O caso de Franchetta Borelli de Triora
Franchetta Borelli vivia em Triora, uma pequena cidade nos Prealpes, na
província de Impéria, fronteira com a França. Tinha 65 anos quando foi
submetida a duas sessões no cavalo de estiramento. Uma durou 15 horas
ininterruptas, a outra, 23. Apesar da dor atroz, a mulher demonstrou uma força
de espírito excepcional. Em dado momento, provavelmente para tentar se distrair
dos sofrimentos físicos, começou a brincar e conversar com o comissário e os
carrascos.
Abaixo transcrevemos, quase na íntegra, seu segundo dia de
interrogatório, como está relatado nos documentos originais conservados no
Arquivo do Estado de Gênova, no Arquivo Bispai de Alberga e no Arquivo
Paroquiano de Triora.
Foi perguntado à acusada se estava decidida a dizer a verdade, e ela
respondeu: "Senhor, já disse toda a verdade."
Foi perguntado se eram verdadeiras as coisas que havia começado a
confessar durante o último interrogatório, e ela respondeu: "Eu estava com
febre e não sabia o que estava dizendo."
Tendo em vista a obstinação e a audácia da acusada, foi então ordenado
que fosse despida e vestida com um camisão de lona branca, que lhe fossem
raspados os cabelos e pêlos pubianos e que, finalmente, fosse colocada sobre o
cavalo de estiramento, para ser submetida à tortura. Então ela disse:
"Julgai-me, Senhor; ajudai-me, Deus Todo-Poderoso, mandai-me ajuda e
conforto. O Senhor Deus me ajudará... Calem-me, pois disse a verdade... Senhor
Deus, liberta-me dos falsos testemunhos. Vós sabeis quem sou, os juízes do
mundo não podem sabê-lo... Se apertar os dentes, dirão que rio...
Ai, meus braços... Ajudai-me, Senhor, e não me
abandonais, pois só tenho conforto em Vos...
Calem-me. Se não disse a verdade, que Deus nunca me aceite no Paraíso.
Falta-me coração. Senhor, mandai-me o anjo do céu, para que me proteja e
defenda... Calem-me, eu disse a verdade. Se não me calarem agora, calar-me-ão
morta; falta-me o fôlego. Senhor, mandai-me o anjo do céu. Cristo, que podeis
mais do que os falsos testemunhos, arrancai-me a alma do corpo e a mandai para
onde deve ir."
Então ela se calou e disse: "Meu coração está explodindo. O Senhor
não me deixará chegar ao amanhecer, pois chamará para Si minha alma. Senhor
comissário, dê-me um pouco de vinagre ou de vinho."
Bebeu um copo de vinho e disse: "Misericórdia, peço misericórdia.
Tirem-me daqui e me dêem de beber."
Foi-lhe dado outro copo de vinho, e depois disse: "Senhor
comissário, queria comer um ovo."
E assim lhe foi dado um ovo. Já fazia cinco horas que estava sob
tortura, e nada disse nem se lamentou, até a 11ª hora, quando falou:
"Ajude-me quem puder." E após um tempo disse: "Ai, meu
coração; aí, minha cabeça. Quer me fazer descer um pouco, senhor comissário?”E
quando o comissário disse que a faria descer se falasse a verdade, ela
respondeu: "Ora, eu já falei."
E calou-se. E após doze horas disse: "Estou sendo escalpelada. Ai,
meu pescoço."
E após treze horas disse: "Dêem-me um pouco de água, que estou
morrendo de sede."
Foi-lhe perguntado se queria vinho, e ela disse que não; e assim foi-lhe
dada água para beber, e calou-se. E depois: "Não estou enxergando bem,
estou com dor nas mãos e não estou mais vestida."
E quando o comissário disse que não devia se preocupar com a roupa, mas
em dizer a verdade e cuidar da alma, respondeu: "A alma vem antes de
qualquer outra coisa. Tire-me daqui."
E quando o comissário disse que, se declarasse a verdade, seria
desamarrada e tirada de lá, respondeu: "Já disse a verdade. Não consigo
mais segurar a urina. A verdade, eu já disse; se pudesse ver a minha
alma..."
Após quatorze horas de tortura, seu irmão trouxe-lhe ovos frescos, que
ela bebeu, depois dizendo: "Não posso mais usar meus braços; e veja também
como está minha língua... Não aguento mais... Pelo amor de Deus, façam-me
descer um pouco, para que eu, pelo menos, consiga respirar."
E então foi-lhe ordenado dizer a verdade; depois seria solta e poderia
respirar o quanto quisesse. E ela respondeu:
"Meu senhor, desça-me daqui, pois já disse a verdade. Alguém me
ajude, se possível; não aguento mais, sinto meu coração explodir. Fazeis que me
ajudem, Senhor; já disse a verdade. Ah, como são cruéis. Será possível que
ninguém quer me dar uma colher para enfiar na garganta? Senhor, ateie fogo aos
meus pés, mas me tire daqui."
E quando o comissário disse que, se não declarasse a verdade, acenderia
o fogo, ela respondeu: "Faça-me queimar, pois já disse a verdade, mas me
tire daqui, pois não resistirei mais. Não me deixe ainda mais desesperada.
Acerte-me com um martelo na cabeça e acabem com minha falta de ar. Já disse a
verdade. Virgem Maria, fazei que me soltem e mandai-me alguma ajuda."
E quando o comissário disse que, se declarasse a verdade, mandaria
soltá-la e descê-la, ela respondeu:
"Eu disse a verdade. Ai, mãe, falta-me coração. Em Roma, o cavalo
não dura mais do que oito horas. Eu já estou aqui há uma noite e muitas horas
do dia. Quem me contou foi um habitante de Triora que chegou de Roma anteontem,
quando eu estava em Gênova... Estou com frio nos pés."
E foi-lhe dito que, se declarasse a verdade, o comissário mandaria
soltá-la. E ela respondeu: "Não me atormentem mais; eu já disse a verdade
e não preciso dizê-la de novo. Morro de frio nos pés. Tenha piedade, senhor
comissário, e mande trazer um pouco de brasa para me esquentar."
E assim, por ordem do comissário, foi colocada a brasa sob os pés da
acusada, e ela se calou. Duas horas depois, disse: "Meus pés estão
gelados."
E mais uma vez, por ordem do comissário, foi colocada a brasa, e ela
disse: "Senhor, faça-me descer daqui. Dez horas a mais ou a menos não
fazem diferença... E o que vê aqui é um rato..."
E olhava o comissário, mas nada via. A acusada então começou a falar intimamente
com todos, como se estivesse sentada em uma cadeira, dizendo, entre outras
coisas: "Em Triora, as castanhas marrons são tão bonitas!"
E vendo um dos assistentes remendando as meias, começou a falar:
"Em troca dos serviços que me presta, quando sair daqui, vou remendar suas
meias."
E assim falou várias vezes na presença do comissário e de seus familiares
por quase uma hora [...] E, dirigindo-se ao comissário, disse: "Senhor, permite
que me preparem uma sopa e me desçam para que eu possa tomá-la?"
E tendo o comissário decidido que deveria tomá-la sem sair do cavalo, ela
disse: "Tomarei igualmente sem dúvida, mas não ficará muito boa, com este
tormento [...]"
Calou-se, pois parecia rir do comissário e de quem a cercava [...].
Após vinte e três horas de tormento, sem dar o menor suspiro, o
comissário lhe disse: "Franchetta, não lhe importa se ficará presa aqui
mais uma ou duas horas, não é verdade?" Ela, então, voltou-se para ele e
os assistentes e disse, rindo: "Devia ter me descido duas horas atrás, mas
achei que não estaria de acordo."
Após essa última galhofa, o suplício finalmente foi suspenso. Seu caso
foi mandado ao tribunal de Gênova, que não pôde fazer nada além de absolvê-la.
Triora foi o palco de uma verdadeira caça às bruxas que levou 13
mulheres à morte, algumas de 12 ou 13 anos. Outras morreram em decorrência das
torturas sofridas, enquanto muitas foram transferidas para a prisão de Gênova,
onde morreram de fome e pelas terríveis condições em que eram obrigadas a
viver.
O comissário que conduziu as perseguições, Giulio Scribani, é lembrado
como um homem terrível e impiedoso, tendo sido excomungado em razão de sua
fúria, mas logo reabilitado por questões de conveniência política. Uma das
"supostas bruxas" disse: "Se o Diabo existe, sem dúvida mora no
corpo daquele juiz que passa dois dias sem comer e sem dormir, alimentando-se
dos horrores da tortura."
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