dúvida de que instruir e aterrorizar o povo com o proferimento das sentenças... seja uma boa ação."14

"As sentenças [...] eram executadas aos domingos, durante a grande missa na catedral, com a participação das autoridades civis. Os suspeitos confessavam seus erros e abjuravam publicamente antes de se submeter à penitência (nunca chamada de pena ou punição), que podia ir de tempo de reclusão à morte, passando pela flagelação ou a peregrinação sob coação.15 Aqueles que permanecessem obstinadamente fiéis a suas próprias posições ou que recaíssem na heresia eram conduzidos para fora da igreja e entregues aos magistrados com a recomendação de serem caridosos e não causarem derramamento de sangue. A suprema hipocrisia de tudo isso estava no fato de que, se o magistrado não mandasse as vítimas para a fogueira no dia seguinte, seria processado de co-autoria em heresia."16

Todavia, nem sempre as execuções públicas conseguiam concretizar sua intenção de intimidar o povo. Às vezes, obtinham até o efeito contrário. Em 1279, por exemplo, a multidão que assistia à execução da herege Olivia de Fridolfi, em Parma, ficou tão revoltada com a crueldade do espetáculo (parece que foi queimada "em fogo lento") que deu início a um tumulto. O convento dominicano vizinho, que também hospedava o Tribunal da Inquisição, foi invadido e saqueado. Os frades que lá se encontravam foram expulsos a pauladas.17

Nem os mortos escapavam da fogueira. Vários notáveis e eclesiásticos (mais adiante falaremos do caso de Wycliffe) foram declarados hereges após a morte, e seus corpos foram exumados e entregues às chamas. O primeiro ato da Inquisição espanhola medieval, por exemplo, foi a execução póstuma do conde Raymond de Forcalquier, em 1257. A prática da condenação póstuma não tinha apenas um valor simbólico: a excomunhão era retroativa e previa o confisco dos bens pertencentes aos condenados, prejudicando os herdeiros legítimos.

Em toda a história da Igreja, como já vimos, não faltaram contradições, crimes, perseguições e até guerras por motivos de fé. Mas, muitas vezes, eram decorrentes do fanatismo ou da ambição de soberanos ou pontífices, do clima histórico de outras épocas ou da histeria coletiva. Podia-se falar de "luzes e sombras" de um fenômeno complexo e articulado.

A organização da Inquisição determinou um verdadeiro salto de qualidade dentro dos aparatos burocráticos: a estrutura interna eclesiástica se moldou e adaptou para melhor realizar a obra dos que estavam encarregados de revelar e destruir os hereges. Os bispos foram superados em suas prerrogativas; a delação, a confissão extraída com tortura, o recurso a suplícios públicos e execuções capitais "para dar o exemplo" se tornaram práticas habituais e aceitas, se não abençoadas. E criticar ou obstar o trabalho dos inquisidores era considerado diabólico.

Mas, além disso, aos poucos caiu uma pesada capa sobre todas as práticas religiosas. Podia-se rezar em grupo, mas só nas formas e maneiras consentidas pela Igreja. Podia-se ler o Evangelho, mas só com uma autorização escrita. Podiam-se venerar os santos, mas apenas os "oficiais"; os mortos com "cheiro de santo", não reconhecidos pela Igreja, podiam ser exumados e queimados para evitar o nascimento de cultos populares incontroláveis.18

O sexo era pecado, mesmo no seio do matrimônio, mas o cristão casado que fizesse voto de castidade poderia ser suspeito de heresia. Em suma, tudo que não era proibido era obrigatório. Ou melhor, às vezes o proibido e o obrigatório coincidiam.

A Inquisição medieval chegou ao ápice de sua atividade na metade do século XIV, para chegar a uma lenta decadência nos 150 anos sucessivos, em especial na Itália.19 Os motivos do declínio residiam paradoxalmente no sucesso de sua obra, mas também na vulnerabilidade das nascentes monarquias nacionais a qualquer forma de interferência externa.

A história que causou o cisma de Lutero, por exemplo, é tratada por canais diferentes dos inquisitoriais. Só depois da difusão da Reforma em toda a Europa, a Cúria romana relançou a Inquisição, com a intenção de impedir a difusão das ideias protestantes em todos os territórios que ainda permaneciam sob o controle da Santa Sé.


A Inquisição espanhola

A Inquisição espanhola foi retomada por volta de 1482, por iniciativa do rei Ferdinando. Sua principal característica era a criação de um organismo central chamado "Conselho da Suprema e Geral Inquisição", que tinha a tarefa de organizar e coordenar os vários tribunais distritais, rever os processos presididos pelas cortes locais, julgar pessoalmente os casos mais graves e investigar os próprios inquisidores.

Os membros da "Suprema" eram nomeados formalmente pelo papa, mas quem os escolhia e dirigia era o rei da Espanha. O próprio nome de "Conselho", dado ao novo organismo, já o caracteriza: na época, os conselhos eram órgãos do governo que equivaliam aos nossos ministérios (existia um Conselho de Estado, um da Economia etc.). O primeiro presidente da "Suprema", Diego Espinoza, também era presidente do Conselho de Castela.20 E ainda mais políticas do que religiosas eram as finalidades da nova Inquisição: "O motivo (aparente) de defesa da fé nos reinos espanhóis do século XVI estava perfeitamente conectado à questão (real e verdadeira) da reconstrução da unidade política e social do território, dividido em dois reinos (Castela e Aragão), perturbado pela presença invasora muçulmana (que irá se encerrar com a retomada de Granada), transtornado com as guerras civis financiadas pelos nobres e falido, por causa de tudo isso, sob o ponto de vista econômico."21 A contaminação mútua entre Igreja e Estado e o uso da religião como instrumentum regni se tornaram cada vez mais evidentes.

O mais famoso inquisidor espanhol foi, sem dúvida, o dominicano Tomás de Torquemada (1420-1498), filho de judeus convertidos, homem de vida exemplar e irrepreensível cujo nome parecia já assinalar um destino (em espanhol, torque significa "enforcado", e quemada, "queimada"). O rei Ferdinando queria a Inquisição, mas foi Torquemada que a organizou materialmente, instituindo um a um os tribunais das várias províncias do reino e redigindo um verdadeiro código para disciplinas à ação.

O dominicano, no entanto, encontrou oposições violentas à sua obra. Muitas vezes, nas cidades por que passava, autoridades e cidadãos se recusavam a acolhê-lo, e a população o insultava durante seus sermões públicos. Foi, por exemplo, expulso pela população de Barcelona e rejeitado das Cortes (conselhos municipais) de Valência e Aragão.

Apesar desses incidentes de percurso, Torquemada mandou mais de dez mil hereges à fogueira, a Inquisição se ramificou por toda a Espanha e as "cortes" de itinerantes se tornaram estáveis: tribunais em todos os sentidos.

Como já foi dito, ninguém estava a salvo das investigações da Inquisição. Com certeza não os nobres, para os quais estavam previstas punições específicas, como a proibição de se vestir com elegância, andar a cavalo e portar armas. Nem os próprios inquisidores, contra os quais até pessoas por eles mesmos condenadas podiam testemunhar. Qualquer um poderia utilizar a estrutura da Inquisição para atingir eventuais rivais, mas também podia ser vítima, em uma espécie de vingança sem fim. O inquisidor de Córdoba, Luis de Capones, por exemplo, viu-se acusado de 106 delitos. Essa situação criou um clima de medo e suspeitas gerais, em que um desconfiava do outro, dando vantagem ao poder do rei, único árbitro de qualquer processo.

Ao contrário do que se poderia pensar, a Inquisição espanhola tratou muito pouco das ditas "bruxas". O episódio mais significativo de perseguição antifeminista dizia respeito às "ilusas", clarividentes itinerantes que "se faziam passar por santas" e que eram punidas com o açoite nas cidades em que pregavam.

Os processos por bruxaria muitas vezes se concluíam com o que hoje chamamos de declaração de doença mental. Talvez tanta "benevolência" escondesse uma subestimação da mulher, tão desprezada pela sociedade espanhola da época que não era considerada um perigo real. "Assim, o Santo Ofício espanhol fez da bruxa uma variedade de 'ilusa', não mais temida e poderosa, mas louca e burra [...] e contribui habilmente para fazer que as mulheres sofram de afasia histórica." (Benassar, 2005, p. 209.) Ou talvez existissem na sociedade espanhola da época outras categorias de pessoas que já desempenhavam muito bem o papel de bode expiatório no lugar das bruxas, como judeus convertidos e mouriscos, os muçulmanos convertidos.


Os judeus convertidos e os mouriscos

Grande parte do território espanhol fora ocupada por muito tempo pelos emirados muçulmanos, e apenas em 1492 o domínio cristão se estendeu por toda a Península Ibérica. Dentro dos limites dos reinos cristãos, havia não só uma quantidade significativa de muçulmanos, mas também uma grande comunidade judaica, muito florescente do ponto de vista econômico e cultural. Na verdade, os regimes islâmicos da época tinham por hábito dar aos judeus condições melhores do que as dos cristãos. O sucesso econômico, o espírito empreendedor e o prestígio de muitos expoentes da comunidade judaica (que se tornaram conselheiros tanto nas cortes cristãs quanto nas muçulmanas) acabaram atraindo contra eles o ódio da povo e a inveja da nobreza.22

Por volta do final de século XIV, a hostilidade popular contra os judeus (chamados pejorativamente de "marranos", "porcos") se manifestou através de verdadeiros pogrom (massacres indiscriminados). Muitos se salvaram fugindo, outros se convertendo e praticando sua verdadeira religião às escondidas. Os que ousavam fazê-lo viviam em um estado de ameaça constante, assim como os cristãos, que rejeitavam publicamente a própria religião, mas continuavam a celebrar seus ritos em segredo: eram acusados de crime de apostasia e muitas vezes eram punidos com a morte.

Em 1391, em Sevilha, quatro mil judeus foram mortos em uma única noite. Em 1412, houve vários casos de expulsão, alguns executados por "convertidos" condenados pelo pontífice Nicolau V. Em 1477, dois judeus convertidos foram queimados na fogueira em Llerena. Uma investigação conduzida à época por um dominicano apurou que quase todos os judeus continuavam praticando sua religião escondidos. Essa descoberta foi o pretexto para novas perseguições anti-semitas e para a volta da Inquisição a Castela.

Em 1481, foi celebrado o primeiro auto-de-fé, no qual morreram seis conhecidos convertidos. O auto-de-fé era uma condenação à fogueira executada em público e o rito jurídico mais impressionante e solene usado pela Inquisição espanhola. O condenado era arrastado por entre a multidão com os cabelos raspados e vestido com sacos, era feita uma oração por ele e a sentença era cumprida. As imagens nas vestes espelhavam a pena: uma cruz de Santo André, se o réu houvesse se arrependido a tempo de evitar o suplício; meia cruz, se também tivesse recebido uma multa; chamas se, arrependido in extremis, devesse ser estrangulado e depois queimado; e diabos e dragões entre chamas se não tivesse renegado a própria posição. Quem confessava recebia penas inferiores, como peregrinações, penas pecuniárias, açoite em público ou a obrigação de costurar cruzes em suas roupas. Os falsos acusadores eram obrigados a costurar nas roupas duas línguas em tecido vermelho.

Em 1482, Xisto IV posicionou-se contra alguns excessos da Inquisição espanhola, mas seus protestos permaneceram como palavras ao vento. Os dominicanos haviam se tornado conselheiros da corte, conquistando um papel muito parecido com o desempenhado pelos judeus em seu tempo. Em 1485, alguns judeus convertidos assassinaram o inquisidor Pedro Arbués, o que causou um recrudescimento da repressão. Em Saragoza, no período entre 1486 e 1490, 307 pessoas morreram na fogueira. Em Maiorca, nos anos entre 1488 e 1499, foram executadas 129 sentenças de morte. Em Barcelona, em 1491, foram cominadas 129 sentenças, das quais 126 em contumácia.

Em 31 de dezembro de 1492, um edito real submeteu os judeus a uma escolha drástica: o exílio ou a conversão. O provimento atingiu também um dos patrocinadores da expedição de Cristóvão Colombo.

Tratamento similar foi reservado aos mouriscos, os muçulmanos convertidos. Em 1492, um tratado firmado entre o reino cristão e o último soberano muçulmano de Granada previa, em troca de sua retirada, a garantia de liberdade de culto para os islâmicos. Dez anos depois, no entanto, a rainha Isabel de Castela submeteu os muçulmanos ao mesmo dilema dos judeus: ou se converte ou vai embora. Naturalmente, muitos árabes resolveram se converter e sempre foram suspeitos de falsa conversão.

Em Granada, entre 1550 e 1580,780 mouriscos foram condenados a várias penas. Em Hornachos (povoado de sete mil habitantes), no biênio 1590-1592, foram julgados 133 processos. Em geral, os muçulmanos convertidos foram condenados a penas relativamente mais leves do que os judeus. Eram na maioria confiscos, multas ou decretos de expulsão. No geral, foi uma guerra étnica ferrenha que expropriou bens de árabes e judeus abastados.


A Inquisição romana

Em 1542, o papa Paulo III (1534-1549), com a demonstração de eficácia da Inquisição espanhola, decidiu imitá-la para impedir a difusão das doutrinas protestantes.

Foram instituídos tribunais territoriais com jurisdição exclusiva para todos os casos de heresia. Acima deles, foi fundado um organismo central com sede em Roma composto de sete cardeais e sob o controle direto do pontífice, que participava de todas as sessões. O organismo podia investigar também outros prelados e tinha jurisdição em todo o território cristão, mas na verdade tratou principalmente das questões italianas.

O papa Júlio III (1550-1555) mandou queimar as cópias do Talmude (um dos textos sagrados do judaísmo. Ao contrário da Tora, o Talmude só é reconhecido pelos judeus e consiste em uma coletânea de discussões ocorridas entre sábios e mestres — rabinos — sobre os significados e as aplicações dos passos da Tora) em mãos dos judeus de Roma23 e incluiu a blasfêmia entre os crimes investigados pela Inquisição. Os plebeus blasfemos eram punidos com a perfuração da língua, o açoite e os remos por três anos. Os blasfemos nobres, ao contrário, recebiam uma multa, perdiam o título, dignidade e benefícios; eram proibidos de fazer testamento e receber herança; eram considerados incapazes de testemunhar; e exilados de Roma por três anos.

Paulo IV (1555-1559) tornou a propor o crime de "heresia simoníaca", que consistia também em ordenar menores de idade em troca de dinheiro, e utilizou a inquisição para mandar prender cardeais adversários seus. Pio IV (1559-1565) mandou absolver os cardeais presos por seu antecessor por decreto inquisitorial e ordenou a prisão de cardeais da facção contrária, junto com seus colaboradores e familiares. Em seguida, os novos prelados presos foram condenados à morte, naturalmente, após um processo.2'

Paulo IV, Pio IV e seu sucessor, Pio V (1565-1572), formaram o que os historiadores chamam de "trindade do terror, não porque eram especialmente 'maus', mas porque utilizaram com muito zelo todos os expedientes necessários para lutar sua batalha sem que nenhum golpe fosse excluído. De Pio V, será dito que o zelo o fez ser proclamado santo [...] A santidade faz fronteira com os métodos policiais, que se torna um mérito" (Mereu, 2000, p. 84).

Gregório XIII (1572-1585), ao contrário, conquistou junto aos biógrafos a fama de pontífice "moderado", por ter permitido que os condenados à fogueira usassem uma roupa comum, no lugar daquela com as chamas que eram obrigados a usar.

Xisto V (1585-1590) dividiu a administração pontifícia em 15 congregações, cuja principal era a da Santa Inquisição da Herética Pravidade, diretamente presidida por ele.


Homossexualidade

O papa Júlio III (1550-1555), amante dos banquetes, das festas, da caça e das apresentações teatrais, ordenou cardeal um rapaz de 17 anos, que os escritos da época definiam pudicamente como "desviado". A coisa provocou protestos veementes de alguns altos prelados.25

O gesto de Júlio III certamente foi a gota d’água, principalmente por ter ocorrido durante o Concilio de Trento, que tornou ainda mais rígida a moral sexual da Igreja, mas é fato que, acerca da homossexualidade, havia, se não doutrinas, ao menos práticas diferentes.

É preciso rever a cronologia do pecado da sodomia. Os conceitos do que era "natural" ou "contra a natureza" sempre mudou de acordo com a época e o lugar. O que parecia "natural" em uma civilização era condenado por outra e vice-versa.

Segundo o mito grego exposto por Platão no Simpósio, em sua origem, a humanidade era formada por três tipos de seres completos: o primeiro era composto por dois homens fundidos em um só; o segundo, por duas mulheres; e o terceiro, por um casal de homem e mulher. Para castigá-los, os deuses dividiram esses seres superiores, dando vida à humanidade atual, formada por homens e mulheres que vagam por aí incompletos em uma eterna busca pela "cara-metade". De acordo com essa visão da natureza humana, portanto, tanto as escolhas heterossexuais quanto as homossexuais são completamente legítimas e "naturais". A rigor, o único comportamento que vai "contra a natureza" é o celibato.

O cristianismo tirou seu desprezo pela homossexualidade do judaísmo. A cultura judaica (assim como a grega e a romana) também era resultado de uma sociedade patriarcal e guerreira, hostil às mulheres, consideradas inferiores, e à feminilidade.

O homossexual, que se comportava "como uma mulher", era digno de profundo desprezo e atentava contra a ordem do Universo desejada pelo próprio Deus ("Deus criou o homem à sua imagem [...] criou-os macho e fêmea.")26 Além disso, desperdiçar o sêmen para fins diferentes ao reprodutivo era considerado um grave pecado, como mostra o episódio de Onan.

São Paulo, que considerava superadas as rigorosas proibições alimentares judaicas, levou para o cristianismo os preceitos contra as mulheres e os "sodomitas". Quando, no final do século IV, o cristianismo se tornou a única religião de Estado do Império Romano, um dos primeiros efeitos da nova época foi uma lei de 390 que previa a morte na fogueira para quem praticasse o homossexualismo.27

O imperador do Oriente, Justiniano, mandou executar publicamente dois bispos homossexuais. Mas a perseguição aos "sodomitas" só se acirrou quando a Igreja Católica, após o século XI, reafirmou com vigor o princípio do celibato eclesiástico. Era uma tentativa de assexualizar as relações entre os homens de Deus em uma sociedade (a Igreja) totalmente masculina. Mas se a Igreja tivesse imposto o celibato sem punir a sodomia, os fiéis teriam entendido esse ato como a demonstração de que a instituição era composta de misóginos homossexuais. De todo modo, por séculos, diferentes orientações conviveram juntas dentro da Igreja.

Por outro lado, o penitencial de Gregório III (século VIII) impunha uma penitência de 160 dias para o lesbianismo, de um ano para a sodomia e de três anos para o padre que fosse à caça.28 No século XI, duas tendências opostas se confrontam sobre esse argumento. De um lado, São Pedro Damião criticou os clérigos que se entregavam às práticas homossexuais e lutou (inutilmente) para que fossem banidos da Igreja. O abade Aelred de Rievaux, por outro lado, tentou defender o amor entre os homens (ainda que, no final, tenha recomendado a castidade).

A moral sexual da Igreja tomou uma direção mais clara com o Concilio de Latrão de 1179, que determinou que os religiosos homossexuais fossem reduzidos ao estado leigo ou à reclusão no mosteiro, para os clérigos, e à excomunhão, para os leigos. De todo modo, nunca houve uma Cruzada contra os homossexuais nem uma perseguição sistemática por parte da Inquisição, como aconteceu com as heresias. A Igreja, na verdade, nunca reconheceu os homossexuais como um grupo, limitando-se a condenar os comportamentos, mas pedindo aos governos "leigos" que os punissem.

A partir do século XIII, vários países europeus adotaram legislações muito severas contra as práticas homossexuais. Por exemplo, na França, um código previa a fogueira para quem reincidisse no crime de sodomia, pena que atingia também as mulheres. E parece que o termo "finocchio", que em italiano significa funcho e é usado pejorativamente para designar homossexuais, deriva do costume de queimar plantas aromáticas nas fogueiras, para encobrir o fedor da carne. O confisco de bens em favor do soberano era uma das penas acessórias, o que, em algumas épocas, encorajava os monarcas a fazer de tudo para combater o homossexualismo.

Muitas vezes, o crime de sodomia era colocado no mesmo caldeirão que os de heresia e bruxaria. Por essa razão, não é simples quantificar o número exato de vítimas.

Um estudo recente29 sobre processos por sodomia julgados em Bolonha no século XVI, revelou dados muito interessantes. De oito processos de sodomia contra 11 acusados, cinco eram eclesiásticos. Dos oito acusados leigos, três foram condenados à morte (por enforcamento ou decapitação), cinco foram banidos pelo resto da vida. Dos cinco eclesiásticos, apenas um foi confinado no convento por três anos. Para os outros quatro, o processo não seguiu em frente ou foi encerrado sem condenação. Não se podia admitir que no interior do clero, tão rígido na hora de regulamentar os costumes sexuais dos outros, houvesse "sodomitas". Além disso, se o poder sagrado do clero se baseava na castidade, colocá-la em questão ameaçava sua legitimidade.



FONTES DE ESTUDOS
1.   Por isso foram introduzidas as penas da fogueira e a dispersão das cinzas para as bruxas e os hereges. "Antes que os cemitérios fossem levados para fora das muralhas, como era hábito entre os romanos, os mortos repousavam sob o chão de suas casas. Eram os lares, os protetores do lugar. Assim, o ritual da fogueira e da dispersão de hereges e bruxas constituía, na época, um ato traumático, pois rompia a 'convivência' entre vida e morte, entre 'corpo e alma'" Vanna De Angelis, Le Streghe Roghi, processi, riti e pozioni, Casale Monferrato, Edizioni Piemme, 1999, p. 155.
2.   Todos os exemplos aqui citados estão reportados em David Christie-Murray, I percorsi delle eresie, Milão, Rusconi, 1998.
3.   ítalo Mereu, Storia della'intolleranza in Europa, Milão, Bompiani, 2000, p. 121.
4.   Natale Benazzi, Matteo D'Amico, Il libro nero dell'lnquisizione. La hcostruzione dei grandi processi, Casale Monferrato, Edizioni Piemme, 1998, p. 40.
5.   David Christie-Murray, op. cit, p. 156-7.
6.   Ibid., p. 15.
7.   Ibid.                        
8.   ítalo Mereu, op. cit, p. 173.
9.   David Christie-Murray, op. cit, p. 157.
10. Benazzi, D'Amico, op. cit, p. 32.
11. David Christie-Murray, op. cit, p. 158.
12. ítalo Mereu, op. cit, p. 124.
13. Nicolau Eymerich, Francisco Pena, Il Manuale dell'lnquisitore. Organizado por Luis Sala-Molins, Roma, Fanucci Editore, 2000.
14. Nicolau Eymerich, Francisco Pena, op. cit
15. Uma das penitências que podia consistir na obrigação de usar pelo resto da vida alguns sinais ou roupas especiais, os "sanbenitos"(sacos), que visivelmente marcavam o pecador aos olhos da comunidade.
16. David Christie-Murray, op. cit, p. 157-158.
17. Rino Ferrari, Fra Gherardo Segarello libertário di Dio, Quaderni dolciniani, Biella, Centro di Studi Dolciniani, p. 40.
18.G.G. Merlo, Eretici ed eresie medievali, Bolonha, Il Mulino, 1989.
19. Romano Canosa, Storia delllnquisizione in Itália, vol. 1, Roma, Sapere 2000,1986, p. 7.
20. Benazzi, D'Amico, op. cit, p. 97.
21. Ibid.
22. Benazzi, D'Amico, op. cit, p. 101
23. ítalo Mereu, op. cit, p. 77 24./6/d,p.81-2.
25. ítalo Mereu, Storia delllntolleranza in Europa, Milão, Bompiani, 2000, p. 75.
26. A Bíblia Sagrada, Gênesis, 2,27.
27. Uta Ranke-Heinemann, Eunuchiper il regno dei cieli, Milão, Rozzoli.
28. Jean Verdon, Il piacere nel Medioevo, Milão, Editore Baldini & Castoldi, 1999, p. 62.
29. Ugo Zuccarello, Processi per sodomia a Bologna tra XVI e XVII secolo, monografia de conclusão do curso de História Moderna defendida em 25 de novembro de 1998 junto à Universidade de Bolonha, a quem agradecemos.