O mito
ou “Alegoria” da caverna é uma das passagens mais clássicas da história da
Filosofia, sendo parte constituinte do livro VI de “A República” onde Platão
discute sobre teoria do conhecimento, linguagem e educação na formação do
Estado ideal.
A
narrativa expressa dramaticamente a imagem de prisioneiros que desde o
nascimento são acorrentados no interior de uma caverna de modo que olhem
somente para uma parede iluminada por uma fogueira. Essa, ilumina um palco onde
estátuas dos seres como homem, planta, animais etc. são manipuladas, como que
representando o cotidiano desses seres. No entanto, as sombras das estátuas são
projetadas na parede, sendo a única imagem que aqueles prisioneiros conseguem
enxergar. Com o correr do tempo, os homens dão nomes a essas sombras (tal como
nós damos às coisas) e também à regularidade de aparições destas. Os
prisioneiros fazem, inclusive, torneios para se gabarem, se vangloriarem a quem
acertar as corretas denominações e regularidades.
Imaginemos
agora que um destes prisioneiros é forçado a sair das amarras e vasculhar o
interior da caverna. Ele veria que o que permitia a visão era a fogueira e que
na verdade, os seres reais eram as estátuas e não as sombras. Perceberia que
passou a vida inteira julgando apenas sombras e ilusões, desconhecendo a
verdade, isto é, estando afastado da verdadeira realidade. Mas imaginemos ainda
que esse mesmo prisioneiro fosse arrastado para fora da caverna. Ao sair, a luz
do sol ofuscaria sua visão imediatamente e só depois de muito habituar-se com a
nova realidade, poderia voltar a enxergar as maravilhas dos seres fora da
caverna. Não demoraria a perceber que aqueles seres tinham mais qualidades do
que as sombras e as estátuas, sendo, portanto, mais reais. Significa dizer que
ele poderia contemplar a verdadeira realidade, os seres como são em si mesmos.
Não teria dificuldades em perceber que o Sol é a fonte da luz que o faz ver o
real, bem como é desta fonte que provém toda existência (os ciclos de
nascimento, do tempo, o calor que aquece etc.).
Maravilhado
com esse novo mundo e com o conhecimento que então passara a ter da realidade,
esse ex-prisioneiro lembrar-se-ia de seus antigos amigos no interior da caverna
e da vida que lá levavam. Imediatamente, sentiria pena deles, da escuridão em
que estavam envoltos e desceria à caverna para lhes contar o novo mundo que
descobriu. No entanto, como os ainda prisioneiros não conseguem vislumbrar
senão a realidade que presenciam, vão debochar do seu colega liberto,
dizendo-lhe que está louco e que se não parasse com suas maluquices acabariam
por matá-lo.
Este
modo de contar as coisas tem o seu significado: os prisioneiros somos nós que,
segundo nossas tradições diferentes, hábitos diferentes, culturas diferentes,
estamos acostumados com as noções sem que delas reflitamos para fazer juízos
corretos, mas apenas acreditamos e usamos como nos foi transmitido. A caverna é
o mundo ao nosso redor, físico, sensível em que as imagens prevalecem sobre os
conceitos, formando em nós opiniões por vezes errôneas e equivocadas,
(pré-conceitos, pré-juízos). Quando começamos a descobrir a verdade, temos
dificuldade para entender e apanhar o real (ofuscamento da visão ao sair da
caverna) e para isso, precisamos nos esforçar, estudar, aprender, querer saber.
O mundo fora da caverna representa o mundo real, que para Platão é o mundo
inteligível por possuir Formas ou Ideias que guardam consigo uma identidade
indestrutível e imóvel, garantindo o conhecimento dos seres sensíveis. O
inteligível é o reino das matemáticas que são o modo como apreendemos o mundo e
construímos o saber humano. A descida é a vontade ou a obrigação moral que o
homem esclarecido tem de ajudar os seus semelhantes a saírem do mundo da
ignorância e do mal para construírem um mundo (Estado) mais justo, com
sabedoria. O Sol representa a Ideia suprema de Bem, ente supremo que governa o
inteligível, permite ao homem conhecer e de onde deriva toda a realidade (o
cristianismo o confundiu com Deus).
Portanto,
a alegoria da caverna é um modo de contar imageticamente o que conceitualmente
os homens teriam dificuldade para entenderem, já que, pela própria narrativa, o
sábio nem sempre se faz ouvir pela maioria ignorante.
Por
João Francisco P. Cabral
Colaborador Brasil Escola
Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU
Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
O diálogo de Sócrates e Glauco
Trata-se de um diálogo metafórico onde as
falas na primeira pessoa são de Sócrates, e seus interlocutores, Glauco e
Adimanto, são os irmãos mais novos de Platão. No diálogo, é dada ênfase ao
processo de conhecimento, mostrando a visão de mundo do ignorante, que vive de
senso comum, e do filósofo, na sua eterna busca da verdade.
Sócrates – Agora
imagina a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à
instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de
caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância,
de pernas e pescoços acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão
o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz
chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles;
entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao
longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias
que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem
as suas maravilhas.
Glauco– Estou vendo.
Sócrates– Imagina agora, ao
longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que
os transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie
de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros
seguem em silêncio.
Glauco- Um quadro
estranho e estranhos prisioneiros.
Sócrates —
Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham
alguma vez visto, de si mesmos e de seus companheiros, mais do que as sombras
projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte?
Glauco — Como, se
são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante toda a vida?
Sócrates — E com as
coisas que desfilam? Não se passa o mesmo?
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — Portanto,
se pudessem se comunicar uns com os outros, não achas que tomariam por objetos
reais as sombras que veriam?
Glauco — É bem
possível.
Sócrates — E se a
parede do fundo da prisão provocasse eco sempre que um dos transportadores
falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles?
Glauco — Sim, por
Odin!
Sócrates — Dessa
forma, tais homens não atribuirão realidade senão às sombras dos objetos
fabricados?
Glauco — Assim terá
de ser.
Sócrates — Considera
agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias
e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja
ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a
erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o
deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as
sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até
então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para
objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das
coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas
que ficará embaraçado e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais
verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?
Glauco - Muito mais
verdadeiras.
Sócrates - E se o
forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a
vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são
realmente mais distintas do que as que se lhe mostram?
Glauco - Com toda a
certeza.
Sócrates - E se o
arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e
escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não
sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências? E, quando tiver chegado
à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das
coisas que ora denominamos verdadeiras?
Glauco - Não o
conseguirá, pelo menos de início.
Sócrates - Terá, creio
eu, necessidade de se habituar a ver os objetos da região superior. Começará
por distinguir mais facilmente as sombras; em seguida, as imagens dos homens e
dos outros objetos que se refletem nas águas; por último, os próprios objetos.
Depois disso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar
mais facilmente, durante a noite, os corpos celestes e o próprio céu do que,
durante o dia, o Sol e sua luz.
Glauco - Sem dúvida.
Sócrates - Por fim,
suponho eu, será o sol, e não as suas imagens refletidas nas águas ou em
qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá
ver e contemplar tal qual é.
Glauco - Concordo.
Sócrates - Depois
disso, poderá concluir, a respeito do Sol, que é ele que faz as estações e os
anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de
tudo o que ele via com os seus companheiros, na caverna.
Glauco - É evidente
que chegará a essa conclusão.
Sócrates - Ora,
lembrando-se de sua primeira morada, da sabedoria que aí se professa e daqueles
que foram seus companheiros de cativeiro, não achas que se alegrará com a
mudança e lamentará os que lá ficaram?
Glauco - Sim, com
certeza, Sócrates.
Sócrates - E se então
distribuíssem honras e louvores, se tivessem recompensas para aquele que se
apercebesse, com o olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se
recordasse das que costumavam chegar em primeiro ou em último lugar, ou virem
juntas, e que por isso era o mais hábil em adivinhar a sua aparição, e que
provocasse a inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e
poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser um
simples lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas ilusões e viver
como vivia?
Glauco - Sou de tua
opinião. Preferirá sofrer tudo a ter de viver dessa maneira.
Sócrates - Imagina
ainda que esse homem volta à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar: Não
ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol?
Glauco - Por certo
que sim.
Sócrates - E se tiver
de entrar de novo em competição com os prisioneiros que não se libertaram de
suas correntes, para julgar essas sombras, estando ainda sua vista confusa e
antes que seus olhos se tenham recomposto, pois habituar-se à escuridão exigirá
um tempo bastante longo, não fará que os outros se riam à sua custa e digam
que, tendo ido lá acima, voltou com a vista estragada, pelo que não vale a pena
tentar subir até lá? E se alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse
alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo?
Glauco - Sem nenhuma
dúvida.
Sócrates - Agora, meu
caro Glauco, é preciso aplicar, ponto por ponto, esta imagem ao que dissemos
atrás e comparar o mundo que nos cerca com a vida da prisão na caverna, e a luz
do fogo que a ilumina com a força do Sol. Quanto à subida à região superior e à
contemplação dos seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma para a
mansão inteligível, não te enganarás quanto à minha idéia, visto que também tu
desejas conhecê-la. Só Zeus sabe se ela é verdadeira. Quanto a mim, a minha
opinião é esta: no mundo inteligível, a idéia do bem é a última a ser
apreendida, e com dificuldade, mas não se pode apreendê-la sem concluir que ela
é a causa de tudo o que de reto e belo existe em todas as coisas; no mundo
visível, ela engendrou a luz; no mundo inteligível, é ela que é soberana e
dispensa a verdade e a inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com
sabedoria na vida particular e na vida pública.
Glauco - Concordo
com a tua opinião, até onde posso compreendê-la.
(Platão. A República. Livro VII)
Este tema - realidade ou aparência -
foi retomado ao longo da história da cultura ocidental por muitos filósofos e
alguns escritores, embora com perspectivas distintas. Um deles foi Calderón de la Barca na obra A
vida é um sonho.
Exemplos mais modernos podem ser a
série Persons Unknown, o livro Admirável Mundo Novo (Aldous
Huxley, 1932),
o filme Matrix (Irmãos Wachowski, 1999) e também o livro A
Ilha (Aldous Huxley), dirigido no cinema por Michael
Bay de 2005.
Outro autor que utilizou, parodicamente, essa parábola platônica foi o autor José
Saramago, em seu livro A Caverna e finalmente uma versão esquisita e extravagante surgiu na web Há Vida Após o Parto?