terça-feira, 6 de outubro de 2015

AS CRUZADAS








Duzentos   anos   de  guerras,
roubos e crimes em nome do Senhor JESUS




Jerusalém caiu nas mãos dos infiéis e precisava ser libertada. "Deus quer" era o lema dos cruzados. Seguiram-se ao menos duzentos anos de guerras para libertar os lugares sagrados. Duzentos anos de guerras inúteis: no final, Jerusalém permaneceu nas mãos dos muçulmanos. As Cruzadas deterioraram irremediavelmente as relações entre o Oriente ortodoxo e o Ocidente católico e, em última análise, facilitaram a expansão turca.1


A ameaça turca e o apelo à Cruzada

Em 1070, os turcos, povo de origem muçulmana, conquistaram Jerusalém, a cidade sagrada dos cristãos, meta de peregrinação de vários deles. Na verdade, havia séculos que Jerusalém estava sob o domínio dos árabes, que toleravam, no entanto, a presença cristã.

Na primeira metade do século XI, as relações diplomáticas entre os dominadores árabes da cidade e o Império Bizantino eram bastante cordiais. Mas os novos conquistadores turcos, além de tornarem mais difícil a peregrinação, representavam uma ameaça à incolumidade do Império Cristão do Oriente e à própria Europa.

Em 1095, o papa Urbano II, respondendo ao pedido de ajuda do imperador bizantino ameaçado pela invasão turca, convidou todo o Ocidente a intervir militarmente. Aos voluntários da Igreja, prometia a delação do pagamento dos débitos, a anulação de eventuais condenações penais, a remissão dos pecados com as indulgências plenárias e outros prêmios.

De acordo com cronistas da época, o discurso do papa foi: "Ricos e pobres deveriam igualmente partir, deveriam parar de se matar uns aos outros e, em vez disso, lutar uma guerra justa, realizando a obra de Deus; e Deus os guiaria. Quem morresse em combate receberia a absolvição e a remissão dos pecados.

Aqui, a vida era miserável e malvada com homens que se entregavam até destruir o próprio corpo e a própria alma; aqui, eles eram pobres e infelizes, lá, seriam felizes, ricos e verdadeiros amigos de Deus." (Runciman, 1996, p. 94.)

Os europeus logo se lançaram ao feito, convencidos de que a conquista dos países mediterrâneos orientais seria fácil, pois era sabido que o domínio turco estava despedaçado em emirados hostis entre si, exatamente como os senhores feudais da Europa.

Os bizantinos logo se dissociariam dos feitos dos cruzados, seja porque estes, durante sua passagem, saquearam também cidades cristãs, seja porque a ideia de uma "guerra santa" com tantos bispos, abades e monges armados de tudo era estranha à sua mentalidade.


A Cruzada dos "Mendigos"

O apelo do papa Urbano II obteve, ao menos de início, uma resposta bem morna por parte dos soberanos e dos grandes senhores feudais, mas, ao contrário, uma adesão entusiasta, superior às previsões, nas classes mais baixas. Pregadores que viajavam pela Europa anunciando a Cruzada obtinham muito sucesso junto aos aventureiros, homens de armas miseráveis e camponeses famintos que sonhavam em mudar de vida.

A Primeira Cruzada (1096 1099) foi chamada a dos "mendigos", pois era composta principalmente por pessoas muito pobres e famílias camponesas provenientes, na maioria, da França, Alemanha e Itália, que esperavam encontrar no Oriente a liberdade da opressão dos senhores feudais e novas terras onde se estabelecer.

Por volta de 20 de abril de 1096, antes mesmo que a Cruzada "oficial" estivesse pronta, um exército de vinte mil pessoas guiadas pelo monge e pregador Pedro, o Eremita, partiu de Colônia. Sem provisões ou dinheiro, os cruzados, durante sua longa viagem, realizavam pilhagens. Ao chegar à cidade húngara de Zemun, um tumulto iniciado por uma discussão banal se transformou em uma verdadeira batalha. Os cruzados atacaram a cidade, saquearam-na e mataram quatro mil húngaros (todos cristãos), e por isso fugiram às pressas com medo da chegada do exército. Em seguida, destruíram um contingente militar de turcos fiéis ao imperador e saquearam e incendiaram Belgrado.

Ao chegar aos arredores da cidade servia de Nis, os seguidores de Pedro provocaram outros incidentes, obrigando as tropas do governador cristão Nicetas a lutar contra eles. Muitos cruzados foram trucidados, outros foram presos (incluindo mulheres e crianças) pelo resto da vida.2 Após muitas travessias, os sobreviventes finalmente chegaram a Constantinopla. O imperador Aleixo I Comneno perdoou os cruzados pelos crimes cometidos e convidou Pedro para uma audiência na corte.

"Aleixo, com sua experiência, julgava a expedição muito pouco eficaz e temia que, se passasse pela Ásia, fosse destruída pelos turcos. Por outro lado, a indisciplina dos peregrinos o obrigou a afastá-los o quanto antes dos arredores de Constantinopla. Os ocidentais cometiam furtos sem fim, faziam irrupções em palácios e nas cidades dos subúrbios, roubavam até o chumbo dos telhados das igrejas." (Runciman, 1996, p. 112.)

Em 8 de agosto, os cruzados foram embarcados para além do estreito de Bósforo. Durante sua breve campanha, abandonaram-se a ferozes saques, massacrando e torturando até mesmo os habitantes cristãos da área. Dizem que alguns cruzados chegaram a assar crianças em espetos.

Mas nos primeiros grandes combates militares contra o exército turco, os "mendigos" foram exterminados. Alguns se salvaram renunciando ao cristianismo; outros, mulheres e crianças, foram poupados por terem bela fisionomia e foram vendidos como escravos. A última bandeira dos sobreviventes foi salva por uma expedição de socorro bizantina.

A expedição de Pedro não foi a única do tipo "faça você mesmo". Outras cruzadas menores partiram na mesma época. Por exemplo, Gautier Sans-Avoir, um pequeno dono de terras francês, partiu de Colônia com alguns milhares de seguidores poucos dias antes de Pedro e entrou nos territórios do Império Bizantino, encontrando as autoridades totalmente despreparadas para sua chegada. Em Belgrado, pilhou os campos próximos e lutou contra a guarnição da cidade, saindo vencedor. Muitos cruzados foram mortos em combate, outros foram queimados vivos dentro de uma igreja. O exército de Gautier foi seguido e escoltado até Constantinopla, onde se juntaria ao de Pedro, o Eremita, dividindo com ele o destino trágico.


Os judeus e a Cruzada do Pato Sagrado

O clima geral de hostilidade para com os infiéis muçulmanos não podia não atingir outra categoria de infiéis presentes na Europa havia mais de um milênio: os judeus.

"Para um cavaleiro, era caro se equipar para uma Cruzada, e [...] precisava pedir dinheiro emprestado aos judeus. Mas era justo que, para lutar pela cristandade, fosse necessário cair nas garras da raça que crucificara Cristo? O cruzado mais pobre muitas vezes já tinha dívidas com os judeus: era justo que fosse impedido de cumprir com seu dever cristão em razão de obrigações com alguém que pertencesse àquela raça ímpia? A pregação evangélica da Cruzada evidenciava particularmente Jerusalém, local da crucificação, e inevitavelmente chamava a atenção para o povo que havia feito Jesus Cristo sofrer. Os muçulmanos eram os inimigos do momento [...] mas os judeus com certeza eram piores, pois haviam perseguido o próprio Cristo." (Runciman, 1996, p. 121.)

As várias comunidades judaicas da Europa, por volta de 1095, estavam muito alarmadas: começava a circular um boato de perseguição e massacres contra elas. Dizia-se que o próprio Godofredo de Bulhão (futuro "libertador" de Jerusalém) tinha jurado vingar a morte de Cristo com o sangue dos judeus. Assim, as comunidades judaicas de Colônia e Magonza lhe ofereceram uma contribuição espontânea de mil moedas de prata para financiar a Cruzada. Godofredo agradeceu de bom grado e acalmou os doadores a respeito de suas intenções.

Pedro, o Eremita, pediu aos judeus franceses uma carta de apresentação convidando a comunidade judaica de toda a Europa a acolhê-lo e a abastecer seus seguidores com todas as provisões que tivessem pedido. Se não concordassem, seria difícil segurar seus homens... Obviamente, o pedido foi atendido.

O imperador Henrique IV, por sua vez, mandou os grandes senhores feudais garantirem a incolumidade de todos os judeus em suas terras.

Mas essas boas intenções não interromperam o massacre. Em abril de 1096, o conde alemão Emich de Leinsingen, já conhecido no passado por seus atos de vandalismo, fingiu ter ganhado os estigmas e se fez cruzado, reunindo um exército que contava com alguns nobres e vários peregrinos entusiastas. Entre eles, havia um pato e uma dezena de seguidores, convencidos de que o animal era inspirado diretamente por Deus e que os conduziria sem parar até a Terra Santa.

Emich resolveu inaugurar sua cruzada no dia 3 de maio, com um ataque contra a comunidade judaica de Spira. Mas os judeus de lá pediram proteção ao bispo, proteção esta que, obviamente, custou caro, e assim os cruzados conseguiram trucidar "apenas" 12 deles, que haviam se recusado a abjurar, além de uma mulher que se suicidou para fugir do estupro. Alguns assassinos foram depois capturados pelas forças do bispo e tiveram as mãos arrancadas.

Em Worms, os cruzados, juntamente com alguns habitantes e camponeses locais, conseguiram fazer melhor. Dezenas de judeus foram mortos pelas ruas. Não satisfeitos, os fanáticos invadiram o palácio do bispo e massacraram outros cinqüenta judeus lá refugiados.

Em Magonza, os seguidores de Emich encontraram as portas da cidade fechadas por ordem do arcebispo Rothard. Mas, após alguns tumultos anti-semitas, alguns cidadãos abriram as portas para deixar os "peregrinos" entrarem. Os judeus, sitiados na sinagoga, enviaram doações em dinheiro ao arcebispo e ao senhor laico local para que os hospedassem em seus respectivos palácios, além de sete libras de ouro ao próprio Emich, que prometeu poupar a cidade, mas foi dinheiro jogado fora. Emich atacou de surpresa o palácio episcopal, provocando a fuga de Rothard e de sua corte, e trucidou todos os judeus lá refugiados. 

Depois, ateou fogo ao palácio do protetor laico, obrigando os ocupantes a evacuá-lo. Muitos judeus salvaram a vida renegando a própria religião. Todos os outros foram mortos. Alguns dos que haviam abjurado se mataram por remorso. Um deles incendiou a sinagoga, para que não fosse profanada. O rabino Calonymos se refugiou com cerca de cinqüenta companheiros em Rudesheim, onde o arcebispo aproveitou a situação para tentar convertê-lo. O rabino reagiu com um gesto que custou a vida dele e de seus seguidores. O balanço final do massacre de Magonza foi a morte de pelo menos mil judeus.

Depois de Magonza, foi a vez de Colônia. Aqui, os judeus já haviam fugido ou estavam escondidos nas casas de cristãos conhecidos. Emich precisou se contentar em queimar a sinagoga e trucidar um casal de judeus que não quis abjurar. A intervenção do arcebispo impediu outros assassinatos. A esse ponto (estamos em 2 de junho), Emich decidiu finalmente deixar a Renânia e continuar sua viagem em direção à Terra Santa. Um grupo de seguidores o abandonou e continuou o que poderíamos chamar de "cruzada anti-semita" nos vales do Mosel. Em Treviri, o grosso da comunidade judaica se refugiou no palácio do arcebispo, mas alguns, em pânico, jogaram-se no rio e se afogaram. Em Metz, foram mortos 22 judeus. Os cruzados então voltaram a Colônia, de onde partiram para massacrar os judeus de várias outras localidades e depois se dispersaram.

Alguns voltaram para casa, outros se uniram à cruzada oficial de Godofredo de Bulhões.

No entanto, Emich e o grosso da tropa haviam entrado na Hungria, onde não foram bem acolhidos. Após uma série de embates, seu exército foi destruído quase por completo. Tendo por sorte se salvado, ele voltou para casa, onde pequenos senhores feudais se uniram às expedições seguintes. "O esfacelamento da cruzada de Emich [...] impressionou profundamente a cristandade ocidental. Para muitos bons cristãos, pareceu um castigo infligido do alto aos assassinos dos judeus; outros, que consideravam insensato e iníquo todo o movimento cruzado, viram nos desastres a aberta desaprovação de Deus." (Runciman, 1996, p. 126.)

Outras cruzadas anti-semitas foram as guiadas por Volkmar (um discípulo de Pedro, o Eremita) e por Gottschalk. Volkmar, que perseguira cerca de dez mil homens, no dia 30 de junho massacrou os judeus de Praga. Suas fileiras então foram feitas em pedaços pelo exército húngaro. Gottschalk, que tinha um exército um pouco mais numeroso, se distinguiu pelo massacre dos judeus de Ratisbona. Chegando à Hungria, primeiro foi tratado com benevolência; então, quando seus homens deram início aos saques e empalaram um jovem do local, as tropas húngaras obrigaram os cruzados a entregar as armas e os atacaram, matando do primeiro ao último.


A Cruzada dos Príncipes e dos Cadetes

A primeira Cruzada "oficial", que partiu também em 1096, era composta de cavaleiros bem armados e bem equipados, como Godofredo de Bulhões e seu irmão Balduíno. Em sua maioria, eram cavaleiros cadetes, ou seja, nobres sem terras que perderam o direito de sucessão e eram particularmente ambiciosos e ávidos por terras. Muitos deles já tinham trabalhado como mercenários, alguns até como piratas.

Estes cruzados também, como seus antecessores "mendigos", tiveram alguns acidentes de percurso durante a viagem. Por exemplo, Balduíno, em Constantinopla, capturou sessenta pechenegues que tentavam frear os roubos dos cruzados e matou vários outros. O próprio Godofredo teve desentendimentos com as tropas imperiais de Bizâncio, até que cedeu e aceitou jurar fidelidade ao imperador.

Um ramo da cruzada, que havia seguido outro caminho, encontrou um vilarejo de hereges paulicianos na estrada e queimou as casas com os moradores dentro.

De qualquer forma, os cruzados provaram seu valor no campo de batalha. Conquistaram Nicéia (durante o ataque, os soldados cristãos cortaram as cabeças de muitos cadáveres inimigos e jogaram-nas do outro lado das muralhas, para enfraquecer o moral da guarnição turca), que se entregou, no entanto, às tropas bizantinas, evitando um provável massacre. Em seguida, expugnaram Tarso, e aqui começaram seus desentendimentos. A cidade fora "libertada" pelos cavaleiros de Tancredo, mas Balduíno, chegando com um exército mais numeroso, obrigou-os a ir embora e deixou do lado de fora das muralhas um destacamento de trezentos cavaleiros vindos nesse meio-tempo para ajudar os homens de Tancredo.

Apesar das súplicas, Balduíno não os deixou entrar, e os cavaleiros foram todos massacrados durante a noite pelas forças turcas que corriam pelos campos.

Depois de Tarso, foi a vez de Edessa, cidade habitada na maioria por armênios cristãos, onde os cruzados fundaram seu primeiro estado. Aqui, Balduíno deixou que uma revolta local matasse o governador legítimo, Thoros, que o havia adotado como um filho em uma cerimônia pública, e transformou a cidade em um condado de seu domínio. A seguir, utilizou o tesouro de Edessa para comprar em dinheiro o emirado de Samosata, ocupando a cidade de Saruj em nome do príncipe muçulmano Barak (na prática, ele havia se tornado um mercenário pago por um "infiel"), mas a tomou para si.

Em Antioquia (conquistada graças à traição de um oficial armênio), os cruzados não pararam até terem assassinado o último turco, fosse ele homem ou mulher. Fala-se de milhares de mortos. Na confusão, também foram mortos muitos cristãos. Todas as casas dos cidadãos, cristãos ou muçulmanos, foram pilhadas. Grande parte das riquezas, das provisões e das armas encontradas foi inconscientemente destruída.

O cavaleiro Boemundo, futuro príncipe da Antioquia, comprou a cabeça do emir Yaghi-Siyan, que um camponês lhe levara como troféu de caça. "Não se podia andar na rua sem pisar em um cadáver, e todos logo entravam em putrefação no calor do verão, mas Antioquia era cristã de novo." (Runciman, 1996, p. 202.)

Outro massacre aconteceu na cidade de Maarat an-Numan. Quando entraram, os cruzados mataram todos que encontraram e saquearam e incendiaram as casas. Boemundo prometera incolumidade a todos que se rendessem e se refugiassem em uma grande sala próxima da porta principal. Mas as coisas não aconteceram bem assim: os homens foram trucidados, e as mulheres e as crianças foram vendidas como escravos.


O massacre, de Jerusalém      
                                
O filme se repete, mas em maiores dimensões, entre 14 e 15 de julho de 1099, com a conquista de Jerusalém. Os únicos muçulmanos a se salvarem foram o emir Iftikhar e seus homens, pois foram escoltados por Raimundo de Toulouse para fora da cidade, em troca de uma polpuda soma em dinheiro. Todos os outros foram trucidados.

"Os cruzados, enlouquecidos com uma vitória tão exultante [...] se lançaram pelas ruas, nas casas e nas mesquitas, matando todos aqueles que encontravam, fossem homens, mulheres ou crianças, sem distinção. O massacre continuou por toda a tarde e toda a noite." (Runciman, 1996, p. 247.) Nem um grupo de muçulmanos protegidos pelos homens de Tancredo, reunidos em uma mesquita encimada por seu estandarte, se salvou.

Quando Raimundo de Aguiler, mais tarde naquela manhã, visitou a área do templo, precisou abrir caminho entre os cadáveres e o sangue que chegava a seus joelhos. Nem os judeus de Jerusalém, acusados de terem ajudado os muçulmanos, foram poupados. A sinagoga em que haviam se refugiado foi incendiada, e todos morreram.

"O massacre de Jerusalém impressionou muito todo o mundo. Ninguém pode dizer quantas foram as vítimas, mas a cidade foi esvaziada de seus habitantes muçulmanos e judeus. Muitos cristãos também ficaram horrorizados [...] e, para os muçulmanos [...] dali em diante nasceu a certeza de que os ocidentais deveriam ser expulsos. Aquela sangrenta demonstração de fanatismo cristão reacendeu o fanatismo islâmico. Quando, em seguida, os latinos mais sábios do Oriente se esforçaram para encontrar uma base qualquer para a colaboração entre cristãos e muçulmanos, a lembrança do massacre sempre se colocou no caminho." (Runciman, 1996, p. 248.)

Mais de sessenta mil pessoas foram mortas.

Com o massacre de Jerusalém, encerra-se a Primeira Cruzada que tirou a vida de mais de um milhão de pessoas.

A notícia da tomada de Jerusalém devolveu o ânimo a muitos cavaleiros aventureiros que andavam em busca de fortuna.

Em 1100, partiu para a Terra Santa uma expedição de nobres lombardos, eclesiásticos e famílias inteiras de camponeses famintos. Essa nova Cruzada era tragicamente parecida com a de Pedro, o Eremita. E acabou em um desastre semelhante. Como seus antecessores, estes cruzados criaram vários problemas de ordem pública em Constantinopla.

Assim que chegaram à Terra Santa, em vez de cumprir sua missão (restabelecer os meios de comunicação entre o Império Bizantino e a Síria), os lombardos quiseram seguir a própria cabeça e entraram na Anatólia, no meio do território turco, levando consigo também os estandartes de cruzados alemães e franceses.

No primeiro grande ataque dos turcos, os cavaleiros lombardos fugiram tomados de pânico, abandonando a infantaria. Coube, então, aos franceses conter o ataque e reagrupar a expedição.

Não satisfeitos, os lombardos insistiram em continuar a marcha em território hostil, em vez de buscar a salvação na região costeira. E, como lá estavam, saquearam também um povoado cristão.

Próximo à cidade de Mersivan, houve uma batalha campal entre os turcos e os cruzados, na qual os últimos levaram a pior. "Os lombardos perderam as cabeças bem rápido e, com seu comandante, o conde de Biandrate, à frente, fugiram abandonando suas mulheres e os padres." (Runciman, 1996, p. 302.)

A retirada provocou a queda também dos mercenários turcos. Assim, os cruzados franceses e alemães, desguarnecidos, tiveram que capitular. No final, apenas os homens a cavalo conseguiram escapar. A infantaria foi massacrada, junto com civis e mulheres idosas. "Os lombardos, cuja obstinação fora a causa do desastre, foram aniquilados, com exceção dos líderes. As perdas foram estimadas em quatro quintos de todo o exército. Grandes quantidades de objetos de valor e de armas caíram nas mãos dos turcos, e os haréns e mercados de escravos do Oriente se encheram de moças e crianças capturadas naquele dia." (Runciman, 1996, p. 302.)


Os reinos cruzados   
                           
As décadas seguintes veriam a ampliação dos domínios cruzados com a conquista de importantes cidades costeiras, como Beirute e Trípoli. Nesta última, os cruzados italianos deram início a um massacre generalizado, antes que o soberano de Jerusalém conseguisse freá-los. Nas terras conquistadas, os cruzados criaram Estados; o mais importante era o Reino de Jerusalém, no modelo dos feudos europeus. Os Estados eram independentes entre si (aliás, não faltaram batalhas entre os soberanos cruzados, com tropas mistas turco-cristãs) e não reconheciam a jurisdição do Império de Constantinopla. Os súditos dos reinos cruzados tinham obrigações pesadas: os servos da gleba, árabes e sírios, tinham que pagar ao proprietário de suas terras um imposto de quase 50% da colheita. Os camponeses livres eram submetidos com o uso da força.

Nas cidades costeiras, o comércio estava nas mãos dos genoveses, venezianos e marselheses, que haviam obtido o privilégio de poder constituir suas colônias. Os cruzados não levaram nenhum elemento novo à vida econômica dos países conquistados, simplesmente porque, na época, as forças produtivas e a riqueza cultural do Oriente eram muito superiores às ocidentais.

Eles, na maioria das vezes, comportaram-se como ladrões e opressores, o que explica a constante hostilidade das populações locais,

No que concerne à religião, os conquistadores tentaram substituir o clero bizantino e o árabe por seus prelados e ritos, de início, até mesmo com o uso da violência. Por exemplo, no dia seguinte ao da conquista de Jerusalém, foi nomeado um novo arcebispo latino, o intolerante e corrupto Arnolfo. Uma de suas primeiras medidas foi torturar os sacerdotes ortodoxos que escondiam o pedaço maior da Vera Cruz (a relíquia mais sagrada da cidade) para que a entregassem. Como os sacerdotes relutaram, mandou torturá-los.

Para defender os locais sagrados e proteger os peregrinos, foram criadas as Ordens Cavalheirescas (a dos Templários, de origem francesa; a dos Teutônicos, de origem alemã; e a dos Joanitas, ou Hospitalários, mais conhecidos como Cavaleiros de Malta). Eram ordens religiosas armadas cujos membros, além dos votos religiosos de castidade, pobreza e obediência, também juravam defender os lugares sagrados contra os infiéis e dependiam diretamente do papa. Depois, as ordens receberam igualmente a incumbência de conquistar novos territórios e realizar a cristianização forçada das populações nativas.


A Segunda Cruzada

A Segunda Cruzada teve origem na queda de Edessa (1144). Na época, em Roma, foi realizado o Segundo Concilio de Latrão (1139), que havia proibido o uso da balestra, sob pena de excomunhão, pois a arma causava feridas horríveis. Mas seu uso foi admitido na guerra contra os infiéis. O papado conseguiu convencer o rei da França e o imperador germânico a se lançarem contra os turcos. Como na época da Primeira Cruzada, a empolgação contra os infiéis, de inicio, mirou os judeus. O abade de Cluny, Pedro, o Venerável, protestou porque estes não versavam uma contribuição para financiar a Cruzada.

Na Alemanha, o monge cisterciense Rodolfo instigou a multidão a massacrar os judeus e só foi calado após a intervenção decisiva de Bernardo de Chiaravalle. Como as outras Cruzadas, esta também teve seus "acidentes de percurso". Em Filipópolis, por exemplo, os cruzados incendiaram um mosteiro e trucidaram seus ocupantes.


Saladino era um cavalheiro

A Terceira Cruzada foi causada pela queda de Jerusalém (1187), por obra do grande comandante islâmico Saladino, que já estendera seu domínio ao Egito e à Arábia Ocidental. Ao contrário dos cruzados, Saladino não promovia massacres nas cidades que conquistava. Os cristãos tinham a chance de ir embora se pagassem um resgate em ouro (para um homem, dez dinares; para uma mulher, cinco). Quem não pagasse era feito escravo. Os nobres cristãos capturados podiam baratear a liberdade com a entrega das fortalezas a eles designadas. Assim, a conquista acontecia de maneira fácil e indolor.

Embora os reis da Inglaterra e da França, bem como o imperador germânico, participassem da Cruzada, seus resultados foram irrelevantes (o imperador Frederico Barba-Ruiva chegou a morrer na época, e nem foi em combate) em razão das divergências internas.

Jerusalém permaneceu nas mãos dos turcos, ainda que os cristãos tivessem liberdade de acesso. O único resultado útil foi deter, pelo menos momentaneamente, o avanço turco.


A Cruzada que errou o caminho

O papa Inocêncio III ordenou a Quarta Cruzada (1202-1204), procurando aproveitar a morte de Saladino (1193). Os cruzados entraram em acordo com a República de Veneza para poderem usar sua poderosa frota. O plano era desembarcar no Egito, conquistá-lo e, de lá, chegar a Jerusalém. Mas Veneza, que tinha boas relações comerciais com o Egito, conseguiu desviar a Cruzada com a astúcia.

Para começar, os venezianos puseram os cruzados em uma posição de inferioridade. "Acampados na pequena ilha de São Nicolau do Lido, atormentados por mercadores venezianos com quem haviam contraído dívidas, mantidos sob a ameaça de terem suspensas todas as provisões se não desembolsassem dinheiro [...] os cruzados estavam dispostos a aceitar qualquer condição." (Runciman, 1996, p. 728.) E a condição dos venezianos era a seguinte: os cruzados só poderiam partir se antes aceitassem conquistar, para a Sereníssima, a cidade cristã de Zara, em Istria. Em poucos dias, Zara foi atacada, conquistada e saqueada.

Indignado, Inocêncio III excomungou os cruzados, mas logo depois lhes concedeu o perdão, na esperança de que, finalmente, se lançassem contra os turcos.

Enquanto os cruzados invernavam em Zara, chegou ao acampamento o filho do imperador de Constantinopla para anunciar que o pai havia sido banido pelo irmão. Se o ajudassem a retomar o trono, os cruzados ganhariam grandes somas em dinheiro e a submissão da Igreja grega a Roma.

Os cruzados, então, se dirigiram a Constantinopla, onde encontraram a resistência dos cidadãos, que não queriam saber dos latinos. O imperador deposto e cegado foi recolocado no trono sem que fosse derramado sangue nobre, pois o irmão usurpador já havia fugido da cidade. Os cruzados exigiram que o filho fosse coroado ao lado do imperador, com o mesmo título, para garantir os compromissos feitos em Zara.

O tesouro de Constantinopla, todavia, estava vazio. O patriarca e o povo se recusavam a reconhecer o papa como chefe da Igreja Universal, e não tinham a menor intenção de pagar as dívidas do imperador nem de conceder privilégios aos cruzados e aos venezianos. Por essa razão, a população bizantina se rebelou, matando o imperador, o filho e algumas centenas de soldados.

Os cruzados invadiram novamente a cidade e a saquearam terrivelmente, proclamando o Império Latino do Oriente e se esquecendo de Jerusalém.

"O saque a Constantinopla não teve paralelos na história. Por nove séculos, a grande cidade foi capital da civilização cristã. Era cheia de obras de arte deixadas pela Antiga Grécia e de obras-primas de seus próprios e excelentes artesãos. Os venezianos conheciam efetivamente o valor de tais objetos e, onde puderam, apoderaram-se dos tesouros para adornar as praças, as igrejas e os palácios de suas cidades. Mas os franceses e os flamengos estavam ávidos pela destruição. Lançavam-se furiosos e gritando pelas ruas e pelas casas, arrancando tudo que brilhava e destruindo tudo que não pudessem transportar, parando apenas para assassinar ou violentar, ou para arrombar as adegas e matar a sede com vinho. Não poupavam nem mosteiros, nem igrejas, nem bibliotecas. Na própria [basílica de] Santa Sofia, viam-se soldados bêbados arrancando as tapeçarias e quebrando as iconóstases de prata, pisando nos livros sagrados e nos ícones. Enquanto bebiam alegremente do cálice do altar, uma prostituta se sentou no trono do patriarca e começou a cantar uma canção obscena francesa. Muitas freiras foram violentadas em seus próprios conventos. Palácios e cabanas foram igualmente invadidos e destruídos. Mulheres e crianças feridas jaziam moribundas pelas ruas. Por três dias, as terríveis cenas de saque e derramamento de sangue continuaram, até que a imensa e magnífica cidade foi reduzida a um matadouro. Até os sarracenos teriam sido mais misericordiosos, exclamou o historiador Niceta, e com razão." (Runciman, 1996, p. 792.)

No comando da Igreja bizantina, foi colocado um novo patriarca que procurou fazer um jogo que fosse vantajoso, aproximando a população local, a grega e a eslava do catolicismo. O papa condenou oficialmente o massacre, mas, quando viu que o imperador eleito e o patriarca reconheciam sua supremacia sobre toda a Igreja cristã do Oriente e do Ocidente, decidiu aceitar o fato.

Mais ainda que o papado ou os senhores feudais, foi Veneza que tirou maior vantagem da conquista do Império Bizantino. Os mercadores venezianos, em especial, conseguiram obter isenção fiscal para suas mercadorias em todos os países do Império.

O Império Latino ruiu em 1261, sob o golpe conjunto dos búlgaros, dos albaneses e dos bizantinos, ajudados pelos genoveses, que temiam a presença veneziana nos Bálcãs.

O Império de Bizâncio sobreviveria por outros duzentos anos, mas nunca mais voltaria a seu antigo esplendor.


As Cruzadas das Crianças

Os apelos de Inocêncio III para a partida de uma Cruzada "verdadeira" (já que a Quarta Cruzada havia sido desviada para Constantinopla) obtiveram, em uma Europa incessantemente percorrida por pregadores tomados por uma espécie de histeria coletiva contra os infiéis de toda espécie (muçulmanos e hereges; na época havia também a Cruzada contra os cátaros), um efeito curioso. Inflamados pela propaganda da época, milhares de crianças da França e Alemanha formaram verdadeiros exércitos e marcharam em direção à Terra Santa.

Em maio de 1212, Estêvão, um pastor de 12 anos proveniente da cidade de Cloyes, em Orleans, apresentou-se à corte do rei Felipe da França. Ele afirmava que, enquanto conduzia as ovelhas ao pasto, Cristo em pessoa apareceu e o mandou chamar os fiéis para a Cruzada, entregando-lhe uma carta para o rei.

O rei da França mandou o menino voltar para casa, mas este não se deixou abater e começou a pregar em público diante da porta da abadia de Saint-Denis. Prometeu que aqueles que se juntassem à Cruzada veriam os mares se abrirem, como o Mar Vermelho para Moisés, e que chegariam a pé até a Terra Santa.

O rapaz "tinha o dom de uma eloqüência extraordinária; os adultos se impressionavam, e as crianças respondiam em massa ao seu chamado" (Runciman, 1996, p. 806). Estêvão começou sua viagem pela França reunindo prosélitos e pedindo a ajuda de seus convertidos nos sermões.

Todos os garotos se reuniram em Vendôme por volta do final de junho. Os cronistas da época falavam em pelo menos trinta mil jovens, nenhum de mais de 12 anos. Eram na maioria órfãos, filhos de pais desconhecidos ou pequenos camponeses cujos pais viam a partida como um alívio, livrando-se, assim, de mais uma boca para alimentar. Mas havia também descendentes da nobreza foragidos de casa e algumas moças.

Aos "pequenos profetas", como os chamavam os cronistas da época, juntaram-se alguns peregrinos adultos e alguns jovens padres, talvez incentivados, em parte, pela compaixão para com aqueles meninos, em parte, pela esperança de receber alguns dos donativos que choviam sobre os rapazes.

Estêvão dividiu a horda em bandos, cada um guiado por um chefe que levava uma auriflama, o estandarte do rei da França. No final, a Cruzada partiu em direção a Marselha: os pequenos camponeses marchavam a pé; os pequenos nobres, a cavalo, ao lado de seu profeta; e Estevão, sobre um carro decorado, encimado por um baldaquim para protegê-lo do sol. "Ninguém se ressentiu do fato de que o inspirado profeta viajava confortavelmente, mas, ao contrário, todos o tratavam como um santo e guardavam chumaços de seus cabelos e pedaços de suas roupas como preciosas relíquias." (Runciman, 1996, p. 807.)

Naquele ano, o verão foi árido, a seca causou escassez de comida e de água, e viajar a pé pelas estradas da época não era fácil. Muitas crianças morreram pela estrada, outras abandonaram a Cruzada e tentaram voltar para casa. Mas, no final, o grosso da expedição chegou a Marselha, onde os meninos foram acolhidos cordialmente pelos habitantes. Os pequenos cruzados correram para o porto para ver o mar se abrir, mas como o milagre não acontecia, alguns se revoltaram contra Estêvão, acusando-o de tê-los enganado, e fizeram o caminho de volta.

Muitos, no entanto, permaneceram à beira do mar, esperando o milagre por mais alguns dias, até que dois mercadores marselheses lhes ofereceram uma "carona de graça" no navio para a Palestina. Estêvão aceitou de bom grado e todo o contingente de jovens partiu a bordo de sete barcos.

Só em 1230 se receberiam notícias deles, dadas por um ex-membro da expedição que, por sorte, voltara à Europa. Dois dos sete navios afundaram por causa de uma tempestade, e todos os seus ocupantes morreram afogados. Os sobreviventes foram entregues aos sarracenos pelos mercadores de Marselha, para serem vendidos como escravos. Em Bagdá, 18 deles foram martirizados por se recusarem a abraçar o islamismo. De acordo com os relatos do ex-membro, no momento em que ele partira, dos trinta mil componentes da expedição que saíram de Vendôme, só restavam aproximadamente setecentos.

A notícia dos sermões de Estevão logo se espalhou pela Europa, inflamando a imaginação de muitos jovens da sua idade. Poucas semanas após sua partida, na Alemanha, surgiu outro pequeno pregador: chamava-se Nicolau e provinha de um vilarejo à beira do Reno. Começou sua obra no santuário dos Três Reis Magos, em Colônia. Ele também anunciava que os jovens podiam fazer melhor que os adultos e que o mar seria aberto na frente deles. Mas, ao contrário de Estêvão, Nicolau anunciava que as crianças não conquistariam a Terra Santa com as armas, mas com a conversão dos infiéis.

Nicolau, auxiliado por outros pequenos pregadores seus discípulos, reuniu em Colônia um verdadeiro e próprio exército. Os meninos alemães deviam ser um pouco mais velhos que seus colegas franceses; entre eles também havia mais moças e um contingente de descendentes de nobres mais numeroso. Também não faltavam vagabundos e prostitutas.

A expedição se dividiu em dois grupos, que se dirigiam para a Itália (onde o mar deveria se abrir para permitir que chegassem a pé à Terra Santa): um para o lado do Mar Tirreno, outro para o Adriático. O primeiro contingente, de vinte mil unidades, guiado pelo próprio Nicolau, atravessou a Suíça e os Alpes, sofrendo perdas consideráveis durante o difícil percurso. Menos de um terço dos rapazes saídos de Colônia chegou a Gênova, em 3 de agosto. Lá, as autoridades (que temiam um complô alemão) permitiram que descansassem apenas uma noite, mas ofereceram a todos os que quisessem a possibilidade de se estabelecer definitivamente na cidade.

Os cruzados alemães também correram para a beira do mar no dia seguinte, esperando que ele se abrisse, e mais uma vez houve muita desilusão quando o milagre não aconteceu. Muitas crianças aceitaram a oferta das autoridades genovesas, mas Nicolau e o grosso do contingente continuaram a viagem: se o mar não se abriu em Gênova, talvez pudesse fazê-lo em outro lugar. Poucos dias depois, chegaram a Pisa, onde dois navios a caminho da Palestina concordaram em aceitar vários rapazes a bordo. Nunca mais se teve notícias deles.

Contudo, Nicolau permanecera em terra, junto com seus mais fiéis seguidores, pois ainda esperava o milagre. Os rapazes que sobreviveram se dirigiram a Roma, onde foram recebidos pelo papa Inocêncio III. "Ele ficou comovido com a devoção deles, mas confuso com sua loucura. Com gentil firmeza, disse que deveriam voltar para casa; quando crescessem, poderiam cumprir suas promessas e combater pela cruz." (Runciman, 1996, p. 808.)

Aos garotos só restou pegar o caminho de volta. Muitos deles, em especial as moças, cansados com as loucuras da viagem, detiveram-se na Itália. Apenas poucos debandados voltaram à Renânia na primavera seguinte, e não é certo que Nicolau estivesse entre eles. O pai do pequeno profeta, acusado de ter encorajado o filho em sua obra vangloriosa, foi preso pelos pais dos rapazes desaparecidos e enforcado.

Nem o ramo "adriático" dos jovens alemães teve sorte. Cansados da viagem realizada em condições precárias, os pequenos cruzados chegaram a Ancona, onde esperaram inutilmente pelo milagre da abertura do mar. Então, continuaram viagem até Brindisi. Lá, alguns embarcaram em navios que zarpavam para a Palestina, mas a maior parte recuou, batendo em retirada para casa. Desde então, apenas um grupo desaparecido de fato voltou.


Outras Cruzadas

A Quinta, a Sexta, a Sétima e a Oitava Cruzadas não tiveram muita importância, senão pelo número de mortes que causaram: os cruzados sofreram outras derrotas, apesar da adesão dos mongóis contra os turcos e os árabes.

O imperador Frederico II chegou a entrar em acordo com os turcos sem ao menos lutar. O fato é que, depois da Quarta Cruzada, não havia mais quase ninguém no Ocidente disposto a participar de expedições distantes e perigosas, e por isso os cruzados enfrentavam dificuldades e nunca conseguiam a ajuda e os reforços requeridos.

Nos séculos XII-XIII, na Europa, verificou-se um notável aumento da produção agrícola. As técnicas de cultivo haviam se aperfeiçoado, as cidades haviam se desenvolvido. O aumento das áreas cultivadas e do produto das colheitas fez os camponeses perderem o interesse de emigrar. Os mercadores se contentaram com os resultados das primeiras quatro Cruzadas, que haviam assegurado a eliminação da função mediadora entre leste e oeste exercitada pelo Império Bizantino. Os cavaleiros, por sua vez, tiveram a possibilidade de ingressar nas tropas mercenárias das monarquias nacionais européias, cujo poder só crescia.3

Mas não houve apenas Cruzadas pela reconquista de lugares sagrados na Terra Santa: houve Cruzadas contra os hereges,4 Cruzadas contra reis e imperadores católicos, e outras que se dirigiram ao norte e ao leste da Europa.


As ordens cavalheirescas

Os Templários

A ordem militar religiosa do Templo (Pauperes Commilitones Christi Templique Salomonis, Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão) foi fundada em 1119, em Jerusalém, por Hugo de Payens, para defender os lugares sagrados e proteger os peregrinos. De 1128 em diante, foi criado um regulamento próprio, inspirado em Bernardo Chiaravalle, fundador da Ordem Cisterciense. A estrutura interna previa uma classe de cavaleiros, uma de escudeiros e uma de capelães; no ápice, estava o grão-mestre, auxiliado por alguns dignitários. O símbolo da ordem era a cruz vermelha sobre fundo branco para os cavaleiros, e sobre fundo marrom para os escudeiros. Os Templários se destacaram por seu valor e pelos vários episódios de guerra contra os árabes (Batalhas de Acre, em 1189; Gaza, em 1244; al-Mansura, em 1250), e seu número aumentou notavelmente no Oriente e no Ocidente.

Enriquecendo, por causa das várias doações e se tornando uma poderosa força financeira, independente do reino cruzado de Jerusalém, a ordem atraiu a hostilidade dos soberanos. Felipe IV (o Belo) da França, em especial, em 1307, pediu ao papa Clemente V a proibição da ordem, dando início a uma feroz caça a seus membros ativos na França, muitas vezes torturados e condenados à morte, com as mais variadas e fantasiosas acusações: heresia, bruxaria, sodomia (o lacre dos Templários mostrava dois cavaleiros, mas um só cavalo, o que, dentre outras coisas, foi utilizado para acusá-los de sodomia). Conta-se que dois mil Templários foram presos e torturados, e centenas foram queimados. Em 1312, com a bula Ad providam, o papa decretou oficialmente a dissolução da ordem e a transferência de seus bens para os jerosolimitanos.


Os Cavaleiros Teutônicos

Esta ordem, nascida também na Terra Santa a partir de 1200, foi utilizada pela Igreja Católica e por reis e imperadores cristãos para conquistar novos territórios no Báltico e nos países eslavos, lutando contra povos pagãos ou de religião ortodoxa grega. Os Teutônicos e os outros cruzados do norte foram conquistadores e dominadores impiedosos, similares a seus colegas na Terra Santa.5

Como recompensa pelos serviços prestados, a Ordem Teutônica ganhou grande parte dos territórios conquistados em forma de feudo. Em um segundo momento, no entanto, esses territórios foram militarmente redimensionados pelo rei da Polônia, e os cavaleiros tiveram de se contentar com a Prússia Oriental. Eles tentaram estender seus domínios até a Rússia, mas lutaram contra um inimigo natural invencível (Napoleão, Mussolini e Hitler o conhecem bem). Lembremos uma batalha especial dos Cavaleiros Teutônicos:


A batalha no gelo (1242)

O nobre Alexandr Nevsky reunira um exército de camponeses para defender a Rússia das incursões dos Cavaleiros Teutônicos... Obviamente, estes estavam convictos da superioridade das armaduras pesadas que lhes cobriam o corpo e os cavalos.

Na frente desse exército de guerreiros profissionais, dedicados às orações e aos saques, estava a horda de pobres malvestidos em sua primeira primavera na gélida Rússia. O plano era simples. Aliás, muito simples. Os russos iniciaram a batalha na borda do lago Peipus. O lago estava congelado, tudo estava coberto de neve, e não se podia perceber onde terminava a terra firme e onde começava o lago. Quando os Cavaleiros Teutônicos atacaram as fileiras do nobre Alexandr, os russos, após uma leve resistência, fugiram abandonando as armas.

Os cavaleiros, tomados de excitação, esporearam seus cavalos e correram atrás dos soldados em fuga. Os russos os atraíram para cima do lago, onde o gelo era mais fino. Em dado momento, ele começou a ceder com o peso da cavalaria teutônica, que morreu na água gelada.

Foram necessários poucos segundos para que, do exército, só restassem as pegadas dos cavalos na neve.

Foi a última vez que os Cavaleiros Teutônicos apareceram.6

As ordens cavalheirescas continuaram a obra de destruição ainda por um bom tempo. Durante o cerco a Belgrado, em 1456, oitenta mil muçulmanos foram mortos. Na Polônia, no século XV, os monges guerreiros saquearam 1019 igrejas e 18 mil povoados.



Fontes de Estudo

Capítulo 6 As Cruzadas: duzentos anos de guerras, roubos e crimes em nome de Jesus
1.   Steven Runciman, Storia delle Crociate, Einaudi, Turim, 1966, p. 94.
2.   Steven Runciman, op. cit, p. 110.
3.   Em parte devemos este parágrafo ao compêndio sobre as Cruzadas de "Galarico, il bárbaro", hospedado no servidor do CRIAD da Universidade degli Studi di Bologna: URL http://www.criad.unibo. it/galarico/
4.   Steven Runciman, op. cit, p. 810.
5.   Cf. a obra de Eric Christiansen, Le Crociate del Nord, il Báltico e Ia frontiera cattolica (1100-1525), Il Mulino, Bolonha, 1983.
6.   Jacopo Fo & C, La vera storia dei mondo, Demetra edizioni, 1987, Verona.
capítulo 7 As heresias medievais
1.   David Christie-Murray, I percorsi delle eresie. Milão, Rusconi, 1998, p. 152.
2.   Citado em R. Nelli, Scrittori anticonformisti del Medioevo provenzale, Terra e politici II, Milão, Luni, 1996, p. 229-31.
3.   David Christie-Murray, op. cit, p. 13.
4.   Ibid.,p. 160-1.
5.   AAW, Storia di Milano, vol. III, Milão, Fondazione Treccani degli Alfieri, 1954, p. 65.
6.   Alguns estudiosos levantaram a hipótese de que essa frase poderia significar que eles consideravam seus bens comuns a toda a humanidade, cf. AAW, Storia di Milano.
7.   Ibid.
8.   David Christie-Murray, op. cit, p. 148-9.
9.   Ibid., p. 147.
10."Albigense" deriva de Albi, cidade da França meridional; "concorenzzianos", de Concorezzo, cidade às portas de Milão; ambas localidades onde evidentemente havia grandes núcleos de cátaros.
11. Na realidade, do ponto de vista doutrinário, estes também se dividiam em várias correntes, cf. Merlo Grado Giovanni, Eretici ed eresie medievale, Bolonha, Il Mulino, 1989, p. 39-45 e p. 92-98.
12. G.G. Merlo, Eretici ed eresie medieval!, Bolonha, Il Mulino, 1989, p. 46.
13. David Christie-Murray, op. cit, p. 154-5.
14. Benazzi, D'Amico, // libro nero dell'inquisizione. La ricostruzione dei grandi processi, Casale Monferrato, Edizioni Piemme, 1998, p. 29.
15.Ibid.,p.30.
16. Giorgio Tourn, / valdesi: La singolare vicenda di un popolo-chiesa. Turim, Claudiana, 1999, p. 84-86.
17.lbid.
18. Romano Canosa, Storia dell'Inquisizione in Itália, vol. 5, Roma, Sapere 2000,1990, p. 54.
19. David Christie-Murray, op. cit, p. 160.
20. Benazzi, D'Amico, op. cit, p. 50.
21. Eugênio Anagnine, Dolcino e il movimento ereticale all'inizio del Trecento, La Nuova Itália, Florença, 1964, p. 191-2.
22. David Christie-Murray, op. cit, p. 167-8.
23. Lembremos que, durante os sermões de Hus, acontecia o chamado"Cisma do Ocidente", que assistia à contraposição de dois papas nomeados pelo mesmo colégio de cardeais. Em seguida, o Concilio de Constância complicaria ainda mais as coisas, nomeando um terceiro papa, Martinho V.
24. Sim, outra Cruzada. Dado o sucesso das Cruzadas contra os infiéis na Terra Santa, os papas resolveram lançar algumas também contra os monarcas cristãos que não apoiassem o poder papal. David Christie-Murray, op. cit, p. 168-9.
25. David Christie-Murray, op. cit, p. 169. 26.Ibid., p. 171.






terça-feira, 22 de setembro de 2015

QUEM SÃO OS ATEUS ?









Caracteriza-nos a nossa descrença na metafísica e numa entidade divina superior. Temos os pés bem assentes na Terra onde nascemos, vivemos, e aprendemos - e juntos vamos fazer dela o paraíso de todos.

Somos um grupo de livre-pensadores, reunindo correntes ideo-filosóficas como o ateísmo, o cepticismo, o agnosticismo, o laicismo... e todas as correntes que valorizem a humanidade e a vida terrestre como um bem natural da qual o fenômeno divino está alheio.

A diferença é o que nos une a todos como cidadãos de um povo global.

Recusamos o pensamento uniforme e a massificação de ideologias, queremos que todos tenham o direito a escolher o seu modo de pensar e de viver, sem medo do preconceito e da intolerância.

Escolhemos não acreditar que Deus existe. O ateísmo é fruto de uma filosofia baseada na informação científica que dispomos, na experiência social, e no pensamento progressivo.

Encontramos motivos para não crer, ou simplesmente não encontramos motivos para crer. É uma decisão pessoal que não afeta mais ninguém senão o próprio indivíduo, por isso escolhemos também respeitar as opiniões contrárias com o mesmo respeito que exigimos para nós.

Centramos as nossas atenções na humanidade. Na virtude e no seu lado frágil, nas conquistas e nos fracassos, nos problemas e nos poderes que o ser humano tem vindo a construir ao longo da sua existência.

Procuramos a verdade e o conhecimento. Somos uma forma de vida que tem a capacidade de aprender, a vontade de conhecer, a curiosidade para descobrir, e as ferramentas intelectuais para alcançar a sabedoria.

Estamos conscientes do caminho árduo das descobertas, de que novas repostas nos trarão novas questões, mas sabemos que a razão humana aliada a um sentimento de humildade e honestidade levará muito mais longe o nosso patrimônio quebrando as fronteiras da ignorância e revelando-nos grandes e novos saberes.

O movimento ateísta é um movimento construtivo. Não cremos na existência de Deus, questionamos as religiões como instituição, e defendemos a separação entre Estado e Igreja para construir um mundo mais livre onde todos possam coexistir pacificamente independentemente das suas crenças ou opiniões, onde todos possam expressar os seus sentimentos e ideias, e onde todos ponham a humanidade e a vida na Terra como o centro das nossas preocupações e cuidados.

Atrevemo-nos a pensar livremente. Ousamos ser humanos. Somos os ateus e ateias deste planeta.

Leitura Sugerida
ATEUS E ATEIAS FAMOSAS




quinta-feira, 17 de setembro de 2015

CARLOS MAGNO, AS CONQUISTAS E OS CRIMES



Em canto nenhum do mundo o Cristianismo se expandiu pelo conteúdo inserido nas suas mensagens religiosas. A regra de ouro sempre esquecida, deu lugar a violência imposta pelo terror e pelas armas.


Carlos Magno (cerca de 742-814) era o filho primogênito de Pepino, o Breve, ungido rei pelo papa Bonifácio, na presença dos bispos francos. Em 754, ajoelhou-se diante do papa para reconhecer por completo sua condição de súdito e autoridade. O papa, em troca do gesto de submissão, o ungiu rei e lhe conferiu o título de patrono dos romanos.

Com a morte de Pepino, em 768, o reino foi dividido entre os filhos Carlos e Carlomano, que morreu três anos depois. O irmão, então, apossou-se de todo o reino franco, expulsando seus sobrinhos, que se refugiaram, junto com a mãe, no reino dos lombardos, na Itália.1

Em 773, para socorrer o papado, tradicional aliado dos francos, Carlos desce à Itália para lutar contra os lombardos e toma toda a Planície Padana. Como causa direta da derrota militar, os súditos do duque lombardo de Spoleto e os habitantes de Ancona, Osimo, Fermo e Città di Castello se declararam súditos do papa.

Em 774, Carlos foi a Roma para a Páscoa, tendo sido triunfalmente recebido pelo papa e pelo povo. Nos anos seguintes, desceu mais duas vezes à Itália para conter a rebelião lombarda. Com as novas campanhas, apoderou-se do Friuli e sujeitou o duque de Benevento, destruindo, definitivamente, o domínio lombardo na Itália.

Outra diretriz da expansão franca foi a Europa setentrional, dominada pelos saxões, contra quem Carlos se mostrou um conquistador impiedoso. Em 772, estabeleceu os primeiros antepostos em território saxão e mandou construir mosteiros para facilitar o trabalho dos missionários (os saxões eram pagãos). Era o primeiro passo de um conflito que duraria mais de vinte anos.

A guerra contra os saxões foi longa e cansativa: os exércitos francos penetravam os novos territórios, desmantelavam os acampamentos inimigos e construíam fortificações.

Os saxões, por,sua vez, reorganizavam-se e destruíam as fortalezas francas. Mas Carlos teimosamente reconquistava o terreno perdido, mandava reconstruir os antepostos e, quando podia, criava novos em posições mais avançadas. "Era um método extenuante de fazer guerra [e que custa caro em termos de vidas humanas] e que não trazia grandes sucessos; mas, com o tempo, os recursos humanos e econômicos do invasor, altamente superiores, estavam destinados a prevalecer." (Alessandra Barbero, 2000, p. 56.)

"A submissão da Saxônia foi, em última análise, resultado de seu lento estrangulamento, com a construção de uma rede de bases fortificadas capazes de dar apoio umas às outras, de bloquear todos os rios, de mandar companhias de soldados devastarem os territórios inimigos, espalhando o terror e submetendo os habitantes, enquanto os fortes erguidos pelo inimigo eram tomados de assalto e destruídos, um após o outro, lentamente, mas de maneira eficaz." (Alessandra Barbero, 2000, p. 57.)

Oficialmente, a guerra se deu por questões fronteiriças, mas Carlos acrescentou a elas também motivações religiosas, como a proteção dos missionários cristãos e a conversão dos pagãos. O batismo forçado era imposto aos saxões que se rendiam, e os que não aceitassem eram condenados à morte.2

Em 782, eclodiu uma repentina e violenta rebelião saxônica. Os revoltosos exterminaram uma expedição militar enviada para dominá-los, matando ainda alguns colaboradores próximos de Carlos. O rei dos francos, em represália, entrou na Saxônia com um novo exército, obrigou as tropas rebeldes a se renderem e entregarem as armas e mandou decapitar 4.500 rebeldes em um único dia.3 

A partir de então, Carlos Magno conduziu uma verdadeira guerra de devastação, que só terminou em 785, com a rendição dos saxões, assolados pela fome, e o batismo dos últimos líderes rebeldes.

Na mesma época, foi publicado o Capitulare de partibus Saxoniae, uma lei que punia com a morte quem ofendesse a religião cristã e seus sacerdotes. Dentre as "ofensas" punidas com a morte, havia faltas menores, como a não-observância do jejum de sexta-feira.4

Em 793, eclodiu a última grande rebelião dos saxões. Carlos, dessa vez, ordenou a deportação em massa da população das províncias rebeldes, substituída por colonos francos e escravos. Então, amenizou as medidas repressivas antipagãs e se reconciliou com os nobres saxões sobreviventes.

A expansão franca também chegou à Espanha, que na época estava sob o domínio do emir árabe de Córdoba. Com a cumplicidade de alguns dignitários muçulmanos contrários ao emir, Carlos organizou duas expedições militares em 778 e 797. A primeira foi um fracasso, e, durante a retirada, a retaguarda das tropas imperiais foi massacrada pelos bascos. A segunda levou, em 799, à conquista de Vichy. Outras expedições de conquista ampliaram os domínios ibéricos dos francos, até que, em 810, o emir de Córdoba firmou um tratado de paz reconhecendo o domínio franco na Espanha setentrional.

Finalmente, falemos da expansão para o leste, na Panônia (atual Hungria). Aqui, Carlos lutou contra o povo pagão dos ávaros, contra quem lançou uma guerra de extermínio. Os historiadores da época falam de um número tão alto de vítimas que deixou a Panônia "deserta".5 Os territórios assim esvaziados teriam sido então ocupados por colonos francos e germânicos.


O papa agraciado com o milagre

Em 795, Leão III é eleito papa. Sacerdote de origem humilde e reputação duvidosa, era malvisto pela nobreza. O próprio Carlos duvidava de sua moralidade, tendo em vista que, em uma carta cumprimentando-o pela eleição, pedia que o novo bispo de Roma seguisse escrupulosamente os cânones e as Constituições dos Pais da Igreja; além disso, encarregava o abade Angilberto de garantir pessoalmente que o novo papa "vivesse honestamente".6 

Em 799, Leão III fugiu durante uma revolta de nobres romanos e se refugiou na corte de Carlos. Nesse meio-tempo, espalhou-se o boato de que o pobre papa teve os olhos arrancados e a língua cortada. Essa era uma prática comum para os bizantinos, para tornar inofensivo um adversário político sem se manchar com o pecado do homicídio.

Na verdade, Leão III permaneceu incólume e contou que sua língua e seus olhos voltaram a crescer por milagre.7

Ao território de Carlos chegaram também os adversários do papa, que o acusaram de perjúrio e adultério. Carlos entregou a questão a uma espécie de comissão de eruditos que devia avaliar a veracidade das acusações contra o pontífice. Um dos integrantes, o bispo Arno de Salisburgo, personalidade de prestígio e acima das partes, enviou à corte um verdadeiro relatório, cujas conclusões não deviam ser muito favoráveis ao papa. Tanto que Alcuíno, conselheiro de Carlos, destruiu o documento e respondeu ao prelado usando o famoso lema evangélico: "Quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra."8 

No final, Carlos decidiu tomar partido do papa e o mandou de volta a Roma escoltado por um exército. Pouco depois, em 23 de novembro de 800, ele mesmo dirigiu-se a Roma e foi recebido triunfalmente pelo clero.

Em 1° de dezembro, "Carlos, agindo como um novo Constantino, inaugurou os trabalhos do concilio que, na basílica vaticana, deveria se pronunciar a respeito das acusações feitas ao papa. Àquele ponto, no entanto, todos sabiam que se tratava de um processo político e que Leão sairia dele ileso: a assembléia confirmou que, tecnicamente, ninguém poderia julgá-lo e permitiu que se desculpasse das acusações, jurando solenemente sobre os Evangelhos a própria inocência, o que o papa tratou logo de fazer" (Barbero, 2000, p. 101). Leão III até hoje é adorado pela Igreja Católica como santo.

Em 23 de dezembro, Leão prestou o juramento de purificação relativo às acusações que lhe foram impostas, e seus adversários foram exilados.

Dois dias depois, durante a missa da noite de Natal, Leão III coroou Carlos Magno imperador e "augusto" do Sacro Império Romano. O círculo se fechava: por um lado, o papa cortava qualquer relação com o Império Bizantino (que considerava Roma sua extensão) e criava para si um imperador sob medida, com quem seria muito mais fácil se entender e de quem seria ainda mais fácil obter ajuda. 

Por outro lado, Carlos se tornava o verdadeiro chefe da cristandade no Ocidente e via formalmente legitimado e justificado o poder que já detinha de fato. Carlos (como Constantino antes dele) entendeu perfeitamente a formidável função agregadora e de instrumento de domínio espiritual que o cristianismo tinha em uma Europa ainda desunida e com as fronteiras ainda ameaçadas pelas populações "bárbaras" pagãs. Por essa razão, antes de ser coroado imperador, adotara uma política decisiva de cristianização dos povos a ele submetidos.

"Em seus cabeçalhos, se intitulava 'por graças de Deus e por concessão de sua misericórdia, rei e reitor do reino dos francos e devoto defensor e humilde servo da Santa Igreja, mas não nos deixemos enganar por seu tom.

A ajuda que o rei dava à Igreja consistia em nomear os bispos e abades, em vigiar severamente seu comportamento e reuni-los em concilio quando julgasse oportuno, determinando pessoalmente a ordem do dia e promulgando as conclusões; todas as responsabilidades que acostumamos a ver ligadas ao papa." (Barbero, 2000, p. 107.)

Para administrar e controlar melhor o Império, Carlos dividiu seu amplo domínio em reinos, por sua vez fragmentados em uma série de pequenos distritos chamados condados. Cada condado era entregue a um conde, que centralizava os poderes militar, judiciário e econômico. Nas regiões de fronteira, por razões militares, os condados eram reagrupados em unidades maiores, os marquesados, sob o governo de marqueses ou duques, onde sobreviviam os títulos lombardos. Um grande número de funcionários imperiais, os missi dominici, em geral eclesiásticos, viajavam de um condado a outro levando as ordens do imperador e controlando o trabalho dos vassalos.9

Carlos morreu em 814. Seu império duraria menos de um século, esfacelado pelas guerras entre seus sobrinhos e pelas ambições dos grandes feudatários.


Os súditos de Carlos

Quem pagava a conta das campanhas de Carlos? Quando lemos a respeito de exércitos em marcha e campanhas de conquistas que duraram anos, temos que pensar que, na época, as tropas não levavam seus provimentos consigo, tomando das populações locais tudo aquilo que precisavam: comida, cavalos, bois, forragem para os animais, lenha para o fogo etc. A passagem de um exército tinha como conseqüência quase inevitável devastações e escassez.

Na Itália arrancada dos lombardos, por exemplo, a escassez tinha chegado a níveis tais que muitos venderam seus terrenos a preços ínfimos e chegaram a vender a si mesmos e as próprias famílias como escravos aos mercadores gregos, embarcando em seus navios. O fenômeno atingiu proporções tamanhas que alarmou o papa e o próprio Carlos. Tanto que, no final, o imperador decretou uma lei extraordinária anulando a redução à condição de escravo e as alienações realizadas em estado de necessidade.10

Mas também em tempos de paz, para os povos conquistados, tornar-se súdito dos francos não devia ser grande negócio. Todos os súditos, aos 12 anos, deviam fazer um juramento de fidelidade ao imperador, que dizia expressamente que o fiel devia servir a Deus, obedecer aos mandamentos da Igreja, prestar serviço militar e, dependendo de sua situação econômica, pagar os impostos. Além dos tribunais ordinários, existiam os episcopais, para os crimes de natureza religiosa.

Os funcionários e os exércitos que os vigiavam a mando do imperador tinham o direito de se hospedar onde quisessem e requisitar cavalos, animais, carros, forragem e comida. Teoricamente, tais obrigações recaíam sobre todos os súditos livres, mas, na verdade, os mais prejudicados eram os pobres.11

Muitas vezes, condes, duques e marqueses criavam, por iniciativa própria, impostos e serviços obrigatórios, ainda que a lei, teoricamente, proibisse isso.


Uma reclamação de alguns súditos istrianos, que antes se submetiam ao Império Bizantino, expressa bem a ideia do nível de vexações às quais eram submetidos: 

"Na época dos gregos, nunca pagamos pela forragem;12 nunca trabalhamos de graça nas empresas públicas; nunca alimentamos os cães; nunca coletamos impostos, como fazemos agora; nunca pagamos pela matéria-prima, como fazemos agora, entregando todos os anos ovelhas e carneiros; e ainda devemos prestar o serviço de transporte até Veneza, Ravena, na Dalmácia, e ao longo dos rios, o que nunca fizemos antes. Quando o duque precisa partir para a guerra do imperador, pega nossos cavalos e leva consigo a força de nossos filhos, fazendo-os guiar os carros e depois tomando-lhes tudo e mandando que voltem para casa a pé; e nossos cavalos ficam lá na França ou são entregues a seus homens. Na época dos gregos, entregávamos, por ano, se necessário para os ritos imperiais, uma ovelha a cada cem, quem as tivesse; agora, ao contrário, quem tem mais de três deve entregar uma por ano. E fazemos todas essas prestações e pagamentos à força, porque nossos pais nunca os fizeram; e nossos parentes e vizinhos riem de nós em Veneza e na Dalmácia, assim como os gregos, que nos governavam antes." (Barbero, 2000, p. 215.)

Mas os bravos súditos istrianos também reclamaram das autoridades eclesiásticas: 

"Primeiro, a Igreja pagava metade de todos os impostos recolhidos para o Império, agora não mais. No mar público, onde todo o povo pescava junto, não ousamos mais pescar, pois os homens da Igreja nos pegam a pauladas e cortam nossas redes." (Barbero, 2000.)


Carlos Magno santo

Depois de sua morte, nasceu um verdadeiro culto à imagem de Carlos. Em 1165, Frederico Barba-Ruiva mandou sua "criatura", o antipapa Pascoal III, santificá-lo oficialmente.

Parece que já naquela época alguns eclesiásticos levantavam o problema de sua vida particular, por nada irrepreensível, dividida entre massacres promovidos por vingança e uma enorme quantidade de concubinas (e não se entende bem qual dos dois pecados era considerado o mais grave). Até hoje, a Bibliotheca Sanctorum, texto oficial da Igreja Católica, mostra algum constrangimento ao delinear sua biografia:

A vida particular de Carlos foi absolutamente deplorável, e não se podem decerto esquecer dois repúdios e muitas concubinas, nem os massacres justificados apenas pela vingança ou a tolerância para com a liberdade dos costumes da corte. Não faltavam, contudo, indícios de sua sensibilidade para a culpa em um período predominantemente rude e corrupto. Seu biógrafo Eginardo informa que Carlos não gostava dos jovens, muito embora convivesse com eles, e embora sua vida religiosa pessoal nos seja desconhecida, sabemos que fazia questão de observar os ritos litúrgicos que mandava celebrar especialmente em Aquisgrana (atual Aachen) com honras suntuosas.13

Hoje, o culto a Carlos Magno é celebrado oficialmente apenas na diocese de Aachen e é "tolerado por indulto da Santa Congregação dos Ritos" também em Metten e Münster.14


A corrupção do poder: a pornocracia romana

Observando a solenidade e a retidão dos conclaves atuais, é difícil imaginar que, nos primeiros séculos do cristianismo, as eleições dos bispos de Roma acontecessem em um clima bem diferente: com brigas, confrontos em praça pública, contestação de resultados, eleições de contrabispos. Quando o cristianismo se tornou religião de Estado, e o cargo de bispo de Roma passou a ser um dos mais cobiçados do Império, as lutas entre as facções dos candidatos rivais, por vezes, chegaram a níveis sangrentos. Durante a eleição episcopal de 336, por exemplo, os confrontos entre os que apoiavam Damaso, de base popular, e os que apoiavam seu rival Ursino, a aristocracia, deixaram um saldo de 136 mortos em um único dia. O próprio Damaso, eleito papa, foi intimado para responder no tribunal pela acusação de homicídio, mas foi absolvido.15

Os séculos seguintes presenciaram uma situação aparentemente paradoxal: o papado aumentava cada vez mais seu poder e sua influência, pelo menos no Ocidente. Mas justamente por isso, muitos tinham interesse em colocar no trono de Pedro um homem de sua confiança. Nobres romanos, grandes senhores feudais itálicos, prelados ambiciosos, imperadores legítimos e seus rivais... cada um jogava com as próprias cartas, que podiam ser intriga, homicídio, revoltas populares ou invasões militares. Nos 130 anos entre a eleição de João VIII (873) e a morte de Silvestre II (1003), houve 33 papas mais quatro antipapas. Dez deles morreram assassinados. Muitos foram presos ou exilados. Poucos governaram por muito tempo, muitos ficaram menos de um ano ou até poucos dias. Nobres romanos e grandes senhores feudais itálicos, imperadores legítimos e seus rivais: todos procuravam colocar no trono de Pedro um homem de sua confiança.

Talvez isso possa explicar o que os historiadores chamam de período da pornocracia (ou seja, do "governo das prostitutas"),16 um dos mais negros da história da Igreja.

De fato, por décadas, o poder de Roma esteve nas mãos das mulheres da poderosa família Teofilatto, que teve grande influência sobre a vida pública e o papado, utilizando como instrumento de poder qualquer meio à sua disposição, incluindo os ilícitos e imorais. 

Aqui nos limitaremos a narrar as saliências de alguns papas cuja conduta pode ser definida como licenciosa.

João VIII foi envenenado em 882, mas como o veneno não surtiu o efeito desejado, seus inimigos acabaram quebrando-lhe a cabeça a golpes de martelo. Um de seus adversários era Formoso, que se tornou papa em 891. Seu sucessor, Estêvão VI (896-897), que pertencia a uma facção oposta, exumou seu corpo em putrefação, para que fosse julgado e condenado por um concilio, mandando jogá-lo nas águas do Tibre. Estêvão, por sua vez, foi preso e estrangulado.

Leão V e o antipapa Cristóvão foram destronados, presos e assassinados. Sérgio III (904-911) foi amante de Marozia Teofilatto, mulher do conde Alberico di Tuscolo, com quem teve até um filho, o futuro papa João XI (931-935). João X (914-928), inicialmente apoiado por Marozia, demonstrou-se independente demais da família Teofilatto e acabou preso e sufocado com um travesseiro.

É provável que o poder ilimitado de Marozia tenha dado vida à lenda da papisa Joana, que presumivelmente nasceu da sátira antipapal. De acordo com a lenda, uma mulher vestida com roupas masculinas foi eleita para o trono de Pedro em 17 de julho de 855. A papisa, entretanto, ficou grávida e, durante uma procissão, no meio da multidão, caiu de quatro e começou o trabalho de parto. Revelada a verdadeira identidade "do papa", a multidão enfurecida esquartejou Joana. A lenda fez com que nenhum outro papa passasse por aquele caminho e que o sucessor da papisa retirasse o nome de sua predecessora dos registros históricos.

Voltando a Marozia, nesse meio-tempo ela havia atiçado a multidão de Roma contra o próprio consorte Alberico, que foi linchado, deixando-a, assim, viúva e livre para se casar com o conde Guido, da Toscana.

Em 931, o filho de Marozia torna-se o papa João XI. Este, aliado ao meio-irmão Alberico (filho do conde linchado pela multidão), mandou prender a mãe e expulsou de Roma seu terceiro marido, o rei da Itália, Ugo. Foi instaurada na cidade uma república aristocrática. O pontífice morreu na prisão em 936.

O ano de 955 presenciou a eleição de João XII, de 20 anos (955-964, primeiro papa a alterar o nome de batismo), filho daquele Alberico que se tornou o chefe de Roma. João era um jovem apaixonado por festas e pela caça, e totalmente alheio à liturgia. Ele transformou São João de Latrão em um bordel e foi acusado de adultério e fornicação. Foi durante seu pontificado que o imperador Otone I sancionou o Privilegium Othonis, ou seja, o direito do imperador de ratificar a eleição dos papas e exigir sua fidelidade. Deposto por Otone, substituído pelo antipapa Leão VIII, João retomou a posse do trono pontifício em 864. Morreu no mesmo ano (talvez assassinado), na cama de uma mulher casada.

As décadas seguintes viram a luta entre a facção imperial e aquela ligada à nobreza romana. Várias vezes a cátedra de Pedro ficaria vaga ou seria reivindicada contemporaneamente por dois ou mais rivais.

Em 965, João XIII foi expulso de Roma por uma revolta de nobres e recolocado no trono por Otone I. Em 974, Bento VI foi preso no Castelo de Sant'Angelo pela facção romana antigermânica e estrangulado no cárcere.

 João XIV também morreu no cárcere (984), talvez morto pelo fio de uma espada, talvez de fome. João XV foi exilado e recolocado no trono pelo imperador Otone III. O antipapa Bonifácio VII morreu envenenado em 984, e seu cadáver nu não foi enterrado. O antipapa João XVI foi torturado por soldados imperiais e trancado em um mosteiro, onde morreu em 998.

Em 996, o imperador Otone III, então com 16 anos, foi a Roma e fez seu primo de 23 anos ser eleito papa, sob o nome de Gregório V. Assim que Otone partiu, uma nova rebelião eclodiu em Roma, o papa foi expulso, e foi eleito um antipapa, João XVI. O imperador então voltou a Roma, mandou mutilar o antipapa e decapitou Crescêncio, líder da facção antigermânica. E a história poderia continuar...

Na metade do século XI, o papado chegou a seu ponto de decadência máxima com Bento IX (1032-1045). Contam que ele viveu da maneira mais libertina possível, ainda que, do ponto de vista teológico, fosse extremamente ortodoxo. Foi expulso de Roma por um breve período de tempo e substituído por Silvestre III. Mesmo voltando em abril de 1045, após expulsar o usurpador, Bento abdicou em maio, quiçá para se casar, vendendo seu pontificado a João Graciano, seu padrinho (provavelmente por 1.000 talentos de ouro), que se tornou o papa Gregório VI. Talvez arrependido da venda, Bento voltou a Roma três anos depois, para reivindicar o trono de Pedro. O imperador Henrique III desceu à Itália em 1046, para dirimir a controvérsia acerca do papado. Na verdade, três pontífices eleitos (o demissionário Bento IX, Gregório VI e Silvestre III) lutavam ao mesmo tempo pelo cargo de bispo de Roma.

Henrique III convocou, em Sutri, um concilio que depôs tanto Gregório VI quanto o rival Silvestre III (em seguida, um sínodo em Roma depôs também Bento IX) e fez eleger o bispo saxão Clemente II, que, no Natal, o coroou imperador. Mas a intervenção pacificadora do imperador tinha um preço: o controle imperial sobre o papado (ao menos em teoria) tornou-se absoluto.17


FONTE PARA ESTUDO

1.   Alessandro Barbero, Cario Magno: un padre dell'Europa, Laterza, Roma-Bari, 2000, p. 26-27.
2.   Ibid., p. 49.
3.   Ibid., p. 49.
4.   Ibid., p. 51-2.
5.   Ibid., p. 78-81.
6.   AAVV, Enciclopédia dei papi, Istituto dell'Enciclopedia Italiana, p. 695.
7.   Alessandro Barbero, op. cit, p. 99-100.
8.   Alessandro Barbero, op. cit, p. 100-101.0 episódio da destruição da carta também é citado em Biblioteca Sanctorum, vol. VII, Istituto Giovanni XXIII, da Pontifícia Universidade de Latrão, Roma, 1966, col. 1288.
9.   O termo 'Vassalo" originariamente significava "servo", mas passou a designar condes e marqueses que eram, na verdade, "servos"do imperador.
10. Alessandro Barbero, op. cit, p. 39-40. 11.Ibid., p. 211.
12. Na prática, os pastores eram obrigados a pagar uma taxa para conduzir o rebanho nos pastos públicos.
13. Biblioteca Sanctorum, vol. III, op. cit, col. 857-58.
14. Ibid., col. 861.
15. Ambrogio Donini, Storia dei cristianesimo - dalle orígini a Giustiniano, Teti editore, Milão, p. 306-7.
16. Cf. Storia delia Chiesa (séc. I-XII), Jesus: duemila anni di attualità, vol. III. Edizioni SAIE, Turim, 1981, p. 196-7.
17. A respeito dos fatos que narramos, cf. Storia delia Chiesa (séc. I-XII), Jesus: duemila anni di attualità, vol. III. Edizioni SAIE, Turim, 1981, p. 196-7. Cf. também Cronologia Universale, UTET.