quinta-feira, 2 de julho de 2015

Falácias e Erros de Raciocínio



Segundo Othon M. Garcia, “ainda que cometamos um número infinito de erros, só há, na verdade, do ponto de vista lógico, duas maneiras de errar: raciocinando mal com dados corretos ou raciocinando bem com dados falsos. (Haverá certamente uma terceira maneira de errar: raciocinando mal com dados falsos). O erro pode, portanto, resultar de um vício de forma — raciocinar mal com dados corretos — ou de matéria — raciocinar bem com dados falsos.” (1)

De acordo com o mesmo autor, o que diferencia o sofisma da falácia, é que, embora ambos sejam basicamente raciocínios errados, a falácia é involuntária. Ao passo que o sofisma tem como objetivo induzir a audiência ao engano, o raciocínio falacioso decorre de uma falha de quem argumenta. Quem usa sofismas, sabe o que está fazendo quando, por exemplo, tenta nos empurrar uma conclusão para a qual não dispõe de dados ou demonstrações suficientes. Quem se vale de falácias, por sua vez, simplesmente se enganou.

O conhecimento do que é ou não um raciocínio falacioso certamente é um dos mais úteis que existem quando vamos analisar criticamente qualquer assunto. As falácias e inconsistências lógicas abundam em nossa sociedade e são utilizadas o tempo todo, como podemos verificar facilmente nos pronunciamentos de políticos demagogos, entre outros casos.  Elas permitem que alguém faça declarações aparentemente racionais e aceitáveis sem o mínimo necessário de conhecimento ou ainda fugindo de um tema e embaraçando os interlocutores, fazendo-os se desviarem do assunto tratado. 

Reconhecê-las nem sempre é fácil, especialmente quando aparecem em diálogos, onde podemos acabar engolindo coisas que, uma vez submetidas a uma análise mais profunda, se revelam sem fundamento. Existem áreas, até, onde uma falácia acaba se tornando o discurso predominante pelo qual um determinado grupo se manifesta. Na área de que tratamos, a religiosa, não é demais dizer que é o campo onde mais se cometem esses erros. Portanto, não é de se admirar que determinados incrédulos sejam tão resistentes aos assuntos religiosos: eles simplesmente se recusam, e com razão, a aceitar como verdades absolutas afirmações e raciocínios que violam a própria lógica.

Vamos agora examinar rapidamente algumas falácias e truques retóricos mais frequentes, a fim de que possamos não apenas nos prevenir contra eles, como também, quem sabe, mudarmos nossa maneira de falar às pessoas.

Obs: é importante notar que existem falácias de tal forma cristalizadas em certos grupos ou comunidades, tão repetidas e consagradas no seu discurso, que dificilmente terão sua falsidade reconhecida. Em se tratando de assuntos religiosos, isso se complica, pois o que é uma falácia para um, pode ser uma verdade irretorquível para outro.


Raciocínio circular ou petição de princípios

Esse é um erro comuníssimo em debates ou pregações religiosas. Trata-se simplesmente de afirmar a mesma coisa com outras palavras. Alguns exemplos:

1. “Por que a Bíblia é a Palavra de Deus? Ora, porque ela foi inspirada pelo próprio Criador.”

…ou ainda o que eu chamaria de “variação Tostines”

2. “A Bíblia é perfeita porque é a Palavra de Deus. E como sabemos que ela é a Palavra de Deus? Pela sua perfeição.”

Esse exemplo é fácil de encontrar, especialmente nos meios evangélicos mais conservadores. É importante ressaltar que ele foi posto aqui apenas para ilustrar um tipo de raciocínio falacioso muito frequente, não para desmerecer a Bíblia ou a crença de quem quer que seja.

Um exemplo laico agora:

3. “Eu acho que alpinismo é um esporte perigoso porque é inseguro e arriscado.”

Dizer que algo é “inseguro e arriscado” não é o mesmo que dizer que ele é “perigoso”? Ora, o que essa “explicação" acrescentou que justificasse a ideia de que alpinismo é perigoso? Nada. Simplesmente repetiu-se a primeira afirmação com outras palavras.

4. “Por que eu sou a pessoa mais indicada para o trabalho? Porque eu descobri que, dentre todos os outros candidatos, e considerando minhas qualificações, eu sou a melhor pessoa para o trabalho.”

Valem as mesmas observações. Porém prestemos atenção num detalhe: às vezes, quando a “justificativa” é muito longa, podemos nos perder e não notarmos que a pessoa acabou não dando evidências para aquilo que disse. Um exemplo trágico poderia ser a frase de Goebbels, propagandista do regime nazista alemão: “Uma mentira, repetida muitas vezes, acaba se tornando uma verdade”. Afirmações muito repetidas podem ganhar um statustal que as pessoas podem nunca ter parado para pensar realmente no porquê de acreditarem nelas. Crenças inculcadas desde a infância ou em períodos de fragilidade emocional são casos típicos. Por isso, tenhamos a máxima  prudência com aquilo que nos chega aos ouvidos e com a maneira como abordaremos certas crenças arraigadas num debate; antes de questionar os outros, convém darmos uma olhada na nossa própria fé em certas premissas, que talvez nunca tenhamos analisado criticamente.


Egocentrismo ideológico

Essa provavelmente não será achada em manuais de lógica. O que eu batizei de “egocentrismo ideológico” nada mais é do que um primo do raciocínio circular. Trata-se da incapacidade ou recusa sistemática em se pôr de um ponto neutro para analisar alguma coisa. O cerne do problema, aqui, é mais a atitude do debatedor do que propriamente sua lógica. Mais uma vez, recorramos a exemplos reais e muito comuns:

1. “Como eu sei que a Bíblia contém toda a Palavra de Deus, perfeita e eterna? Ora, porque, conforme vemos em Segunda Timóteo 3:16…”

2. “Você tem que crer naquilo que Jesus disse, porque ele falou ‘Ninguém vai ao Pai senão por mim.’”

3. “A minha religião é a única verdadeira, e você não pode questionar isso.  Veja só o que nosso fundador diz em…”

4. “Por que o Papa, em questões doutrinárias, é infalível? Porque o Concílio de…, sob a inspiração da Assistência Extraordinária do Espírito Santo dada ao líder da Igreja, que o promulgou,  declarou assim.”

Onde o erro? Ora, todos os declarantes estavam conversando com alguém que é cético e está questionando a autoridade da fé que eles têm. E o que eles fazem para demonstrar que estão certos? Recorrem à mesma autoridade que está sendo questionada.

Apelar para uma autoridade que só é reconhecida por uma das partes é sempre desaconselhável quando a finalidade é a persuasão. Se em matérias científicas, por exemplo, o currículo de alguém pode dar uma boa ideia de sua capacidade para opinar sobre um assunto, em religião tal não se aplica da mesma forma. Por isso, é sempre bom recorrer a outros argumentos diante de um cético; a imposição de autoridade simplesmente não funcionará.



Supersimplificação e raciocínio “8 ou 80”


Essas são praticamente inevitáveis, e se você não se deparar com elas, é porque está debatendo filosofia ou seu interlocutor é diplomata profissional.

Um bom argumento deve resumir as questões em debate e simplificá-las para o leitor ou a audiência. Dizemos que há supersimplificação quando isso é feito de tal forma que muitos detalhes importantes são deixados de lado e o resumo feito só permite uma única conclusão. Exemplo:

1. “Os nazistas usaram alguns escritos de Nietzsche em sua propaganda. A irmã de Nietzsche era nazista. Portanto, Nietzsche era nazista.”

Já o raciocínio “8 ou 80”, conhecido também como falso dilema, é aquele que só admite duas possibilidades antagônicas numa determinada questão, mesmo que haja muitas mais, sendo que a pessoa que o utiliza está, claro, do lado certo. Essa falácia pode ser assim resumida:

2. “Ou você está totalmente certo ou eu estou totalmente errado.”

Exemplo radical, não? No entanto, essa é a forma como muitas pessoas pensam em determinadas áreas: sem meios-termos, tudo ou é preto ou é branco, sem variações de cinza. Esse é um meio confortável de simplificar demais assuntos complexos como moral e espiritualidade, pois é a negação do diálogo. Eis algumas possíveis aplicações religiosas desse raciocínio falacioso:

3. “A Bíblia alega ser a Palavra de Deus e sem erros. Se você achar um erro nela, então ela tem de estar totalmente errada.”

4. “Fulana tinha câncer e fez uma ‘cirurgia espiritual’ para ajudar na cura. E, de fato, ela se curou. Ou a cura de Fulana na ‘cirurgia espiritual’ foi um milagre de Deus ou um prodígio do demônio. Deus não age nessa religião. Então, só pode ter sido obra de Satanás.”

Cito esses exemplos por já ter visto alguém usá-los num debate. Fora a questão de fé envolvida aí, o erro de raciocínio é evidente, pois, no primeiro caso, o fato de achar um erro na Bíblia ou em qualquer outro livro religioso não significa invalidá-lo por inteiro, obviamente, mas apenas exigir do leitor um pouco mais de discernimento ao lê-los, sem o falso conforto de formar uma opinião inflexível e julgar tudo que ali está sem o trabalho de um maior exame. Já no segundo, fora o egocentrismo ideológico que não contribui para persuadir a audiência nem apresenta evidências para comprovar sua tese, excluem-se as outras possibilidades de explicação: da cura ter-se dado naturalmente, em virtude dos tratamentos médicos a que Fulana estava se submetendo, ou do fenômeno de sugestão, etc.

Essas falácias nos levam diretamente a uma outra, também muito comum, chamada…


Generalização apressada


Falácia de generalização apressada, como o nome indica, é aquela em que uma pessoa constrói algumas premissas para um argumento e, em seguida, o conclui rápido demais. Noutras palavras, é tirar uma conclusão com base em evidências insuficientes, julgar todas as coisas de um determinado universo com base numa amostragem muito pequena. Consequentemente, ela passa por cima de detalhes, fatores, circunstâncias e mesmo dos casos que poderiam refutar a universalidade de suas premissas. É claro que todo argumento presume algum grau de generalização, mas, neste caso, ela é excessiva. 

Vejamos dois exemplos:

1. “Minha avó tem dor de cabeça crônica. Meu vizinho também tem e descobriu que o motivo é um câncer. Logo, minha avó tem câncer.”

2.. “Nas duas vezes em que fui assaltado, os bandidos eram negros. Bem que minha mãe fala que todo negro tem tendência para ladrão!”

Dito assim, parece um erro tão idiota que uma pessoa teria de ter muito pouca inteligência ou instrução para incorrer nele. Mas não é bem assim. Esse tipo de falácia é muito frequente, dentre outras coisas, em certas frases discriminatórias muito usadas. Quem nunca ouviu algo parecido com os exemplos a seguir?

3. “O pastor da igreja X roubou o dinheiro dos fiéis. Fulano é pastor. Logo, também é ladrão.”

4. “Meu tio é candomblecista e já matou um bode para oferecer ao orixá. Beltrano foi ao terreiro de candomblé. Logo, ele também mata animais para o orixá.”

5. “Fulano entrou para a igreja X e ficou fanático. Logo, todos os fiéis da igreja X são fanáticos.”

6. “Fulano entrou para uma igreja protestante e ficou fanático. Logo, todos os protestantes são fanáticos.”

7. “Crentes/muçulmanos/bramanistas/etc. são todos fanáticos.”

8. “Todo americano é racista.”

É no dia-a-dia que esse tipo de erro, muito bom para cunhar bordões preconceituosos, é mais encontrado. Alguns de nós pode até ter crescido ouvindo frases dessa espécie, tendo-as incorporado de tal maneira que sequer lembramos de questioná-las. Frequentemente são generalizações feitas com base num único episódio particular, ignorando as diversas nuances que ele possa ter e aplicando suas características a todo um grupo de pessoas ou doutrinas. Devemos ter cuidado com elas, são falácias que podem simplesmente passar despercebidas por anos.


Ataque pessoal ou argumento ad hominem

Essa falácia é fácil de reconhecer. Consiste simplesmente em atacar uma pessoa em vez dos argumentos que ela expõe, usar um traço de seu caráter como pretexto para desqualificar ou ignorar o que ela diz. Pode ser usado quando não se sabe como refutar o que o oponente diz ou simplesmente por excesso de preconceito, sendo um meio muito cômodo (e desonesto) de fugir do debate. Vejamos:

1. “O que Fulano diz sobre o balanço da empresa não pode ser levado a sério, afinal ele traiu a mulher.”

2. “O senhor não tem autoridade para criticar nossa política educacional, pois nunca concluiu uma faculdade.”

3. “Beltrano não entende nada de espiritualidade, ele é gay.”

4. “A religião é uma coisa má. Veja só quantas guerras foram provocadas por ela.”

5. “Não deem ouvidos ao que ele diz. Como ele abandonou nossa fé, as críticas dele à nossa organização só podem ser mentiras.”

Talvez nesta última modalidade o argumento ad hominem seja a falácia com mais possibilidades de ser explorada autoritariamente, pois a melhor forma de se manter o controle sobre um grupo é justamente fazer com que ele evite qualquer contato com informações ou opiniões dissidentes. Não é por outra razão que uma das primeiras medidas de regimes políticos ilegítimos é a censura e perseguição a seus críticos e dissidentes. Religiosamente falando, isso é feito pela difamação de ex-membros, especialmente se eles tentam explicar as razões por que deixaram o grupo religioso a que pertenciam. Em vários casos, generalizações excessivas, termos pejorativos e mesmo a proibição de qualquer contato são usados para se criar a ideia de que todos os ex-membros têm falhas de caráter, ignorando a possibilidade de abandono por razões de consciência, discordância doutrinária e toda uma série de fatores que podem levar alguém a reavaliar honestamente suas crenças. Assim, abafa-se na fonte a possibilidade de um debate ou questionamento por parte dos que ficaram, já que eles serão desencorajados a procurar entender os motivos dos dissidentes.

6. “Os argumentos da empresa X contra nossa fusão não merecem crédito, pois eles são nossos concorrentes e seus interesses comerciais estão em jogo.” (Também chamado de culpa por associação)

Neste último exemplo, o fato de que a empresa X tem motivos comerciais para se opor à fusão das concorrentes não invalida os seus argumentos e tampouco faz com que os daqueles a favor da fusão mereçam mais crédito. Fosse assim, por exemplo, poderíamos invalidar a priori todo os argumentos de defesa do réu de um processo judicial, já que são motivados pelo seu interesse em continuar livre. Embora em questões como essa o interesse ou as crenças particulares de alguém possam sugerir que os argumentos apresentados provavelmente serão tendenciosos, isso não é desculpa para que sejam ignorados ou abordados apenas de forma indireta e inadequada através de um truque retórico.

 Outra variante nos leva ao famoso ditado “faça o que eu digo, não o que eu faço”, o chamado tu quoque(latim para “você também”).

7. “Você diz que o cigarro é um vício horrível, mas ainda não conseguiu parar. Por que eu deveria lhe dar ouvidos, então?”

O fato de a pessoa que nos fala ainda fuma não quer dizer que o cigarro seja menos prejudicial. Ela pode não ser o melhor exemplo de conduta, mas nem por isso deixa de ter razão nesse ponto.

Um argumento ad hominem não é necessariamente uma falácia, desde que aplicado numa circunstância adequada. Por exemplo, se o seu banco nomeia para o cargo de diretor uma pessoa com um passado de notórios crimes financeiros, você não pode ser recriminado por procurar outra instituição. 

Neste caso, a probidade da pessoa da pessoa é tão relevante quanto a lógica do que ela diz. Trata-se, então, de uma precaução razoável e justificada. Agora, se essa mesma pessoa, por outro lado, resolve debater a possibilidade de vida após a morte, já é outra história…


Apelo à ignorância

Resume-se na frase “ausência de evidência não é evidência de ausência”. Consiste em usar a falta de provas (ou a inabilidade do oponente em apresentá-las) a favor ou contra algo para provar uma outra tese.

1. “Você não tem provas de que Deus existe. Logo, ele não existe.”

2. “Você não tem provas de que Deus não existe. Logo, ele existe.”

3. “É claro que houve um dilúvio; ninguém nunca conseguiu provar que não houve.”

Acontece que a mera falta de provas não prova nada. No máximo, pode sugerir, mas nunca fechar questão. O fato de eu não poder provar empiricamente que, digamos, os buracos negros existem não quer dizer que eles não podem existir necessariamente. Ora, se temos duas teses opostas, e uma não tem evidências confiáveis a seu favor e a outra sim, fiquemos com esta. Mas se ela também não possui evidências, não será o problema da outra que a tornará legítima. Por isso, devemos tomar todo o cuidado para não cair num falso dilema (vide acima) e nos deixemos enganar por dicotomias falsas, como no exemplo a seguir:

4. “O ‘elo perdido’ entre o homem e os primatas não foi encontrado até hoje. Isso nos mostra que a Teoria da Evolução está errada e o livro bíblico de Gênese é que está com a razão ao falar da criação do primeiro casal por Deus.”

Aqui o autor da frase, além de reduzir toda a Teoria da Evolução ao caso do Homo sapiens, esqueceu que o fato de que se ela, hipoteticamente, está errada, não quer dizer que o Gênese esteja certo.


Apelo à multidão

Quem conhece a expressão “maria-vai-com-as-outras” certamente saberá quando uma falácia de apelo à multidão está sendo usada. Basicamente, esse é o tipo de raciocínio que diz “se todos fazem, então eu devo fazer também”. Políticos bons de voto adoram essa linha de argumento, religiosos proselitistas também.

1. “Você não acha que se uma religião cresce tanto em tão pouco tempo é porque Deus está com ela?”

2. “Dez milhões de pessoas não podem estar erradas. Junte-se à nossa igreja você também.”

3. “Isso é uma verdade tão sublime que um milhão de pessoas já a aceitaram como regra de fé.”

A questão essencial aqui é que quantidade não é critério da verdade. O que esse tipo de falácia faz é desviar a atenção do tema tratado para um outro, aparentemente importante, mas que é um tópico à parte. O fato de tantas pessoas acreditarem em algo não significa que seja verdade. Por exemplo, há poucos séculos, acreditava-se que o oceano era repleto de monstros que inviabilizariam viagens transatlânticas, e hoje podemos viajar em cruzeiros ao redor do mundo com uma boa margem de segurança. Em religião, especificamente, é algo ainda pior: se dez milhões acreditam numa coisa, uns 300 milhões acreditam em outra bastante diferente; e mesmo a religião mais significativa numericamente não tem uma vantagem tão grande, pois a soma das outras é ainda superior ao número de fiéis dela. Existem formas mais inteligentes e honestas de se buscar o consenso do interlocutor e da audiência.

Apelo ao medo ou argumento ad baculum

Aqui, o instrumento de coerção não é a pressão da maioria, mas o temor das consequências de não adotarmos o ponto de vista da pessoa com quem debatemos. Mais um exemplo tirado de diálogos religiosos:

1. “Quanto ao inferno, veja só: eu acredito, você não. Se eu estiver errado, e você certo, não terei perdido nada. Mas já parou para pensar que, se eu estiver certo e você errado, você pode sofrer eternamente por isso?”

Ora, isso é um raciocínio ou uma ameaça? Pois um raciocínio é uma demonstração racional da validade de uma determinada ideia, o que não é o caso. 

Então como analisar esse tipo de argumento? Bem, existem dois tipos de razão para se adotar uma determinada crença: a racional e a prudente. A primeira é baseada na lógica e na objetividade; a segunda, em algum outro fator importante para a pessoa, como medo ou benefício pessoal, mas que não influi na veracidade ou falsidade da crença. 

Quando alguém usa um argumento ad baculum, está na realidade dizendo que, se uma ideia ou concepção nos assusta, então é melhor crer que ela é verdade, mesmo que não haja uma razão lógica para demonstrá-la. É fácil mostrar o absurdo disso, bastando mudar o motivo do medo:

2. “Eu acredito que o bicho-papão mora no armário, você não acredita. Se eu estiver errado, não terei perdido nada. Mas já parou para pensar que, se eu estiver certo e você errado, ele pode devorar você?”

Ou ainda, mais sutilmente:

3. “É melhor você votar pela condenação do réu ou você pode ser a próxima vítima dele.”

Se para condenar o réu é necessário apelar para o medo dos jurados em vez de para as provas, então algo muito errado deve estar acontecendo…


Apelo à tradição

Uma variedade do apelo à multidão, só que o argumento fundamental neste caso é “quanto mais antigo, melhor”. Quando uma pessoa apela para a tradição, está apostando que crenças antigas estão sempre certas, o que obviamente não é verdade, como a medicina demonstra quase todos os dias. Vejamos alguns exemplos:

1. “A Astrologia é uma arte adivinhatória praticada há milhares de anos no Oriente. Conta-se que os antigos reis da Babilônia teriam feito uso dela para saber os dias mais propícios para as batalhas. Até os imperadores chineses recorriam aos astros para guiarem seus passos no governo. Com esse currículo respeitável, é inadmissível que ainda não a considerem uma ciência.”

2. “É claro que existem duendes, as lendas sobre eles têm séculos e séculos de existência.”

3. “Nosso livro sagrado têm mais de 3 mil anos de idade e está intacto, logo, só ele pode conter a verdadeira revelação divina.”

4. “Os primeiros mártires costumavam fazer ou acreditar nisso. Então deve ser bom.”

5. “Essas práticas remontam aos primeiros séculos da nossa igreja. Como você pode questioná-las?”

Familiar? Esse tipo de argumentação ignora que o fato de um grande número de pessoas, durante muito tempo, crer que uma coisa é verdade não é motivo para se continuar crendo. Por exemplo, a escravidão era considerada justificável em inúmeras nações durante milênios, e nem por isso, hoje, temos que aceitá-la como uma prática legítima.


Apelo à autoridade

Quando queremos reforçar nossa tese, podemos recorrer à opinião de pessoas respeitáveis para corroborá-la. Assim, por exemplo, se quero defender o uso de uma determinada substância no tratamento de uma doença, poderei citar médicos renomados e idôneos, desde que eles tenham experiência no combate a essa enfermidade e que tenham testado a eficácia da substância em questão. Isso é perfeitamente válido, e até desejável. No entanto, nem sempre se tem esse cuidado na seleção de citações, e acabamos por citar quaisquer personalidades célebres como se tivessem mais autoridade que qualquer outro mortal em questões em que não são especialistas. Ser famoso não quer dizer estar certo sobre tudo. Por exemplo:

1. “Dionne Warwick é uma boa cantora, mas isso não significa que o serviço esotérico por telefone para o qual ela faz propaganda realmente funcione e seja a solução de todos os problemas da vida.”

2. “O mesmo vale para Mayara Magri e o Instituto Omar Cardoso, bem como para todos os anúncios publicitários envolvendo celebridades do show-business.”

Da mesma maneira, principalmente ao se tratar de assuntos polêmicos, fazer citações breves de especialistas famosos, ainda que afins com a questão em pauta, não significa necessariamente que eles estão defendendo a tese em questão ou concordando com todos os pontos que a compõem. Depoimentos de somente uma ou duas frases aparentemente favoráveis em geral não nos permitem ter uma ideia clara de até que ponto aquele suposto especialista se aprofundou no assunto e no contexto em que aquelas palavras foram ditas. 

Para termos uma maior segurança nesse ponto, ao nos depararmos com o depoimento dessas autoridades, é melhor que eles sejam suficientemente detalhados para que possamos ter certeza de que sabiam do que estavam falando e das razões pelas quais são favoráveis ou não a uma determinada ideia. O bom senso exige que, antes de nos curvarmos a títulos e fama, procuremos saber que argumentos estão sendo usados e se eles realmente merecem crédito. Afinal, mesmo os sábios têm suas falhas e equívocos.


Eufemismos

São palavras que designam coisas potencialmente desagradáveis de forma mais suave. Usadas até não mais poder por políticos e religiosos, são uma forma polida e ilusória de tornar belo o feio, e fazer com que mesmo as ideias mais repugnantes se tornem mais aceitáveis. Seu apogeu está no uso de expressões consideradas politicamente corretas, tão populares nos Estados Unidos, e que chegam a ser ridículas:

1. “Indivíduo verticalmente desafiado — anão.”

2. “Homem afro-americano — homem negro (e por que não nipo-americano, sino-americano, teuto-americano?).”

Já outros são mais universais e menos risíveis:

3. “Apropriar-se ilicitamente de dinheiro público — roubar dinheiro público.”

4. “Ser convidado a retirar-se do recinto — ser expulso do recinto.”

Eufemismos normalmente são dispensáveis, só tendo alguma utilidade quando se quer evitar ferir a suscetibilidade de alguém, que, no caso do politicamente correto, é exagerada. Um bom argumento deve ser claro, conciso e de preferência sem eufemismos que possam atrapalhar a comunicação. Se eles são usados com muita frequência, pode ser o caso de que nosso interlocutor esteja tentando minimizar ou disfarçar alguma coisa.


Premissas contraditórias

Quando as bases do argumento são mutuamente excludentes. Por exemplo:

1. “O que acontece quando uma força irresistível encontra um obstáculo irremovível?”

Ora, o erro aqui é que não existe força irresistível. Se existisse, então não haveria um obstáculo irremovível, e vice-versa. Logo, se a pergunta não é coerente consigo mesma, não pode haver resposta.

2. “Se Deus pode tudo, ele poderia fazer uma pedra tão pesada que nem ele mesmo pudesse levantar?”

Novamente, a pergunta não faz sentido, pois admitir que Deus pode criar tal pedra é admitir também que ele não pode tudo; e admitir que ele não pode criar a pedra é o mesmo que negar sua onipotência. Então, não se tem aí nenhum fundamento que possa dar margem a um raciocínio legítimo.

Mais um exemplo, desta vez peculiar às religiões salvacionistas, em especial as cristãs:

3. “Deus é o criador onisciente de todas as coisas. Então ele também criou o mal? Não, o mal é criação das suas criaturas.”

Vejamos: se Deus é o criador de tudo, e ainda por cima onisciente (ou seja, sabedor de tudo, mesmo do futuro), como se pode dizer que o mal não é também criação dele? 

Tal como estão, as afirmações se contradizem, pois mesmo que Deus não tenha criado o mal diretamente, se ele é onisciente e cria os seres já sabendo que praticarão atos maus, o máximo que se pode dizer é que ele é seu criador indireto. A própria ideia de ser a origem de tudo que existe implica não só ser criador daquilo que consideramos bom como também do que consideramos mau. Mas se o mal foi criado a despeito da vontade ou do conhecimento de Deus, o que faz mais sentido, então ele não seria onipotente. E aí teríamos mais uma contradição.


Redução ao absurdo

É um raciocínio levado indevidamente ao extremo. Designado apropriadamente em inglês pela expressão “slippery slope”, ou seja, rampa escorregadia, na qual um simples empurrão basta para que se perca totalmente o controle. Essa falácia pode ser expressa assim:

1. “Você permite que seu filho de seis anos roube um beijo na bochecha da coleguinha de escola hoje e logo ele vai querer agarrá-la e, mais tarde, se tornará um maníaco sexual. Você não tem vergonha?”

Ou seja, quem faz uso dessa falácia parte do princípio de que um evento qualquer vai necessariamente levar a outro sem qualquer possibilidade de gradação ou razão aparente, como numa bola de neve montanha abaixo. É uma mistura de generalização apressada com um determinismo pessimista, pois só reconhece uma cadeia de eventos possíveis a partir de um fato. No exemplo citado, pode até ser que o menino tenha alguma tendência problemática, mas certamente não terá sido o beijo na coleguinha o fator responsável por isso e de uma criança que dá um beijo na bochecha aos seis anos até o adulto sexualmente perturbado vai uma boa distância. A falácia relaciona o beijo ao comportamento doentio sem qualquer motivo aparente, ignorando todos os graus entre uma coisa e outra.
Mais alguns exemplos:

2. “Se você permite o aborto em casos de risco de vida para a mãe nos hospitais públicos, logo todo o mundo vai querer abortar por qualquer motivo, ninguém mais vai valorizar a gravidez e a taxa de natalidade vai acabar despencando, prejudicando a economia do país.”

3. “A crença na vida após a morte é perniciosa, pois quem acredita nisso sempre vai achar que as coisas vão melhorar no Além e, portanto, vai se acomodar à sua situação atual, não lutar por seus direitos e permanecer em tamanha inatividade que a nação logo vai estar subjugada pelos exploradores internacionais. É por isso que nosso país seria muito melhor se todos fossem ateus.”

Agora alguns só aparentemente mais aceitáveis:

4. “Se deixarmos o governo vender uma estatal hoje, daqui a dois ou três anos o país inteiro vai estar nas mãos do empresariado internacional.”

5. “Não podem censurar meu livro. Eles começam censurando só o meu e logo vão estar queimando todos os livros em praça pública e voltaremos ao tempo da Inquisição!”

6. “Se eu fizer uma exceção para você vou ter de fazer para todo o mundo.”

7. “Se você cumprimentar aquele seu amigo que abandonou nossa igreja, ele vai encher sua cabeça de mentiras, você vai perder a fé e vamos ter de tratar você como um traidor também.” (cf. Apelo ao medo ou argumento ad baculum e Ataque pessoal ou argumento ad hominem, acima).


Nota
1 — Comunicação em prosa moderna. 7. ed. rev.  Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1978, p. 307.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

ABUSO MENTAL DE CRIANÇAS

"Se há uma lição que a história demonstra em cada página, é: mantenha suas crianças longe dos sacerdotes e pastores, ou eles os farão inimigos da humanidade".







Michel Onfray o filósofo mais lido na atualidade nos ensina que  " Não há nada no cérebro além daquilo que é posto nele. Já se viu alguma criança - imagem do que pode haver de mais natural - nascer acreditando em algum deus ou em alguma transcendência? Deus e a religião são invenções puramente humanas, assim como a filosofia, a arte ou a metafísica. Essas criações, é bem verdade, respondem a necessidades, como a de esconjurar a angústia da morte, mas podemos reagir de outra forma: por exemplo, com a filosofia". 


 No anedotário da sabedoria popular do Nordeste brasileiro isso é explicado da seguinte forma:


"O cérebro da criança ao nascer se assemelha a um coco verde, ao nascer só tem água. Com o passar do tempo esse coco vai criando uma fina camada de polpa que engrossa conforme o tempo passa."

Esse pensamento rude do homem do campo nordestino que nunca ouviu falar de filosofia e muito menos em Michel Onfray explica de maneira simples o desenvolvimento do cérebro nos recém nascidos e o armazenamento de conhecimento adquirido através da trajetória da vida. Ninguém discorda do camponês, mas todos eles demonstram inquietação quanto o exemplo é dado através da religião. Setenta por cento dos brasileiros dão muita importância a religião e acreditam na existência de um Deus único (Cristão) ou em Deuses, nos casos das religiões de matrizes africanas, sem se atentarem ao fato de que tais crenças são postas nos cérebros das crianças pelo seus pais desde os primeiros momentos da concepção.

Como as crianças absorvem a religião dos pais ainda em tenra idade, sem nenhuma noção de razoabilidade, é fácil concluir que o fim da religião está longe, além do infinito, embora já apareça uma luz no fim do túnel, quando lemos nos livros e jornais a notícia de que nos países altamente civilizados como a Suécia, Dinamarca, Noruega, Japão e Finlândia, a religião está em baixa.


ABUSO MENTAL DE CRIANÇAS

Art. 173 do CP - Abuso de Incapaz

Conceito:

Abusar, em proveito próprio ou alheio, de necessidade, paixão, ou inexperiência de menor, ou da alienação ou debilidade mental de outrem, induzindo qualquer deles à pratica de ato suscetível de produzir efeito jurídico, em prejuízo próprio ou de terceiro.

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.


BÍBLIA SAGRADA
VELHO TESTAMENTO
Salmos 34:11 - na versão de João Ferreira de Almeida
- Vinde meninos, ouvi-me, e eu vos ensinarei o temor do Senhor.

O temor do Senhor é o tesouro mais precioso que o povo tem. (ISAÍAS 33:6) na tradução da Sociedade Bíblica do Brasil.


A Religião é um domínio em nossa cultura em que aceita-se prontamente, sem questionamento – sem nem mesmo se aperceber do quanto isto é bizarro – que pais tenham uma palavra total e absoluta sobre o que seus filhos serão, como seus filhos vão ser formados, que opiniões seus filhos terão sobre o cosmos, sobre a vida, sobre a existência. Você compreende o que quero dizer quando me refiro a abuso mental de crianças?

O que não é doce e nem tocante é que estas crianças tinham todas quatro anos de idade. Como se pode dizer que uma criança de quatro anos seja Muçulmana, ou Cristã, ou Hindu, ou Judia? É possível falar de um economista de quatro anos de idade? O que você diria sobre um neo-isolacionista de quatro anos, ou um liberal Republicano de quatro anos? Há opiniões sobre o cosmos e o mundo que as crianças, uma vez crescidas, presumivelmente estarão em condição de avaliar por si mesmas.




 Seria interessante também ensinar mais que uma teoria da criação. A dominante nesta cultura é o mito da criação judeu, extraído do mito da criação babilônico.

William Kingdon Clifford (Matemático e filósofo inglês) em uma de suas palestras disse em alto e bom som:



INCUBUS (*)



Em cada escola dominical ortodoxa as crianças são ensinadas a acreditar em demônios. Cada pequeno cérebro torna-se um zoológico ambulante, repleto de bestas selvagens do inferno. Suas imaginações são poluídas com deformações, monstruosidades e maldades. Preencher a mente das crianças com espíritos malignos – com falsos demônios – é um dos mais baixos e vis de todos os crimes. Nestas sagradas prisões – estes calabouços divinos – estes inquisidores católicos e protestantes – as crianças são torturadas com as mais cruéis mentiras. Aqui elas são ensinadas que pensar livremente é mau; que expressar seus pensamentos honestamente é blasfêmia; e que viver uma vida livre e prazerosa, dependendo de fatos ao invés de fé, é um pecado contra o Espírito Santo.




Crianças, assim ensinadas, desta maneira corrompidas e deformadas, tornam-se inimigas da investigação e do progresso. Elas não são mais verdadeiras para si próprias. Elas perdem a veracidade da alma. Na linguagem do Prof. Clifford, "elas são os inimigos da raça humana".
  
Eu tenho dito para todos os pais e mães: mantenham seus filhos longe dos sacerdotes e pregadores; longe das escolas dominicais ortodoxas; longe dos escravos da superstição.

Eles os ensinarão a acreditar no demônio, no inferno, na prisão de Deus, no calabouço eterno, onde as almas dos homens serão lançadas para sofrerem eternamente. Essas coisas apavorantes são parte da cristandade. Retirem essas mentiras da doutrina cristã e todo seu esquema cairá numa ruína disforme. Este dogma do inferno é a infinita selvageria – o sonho da vingança insana. Faz de Deus uma besta selvagem – uma eterna hiena. Faz de Cristo um ser tão impiedoso como as presas de uma serpente. Salvem essas pobres crianças da poluição deste horror. Protejam-nas desta infinita selvageria.




(*) Incubus: é um demônio da idade média que para sobre as pessoas que dormem. Ele é atribuído antigamente, o que hoje é conhecido como "Paralisia do sono" que é quando você está dormindo e sente que alguém te observa, mas você não pode nem falar ou mover-se.


Vídeo baixado da Internet



SABER MAIS










A ciência deveria estudar com afinco o mal que a religião faz ao cérebro das pessoas.

domingo, 14 de junho de 2015

A IGREJA ESCRAVISTA






Com o apoio de reis tiranos, a Igreja ávida por expandir o cristianismo, torturou e matou milhares de povos oprimidos por seus colonizadores, com especial destaque para a América Latina e África onde o apoio a captura dos nativos para serem escravizados deixou centenas de mortos e povoados inteiramente vazios.



BÍBLIA SAGRADA

NOVO TESTAMENTO

Efésios 1

1 Paulo, apóstolo de Jesus Cristo, pela vontade de Deus, aos santos que estão em Éfeso, e fiéis em Cristo Jesus:

Efésios 6

5  Vós, servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne, com temor e tremor, na sinceridade de vosso coração, como a Cristo;





A Igreja, faminta por expansão, passou a dedicar-se às conquistas coloniais. São os sacerdotes os primeiros colonizadores da África negra. Encontramos padres, ao lado dos conquistadores espanhóis, que massacraram os índios da América. Foram os padres que organizaram o comércio de escravos.

Na verdade, foi o próprio Estado da Igreja que ordenou, em 1344, a conquista das Ilhas Canárias. E, provavelmente, foi o bispo De Las Casas, após a conquista da América, que sugeriu que os indígenas, que não suportavam o trabalho massacrante e as doenças levadas pelos colonos, fossem substituídos por africanos.1

Assim, desde o início de 1500, os missionários da África começaram a organizar a exportação de escravos para a América, equipando os navios "missionários" para tal fim.

Fala-se de dezenas de milhões de ameríndios mortos em batalha ou aprisionados, exterminados por doenças e pelo cansaço. O desastre foi tamanho que se calcula que, só no México, a população tenha passado de 25 milhões de índios, em 1520, a menos de um milhão e meio em 1595.

Calcular o massacre ocorrido com o comércio de escravos é impensável. Fala-se de pelo menos vinte milhões de pessoas levadas para a América. A expectativa de vida delas, a partir do momento do desembarque, era de sete anos. Mas, para cada negro que chegava à América como escravo, nove prisioneiros morriam durante a captura, a viagem até o porto de embarque ou a travessia.'

 Portanto, pode-se falar em 190 milhões de mortos. Mas a conta é bem mais dramática: as contínuas incursões dos escravistas por quase trezentos anos destruíram a economia de vastas áreas da África, privando populações inteiras de sua melhor mão-de-obra, o que fez milhões de pessoas morrerem de fome, epidemias e exaustão. Era possível percorrer centenas de quilômetros em meio às ruínas do que um dia foram civilizações brilhantes e culturalmente evoluídas e não encontrar um único sobrevivente, apenas ossos que brilhavam sob o sol.

O horror do colonialismo teve nos missionários seus mais ferozes defensores. Estes se dedicaram a extirpar as religiões tradicionais dos povos subjugados com a violência e a tortura. Chegaram até a impedir que as crianças falassem sua língua-mãe, punindo-as com castigos corporais.

E para entender como os padres brancos podiam ser desumanos, basta lembrar que muitas vezes eram enviados às missões sacerdotes manchados por crimes graves e que eram considerados indignos para realizar seu ofício na Europa.

Eles abençoaram todas as formas mais infames de apartheid. Em muitos países da África, por exemplo, os negros eram proibidos de comercializar com os brancos ou de cultivar hortaliças ou cereais nas áreas em que a monocultura dos latifundiários brancos era obrigatória.



Plantar abóboras custava uma das mãos na primeira vez, um pé na segunda e, na terceira, a cabeça. A razão de tanta brutalidade era simples: assim, os nativos eram obrigados a se dedicar à monocultura e a vender seu produto aos patrões brancos em troca de comida. Então, se quisessem sobreviver, teriam de vender aos brancos sem poder discutir o preço. Ou aceitavam ou morriam. E se analisarmos as condições em que muitos países do Terceiro Mundo se encontram hoje, não poderemos deixar de ver, na miséria e na violência atuais, a marca de séculos de exploração. Na escola, não aprendemos nada sobre o colonialismo e o papel da Igreja nele.

Os ingleses, por exemplo, especializaram-se no tráfico de drogas, vendendo enormes quantidades de ópio à China. Por três vezes, o imperador chinês proibiu este comércio e, por três vezes, canhoneiros ingleses bombardearam os portos chineses para impor sua liberdade de vender droga. Foram as famosas Guerras do Ópio: em 1848, em 1856 e em 1858. E tenham certeza de que o chumbo dos canhões era abençoado.

Finalmente, não podemos nos calar a respeito do papel que a Igreja teve ao apoiar o nazismo, o fascismo, o extermínio dos judeus, os massacres da Guerra Espanhola, e do suporte dado por boa parte do clero cristão a todas as mais infames ditaduras do planeta. Sacerdotes católicos abençoaram os torturadores e os esquadrões da morte no Chile, na Grécia, no Peru, na Bolívia, na Argentina, na Indonésia. E mesmo o papa Woityla mandou cartas demonstrando apreço e bênçãos a ditadores sanguinários como Pinochet (que conheceu pessoalmente durante uma de suas várias viagens).




NOTA

1.   Alguns autores afirmam que De Las Casas era contrário à escravidão dos negros. A esse propósito, ver Fernando Ortiz, Contrapuento cubano dei tobaco y del azucar, Biblioteca Ayacucho, Venezuela, 20/10/78.

Ver também Jacopo Fo, Laura Malucelli, Schiave ríbeli. 500 anni di vittorie africane censurate dai libri di storia, Nuovi Mondi Edizioni, Perugia, 2001, onde se conta, entre outras coisas, como os negros algumas vezes conseguiram derrotar os brancos e como a nossa idéia da África e da escravidão é uma concepção errônea, culpada de diminuir a gravidade dos horrores cometidos pelos europeus.


 SABER MAIS


Recomenda-se a leitura dos livros e sites quando indicados como fontes. Os posts contidos neste blogger são pequenos apontamentos de estudos.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

OS SOLDADOS DE CRISTO

Do banditismo aterrorizante e dos saques, vendas de meninos como escravos, pelos impiedosos cristãos que engrossavam os pelotões das Cruzadas.











E, como se não bastasse, foram os papas que ordenaram as Cruzadas e, posteriormente, a colonização das "terras novas" e os massacres que se sucederam.

Mas vejamos em ordem. Primeiro, foram as tentativas de invadir a Palestina, o Líbano e a Síria, com o pretexto de libertar o Santo Sepulcro. Em Storici arabi alle crociate, (1) Gabrieli reúne os testemunhos de vários cronistas medievais no Oriente Médio. Por meio dessas declarações, pudemos saber que, até depois da metade do século XII, ou seja, antes do começo das invasões dos franco-cruzados, milhares de cristãos visitavam livremente a Palestina e todos os lugares onde supostamente Jesus vivera e pregara.

As Cruzadas foram um projeto criminoso em todos os aspectos, e, mal nos questionamos sobre a sucessão de fatos que levaram à Terra Santa turbas desenfreadas aos gritos de "Assim quer Deus!", finalmente vemos aflorar a real motivação da campanha que levou São Francisco a tal indignação a ponto de exclamar: "Vim converter os infiéis e descobri que os que precisam de fé e noção de piedade não são os guerreiros muçulmanos, mas os soldados de Cristo e, antes de mais nada, os bispos que os conduzem!". (2)

Além do mais, os "exércitos de Deus" talvez tenham matado mais cristãos do que infiéis. Os exércitos cristãos que se dirigiam à Palestina tinham um longo caminho a percorrer, sem provisões ou acampamentos organizados. Portanto, tinham como costume obter o que precisavam saqueando as cidades cristãs pelas quais passavam durante a viagem. Por exemplo, a famosa "Cruzada dos Mendigos", em 1096, que causou o massacre de quatro mil pessoas apenas na cidade húngara de Zemun.

No mesmo ano, o contingente guiado pelo nobre alemão Gottschalck trucidou mais de dez mil pessoas culpadas de terem-se deixado dominar pelos saques. Alguns homens partiram para as Cruzadas seguindo os passos de um pato! Estes devotos acabaram se unindo a uma Cruzada guiada por um ilustre salteador chamado Emich, que nunca chegou à Terra Santa, limitando-se a um tour durante o qual massacrou milhares de judeus, espoliando-os de seus bens.

Mas outros cruzados, que participaram de expedições seguintes, também decidiram se preparar para a guerra contra os infiéis muçulmanos começando a massacrar infiéis judeus desarmados. Em 1212, trinta mil meninos da Europa Central partiram para as Cruzadas sozinhos e sem armas. A maior parte desse "exército" embarcou em Marselha acreditando partir para libertar o Santo Sepulcro. Em vez disso, os garotos (pelo menos os que sobreviveram aos contratempos da viagem) foram vendidos aos turcos como escravos.

A Quarta Cruzada, realizada em 1202, operou uma pequena devastação e, em vez de ir até a Terra Santa, tomou de assalto a perfeitamente cristã Constantinopla, conquistada por meio de saques e do massacre da população. No final das contas, quem ganhou com as Cruzadas, com certeza, não foram os soldados e seus capitães, e sim os mercadores das Repúblicas Marítimas italianas e a Igreja de Roma.

A volta das Cruzadas também foi uma aventura trágica. Os cruzados muitas vezes tinham que entregar aos transportadores todo o fruto de seus saques e roubos.

Sabe-se, também, que os cruzados, até pela forma como eram recrutados, não eram brilhantes em termos de disciplina e organização. Seus acampamentos eram erguidos sem nenhum cuidado estrutural. Em poucas palavras, eles não tinham áreas de higiene, não existiam enfermarias nem médicos organizados, e a cada chuva as barracas eram inevitavelmente carregadas pelas águas misturadas à urina e ao estéreo. Resumindo: Deus não estava com eles e os castigou matando vários de cólera, infecção gastrointestinal e doenças venéreas locais e exóticas.

A propósito, não podemos esquecer a grande quantidade de prostitutas que seguiam o exército. A isso acrescentemos o fato de que os cruzados não costumavam tomar mais do que dois banhos por ano e muitos fizeram a promessa de não tomar banho até a libertação do Santo Sepulcro.

Ignorando as leis alimentares dos povos que já viviam há anos naquele clima, enchiam-se de carnes de porco assada ou salgada e se embebedavam da manhã até a noite. O resultado foi que, às epidemias normais em voga, acrescentaram-se outras ainda mais devastadoras. Além disso, como já lembramos, os pobres coitados eram tratados por médicos e cirurgiões cuja ignorância só se igualava a seu fanatismo. O resultado era que ser ferido em batalha ou contrair uma doença grave garantia, depois do tratamento médico, a certeza da morte inevitável.

Sobre esse assunto, transcrevemos o comentário de um médico oriental cristão durante a consulta de um cavaleiro ferido e de uma mulher doente:

...Apresentaram-me um cavaleiro que tinha um abscesso em uma perna e uma dona aflita pelo definhamento. Fiz um emplastro no cavaleiro, e o abscesso abriu e melhorou; prescrevi uma dieta para a mulher, com pouco tempero. Quando eis que chegou um médico franco, que disse: "Esse aí não sabe curar ninguém". E, dirigindo-se ao cavaleiro, perguntou: "O que prefere, viver com uma só perna ou morrer com duas pernas?" Tendo este respondido que preferia viver com uma só perna, ordenou: "Tragam-me um cavaleiro corajoso e um machado afiado". Chegaram o cavaleiro e o machado, e eu estava ali presente. O médico colocou a perna sobre um pedaço de madeira e disse ao cavaleiro: "Desça-lhe uma machadada, para cortar de pronto!" E, diante de meus olhos, deu a primeira machadada e, não conseguindo arrancar a perna, deu a segunda; a medula da perna jorrou e o paciente morreu na hora.

Após examinar a mulher, ele disse: "Essa aí tem o demônio na cabeça, apaixonado por ela. Cortem-lhe os cabelos",. Foram cortados, e ela voltou a comer o alimento deles, com alho e mostarda, e o definhamento aumentou. "O diabo entrou na cabeça dela", sentenciou ele, e pegou a navalha e abriu a cabeça dela em forma de cruz, extirpando o cérebro até aparecer o osso da cabeça, no qual esfregou sal... e a mulher morreu na mesma hora. Naquele momento, perguntei: "Ainda precisam de mim?" Responderam que não e fui embora, depois de aprender o que ignorava da medicina deles. (3)

Acrescente-se a isso o fato de que muitos cruzados eram aventureiros dispostos a entregar armas e provisões ao inimigo em troca de dinheiro, a vender a mulher para pagar dívidas de jogo, a trucidar companheiros para derrubá-los. Muitos foram obrigados a partir para a Palestina, mais do que por um rompante de fé, pela lâmina que pendia sobre suas cabeças junto com uma sentença de enforcamento.

E as suas não eram cabeças quaisquer. Muitas vezes, tratava-se de nobres falidos e ambiciosos que tinham como único objetivo a riqueza pessoal e que não se detinham diante a nenhuma torpeza desde que concretizassem seus intentos. Viram-se batalhas entre exércitos de cruzados rivais pela posse de uma cidade, alianças entre príncipes cristãos e emires turcos. Muitos nobres cruzados permitiram que seus companheiros de armas fossem trucidados sem levantar um dedo, por questões de rivalidade.

O modelo das cruzadas tinha feito escola. E, assim, quando o papa Inocêncio III decidiu deter a heresia catara e valdense, decretou em 1209 uma verdadeira cruzada no sul da França, que durou vinte anos e massacrou dezenas de milhares de pessoas. Os cátaros eram culpados de propagar uma vida comunitária pacífica e solidária, respeitando os supostos ensinamentos de Jesus e recusando-se a reconhecer "o poder por vontade de Deus" da Igreja.

O pontificado de Inocêncio III marca também o auge do poder temporal do papado. O papa passava a ser um soberano para todos os efeitos, e o Estado da Igreja torna-se uma verdadeira potência europeia. Como todos os soberanos, o bispo de Roma possuía territórios e exércitos, declarava guerra e realizava alianças. Vários reinos se reconheciam como vassalos da Santa Sé e pagavam conspícuos tributos a Roma.

Além disso, o papa utilizava o próprio poder espiritual para orientar a política dos Estados a ele alinhados. Se um rei era excomungado, perdia automaticamente o direito de cobrar obediência dos súditos e vassalos. Pode-se concluir, assim, que os soberanos cristãos pensavam duas vezes antes de pisar no pé da Santa Sé. Em suma, o papado acolheu por completo a herança criminosa do Império Romano. Houve até um papa, Júlio II, que encomendou uma armadura para conduzir seus próprios exércitos nas batalhas.


NOTAS

1.   Francesco Gabrieli (coordenado por). Storici arabi alle Crociate. Einaudi, Turim, 2002.
2.   A cidade é Avaro. Júlio César, op. cit, parágrafo 28.
3.   Francesco Gabrieli (coordenado por). Op. cit, p. 76/77.





Recomenda-se a leitura dos livros e sites quando indicados como fontes. Os posts contidos neste blogger são pequenos apontamentos de estudos.