Uma constante na
orientação política da Igreja Católica, e de muitas outras crenças cristãs no
século XX, foi a grande aversão ao marxismo e às doutrinas socialistas de
maneira geral. Aversão essa que muitas vezes levou a hierarquia eclesiástica a
apoiar regimes conservadores e ditaduras de direita, embora tivesse
conhecimento dos crimes por elas perpetrados.
Por exemplo, em
1933, na Alemanha, o Partido Católico de Zentrum votou a favor de leis especiais
que conferissem plenos poderes a Hitler. Em troca, o novo governo nazista,
poucos meses depois, assinou uma concordata com a Santa Sé.
Muitos outros
prelados aderiram ideologicamente a doutrinas de tipo nazifascista ou
consideraram este tipo de regime um mal menor.
As ditaduras de
direita foram consideradas um "fenômeno transitório" diante dos
totalitarismos comunistas, que, ao contrário, tendiam a se autoperpetuar e a
subtrair o "cuidado com as almas" do controle da instituição
eclesiástica.
Dois exemplos
recentes desse comportamento condescendente da Igreja com as ditaduras de
direita são a Argentina e o Chile.
A Argentina
A ditadura
argentina de Videla (1976-1983) foi uma das mais cruéis da história recente do
continente sul-americano, ligada a um fenômeno tristemente famoso, os desaparecidos.
Calcula-se que, nos
poucos anos de ditadura, com a desculpa da luta contra o terrorismo, na verdade
um fenômeno marginal na época, pelo menos trinta mil pessoas desapareceram. As
vítimas eram opositores políticos, intelectuais, estudantes, sindicalistas,
trabalhadores, religiosos e até crianças. Todas essas pessoas foram ilegalmente sequestradas, torturadas, mortas ou sumiram do nada.
A repressão foi
parte de um plano ilegal, predeterminado e sistemático realizado pelos
militares.
A tragédia dentro
da tragédia foram os filhos das desaparecidas, nascidos nas prisões e nos
campos de concentração, por vezes concebidos em atos de violência sexual dos
militares. Subtraídos dos pais, foram dados em adoção aos torturadores,
materialmente responsáveis pela morte dos pais.
Pelo menos nove mil
presos políticos sofreram torturas, e calcula-se que 15 mil tenham sido mortos
pelas ruas, incluindo aí padres e religiosas.
Desde o início, o
regime militar argentino, que também perseguiu muitos católicos, foi moralmente
acobertado pelos expoentes da Igreja do país.2
O núncio apostólico (embaixador
do Estado Vaticano), monsenhor Pio Laghi, em 27 de junho de 1976, apenas três
meses antes do golpe, deu o seguinte pronunciamento: "O país tem uma
ideologia tradicional, e quando alguém pretende importar idéias diferentes ou
estranhas, a Nação reage como um organismo, com anticorpos, contra os germes, e
assim nasce a violência. Os soldados cumprem seu dever primeiro de amar Deus e
a Pátria, que está em perigo. Pode-se falar não só de invasão de estrangeiros,
como de invasão de idéias que colocam em risco valores fundamentais. Isso
provoca uma situação de emergência, e, nessas circunstâncias, podem-se aplicar
as idéias de São Tomás de Aquino, que ensina que, em casos do gênero, o amor
pela Pátria se equipara ao amor por Deus."
Pio Laghi |
Pio Laghi, que em
seguida se tornou cardeal, tinha uma relação cordial com o alto oficialato
golpista. Por exemplo, jogava tênis com o almirante Emilio Massera, um dos componentes
da junta militar que deu o golpe, tendo celebrado o casamento de seu filho e
batizado um neto seu.
A colaboração entre
a Igreja Católica e a ditadura se tornou operacional por intermédio de capelães
militares nas prisões políticas, que deviam não só confortar espiritualmente os
autores dos genocídios e os torturadores, como também, por meio da confissão,
colaborar com o Exército extraindo informações dos detentos.
Muitas vezes, os
capelães, obrigados ao segredo acerca de todas as atrocidades das quais eram
testemunhas, presenciavam também as sessões de tortura, tornando-se cúmplices
da tortura psicológica. Por exemplo, aos presos que reclamassem dos maus-tratos
sofridos, a resposta dos capelães era pedir que colaborassem para acabar com o
sofrimento a eles imposto (essa prática lembra os métodos da Inquisição). Além
disso, usavam as informações recebidas no confessionário para favorecer a
captura dos "subversivos".
Um deles foi o
sacerdote Christian von Wernich, atualmente preso e processado por crimes
cometidos durante a ditadura. Ele foi um ativo repressor que participou de
sessões de tortura e de execuções nos centros de detenção clandestinos
(aproximadamente 340 em todo o país, escondidos da mídia internacional e das
organizações humanitárias e geridos pela junta militar). A um preso que
implorou que não o deixasse morrer, respondeu: "A vida dos homens depende
de Deus e da sua colaboração."
Ele ainda batizava
os recém-nascidos que vinham ao mundo nos centros de detenção e ajudou na
captura de subversivos revelando segredos de confissão.
Em maio de 1997, a
Associação das Mães da Praça de Maio apresentou à magistratura italiana uma
denúncia contra Pio Laghi — que havia voltado ao Vaticano e se tornara Prefeito
da Congregação para a Educação Católica — por cumplicidade com o regime militar
argentino.
Segundo as Mães, o
núncio "colaborou ativamente com membros sanguinários da ditadura militar
e conduziu pessoalmente uma campanha cujo objetivo era ocultar tanto dentro
quanto fora do país o horror, a morte e a destruição. O monsenhor Pio Laghi
trabalhou ativamente para desmentir as incontáveis denúncias dos familiares das
vítimas do terrorismo de Estado e os relatórios de organizações nacionais e
internacionais de direitos humanos."3
Ele também é
acusado de "ter calado as denúncias internacionais sobre o desaparecimento
de mais de trinta sacerdotes e a morte de bispos católicos. Pio Laghi
providenciou, com a ajuda de membros do episcopado argentino, a nomeação de
capelães militares, da polícia e das prisões que garantissem o silêncio a
respeito das execuções, torturas e estupro a que assistissem. Tais capelães
deviam não só confortar espiritualmente os autores dos genocídios e os
torturadores, como também, por meio da confissão, colaborar com o exército extraindo
informações dos detentos".
A denúncia era
acompanhada de um grande dossiê com testemunhos de antigos presos políticos e
de parentes dos desaparecidos. Os depoimentos falam do empenho pessoal do
monsenhor Laghi para obter a soltura e a expatriação de vários presos
políticos, mas também demonstram que o núncio estava totalmente a par das
torturas e mortes, e que até visitou alguns dos campos de concentração.
O dossiê também
trazia os testemunhos constantes dos autos de um processo realizado em 1985 na Argentina,
que se encerrara com a condenação à prisão perpétua dos ditadores Videla e
Missera (mais tarde soltos graças ao indulto concedido pelo presidente Menem).
Outro documento
relevante é a confissão do capitão-de-corveta Adolfo Scilingo, segundo a qual [...]
a decisão que determinou que os presos desaparecidos deveriam ser jogados vivos
no mar do alto de aviões da Marinha foi comunicada pelo ex-comandante de
Operações Navais, o vice-almirante Luis Maria Mendía, em uma grande reunião de
oficiais da Marinha na base naval de Puerto Belgrano. Scilingo afirma que as
autoridades eclesiásticas foram consultadas e aprovaram o método como 'uma
forma de morte cristã'. “Isso aconteceu sob o comando do ex-comandante-em-chefe
Emilio Massera, amigo íntimo de Pio Laghi e seu companheiro das partidas de
tênis matinais”.4
O dossiê ainda
reunia uma extensa lista de pessoas cujos depoimentos poderiam ser úteis em um
eventual processo contra Pio Laghi.
Hebe de Bonafini,
ativista da Associação das Mães, declarou em uma entrevista: "Nós, mães,
sofremos o desprezo da Igreja, cujas autoridades chegaram à decisão, que talvez
também dependesse de Laghi, de que não poderíamos receber a comunhão, 'pois
estávamos cheias de ódio'. Na Argentina e em toda a América Latina, existem
duas Igrejas: a que luta junto ao povo e aos setores mais pobres, e aquela
aristocrática, dirigida pela Opus Deu que estabelece alianças criminosas com os
ditadores da vez."
É óbvio que, na
Itália, nunca houve um processo para apurar a verdade sobre essas acusações,
até porque Laghi foi protegido pela cidadania vaticana e por seu status de
diplomata. O ex-núncio se defendeu das acusações com um pequeno comunicado
tornado público pela assessoria de imprensa do Vaticano.
"As afirmações
desse grupo de mulheres argentinas são apenas difamatórias e destituídas de
qualquer conteúdo e fundamento, seja no que diz respeito aos fatos, seja do
ponto de vista ético e jurídico. Meu trabalho como núncio apostólico na
Argentina, de julho de 1974 até o final de dezembro de 1980, está todo
documentado tanto junto ao "bispado argentino quanto na Secretaria de
"Estado. Os documentos estão todos nas mãos deles. Naquele período, recebi
dos bispos da Argentina, dos líderes da comunidade judaica, de sacerdotes,
religiosos e fiéis uma infinidade de declarações escritas de solidariedade e de
reconhecimento pelo que pude fazer na época para defender — como eles mesmos
dizem — com grande responsabilidade e dedicação todos os sofredores que
encontrei em minha longa missão a serviço da Santa Sé em vários países do
mundo."
O documento
contradiz a si próprio, já que, no primeiro parágrafo, o ex-núncio apostólico
nega saber de qualquer coisa, ao passo que, no último, menciona seu trabalho em
defesa dos "sofredores", ou seja, as vítimas da ditadura, o que
implica, ao menos em linhas gerais, o conhecimento da repressão.
A parte central do
comunicado é particularmente interessante, pois Pio Laghi basicamente afirma
não ter agido a título pessoal, com seu trabalho tendo sido aprovado pela Santa
Sé. O caso Laghi exemplifica bem o papel da Santa Sé na história recente de
torturas e massacres na Argentina. E é emblemática também em razão da
dificuldade de análise dos fatos recentes.
O Chile
Mais ou menos na
mesma época, uma relação igualmente cordial ligava o núncio apostólico no
Chile, monsenhor Ângelo Sodano, nomeado em 1977, e o ditador Augusto Pinochet,
alçado ao poder no golpe militar de 1973, que, aliás, sempre ostentou seu
catolicismo.
Sodano, futuro
cardeal e secretário de Estado do Vaticano, chegou a declarar a respeito do
regime chileno: "Até as obras-primas têm algumas máculas. Convido vocês a
não se deterem nelas e a observarem o conjunto, que é maravilhoso."5
Menos cordiais eram
as relações entre a nunciatura e o arcebispo de Santiago, Raul Silva Henriquez,
decidido opositor ao regime, cujos posicionamentos públicos antiditadura por
várias vezes irritaram os ambientes diplomáticos vaticanos.6
Em abril de 1987, o
papa João Paulo II, durante viagem à América Latina, visitou o Chile e
encontrou o ditador Pinochet. A visita foi fruto do empenho conjunto de Sodano
e da Opus Dei, organização à qual pertenciam tanto o atual porta-voz do
Vaticano, Joaquín Navarro Valls, quanto ministros do governo chileno, como
Francisco Javier Cuadra.
O pontífice visitou
o palácio presidencial (uma foto que ficou na história retrata Woityla e
Pinochet cumprimentando a multidão lado a lado, na sacada do La Moneda), mas
não a sede da Vicaria de Ia Solidaridad, estrutura da diocese de Santiago
utilizada para assistir às vítimas da repressão, limitando-se a cumprimentar
seus dirigentes do lado de fora.
A chegada do papa
reuniu uma multidão de dezenas de milhares de pessoas. Mas muitos eram
católicos vindos para protestar contra o que parecia um aval da Igreja à
ditadura chilena e para denunciar publicamente os crimes do regime. Na mesma
noite da visita ao palácio, os confrontos entre policiais e manifestantes
levaram à morte de um destes.
João Paulo II
visitou vários lugares no Chile; encontrou-se com representantes da oposição,
inclusive presos políticos que ainda traziam no corpo as marcas dos maus-tratos
sofridos; e fez vários discursos públicos. O papa, por um lado, convidou
Pinochet a respeitar os direitos humanos e declarou que a ditadura era "um
evento transitório". Por outro, condenou a ingerência da comunidade
internacional nos assuntos internos de um Estado soberano e pediu que os
opositores ao regime não recorressem nunca, por nenhuma razão, à luta armada.
Se o comportamento
da Igreja em relação ao regime militar chileno, de algum modo, podia ser
entendido como "razão de Estado", menos compreensíveis são outras
demonstrações de apoio à pessoa de Augusto Pinochet, mesmo depois da queda da
ditadura.
"Vinte anos
depois do golpe", escreve Gianni Perrelli no L'Espresso de 10 de dezembro
de 1998, "a legitimação mais calorosa ao ditador Augusto Pinochet chegou
das salas do Vaticano. Em 18 de fevereiro de 1993: a muito particular ocasião
de suas bodas de ouro foi comemorada com duas cartas em espanhol, escritas de
próprio punho, que expressavam amizade e estima e traziam na parte de baixo a
assinatura do papa Woityla e do secretário de Estado Ângelo Sodano. Ao general
Augusto Pinochet Ugarte e à sua digníssima esposa, senhora Lúcia Hiriarde
Pinochet, por ocasião de suas bodas de ouro e em sinal das abundantes graças
divinas', escreve o pontífice, sem constrangimento. 'É com grande prazer que
concedo, também a seus filhos e netos, uma bênção apostólica especial. João
Paulo II'
Ainda mais calorosa foi a mensagem de Sodano. "O cardeal
escreve que recebeu do pontífice 'a tarefa de enviar à Sua Excelência e à sua
digníssima esposa o autógrafo pontifício, aqui incluído, em sinal de especial
benevolência. E acrescenta: 'Sua Santidade guarda a comovida lembrança de seu
encontro com os membros de sua família por ocasião da extraordinária visita
pastoral ao Chile.' E conclui afirmando ao senhor general a expressão de minha
mais alta e distinta consideração?'
Ainda em 1998,
quando a magistratura espanhola pediu a extradição de Pinochet, acusado do
homicídio de cidadãos espanhóis, a Secretaria de Estado vaticana se opôs à
extradição por "razões humanitárias", provocando protestos nos
círculos católicos progressistas.
Nem toda a Igreja
Católica concordava com as ditaduras sul-americanas. Ao contrário. Em 1968,
durante uma conferência episcopal na América do Sul, nasceu uma corrente de
pensamento denominada "Teologia da Libertação". Alguns altos
expoentes da hierarquia eclesiástica assumiram uma posição decidida a favor dos
extratos mais desfavorecidos da sociedade latino-americana e de sua luta. No
Brasil, a Teologia teve o apoio do cardeal de São Paulo, Paulo Evaristo Arns, e
do bispo Helder P. Câmara.
Na Nicarágua,
vários sacerdotes e leigos católicos participaram da luta armada contra a
ditadura de Somoza, e, em seguida, sacerdotes como Ernesto Cardenal e Miguel
D'Escoto chegaram a fazer parte do governo sandinista. Mas a terceira reunião
da conferência episcopal, que aconteceu em Puebla, no México, em 1979,
presenciou a emergência de uma forte oposição às teses da Teologia da
Libertação, levada adiante pelos setores conservadores.
Essa oposição foi
reforçada nos anos 1980, graças ao apoio do pontífice João Paulo II. Os
principais artífices da Teologia da Libertação foram progressivamente afastados
das camadas hierárquicas superiores e seu campo de ação, aos poucos, foi sendo
reduzido.
O papa Bento XVI
também se pronunciou várias vezes contra a Teologia da Libertação, em especial
no confronto com um de seus mais acirrados defensores, o padre franciscano
Leonardo Boff.
Em 6 de agosto de
1984, o então cardeal Ratzinger escreveu o primeiro documento vaticano
"Sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação".
Poucos dias depois,
em 7 de setembro, teve seu primeiro encontro com Leonardo Boff, convocado pelo
Vaticano para uma "reunião" no gabinete da Congregação para a Defesa
da Fé. Durante a "conversa", o cardeal Ratzinger e o frei Boff
falaram de "alguns problemas surgidos da leitura do livro Igreja: carisma
e poder", para "dar ao frei Boff a oportunidade de esclarecer alguns
aspectos do livro que suscitaram dificuldade". Mas no ano seguinte, em 20
de março de 1985, uma "notificação" da mesma Congregação, assinada
pelo cardeal Joseph Ratzinger e aprovada pelo papa Woityla, afirmou que o livro
continha "opções que colocavam em perigo a real doutrina da fé". Foi
imposto ao teólogo franciscano um ano de silêncio.
Alguns dias depois,
Ratzinger, referindo-se a Boff para alguns jornalistas, afirmou combater sua
tese. Boff largaria a batina.7
FONTES DE ESTUDO
4. Agenzia Adista.
5. Le Monde Diplomatique/ll Manifesto, setembro
de 2001.
6. L'Espresso, 10 de dezembro de 1998.
Nenhum comentário:
Postar um comentário