Apêndice 2: O relativo e o absoluto
Qual a importância do
conceito de verdade para o estudo das religiões? Para a postura ora hegemônica,
não muito grande. O importante é compreender. Compreender como pensam e como
sentem os religiosos. Os graus de veracidade e de coerência de suas crenças e
escrituras não teria importância. Os mórmons, por exemplo, fazem afirmações
sobre a história da América do Norte que podem ser testadas contra o pano de
fundo da arqueologia, mas não é de bom tom fazê-lo. E, portanto, não o fizemos
neste trabalho.
A verdade existe, porém.
Às vezes ela é relativa, outras vezes absoluta. É relativo dizer que Moscou
fica longe de Londres. Se o parâmetro for Paris, a afirmação é verdadeira. Se o
parâmetro for Pequim ou Tóquio, a afirmação é falsa. Mas o marco zero de
Londres fica a uma quantidade absoluta e exata de quilômetros, metros,
centímetros e milímetros do marco zero de Moscou. Esta distância é uma verdade
absoluta.
O solo de Meca é sagrado
para os muçulmanos. Não o é para os adeptos de outras crenças ou descrenças. Ou
seja, o solo de Meca é sagrado e não-sagrado ao mesmo tempo. Estamos aqui no
reino dos significados atribuídos por sujeitos pensantes, reino relativo por
natureza. Por outro lado, certos eventos históricos aconteceram ou não
aconteceram em Meca. E
isto é absoluto. Meca não fica na Alemanha ou no Japão, mas na Arábia Saudita.
E isto também é absoluto.
O evangelho atribuído a
Lucas diz, nos versículos 39 a
43 do capítulo 23, que um dos ladrões crucificados com Jesus o defendia,
enquanto o outro ladrão o insultava. Isto é um fato. Não que um dos ladrões
defendia Jesus, mas que o evangelho atribuído a Lucas o afirma. Os evangelhos
atribuídos a Marcos (15:32) e Mateus (27:44) dizem que ambos os ladrões o
insultavam. Isto também é um fato. Não que os dois ladrões insultavam Jesus,
mas que os evangelhos atribuídos a Marcos e Mateus assim o afirmam. Temos aqui
uma contradição entre evangelhos. Isto é um fato.
Vivemos, por conseguinte,
num mundo de absolutos e relativos. Vivemos também num mundo em que professores
relativistas são extremamente absolutistas quanto a suas próprias avaliações. O
papel do ensaio a seguir é, pois, lembrar a tais professores que sua avaliação
de textos alheios cai no lado relativista do espectro, algo de que se esquecem
com muita facilidade. Boa leitura.
* * *
Céticos x Críticos – A Importância do Ceticismo Grego para a Crítica
de Artes
Por
Gilson Gondim
|
Gilson Gondim |
“Difícil encontrar um
espetáculo mais inspirado e feliz do que Viagem
ao Centro da Terra, de Bia Lessa, em cartaz no Teatro Sesc- Vila Nova. Baseada
no livro de Júlio Verne, a peça faz o tempo passar com rapidez; tem o encanto
e, se me permitem o termo, o frescor da juventude. É moderna sem ser
pretensiosa; é alegre, simpática, concebida e encenada com prazer.”
(Marcelo Coelho, “Viagem ao
Centro da Terra ironiza ciência”, Folha de S. Paulo, Ilustrada, 10 de março
de 1993)
“Se não houvesse o resto, Viagem ao Centro da Terra é uma peça
chata. Mas tem o resto. Tem a frivolidade de um teatro que anda às cegas,
contando umas piadas aqui, construindo um impacto visual ali. Um teatro que
anda às cegas, não só um espetáculo. Viagem,
como Orlando antes deles, como Cartas
Portuguesas, não sabe a que veio e não se importa. Quando acaba é que se
descobre que não veio mesmo para coisa alguma.”
(Nelson de Sá, “Um besteirol metido a besta”, Folha de S. Paulo,
Mais!, 14 de março de 1993)
* * *
O exemplo acima é um
dentre muitos de críticas opostas das mesmas obras, publicadas na grande
imprensa por pessoas igualmente credenciadas para o exercício do texto crítico.
O que isto significa?
Significa, é claro, que os
julgamentos estéticos são relativos, vinculados a preferências e estados
pessoais os mais variados. Na verdade, não somente os julgamentos estéticos,
mas toda percepção. Humana ou de qualquer outro animal. É o que demonstram os
argumentos do antigo ceticismo filosófico, cujo expoente mais conhecido foi
Pirro, grego nascido cerca de 340 anos antes de Cristo.
O grande objetivo de Pirro
era a tranqüilidade, que ele dizia obter por meio da suspensão do julgamento.
Se podem ser produzidos argumentos igualmente válidos e fortes contra e a favor
de qualquer tese, pensava ele, por que sofrer com a procura de uma verdade
inexistente ou inacessível? O enfoque de Pirro era, portanto, a felicidade
pessoal; ele não foi um teórico do conhecimento. Este papel, dentro do
ceticismo grego, coube a um de seus sucessores, Enesidemo. O trabalho
epistemológico deste – assim como a ética pirrônica – chegou-nos por intermédio
de um terceiro filósofo da velha Grécia, Sexto Empírico, que viveu no século II
a. C.
Sexto Empírico não foi um
pensador original; foi um sistematizador. Organizou, expôs com clareza e legou
à posteridade os conceitos e as teses de seus predecessores céticos, sobretudo
Pirro e Enesidemo. Graças a ele, conhecemos hoje os Dez Modos de Oposição,
formulados por Enesidemo.
Definindo o cético
pirrônico como alguém capaz de alcançar a tranqüilidade por meio de uma
oposição de argumentos, Enesidemo definiu dez Modos gerais de realizar tal
oposição:
1º) As diferenças físicas
entre os animais.
Os cinco sentidos variam
muito de uma espécie para outra. A águia e o lince, por exemplo, vêem muito
melhor do que o homem, que enxerga melhor que o cachorro, que ouve e fareja
muito melhor do que o homem e assim por diante. E não se trata apenas de ver ou
ouvir melhor ou pior. Trata-se, também, de percepções diferentes. Da mesma
maneira que a configuração de uma imagem depende da forma do espelho, o formato
e outras características de um olho moldam a percepção visual, de modo que as
formas e cores de uma árvore vistas por um gato serão diferentes daquelas
vistas por uma coruja ou um crocodilo. Como poderíamos afirmar que a nossa
percepção é a mais válida? Não somos juízes imparciais, uma vez que estamos
envolvidos na disputa. Além do mais, não sabemos como um objeto é realmente, sabemos apenas como ele nos
aparece aos nossos aparelhos perceptivos.
2º) As diferenças
existentes entre os homens.
Se um hindu e um grego,
dizia Enesidemo, percebessem da mesma maneira os alimentos, teriam as mesmas
preferências alimentares. Se a percepção dos objetos fosse igual, as
preferências também deveriam sê-lo. Como todo homem é parte deste conflito,
nenhum de nós pode ser juiz de tais diferenças.
3º) As diferenças entre os
sentidos de uma mesma espécie animal (e seus limites).
O quadro, que tem três
dimensões para a visão, tem apenas duas para o tato. . O mel, agradável para o
paladar, pode ser desagradável à visão, de forma que não se pode afirmar se o
mel é, por natureza, atraente ou repulsivo. Para um cego de nascença, uma maçã
tem forma, cheiro, gosto e textura, mas não tem cor. Como podemos saber se a
maçã não tem alguma outra característica, que os sentidos humanos são incapazes
de captar?
4º) As circunstâncias do
homem ao perceber os objetos.
Um dia de sol terá
significados diversos para mim, dependendo de eu estar doente ou saudável,
exausto ou descansado, triste ou alegre, etc. Eu nunca percebo num vazio; só
posso fazê-lo por meio de alguma circunstância, de algum estado de ânimo. Não
posso saber, portanto, como as coisas são nelas mesmas, apenas como elas nos
afetam em cada circunstância, em cada estado de ânimo.
5º) Posições, distâncias e
localizações.
Um navio visto de longe
nos aparece pequeno e parado. De perto, torna-se grande e em movimento. Sendo
todos os objetos sempre vistos a partir de uma certa posição, com uma certa
distância e em algum lugar, eles sempre aparecem de diferentes maneiras. Não
havendo um critério neutro para decidir qual a percepção correta, só podemos
afirmar como os objetos nos aparecem.
6º) A mistura dos objetos
com o ambiente e com outros objetos.
As folhas de uma árvore,
que nos aparecem verdes sob uma luz como a do sol, tornar-se-ão pretas ou
vermelhas sob uma luz de outro tipo. A imagem da árvore dependerá também do
tipo de olho que a captar e do tipo de cérebro que processar a informação..
7º) Os efeitos das
variações de quantidades.
Uma mesma substância pode
curar ou matar ou não fazer nenhum efeito, dependendo da quantidade. Ela não
tem, portanto, uma natureza fixa, não é essencialmente isto ou aquilo, não tem
um valor absoluto.
8º) Relatividade.
Este Modo é o mais difícil
de explicar. Assim o resume Plínio Smith no livro O que é Ceticismo, p 42-3:
O oitavo modo é baseado na relatividade. : uma vez que tudo é relativo,
devemos suspender o juízo sobre a natureza real dos objetos. Segundo Sexto,
todos os sete Modos expostos até aqui mostram a relatividade das percepções:
elas são relativas ao animal, ao homem, ao sentido, à situação etc. Mas há um
argumento particular que mostra ser tudo relativo: as coisas que existiriam
absolutamente diferem das coisas relativas ou não? Se não diferem, é porque
também são relativas. E, se diferem, também serão relativas, pois ter uma
diferença com alguma coisa é ter uma relação com ela. Se tudo é relativo, não
podemos dizer como as coisas são em toda a sua pureza, mas apenas como nos
aparecem.
9º) Os efeitos da raridade
ou freqüência dos eventos.
Explica Plínio Smith (op.
cit., p. 43): “O sol é muito mais impressionante do que um cometa, mas, devido
à freqüência do primeiro e à raridade do segundo, apenas este último nos causa
admiração. Uma desgraça frequente acaba por nos tornar indiferente a ela”.
10º) A diversidade
cultural.
Após longa enumeração de
diferenças – no espaço e no tempo – entre hábitos, costumes, leis, crenças
etc., Enesidemo conclui que não dispomos de um critério neutro, absoluto ou
seguro para julgar qual dessas maneiras de viver está correta.
Observe-se que os Modos de
Enesidemo referem-se a coisas aparentemente objetivas, relativizando as
percepções do próprio mundo físico. O que dizer então dos juízos estéticos,
emitidos sobre objetos que não têm a solidez, a concretude de uma árvore?
No universo das artes a relatividade é tão
acentuada que todas as afirmações ameaçam tornar-se impossíveis, impondo-nos a
paralisia e o silêncio. Há, porém, uma saída, que tem sido empregada de modo
inconsciente ao longo da História: a invenção de mundos sucessivos ou
paralelos. O mundo da poesia parnasiana, por exemplo, movia-se por regras que
relegaram Augusto dos Anjos à pena da não-existência como poeta. Já o Rei dos
Parnasianos, Olavo Bilac, seria por sua vez excomungado pelos arautos do
modernismo. O crítico é portanto, na melhor da hipóteses, o porta-voz de um
modelo. A validade de seus juízos circunscreve-se, no máximo, às regras do
paradigma de que ele se faz porta-voz.
A relatividade não se
restringe a obras específicas. Aplica-se também a autores, a escolas, até mesmo
a gêneros ou períodos inteiros. A constituição das percepções críticas da arte
como mundos sucessivos ou paralelos é ilustrada com clareza – mesmo não sendo
formulada nesses termos – pelo livro O
que é arte, de Jorge Coli, publicado pela primeira vez em 1981. Primeiro
ele mostra que a crítica de arte não pode ater-se à objetividade do comentário
técnico (p. 17):
O bom conhecimento da perspectiva da anatomia, da aplicação de luz e
sombra são técnicas de um mesmo nível do manuseio das tintas, pois são
aprendidas segundo regras e podem ser julgadas com um forte grau de
objetividade. Mas elas são um meio entre outros para a construção de um quadro
e não são, nem podem ser, uma exigência absoluta. Ninguém pensaria em condenar Ingres
pelo seu desdém pela anatomia, nem Uccello pela sua perspectiva pouco ortodoxa,
nem Botticelli pela ausência de modulado em suas obras. Podemos dizer que certo
pintor conhece perfeitamente a anatomia, mas com isso estamos elogiando apenas
um aspecto técnico parcial de sua obra.
Em seguida ressalta a
complexidade e a natureza necessariamente arbitrária dos discursos que
determinam o estatuto da arte e o valor do objeto artístico (p.17-8):
[...] São tantos os fatores em jogo e tão diversos, que cada discurso
pode tomar seu caminho. Questão de afinidade entre a cultura do crítico e a do
artista, de coincidência (ou não) com os problemas tratados, de conhecimento
mais ou menos profundo da questão e mil outros elementos que podem entrar em
cena para determinar tal ou qual preferência. Dirá um que Wagner é compositor
desmedido ou de prolixidade vazia, outro invocará seu gênio harmônico a serviço
de uma dramaticidade filosófica, etc.
Após ressaltar a
dificuldade, Coli parece apontar uma saída (p. 18):
A situação é algo embaraçosa: vimos os fatores exteriores instaurando a
arte em nossa cultura, vimos que eles determinam a hierarquia dos objetos
artísticos, e nos deparamos com divergências de critérios que nos deixam
confusos. Poderíamos tentar uma saída para o impasse buscando uma solução
estatística: se não há unanimidade, talvez haja maioria. E, com efeito, pelo
menos em certos casos mais notáveis, essa maioria parece manifestar-se com
alguma solidez: é raro encontrarmos textos que desqualifiquem Cézanne, por
exemplo, Einstein, Shakespeare ou Mozart. Eles existem, sem dúvida, mas um
consenso geral valoriza extremamente a obra desses artistas.
Era, porém, uma falsa
saída (p. 18):
Temos que nos desenganar, no entanto. Não somente porque, quando se
trata de obras mais polêmicas, que não conquistaram a institucionalidade do
consenso, as polêmicas mantêm-se acerbas, mas também porque esse consenso não é
estável, ele evolui na história.
Para ilustrar seu argumento,
Coli (p. 19) lembra que Cézanne, Van Gogh, Gaugin e os impressionistas foram
rechaçados pelos críticos de seu tempo, quando havia um conflito entre os
critérios estabelecidos e a obra que eles produziam. A este respeito, ele faz
um alerta (p. 19):
[...] Poderíamos pensar que somos hoje mais aptos a perceber o valor
deles, que nossa sensibilidade é mais aberta a Van Gogh e a Cézanne que a do
público de seu tempo, e teríamos razão. Seria entretanto abusivo acreditar que
o nosso juízo de hoje determina o reconhecimento definitivo de Cézanne Van
Gogh. A crítica, amanhã, poderá nos mostrar que estávamos enganados, e que o
interesse dessa pintura, afinal de contas, não era assim tão grande.
“Absurdo?”, pergunta o
autor, para logo em seguida demonstrar que não (p. 19-20):
Rafael e Fídias são dois pilares da história da arte. Inúmeras gerações
de artista se referiram a eles como mestres. Não obstante, no começo do nosso
século [XX] foram assimilados a uma
arte convencional, a modelos de escola, a patronos do “academicismo” e viram
sua estabilidade de grandes gênios abalada; ao “convencionalismo” que
representavam preferiu-se uma arte mais conforme ao espírito de inovação do
tempo, um “primitivismo” mais espontâneo: exalta-se, por exemplo, Uccello e a
escultura arcaica. Foi preciso esperar um tempo para que, novamente, eles se
reerguessem como faróis, embora certamente menos incontestados do que antes.
Depois de apontar vários exemplos, Jorge Coli
fala das reviravoltas por que tem passado a reputação de pintores como
Meissonier, Gervex, Puvis de Chavannes, Chaplin e Alma Tademma (p. 20-1):
A morte de Meissonier, por exemplo, causou luto nacional na França. Com o tempo, no entanto, a avaliação crítica
inverteu-se e esses pintores, que se opunham aos impressionistas como técnica e
assunto, deixaram de ser exaltados. A condenação da posteridade chegou a tal
ponto que se tornou difícil ver um quadro deles em museus. Estes,
quando possuíam algum, escondiam-nos envergonhados nas reservas. Durante muito tempo, essa pintura foi
considerada como o próprio exemplo da não arte, como alguma coisa
artisticamente irrecuperável. Ora, há questão de dez ou quinze anos, começou a
sua reabilitação triunfal. Hoje descobrimos nela uma técnica admirável, um
imaginário surpreendentemente rico, por vezes um erotismo extravagante e
desmedido. E, inversamente, começam a despontar análises restritivas a Renoir,
a Monet.
Coli prossegue na sua
marcha irresistível, demolindo certezas (p. 21):
Em certos casos, são setores inteiros da arte que passam por
purgatórios do mesmo gênero. As catedrais góticas, que tanto admiramos hoje, a
escultura, os vitrais e a pintura da Idade Média, foram execrados pelos homens
da Renascença e dos séculos seguintes, até que os românticos e alguns teóricos
do século passado [XIX], como Viollet-le-Duc,
interessaram-se por eles e demonstraram seu valor. O barroco, o maneirismo, o
art nouveau, o neoclassicismo, entre outros grandes movimentos da história da
arte, conheceram trajetórias de forte oscilação entre o interesse e o desprezo.
A conclusão não poderia
ser outra (p. 21-2):
Com estes exemplos, colhidos um pouco ao acaso, já podemos chegar a uma
constatação deprimente: a autoridade institucional do discurso competente é
forte, mas inconstante e contraditória, e não nos permite segurança no interior
do universo das artes.
O que fazer, então?
Recolher-se ao silêncio? Não. Mas nunca perder a consciência da precariedade de
tudo o que si disser. E mais: ter como meta a elaboraçao de análises
fundamentadas no conceito cético de suspensão do julgamento Vejamos o que Jorge
Coli nos diz (p.37), mesmo sem fazer
nenhuma menção ao ceticismo (aqui ou em qualquer outro trecho::
A compreensão, a suspensão do julgamento denotam o desejo de rigor,
próximo da ciência. Será útil examinarmos alguns esforços feitos na história da
arte para se conseguir um rigor maior através da idéia de estilo.
O melhor exemplo que ele
nos traz é o do suíço Heinrich Wölfflin (1864-1945), cujo livro Renascença e barroco, publicado em
1888, atacou a visão – predominante desde o final do século anterior – de que o
barroco não passava de uma evolução aberrante e decadente da arte da Rnascença.
Ele tratou o barroco como uma produção artística nova e total, com seus
próprios critérios, formas e intenções, mostrando que a arte dos séculos XVII e
XVIII é diferente da arte da Renascença, e deve ser compreendida em si mesma.
Em 1915, Wölfflin completou o que começara 27 anos antes, ao lançar – em Princípios fundamentais da história da arte
– um modelo de análise minuciosa das constantes formais de cada estilo.
Sem emitir nenhum juízo de
valor em sua comparação, Wölfflin demontrou, entre outras coisas, que num
quadro renascentista as figuras têm contornos nítidos, são claramente
demarcadas e distintas, umas das outras e da paisagem. Na pintura barroca, as
transições são suaves, as figuras se misturam umas com as outras e se fundem
com a paisagem, que não tem uma existência autônoma. A arte da Renascença é –
digamos assim – federativa: uma combinação de elementos destacáveis. Na arte barroca,
cada obra se apresenta como uma totalidade, indivisível. Não são virtudes ou
defeitos, mas características, constantes formais. Algo muito mais difícil de
construir, muito mais refinado e instrutivo (e muito mais prazeroso para quem
tem a consciência cética da relatividade, dos mundos sucessivos ou paralelos)
do que arremessar adjetivos ou distribuir estrelinhas.
* * *
“Gilberto Gil ficou cinco
anos sem lançar um disco próprio com canções inéditas. Agora, com o ótimo CD
duplo Quanta, cada minuto de espera
de seus fãs foi plenamente recompensado. Trata-se de um trabalho especial, em que Gil – o mais antenado
de todos os compositores de sua geração – contraria o mito que confere aos
baianos o gosto pela preguiça. Durante dois anos ele se debruçou com afinco no
que pode ser considerado o mais ambicioso, elaborado e rico projeto de sua
carreira de 35 anos. O resultado é um álbum de letras férteis e de acabamento
primoroso.”
(“Disco cabeça”, IstoÉ, 16 de abril de 1997)
“Gilberto Gil passou cinco
anos sem gravar um CD com músicas inéditas, desde o instigante Parabolicamará, de 1992. Isso gerou
grande expectativa em relação a seu novo disco, Quanta, já nas lojas. A expectativa foi igual à decepção. Quanta, um álbum duplo, dá a impressão
de que o compositor perdeu a mão. A proposta do CD é pretensiosa. Falar sobre
as relações entre arte e ciência na cultura universal. Cita-se, entre outros,
Vilanova Artigas: ‘Quando a ciência se cala, a arte fala’. Já o resultado
musical é pífio. As melodias e os arranjos não estão à altura de Gilberto Gil,
que sempre foi um músico criativo. O pior, no entanto, são as letras. Misturam
assuntos como umbanda, filosofia oriental e física quântica, numa salada
ininteligível.”
(Celso Masson, “Muita
besteira”, Veja, 23 de abril de 1997)
COLI, Jorge. O que é arte.
São Paulo: Brasiliense, 1998, 133 p.
SMITH, Plínio. O que é
ceticismo. São Paulo: Brasiliense, 1992, 85 p.
* Gilson Gondim é membro da Academia de Livres Pensadores da Paraíba