Por Flávio Santa Cruz
Todas as pessoas que se
dedicam a um estudo mais aprofundado do texto bíblico sabem que o texto do
Pentateuco (Torah), foi escrito por pelo menos quatro diferentes indivíduos em
diferentes períodos da história dos reinos de Israel e de Judá. Além destes 4
principais, teríamos pelos menos outros 2 redatores (ou equipes de redatores)
que fizeram o trabalho de "colar" e "costurar" determinadas
partes dos grandes textos básicos. O relato, pois, dos cinco primeiros livros
da bíblia é o resultado de uma composição que durou pelo menos uns 5 séculos
até tomar a sua forma final, parecida com a que temos hoje.
Um dos maiores problemas,
no entanto, para aquelas pessoas, tais como eu, que sabem destas divisões do
texto, sempre foi o de localizar detalhadamente a autoria das variadas partes
do texto. Alguns trechos são relativamente fáceis de identificar. Já outros,
possuem sutilezas que estão acima de um nível intermediário de conhecimento,
demandando a ajuda de especialistas no hebraico e no estudo profundo da
tessitura bíblica. Humildemente, reconheço estar ainda vários e vários degraus
aquém deste nível.
No entanto, no ano passado,
tive a felicidade de adquirir um espetacular livro neste campo. Trata-se de The
Bible with Sources Revealed: new view into the five books of Moses, publicado
por Richard Elliot Friedman. Este livro é uma verdadeira pérola para os nossos
oceanos de ignorância. Ele traça minuciosamente, e em cores, as variadas fontes
do Pentateuco. Ou seja, ele nos mostra, de forma, nítida, as partes escritas
pelos variados autores, cada um com uma cor diferente. Com ele, podemos saber
agora, de forma clara como foi costurado estas variadas composições ao longo
dos séculos. Trata-se de um livro único e especial, sem pares conhecidos, por
enquanto.
Para exemplificar o poder
deste livro, resolvi expor para os leitores o caso do dilúvio bíblico. Se
alguém ainda não sabe, nós temos dois relatos diversos sobre o dilúvio na
bíblia. A primeira narrativa é do javista [entre 922 e 722 a .C]. Já a segunda
narrativa foi elaborada pelo chamado autor sacerdotal [reinado de Ezequias 715-687 a .C.] . O fato é que os
textos estão de tal forma entrelaçados que normalmente os lemos como se fosse
um único relato, dado o efeito hipnótico da leitura sequencial. Tomando como
base a separação elaborada por Elliot, resolvi separar os dois. O que vocês
irão perceber é fantástico. Após a separação, temos em mãos dois relatos
plenamente inteligíveis. Percebam:
1º Relato do Dilúvio (Autor Javista):
Depois disse o SENHOR a Noé: Entra tu e toda a tua
casa na arca, porque tenho visto que és justo diante de mim nesta geração.
2 De todos
os animais limpos tomarás para ti sete e sete, o macho e sua fêmea; mas dos
animais que não são limpos, dois, o macho e sua fêmea.
3 Também das aves dos
céus sete e sete, macho e fêmea, para conservar em vida sua espécie sobre a
face de toda a terra.
4 Porque, passados ainda sete dias, farei chover
sobre a terra quarenta dias e quarenta noites; e desfarei de sobre a face da
terra toda a substância que fiz.
5 E fez Noé conforme a tudo o que o SENHOR lhe
ordenara.
7 Noé entrou na arca, e com ele seus filhos, sua
mulher e as mulheres de seus filhos, por causa das águas do dilúvio.
10 E aconteceu que passados sete dias, vieram sobre
a terra as águas do dilúvio.
12 E houve chuva sobre a
terra quarenta dias e quarenta noites. e o SENHOR o fechou dentro.
17 E durou o dilúvio
quarenta dias sobre a terra, e cresceram as águas e levantaram a arca, e ela se
elevou sobre a terra.
18 E prevaleceram as águas e cresceram grandemente
sobre a terra; e a arca andava sobre as águas.
19 E as águas prevaleceram excessivamente sobre a
terra; e todos os altos montes que havia debaixo de todo o céu, foram cobertos.
20 Quinze
côvados acima prevaleceram as águas; e os montes foram cobertos.
22 Tudo o que tinha fôlego de espírito de vida em
suas narinas, tudo o que havia em terra seca, morreu.
23 Assim foi destruído todo o ser vivente que havia
sobre a face da terra, desde o homem até ao animal, até ao réptil, e até à ave
dos céus; e foram extintos da terra; e ficou somente Noé, e os que com ele
estavam na arca.e a chuva dos céus deteve-se.
3 E as águas iam-se escoando continuamente de sobre
a terra,
6 E aconteceu que ao cabo de quarenta dias,
abriu Noé a janela da arca que tinha feito.
8 Depois soltou uma
pomba, para ver se as águas tinham minguado de sobre a face da terra.
10 E esperou ainda outros sete dias, e tornou a
enviar a pomba fora da arca.
11 E a pomba
voltou a ele à tarde; e eis, arrancada, uma folha de oliveira no seu bico; e
conheceu Noé que as águas tinham minguado de sobre a terra.
12 Então esperou ainda outros sete dias, e enviou
fora a pomba; mas não tornou mais a ele. Então Noé tirou a cobertura da arca, e
olhou, e eis que a face da terra estava enxuta.
20 E edificou Noé um altar ao SENHOR; e tomou de
todo o animal limpo e de toda a ave limpa, e ofereceu holocausto sobre o altar.
21 E o
SENHOR sentiu o suave cheiro, e o SENHOR disse em seu coração: Não tornarei
mais a amaldiçoar a terra por causa do homem; porque a imaginação do coração do
homem é má desde a sua meninice, nem tornarei mais a ferir todo o vivente, como
fiz.
22 Enquanto a terra durar, sementeira e sega, e
frio e calor, e verão e inverno, e dia e noite, não cessarão.
2º Relato do Dilúvio (autor sacerdotal)
Noé era homem justo e perfeito em suas gerações;
Noé andava com Deus.
10 E gerou Noé três filhos: Sem, Cão e Jafé.
12 E viu Deus a terra, e eis que estava corrompida;
porque toda a carne havia corrompido o seu caminho sobre a terra.
13 Então disse Deus a Noé: O fim de toda a carne é
vindo perante a minha face; porque a terra está cheia de violência; e eis que
os desfarei com a terra.
14 Faze para ti uma arca da madeira de gofer; farás
compartimentos na arca e a betumarás por dentro e por fora com betume.
15 E desta maneira a farás: De trezentos côvados o
comprimento da arca, e de cinqüenta côvados a sua largura, e de trinta côvados
a sua altura.
16 Farás na arca uma janela, e de um côvado a
acabarás em cima; e a porta da arca porás ao seu lado; far-lhe-ás andares,
baixo, segundo e terceiro.
17 Porque eis que eu trago um dilúvio de águas
sobre a terra, para desfazer toda a carne em que há espírito de vida debaixo
dos céus; tudo o que há na terra expirará. 18 Mas contigo estabelecerei a minha
aliança; e entrarás na arca, tu e os teus filhos, tua mulher e as mulheres de
teus filhos contigo.
19 E de tudo o que vive,
de toda a carne, dois de cada espécie, farás entrar na arca, para os conservar
vivos contigo; macho e fêmea serão.
20 Das aves conforme a
sua espécie, e dos animais conforme a sua espécie, de todo o réptil da terra
conforme a sua espécie, dois de cada espécie virão a ti, para os conservar em
vida.
21 E leva contigo de toda a comida que se come e
ajunta-a para ti; e te será para mantimento, a ti e a eles.
22 Assim fez Noé; conforme a tudo o que Deus lhe
mandou, assim o fez.
8 Dos animais limpos e dos animais que não são
limpos, e das aves, e de todo o réptil sobre a terra,
9 Entraram
de dois em dois para junto de Noé na arca, macho e fêmea, como Deus ordenara a
Noé.
11 No ano seiscentos da vida de Noé, no mês
segundo, aos dezessete dias do mês, naquele mesmo dia se romperam todas as
fontes do grande abismo, e as janelas dos céus se abriram,
13 E no mesmo dia entraram na arca Noé, seus filhos
Sem, Cão e Jafé, sua mulher e as mulheres de seus filhos.
14 Eles, e todo o animal conforme a sua espécie, e
todo o gado conforme a sua espécie, e todo o réptil que se arrasta sobre a
terra conforme a sua espécie, e toda a ave conforme a sua espécie, pássaros de
toda qualidade.
15 E de toda a carne, em que havia espírito de
vida, entraram de dois em dois para junto de Noé na arca.
16 E os que entraram eram macho e fêmea de toda a
carne, como Deus lhe tinha ordenado;
21 E expirou toda a carne que se movia sobre a
terra, tanto de ave como de gado e de feras, e de todo o réptil que se arrasta
sobre a terra, e todo o homem.
24 E prevaleceram as águas sobre a terra cento e
cinqüenta dias.
E lembrou-se Deus de Noé, e de todos os seres
viventes, e de todo o gado que estavam com ele na arca; e Deus fez passar um
vento sobre a terra, e aquietaram-se as águas.
2 Cerraram-se também as
fontes do abismo e as janelas dos céus, e ao fim de cento e cinqüenta dias
minguaram.
4 E a arca repousou no
sétimo mês, no dia dezessete do mês, sobre os montes de Ararate.
5 E foram as águas indo e minguando até ao décimo mês;
no décimo mês, no primeiro dia do mês, apareceram os cumes dos montes.
7 E soltou um corvo, que
saiu, indo e voltando, até que as águas se secaram de sobre a terra.
13 E aconteceu que no ano seiscentos e um, no mês
primeiro, no primeiro dia do mês, as águas se secaram de sobre a terra.
14 E no segundo mês, aos vinte e sete dias do mês,
a terra estava seca.
15 Então falou Deus a Noé dizendo:
16 Sai da arca, tu com tua mulher, e teus filhos e
as mulheres de teus filhos.
17 Todo o animal que está contigo, de toda a carne,
de ave, e de gado, e de todo o réptil que se arrasta sobre a terra, traze fora
contigo; e povoem abundantemente a terra e frutifiquem, e se multipliquem sobre
a terra.
18 Então saiu Noé, e seus filhos, e sua mulher, e
as mulheres de seus filhos com ele.
19 Todo o animal, todo o réptil, e toda a ave, e
tudo o que se move sobre a terra, conforme as suas famílias, saiu para fora da
arca.
Como é
possível perceber, temos dois relatos bíblicos perfeitamente inteligíveis,
através de uma leitura linear. As duas estórias são perfeitamente coerentes. E
estando agora separadas, podemos analisar facilmente as suas diferenças, dentre
várias possibilidades.
1 - A
primeira e clara diferença se refere à forma pela qual os dois relatos se
dirigem a Deus. O primeiro e mais antigo relato, elaborado pelo autor javista,
se refere à Deus como SENHOR (este SENHOR é, na verdade, no texto em Hebraico o
tetragrama YHWH ou YAHWEH). O autor sacerdotal não se utiliza deste termo, se
dirigindo ao mesmo através de DEUS [El ou Elohim]. Este é um dado extremamente
interessante. O autor javista, desde o início de sua narrativa, opta por
afirmar que o nome de YHWH era conhecido desde os primeiros tempos, logo após a
expulsão do Éden (Gen 4:26). No entanto, o autor sacerdotal, bem como o autor
eloísta optam por afirmar que o nome de YHWH só se tornou conhecido a partir de
Moisés (Êxodo 6:2-3). No relato do autor sacerdotal, YHWH se apresenta a Abraão
como EL SHADDAY (1) (Gen 17:1). Desta forma, o
que diferencia o relato destes escritores quanto ao nome de Deus é a época na
qual YHWH se apresenta aos homens.
2 - O autor
Javista coloca 7 pares de animais limpos na Arca . Porém, dos animais que não
são limpos, um par apenas (Gen 7:2-3). Já o autor sacerdotal coloca estritamente
apenas um casal de cada espécie (Gen 6:19-20).
3 - O dilúvio
do autor javista dura 40 dias e 40 noites (Gen 7:17). Já a contrapartida do
autor sacerdotal faz com que o dilúvio transcorra por um período de 150 dias
(Gen 8:2).
4 - O relato
do autor javista nos mostra que Noé pode sair da arca após 47 dias (40 de chuva
+ uma semana navegando). Já o relato do autor sacerdotal nos oferece um relato
bem mais complexo. Gen 8:4 nos fala que a arca repousou no Monte Ararat no
décimo sétimo dia do sétimo mês. Se tomarmos o calendário lunar como base (29 a 30 dias
intercalados)teríamos 177 + 17 = 194 dias. Sendo assim, Noé teria ficado 44
dias navegando após o dilúvio (194 - 150), até chegar ao monte Ararat.
O relato
prossegue, nos dizendo, no entanto, que as águas só secaram por sobre a terra
depois de um ano (Gen 8:13). Desta forma, tomando como base o calendário lunar,
teríamos 354 dias.
A terra, no
entanto só secaria definitivamente no vigésimo sétimo dia do segundo mês (Gen
8:14). Sendo assim, teríamos mais 56 dias. O cálculo final, nos fornece então
um período de 410 dias (150 dias de tempestade e 260 dias até a terra secar
definitivamente).
5 - Quando as
águas vão se acalmando, Noé solta uma pomba no relato do autor javista (Gen
8:8). Já o autor sacerdotal opta por narrar um corvo no lugar da pomba (Gen
8:7). Interessantes anotarmos que no relato de Gilgamesh, do qual estes dois
textos são dependentes, Uta-Napshtim (o herói da epopéia) solta respectivamente
uma pomba, uma andorinha e um corvo. Vejamos:
"Ao chegar ao sétimo dia eu trouxe uma pomba e
libertei-a.
A pomba voou e [então] retornou;
Como não tinha lugar para pousar, ela voltou.
Eu trouxe uma andorinha e libertei-a. A andorinha
voou e [então] voltou;
Como não tinha lugar para ela pousar, ela voltou.
Eu trouxe um corvo e libertei-o.
O corvo voou, viu as águas que baixavam.
Comeu, andou por sobre as águas (?), levantou-se
(?)
e não voltou."
6 - No final do relato do
autor javista, encontramos a passagem na qual Noé oferece um holocausto a
Iahweh sob a forma do sacrifício dos animais e aves limpos (Gen 8:20). Ora, tal
fato poderia se apresentar como uma contradição procriativa [dado que assim Noé
estaria matando a possibilidade de reprodução daquela espécie]. No entanto, o
paradoxo se desfaz justamente pelo fato de que na narrativa javista, entraram 7
pares de animais puros, em contraste com a narrativa sacerdotal.
(1) O Jeová bíblico, Javé, El Shadai, são apropriações hebraicas dos deuses
Enlil e Enki, ambos sumerianos.
A PERGUNTA QUE NÃO QUER CALAR:
PARA ONDE FORAM AS ÁGUA DO DILÚVIO?
PARA ONDE FORAM AS ÁGUA DO DILÚVIO?
É claro que no último parágrafo o Flávio Santa Cruz tenta desmistificar o dilúvio, alegando compatibilidade das narrações. -“No entanto o paradoxo se desfaz” -, diz o Flávio. Não se desfaz nada, a contradição dos relatos está nítida. Eu sei que não é isso que a bíblia diz para o Flávio, mas para mim, que não entendo de teologia, só posso afirmar o que a bíblia me diz. Os dois relatos se apresentam como um disparate, um contra-senso. O pior cego é aquele que não quer ver.
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